O enunciado aprovado traz a lume os princípios da inafastabilidade do Poder Judiciário, da economia processual e da celeridade, uma vez que destacou a possibilidade de que o Poder Judiciário acuse a existência de irregularidades no âmbito do processo administrativo ou que invalidem a lisura do ato administrativo de declaração de utilidade pública.
Enunciado 3 – Não constitui ofensa ao artigo 9º do Decreto-Lei nº 3.365/1941 o exame por parte do Poder Judiciário, no curso do processo de desapropriação, da regularidade do processo administrativo de desapropriação e da presença dos elementos de validade do ato de declaração de utilidade pública.
O enunciado aprovado consolida o entendimento de que o exame por parte do Poder Judiciário, no curso do processo de desapropriação, da regularidade do processo administrativo de desapropriação e da presença dos elementos de validade do ato de declaração de utilidade pública não ofende o artigo 9º do Decreto-Lei nº 3.365/1941.
O Decreto-Lei nº 3.365/1941, conhecido como a Lei Geral das Desapropriações, foi editado com a finalidade de disciplinar as desapropriações realizadas em atendimento ao interesse público em todo o território nacional, como se pode ler do seu artigo 1º[1]. Para que um bem seja desapropriado – e, conforme o artigo 2º[2], todos os bens podem sê-lo –, é preciso que seja declarada a sua utilidade pública. Trata-se de um instrumento jurídico que permite a transferência de um bem de titularidade privada para o Estado, quando haja justificativa fundamentada no interesse público.
A declaração de utilidade é uma prerrogativa do Poder Executivo, prevista neste dispositivo legal na forma de decreto do Presidente da República, Governador, Interventor ou Prefeito (artigo 6º[3]), embora o artigo 8º[4] preveja a possibilidade de o Poder Legislativo tomar a iniciativa da desapropriação.
O processo de desapropriação, portanto, deve iniciar como um processo administrativo, de iniciativa do Poder Executivo ou, excepcionalmente, do Poder Legislativo. Na hipótese, porém, de não haver, no curso desse processo administrativo, acordo entre as partes, isto é, entre o particular proprietário e o poder público interessado na desapropriação do bem, faz-se mister que o Estado intente uma ação judicial, conforme prevê o artigo 10:
Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará.
Esta ação judicial é disciplinada nos artigos 11 a 30 do Decreto-Lei, e se destina precipuamente à determinação do valor da indenização a ser paga ao proprietário expropriado, com base em perícia técnica (art. 14). Nesses artigos são instituídos os procedimentos que devem ser observados pelo magistrado para levar a efeito a desapropriação em caso de desacordo.
Entres os mencionados artigos, são estabelecidos critérios de competência para o ajuizamento da ação, requisitos da petição inicial, condições para a legitimidade do magistrado, instruções para a designação de perito, os procedimentos que devem ser observados em caso de urgência, entre outros aspectos procedimentais.
Destaca-se, porém, o artigo 20 da norma:
Art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.
Sendo a ação judicial de iniciativa do Poder Público, a contestação é, neste caso, invariavelmente do particular proprietário cujo bem é alvo do processo de desapropriação, mas, como se depreende do texto do artigo 20, qualquer questão que não constitua um vício do processo judicial ou a impugnação do preço ofertado pelo bem deve ser objeto de uma ação judicial própria e apartada.
Acontece que, ao se referir apenas a vício do processo judicial, omitindo-se sobre os eventuais vícios do processo administrativo com que se inicia o processo de desapropriação por interesse público, o artigo 20 deu azo a que se interpretasse que estes últimos vícios (administrativos) somente poderiam ser questionados em ação autônoma. Esta interpretação se reforçava pela equivocada exegese da restrição contida no artigo 9º, in verbis:
Art. 9º Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública.
Segundo este artigo, cabe tão-somente ao Poder Executivo a decisão sobre o mérito de uma desapropriação por utilidade pública, isto é, é sua prerrogativa determinar se no caso concreto está configurada uma ou mais hipóteses presentes no artigo 5º do Decreto-Lei, que justamente elenca os casos de utilidade pública. Esta decisão é exclusivamente administrativa e fica assim resguardada do exame de mérito por parte do Poder Judiciário (mérito do ato administrativo). Na ação judicial prevista nos artigos 11 a 30, portanto, não estaria o juiz autorizado a avaliar os fundamentos apresentados no ato administrativo que determinou a utilidade pública do imóvel a ser desapropriado, nem eventuais vícios cometidos nesta fase administrativa.
Pois bem. Como se viu em relação ao artigo 20, pode o réu alegar, na contestação, apenas vícios do processo judicial. Seguindo esse entendimento se encontram precedentes nos Tribunais de Justiça pátrios, a exemplo do seguinte:
APELAÇÃO – DESAPROPRIAÇÃO – Alegação de que o decreto municipal que declarou o imóvel desapropriado de utilidade pública deveria ter se lastreado em prévio procedimento administrativo, padecendo de nulidade – Na via estreita da ação de desapropriação, de cognição limitada, as matérias suscetíveis de discussão cingem-se a eventuais vícios processuais e ao preço do bem cuja expropriação se pretende, não subsistindo espaço para questionamentos tocantes à existência, ou não, de utilidade pública, muito menos para a declaração de nulidade do decreto expropriatório – Inteligência conjunta dos artigos 9º e 20 do Decreto-lei nº 3.365/1941 – Decreto Municipal nº 1844, de 13 de novembro de 2012, que declarou de utilidade pública a área descrita na inicial, discriminando os seus proprietários, ante a necessidade de construção de um posto de saúde e de uma creche (fls. 13/14), casos reputados de utilidade pública pelo artigo 5º, g e h, do Decreto-lei nº 3.365/1941 – Requisitos coessenciais à higidez do ato expropriatório contemplados – Sentença mantida – Recurso desprovido.[5]
Diante desta restrição imposto à atuação do Poder Judiciário, pode-se perguntar, porém, se no curso do processo judicial de desapropriação poderia o magistrado examinar eventuais vícios que inquinassem o processo administrativo de desapropriação. É nesse contexto que foi aprovado o Enunciado nº 3 no âmbito da 1ª Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal:
Enunciado 3
Não constitui ofensa ao artigo 9º do Decreto-Lei nº 3.365/1941 o exame por parte do Poder Judiciário, no curso do processo de desapropriação, da regularidade do processo administrativo de desapropriação e da presença dos elementos de validade do ato de declaração de utilidade pública.
O Enunciado 3 consolida o entendimento de que o proprietário do imóvel objeto do processo de desapropriação, ao verificar a presença de irregularidades no processo administrativo ou de vícios hábeis a invalidar o ato de declaração de utilidade pública, pode provocar o próprio juiz responsável pelo processo judicial previsto no artigo 10 e disciplinado nos artigos 11 a 30 com vistas à sua revisão e eventual anulação, sem a necessidade de intentar nova ação judicial. Ou seja, sem que houvesse a violação do artigo 9º da norma.
O enunciado aprovado, portanto, traz a lume o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, insculpido no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição de 1988, in verbis: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Além disso, o texto do enunciado também ressalta o princípio da economia processual e da celeridade, este previsto no inciso LXXVIII do artigo 5º da CF/1988[6], uma vez que destacou a possibilidade de que o Poder Judiciário acuse a existência de irregularidades no âmbito do processo administrativo ou que invalidem a lisura do ato administrativo de declaração de utilidade pública – isso, repita-se, sem que haja violação à vedação contida no artigo 9º do Decreto-Lei nº 3.365/1941.
Dessa forma, o Enunciado 3 da 1ª Jornada de Direito Administrativo interpreta a vedação do artigo 9º do Decreto-Lei nº 3.365/1941 de maneira que não impeça que o proprietário de um bem que seja objeto de um processo de desapropriação alegue, no âmbito do processo judicial instaurado na hipótese de desacordo entre as partes (artigo 10 mencionado), eventuais irregularidades perpetradas na fase do processo administrativo de desapropriação ou a ausência de elementos de validade do ato de declaração de utilidade pública, quando seja o caso.
[1] Art. 1º A desapropriação por utilidade pública regular-se-á por esta lei, em todo o território nacional.
[2] Art. 2º Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
[3] Art. 6º A declaração de utilidade pública far-se-á por decreto do Presidente da República, Governador, Interventor ou Prefeito.
[4] Art. 8º O Poder Legislativo poderá tomar a iniciativa da desapropriação, cumprindo, neste caso, ao Executivo, praticar os atos necessários à sua efetivação.
[5] TJ-SP 00060569720128260238 SP 0006056-97.2012.8.26.0238, Relator: Marcos Pimentel Tamassia, Data de Julgamento: 24/10/2017, 1ª Câmara de Direito Público.
[6] Art. 5º […] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Read MoreO enunciado aprovado consolida o entendimento de que é legitimo o exercício da autotutela administrativa, sem autorização judicial, para a proteção de bens públicos ocupados ilegalmente, desde que respeitados alguns requisitos.
Enunciado 2 – O administrador público está autorizado por lei a valer-se do desforço imediato sem necessidade de autorização judicial, solicitando, se necessário, força policial, contanto que o faça preventivamente ou logo após a invasão ou ocupação de imóvel público de uso especial, comum ou dominical, e não vá além do indispensável à manutenção ou restituição da posse (art. 37 da Constituição Federal; art. 1.210, §1º, do Código Civil; art. 79, § 2º, do Decreto-Lei n. 9.760/1946; e art. 11 da Lei n. 9.636/1998).
Os bens públicos são bens jurídicos móveis ou imóveis pertencentes a pessoas jurídicas de direito público, e são utilizados pela administração pública como meios instrumentais para a satisfação das necessidades da sociedade. Nesse sentido, o Código Civil os classifica em três categorias:
Art. 99. São bens públicos:
I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Estes bens públicos, embora sob a titularidade do Estado, são destinados exclusivamente ao atendimento das demandas sociais. Em lição especializada sobre o tema, Marçal Justen Filho ensina que “O Estado não recebe os bens para a satisfação de seus próprios interesses. Sempre se trata de utilizar os bens para promover os direitos fundamentais da população. Os bens públicos são atribuídos ao Estado para fins de sua proteção e para fruição democrática e adequada de suas utilidades.”[1]. O Estado, portanto, incumbido do dever de proteção dos bens em seu poder, deve resguardá-los de uso impróprio e garantir a sua fruição para o proveito e atendimento do interesse público em geral.
Há circunstâncias, porém, em que os bens públicos, sejam eles de uso comum, de uso especial ou dominicais, são invadidos e ocupados por particulares que não têm autorização legal para deles fazer uso, alterando indevidamente a destinação legal do uso desses bens. Isso incorre em turbação ou esbulho dos bens públicos.
Nessas circunstâncias, um dos institutos para a proteção de posses é a possibilidade de autotutela quando um bem for invadido ou utilizado indevidamente, que vale inclusive para particulares. Esta previsão encontra-se no artigo 1.210 do Código Civil:
Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.
§ 1º O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
§ 2º Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.
Além do direito de desforço imediato de caráter geral, o Estado detém esse direito, também, com fundamento no dever da administração pública de atender aos princípios da legalidade e da eficiência[2], legitimando a autotutela para a proteção do patrimônio público quando este for indevidamente utilizado. Esta previsão, para o que importa ao assunto em comento, já havia sido regulamentada pelo Decreto-Lei nº 9.760/1946[3] e pela Lei nº 9.636/1998[4], que previram o direito de o administrador público exercer a proteção de bens públicos sem a necessidade de determinação judicial prévia.
Com o objetivo de trazer maior clareza a este instituto e ampliar a divulgação da tese entre os órgãos e entes administrativos, o tema foi debatido na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, tendo sido votado e aprovado o Enunciado 2 com o seguinte teor:
Enunciado 2
O administrador público está autorizado por lei a valer-se do desforço imediato sem necessidade de autorização judicial, solicitando, se necessário, força policial, contanto que o faça preventivamente ou logo após a invasão ou ocupação de imóvel público de uso especial, comum ou dominical, e não vá além do indispensável à manutenção ou restituição da posse (art. 37 da Constituição Federal; art. 1.210, §1º, do Código Civil; art. 79, § 2º, do Decreto-Lei n. 9.760/1946; e art. 11 da Lei n. 9.636/1998)
O enunciado aprovado, que sintetiza os dispositivos legais citados anteriormente, consolida o entendimento de que é legitimo o exercício da autotutela administrativa, ou seja, sem a necessidade de autorização judicial, por parte do administrador público para a proteção de bens públicos ocupados ilegalmente, desde que exercida com proporcionalidade e razoabilidade e desde que faça preventivamente ou imediatamente após a invasão ou ocupação ilícita.
Como era de se esperar, este entendimento já vinha sendo adotado pelos Tribunais brasileiros, como é o caso do Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão jurisdicional competente para uniformizar a interpretação de leis federais.
É o caso do julgamento do REsp 1.071.741, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, no qual o STJ ressaltou o dever do administrador público de utilizar-se de todas as medidas possíveis e cabíveis para assegurar a proteção dos bens públicos sob a sua tutela. Confira-se:
9. Diante de ocupação ou utilização ilegal de espaços ou bens públicos, não se desincumbe do dever-poder de fiscalização ambiental (e também urbanística) o Administrador que se limita a embargar obra ou atividade irregular e a denunciá-la ao Ministério Público ou à Polícia, ignorando ou desprezando outras medidas, inclusive possessórias, que a lei põe à sua disposição para eficazmente fazer valer a ordem administrativa e, assim, impedir, no local, a turbação ou o esbulho do patrimônio estatal e dos bens de uso comum do povo, resultante de desmatamento, construção, exploração ou presença humana ilícitos.
10. A turbação e o esbulho ambiental-urbanístico podem e no caso do Estado, devem ser combatidos pelo desforço imediato, medida prevista atualmente no art. 1.210, § 1º, do Código Civil de 2002 e imprescindível à manutenção da autoridade e da credibilidade da Administração, da integridade do patrimônio estatal, da legalidade, da ordem pública e da conservação de bens intangíveis e indisponíveis associados à qualidade de vida das presentes e futuras gerações.[5]
Ademais, a doutrina também é esclarecedora sobre o tema. Segundo os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, o desforço imediato é a medida recomendável e se justifica em razão do princípio da autoexecutoriedade dos atos públicos:
Observamos que a utilização indevida de bens públicos por particulares, notadamente a ocupação de imóveis, pode – e deve – ser repelida por meios administrativos, independentemente de ordem judicial, pois o ato de defesa do patrimônio público, pela Administração, é autoexecutável, como o são, em regra, os atos de polícia administrativa, que exigem execução imediata, amparada pela força pública, quando isto for necessário.[6]
O princípio da autoexecutoriedade dos atos praticados pela administração pública, portanto, vai ao encontro do exposto anteriormente, atribuindo aos atos administrativos o poder de serem executados sem o aval prévio do Poder Judiciário, desde que haja previsão legal para tanto ou situação excepcional de urgência.
Assim, em consonância com a jurisprudência e a doutrina especializada, o texto do Enunciado 2 é categórico ao autorizar o emprego do desforço imediato pela administração pública em casos de invasão ilegal de imóveis públicos, desde que o administrador o faça preventivamente ou logo após a invasão ou ocupação de imóvel público de uso especial, comum ou dominical, e não vá além do indispensável à manutenção ou restituição da posse.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 1118.
[2] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]
[3] Art. 79. A entrega de imóvel para uso da Administração Pública Federal direta compete privativamente à Secretaria do Patrimônio da União – SPU. […]
§ 2º O chefe de repartição, estabelecimento ou serviço federal que tenha a seu cargo próprio nacional, não poderá permitir, sob pena de responsabilidade, sua invasão, cessão, locação ou utilização em fim diferente do que lhe tenha sido prescrito.
[4] Art. 11. Caberá à SPU a incumbência de fiscalizar e zelar para que sejam mantidas a destinação e o interesse público, o uso e a integridade física dos imóveis pertencentes ao patrimônio da União, podendo, para tanto, por intermédio de seus técnicos credenciados, embargar serviços e obras, aplicar multas e demais sanções previstas em lei e, ainda, requisitar força policial federal e solicitar o necessário auxílio de força pública estadual.
[5] STJ, REsp 1.071.741/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/03/2009, DJe 16/12/2010.
[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 640.
Read MoreO enunciado aprovado é categórico ao destacar a necessidade de uma seleção imparcial quando ocorrer a restrição do número de participantes no Procedimento de Manifestação de Interesse - PMI, visando-se, assim, o atendimento ao disposto no artigo 37, caput, como também o efetivo alcance do interesse público.
Enunciado 1 – A autorização para apresentação de projetos, levantamentos, investigações ou estudos no âmbito do Procedimento de Manifestação de Interesse, quando concedida mediante restrição ao número de participantes, deve se dar por meio de seleção imparcial dos interessados, com ampla publicidade e critérios objetivos.
O Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI é um procedimento consultivo-colaborativo, regido no âmbito federal pelo Decreto nº 8.428/2015, por meio do qual a Administração Pública possibilita que particulares elaborem e aprofundem estudos e projetos que servirão de parâmetro para uma projetada contratação pública, geralmente na área de delegação de utilidades públicas (concessões, PPPs, etc)[1].
Este diálogo público-privado tem como objetivo facilitar o planejamento da contratação pública para a Administração Pública, pois permite que haja a participação ativa dos próprios interessados em atendê-la, os quais, sendo especialistas no tema demandado, possuem a expertise necessária para identificar a demanda e adequar o projeto a esta, minimizando custos e riscos.
De tal modo, embora não seja vinculativo e não enseje qualquer direito de preferência em uma licitação pública futura, surge o questionamento sobre o possível favorecimento do interessado que participa solitariamente deste procedimento administrativo, e não em conjunto com outros potenciais concorrentes.
Em um primeiro momento, o Decreto Federal nº 8.428/2015, que regulamenta este procedimento no âmbito federal, vedava a aposição de qualquer restrição sobre o número de interessados em participar da elaboração dos projetos no Procedimento de Manifestação de Interesse. Ou seja, o decreto continha a regra de que qualquer interessado poderia remeter o seu projeto, sem a possibilidade de a Administração estipular um número limitado de participantes. Assim, em primeiro momento, essa vedação à restrição ocorria porque entendida como teoricamente benéfica, visto que a elaboração de diversos projetos e a participação de diversos interessados poderiam facilitar a elaboração de um projeto final mais consistente e/ou dificultaria um possível favorecimento de determinado interessado nesta etapa preliminar de planejamento contratual.
Contudo, na prática, essa vedação à limitação de participantes acabou por gerar uma situação indesejada: nos casos em que havia um grande número de projetos apresentados, a Administração Pública deparou-se com dificuldades para analisá-los, tornando-se até mesmo ineficaz em sua análise, assim como muitos projetos apresentados eram precários, o que, isoladamente ou em conjunto, não atendiam ao objetivo deste procedimento.
Diante deste contexto, o Decreto Federal nº 10.104/2019 alterou o inciso I do artigo 6º do Decreto Federal nº 8.428/2015, de forma a possibilitar que a Administração Pública, analisado o caso em concreto, limite o número de interessados no Procedimento de Manifestação de Interesse. In verbis:
Art. 6º A autorização para apresentação de projetos, levantamentos, investigações e estudos:
I – poderá ser conferida com exclusividade ou a número limitado de interessados; (Redação dada pelo Decreto nº 10.104, de 2019)
O objetivo de tal alteração é que a Administração Pública, podendo limitar o número de interessados, valha-se de tal faculdade, quando necessário, para deter maior capacidade institucional na análise dos projetos apresentados no PMI.
Essa limitação do número de interessados, contudo, acentua o risco de desvirtuamento do procedimento e esbarra também no critério de escolha dos interessados.
O decreto trouxe a possibilidade jurídica de restringir o número de participantes, mas como escolher quem irá participar? Pode a Administração Pública escolher arbitrariamente quem deseja que participe?
Esta temática foi objeto de debates na 1ª Jornada de Direito Administrativo, do Conselho da Justiça Federal, ocorrida em agosto de 2020. Na ocasião, o conjunto de especialistas em Direito Administrativo, que participou do evento, formou consenso em aprovar o seguinte enunciado:
Enunciado 1
A autorização para apresentação de projetos, levantamentos, investigações ou estudos no âmbito do Procedimento de Manifestação de Interesse, quando concedida mediante restrição ao número de participantes, deve se dar por meio de seleção imparcial dos interessados, com ampla publicidade e critérios objetivos.
Portanto, a comunidade jurídica dedicada ao Direito Administrativo formou consenso no sentido de que, embora a opção em adotar o Procedimento de Manifestação de Interesse seja um ato discricionário da Administração Pública, a escolha dos participantes deve necessariamente ser realizada a partir de uma seleção imparcial, com critérios objetivos e ampla publicidade.
Este entendimento era defendido por Gustavo Schiefler, em sua obra Diálogos Público-Privados, conforme:
“Assim, se, por alguma razão justificada, o objetivo da administração pública é selecionar um único participante para a elaboração colaborativa dos estudos técnicos que darão origem a determinado projeto, não poderá simplesmente analisar os diferentes candidatos e motivar a sua escolha de exclusividade a partir de critérios racionais, adequados e objetivos. Há um elemento essencial para essa operação, que não pode ser afastado: os critérios de eleição devem ser previamente conhecidos pelos interessados, o que remete, justamente, ao lançamento de um edital e à promoção de um processo seletivo análogo à licitação pública. Esse é o procedimento-padrão previsto na legislação para os casos em que é preciso escolher apenas um dentre vários potenciais fornecedores ou prestadores de serviços.
Ainda que não se pretenda a contratação do particular, mas somente a concessão de uma autorização qualificada para que realize estudos e projetos, haverá de ser conduzido um chamamento público para a sua eleição, sob pena de violação do princípio da isonomia e da impessoalidade. E este chamamento público, que conterá as regras de qualificação e seleção, terá de ser necessariamente aberto a todo o conjunto de eventuais interessados. Não se descarta, na hipótese dos diálogos prévios às licitações públicas, que excepcionalmente apenas um particular seja eleito para a interlocução; essa seleção, no entanto, como regra, deverá ser antecedida de um procedimento aberto e isonômico. Sendo viável a competição, não há como obter uma decisão legítima de exclusão de participantes sem que haja o confronto entre os diferentes potenciais interessados – especialmente em diálogos público-privados cujo resultado pode conferir benefícios econômicos substanciais, como é o caso do procedimento de manifestação de interesse (PMI), em que o participante pode obter o ressarcimento pelos dispêndios incorridos nos estudos, que podem chegar a cifras milionárias.”[2]
Diante deste entendimento, nos casos onde for adotado o Procedimento de Manifestação de Interesse e a Administração Pública optar por limitar o número de participantes, é imperioso que seja prestigiado o princípio da impessoalidade na escolha dos participantes, mediante procedimento objetivo e dotado de publicidade, similar, embora simplificado, à lógica adotada no âmbito das próprias licitações públicas, regida pela Lei Federal nº 8.666/1993.
Vale ressaltar que este tema já foi objeto de preocupação das instâncias técnicas do Tribunal de Contas da União (TCU), como se verifica do relatório do Acórdão nº 1096/2019 – Plenário:
Tratam os autos de acompanhamento do primeiro estágio de desestatização, relativo à concessão do lote rodoviário que compreende os segmentos das rodovias BR-364/365/GO/MG entre as cidades de Jataí/GO e Uberlândia/MG, segundo o rito da Instrução Normativa-TCU 46/2004.
[…]
367. Nesse contexto, de viabilizar um novo corredor logístico pela BR-364, foi lançado o Edital de Chamamento Público nº 3/2014 com vistas à elaboração dos estudos para a concessão da BR-364/GO/MG, no trecho entre o entroncamento com a BR-060 (A) (Jataí) até o entroncamento com a BR-153 (A) / 262 (A) (Comendador Gomes) […].
369. No entanto, a única empresa que levou adiante a elaboração dos estudos, por meio do procedimento de manifestação de interesses (PMI) decorrente do Edital de Chamamento Público 3/2014, privilegiou o corredor logístico preexistente (BR-364/365/GO/MG) em detrimento da alternativa que permitiria reduzir os custos logísticos (BR-364/GO/MG) entre as áreas produtoras do centro-oeste e os polos consumidores e exportadores do sudeste.
370. Ocorre que a empresa responsável pelos estudos (EGP) faz parte do grupo empresarial que administra a concessão da BR-050/GO/MG (MGO Rodovias) e, para os interesses desse grupo (peça 60) , a viabilização de um corredor logístico alternativo pela BR-364/GO/MG teria efeitos negativos para seu resultado, uma vez que sua concessão capta o tráfego proveniente do corredor logístico atual (BR-364/365/GO/MG) , a partir de Uberlândia/MG, com direção ao Estado de São Paulo, passando por duas praças de pedágio.
371. Há que se registrar, por conseguinte, a existência de conflito de interesses no processo de escolha dos trechos rodoviários que constaram dos estudos de viabilidade apresentados ao TCU e, ainda, que o corredor logístico da BR-364/365/GO/MG, a ser contemplado com investimentos de aproximadamente R$ 2 bilhões (ref. julho/2016) ao longo de trinta anos, não é aquele que otimiza a cadeia logística nacional, de acordo com o planejamento governamental existente para o setor de transportes.[3]
É nesse sentido que o enunciado aprovado é categórico ao destacar a necessidade de uma seleção imparcial quando ocorrer a restrição do número de participantes, visando-se, assim, o atendimento ao disposto no artigo 37, caput, como também o efetivo alcance do interesse público.
Outro ponto a ser destacado, sobre a necessidade de isonomia na escolha dos interessados, é o fato de que essa restrição deve ser encarada como uma exceção à regra de ampla abertura à participação de interessados, uma vez que a diminuição desse universo poderá acarretar uma diminuição na competitividade em uma licitação futura, baseada nos projetos apresentados, fato que reforça a necessidade de adoção de um procedimento objetivo e isonômico entre os interessados.
Nesse sentido, a tese fixada no Enunciado 1 da 1ª JDA do Conselho da Justiça Federal consolida o entendimento de que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, quando ocorrer a restrição de interessados no Procedimento de Manifestação de Interesse, a Administração Pública deverá adotar critérios objetivos e isonômicos na escolha dos participantes.
[1] Conforme conceitua Gustavo Schiefler, o PMI é um procedimento administrativo consultivo “por meio do qual a Administração Pública organiza em regulamento a oportunidade para que particulares, por conta e risco, elaborem modelagens com vistas à estruturação da delegação de utilidades públicas, geralmente por via de concessão comum ou de parceria público-privada, requerendo, para tanto, que sejam apresentados estudos e projetos específicos, conforme diretrizes predefinidas, que sejam úteis à licitação pública e ao respectivo contrato, sem que seja garantido o ressarcimento pelos respectivos dispêndios, a adoção do material elaborado ou o lançamento da licitação pública, tampouco qualquer vantagem formal do participante sobre outros particulares.”. Cf. SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 97.
[2] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos Público-Privados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 184 e 185.
[3] TCU, Acórdão 1096/2019 – Plenário. Relator Ministro Bruno Dantas, julgado em 15/05/2019.
Read MoreA LGPD, agora em parcial vigor, institui regime jurídico devotado à disciplina das operações de tratamento de dados realizadas por entes que compõem o poder público, dos quais se espera que envidem esforços para garantir efetivas prestações estatais para concretizar as normas de proteção de dados pessoais.
Matheus Lopes Dezan[i]
Em 18 de setembro de 2020, sexta-feira, iniciou-se a parcial[ii] produção de vigor pela Lei Federal nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, usualmente denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)[iii]. Cessa o período de vacatio legis da LGPD após extenso processo legislativo. Isso porque, em 29 de abril de 2020, fora adiada a vigência parcial da LGPD para 03 de maio de 2021, por força do 4º artigo da Medida Provisória nº 959[iv]. Contudo, o Congresso Nacional, em 26 de agosto de 2020, optou pela remoção do artigo 4º da MP nº 959/2020 durante votação acerca da conversão dessa MP em Lei Ordinária Federal nº 14.058, sancionada pela Casa Civil na última sexta-feira, 18 de setembro.
Em face do exposto, vigora parcialmente a LGPD, lei que serve de eixo ao sistema normativo brasileiro de proteção de dados pessoais, provocando importantes alterações para as relações público-privadas[v], sobretudo em face do contexto de uma administração pública eletronizada[vi].
A LGPD E A ORDEM CONSTITUCIONAL
A LGPD regula as operações de tratamento de dados pessoais realizadas por agentes públicos e privados, isto é, regula operações tais quais as de acesso, de coleta, de armazenamento, de processamento e de compartilhamento de dados pessoais (informações que versam sobre atributos da pessoa natural identificada ou identificável – artigo 5º, I, LGPD). Instituem-se, pois, garantias normativas postas em defesa do titular de dados tratados.
Nesse sentido, a fim de tornar efetiva a proteção que confere à categoria de dados pessoais, a LGPD busca dar concreção a normas constitucionais fundamentais. Para isso, afirma como fundamentos seus o respeito à privacidade, ao livre desenvolvimento da personalidade (corolário lógico-jurídico do respeito à dignidade humana, positivado pelo inciso III do artigo 1º da CF/88), aos direitos de autonomia informacional da personalidade, às liberdades de expressão, de informação e de comunicação, à intimidade, à honra, à imagem e a outros direitos fundamentais que servem de axioma à nova lei de proteção de dados (artigos 1º e 2º, LGPD).
Do mesmo modo, operações de tratamento de dados pessoais devem observar, em regra, diretrizes normativas de finalidade, de adequação, de necessidade, de livre acesso, de qualidade de dados, de transparência, de segurança, de não discriminação e outras diretrizes afirmadas pela doutrina estudiosa de temas afeitos à proteção de dados pessoais e positivadas pela LGPD (artigo 6º, LGPD).
Precisamente, no que concerne a operações de tratamento de dados pessoais realizadas pelo poder público, importa a observância das diretrizes positivadas em lei para que haja adequação das relações público-privadas às premissas de um Estado efetivamente Democrático e de Direito, que age em atenção à proteção de direitos fundamentais individuais e coletivos e em prol do interesse público.
Há, no entanto, especificidades próprias do regime jurídico criado pela LGPD e devotado aos órgãos e entidades administrativas, que merecem mais profunda abordagem em tópico apartado.
O TRATAMENTO DE DADOS PELO PODER PÚBLICO
O capítulo IV da LGPD é dedicado à instituição de novo regime normativo para a regulação das operações tratamento de dados pessoais executadas pelo poder público. Trata-se de regime jurídico distinto daquele por meio dos quais são disciplinadas as pessoas jurídicas de direito privado, o que se justifica em razão das particularidades de prerrogativa que a administração pública ostenta.
De pronto, pode-se destacar que o tratamento de dados pelo poder público deve atender a finalidades públicas, com respaldo no interesse público, a fim de que seja possível a execução das atribuições legais do poder público, tais como a execução de políticas públicas, a prestação de serviços públicos e administração da res publica (artigo 23, LGPD). Em todos os casos, deve-se lembrar, observam-se os fundamentos e princípios da LGPD e resguardam-se os direitos do titular dos dados tratos, que deve ser informado sobre os usos que se fazem dos dados tratados por entidades administrativas, bem como deve ter acesso a essas informações em veículos de fácil acesso, sobretudo em portais governamentais em sites da internet (artigo 23, I, LGPD). Ainda, o exercício dos direitos do titular de dados deve ocorrer com amparo no remédio constitucional do Habeas Data, nas disposições da Lei Geral do Processo Administrativo e, ainda, na Lei de Acesso à Informação, todos integrantes do sistema normativo de proteção de dados pessoais ordenado pela LGPD (artigo 23, § 3º, LGPD).
Esse mesmo regime jurídico de direito público disciplina a prestação de serviços notariais e de registros, do mesmo modo que disciplina a execução, por empresas públicas e por sociedades de economia mista, de serviços e políticas públicos (artigo 23, §§ 4º e 5º e artigo 24, parágrafo único, LGPD). Nesses casos, os dados tratados devem ser armazenados em formato interoperável, de modo que seja possível o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos da administração pública, para a execução de políticas públicas. O compartilhamento de dados entre entidades administrativas e empresas privadas é estritamente vedado pela LGPD, salvo em casos excepcionais, sendo sempre devida comunicação acerca do compartilhamento à autoridade nacional e ao titular dos dados (artigos 24 e 25, LGPD).
Sem embargos, empresas públicas e sociedades de economia mista que atuam em regime privado de concorrência devem observar a disciplina normativa própria de entidades privadas (artigo 24, caput, LGPD).
Não se aplicam as normas da LGPD quando o tratamento de dados pessoais ocorrer para fins de segurança nacional, de defesa nacional e de segurança do Estado, bem como para fins investigação e de repressão de infrações penais. Dessa forma, em caso de a administração pública tratar dados pessoais para uma das finalidades elencadas, não é devida a aplicação das normas da LGPD.
Similarmente, a LGPD concebe a possibilidade de a administração pública tratar dados pessoais sem o consentimento do titular dos dados tratados para a execução de políticas públicas previstas em lei, em regulamentos ou em contratos, convênios e outros, bem como a para fins de proteção da saúde pela autoridade sanitária, mesmo que sem consentimento do titular de dados (artigo 7º, III e IX, LGPD). De todo modo, é necessário assegurar ao titular dos dados tratados acesso facilitado às informações sobre essas operações de tratamento de dados, tais como informações sobre as formas de tratamento, sobre a identidade dos agentes de tratamento, sobre a finalidade do tratamento e sobre os direitos do titular (artigo 9º, LGPD).
A AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
Para fiscalizar o cumprimento das normas positivadas pela LGPD, previu-se a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), criada sem aumento de despesas e vinculada à Presidência da República (artigo 55-A, LGPD). A despeito dessa vinculação, em torno da qual pairam inesgotáveis debates, garante-se à ANPD autonomia técnico-decisória. Do mesmo modo, a autoridade nacional instituída por lei possui natureza jurídica transitória, sendo possível, em momento posterior, que a ANPD seja transformada em entidade da administração pública federal indireta, disciplinada por regime autárquico e especial (artigos 55-A, § 1º, e 55-B, LGPD).
Figuram dentre as competências da ANPD aquelas de zelar pela proteção de dados pessoais e pelo respeito aos segredos comerciais e industriais – sobretudo em caso de haver necessidade de auditar operações de tratamento de dados, como provê o artigo 20 da LGPD – de elaborar diretrizes da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade e de aplicar sanções em caso de descumprimento das ordens legais (artigo 55-J, LGPD). Ademais, editou-se recentemente o Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020, que regulamenta com maior especificidade a estrutura e as atribuições da ANPD[vii].
Nada obstante, as sanções de multa previstas pela LGPD, e passíveis de serem aplicadas pela ANPD, apenas vigoram a partir de 1º de agosto de 2021, período reservado à estruturação da ANPD, o que apenas recentemente se iniciou.
UM PANORAMA GERAL
Em suma, a LGPD, agora em parcial vigor, institui regime jurídico devotado à disciplina das operações de tratamento de dados realizadas por entes que compõem o poder público. Consequentemente, espera-se que a administração pública, imergida no contexto de eletronização de seus atos, envide esforços, como o tem feito desde 2018, no sentido de convergir a sua estrutura interna para as disposições inauguradas pela LGPD, de modo que seja possível garantir efetivas prestações estatais em consonância com a ordem constitucional, concretizada pelas normas de proteção de dados pessoais.
QUADRO COMPARATIVO
Notas de fim de página
[i] Estagiário de Direito em Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN). Membro do Grupo de Pesquisa certificado pelo CNPq Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB). Membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia (GEDE/UnB/IDP). Membro do Grupo de Pesquisa em Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (HDAPP/UniCeub). Membro do Grupo Bioethik: Grupo de Pesquisas em Bioética.
[ii] Por força do inciso I do artigo 65 da LGPD, os artigos 55-A, 55-B, 55-C, 55-D, 55-E, 55-F, 55-G, 55-H, 55-I, 55-J, 55-K, 55-L, 58-A e 58-B vigoram desde 28 de dezembro de 2018, e os artigos 52, 53 e 54, que versam acerca das sanções administrativas a serem aplicadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados a infratores da Lei, por força do inciso I-A do artigo 65 da LGPD, vigoram apenas a partir de 1º de agosto de 2021. A redação da MP 959/2020, portanto, apenas modificou a redação do inciso II do artigo 65 da LGPD, que cuida da vigência dos demais artigos da lei.
[iii] BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 21 ago. 2020.
[iv] BRASIL. Medida Provisória nº 959, de 29 de abril de 2020. Estabelece a operacionalização do pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda e do benefício emergencial mensal de que trata a Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, e prorroga a vacatio legis da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, que estabelece a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2250977. Acesso em: 21 ago. 2020.
[v] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
[vi] SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho. Processo administrativo eletrônico. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
[vii] BRASIL. Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e remaneja e transforma cargos em comissão e funções de confiança. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.474-de-26-de-agosto-de-2020-274389226. Acesso em: 21 ago. 2020.
Read MoreA Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça uniformizou o entendimento da Corte sobre a polêmica extensão da penalidade de perda da função pública em virtude de ato de improbidade administrativa, prevista no artigo 12 da Lei nº 8.429/1992.
Recentemente, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) uniformizou o entendimento da Corte sobre a polêmica extensão da penalidade de perda da função pública em virtude de ato de improbidade administrativa, prevista no artigo 12 da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa).
Em Embargos de Divergência opostos em sede do Recurso Especial nº 1701967/RO[1], o Superior Tribunal de Justiça definiu que a penalidade em questão atinge não só o cargo ocupado pelo infrator no momento da prática da conduta ímproba, mas também se estende ao cargo público eventualmente ocupado por este no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória (artigo 20 da Lei de Improbidade Administrativa[2]).
A controvérsia foi julgada por maioria pelo colegiado dos órgãos especializados em Direito Público, tendo sido analisada em razão de divergência existente entre a Primeira e Segunda Turmas da Corte. No voto vencedor, o Ministro Francisco Falcão afirma que a sanção de perda do cargo tem por objetivo afastar dos quadros da Administração Pública o agente que apresentou conduta ímproba e carência ética para o exercício da função pública. Por essa lógica, defendeu que a penalidade em questão deve abranger toda e qualquer atividade que o agente esteja exercendo no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Considerando que o objetivo da perda do cargo é o de salvaguardar a Administração de agentes que demonstrem “pouco ou nenhum apreço pelos princípios regentes da atividade administrativa”[3], a penalidade deve atingir não só o cargo ocupado no momento da prática do ato ímprobo, como também eventual outra função pública que esteja sendo exercida, uma vez que a improbidade não está ligada ao cargo em si, mas à própria atuação desse agente na Administração Pública.
Portanto, prevaleceu o entendimento que vinha sendo adotado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, que pode ser representado pelo seguinte julgado:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. COBRANÇA DE PROPINA. […] PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. ART. 12 DA LEI 8.429/1992. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. SÚMULA 7/STJ. […]
5. A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e afastar da atividade pública todos os agentes que demonstraram pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida.
6. A sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível.
7. Não havendo violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, modificar o quantitativo da sanção aplicada pela instância de origem, no caso concreto, enseja reapreciação dos fatos e provas, obstado nesta instância especial (Súmula 7/STJ).
8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.[4]
No caso analisado e julgado, discute-se a extensão da sanção de perda da função pública à ex-policial federal que se encontrava exercendo o cargo de Defensor Público ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória.
De toda forma, embora se trate de uma uniformização da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível que, em algum momento, a questão seja levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para análise da constitucionalidade da extensão da penalidade.
Vale ressaltar, ainda, que a prática de ato de improbidade administrativa não acarreta, automaticamente, a necessidade de aplicação da penalidade de perda da função pública, uma vez que a própria Lei nº 8.429/1992 determina que o juiz deverá, na fixação das penas, levar em conta “a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”.
Nesse sentido, considerando que o acórdão prolatado pela Primeira Seção do STJ ainda não foi disponibilizado (em 16/9/2020), ainda não está claro se o entendimento que prevaleceu, além de confirmar a abrangência da perda de função pública atualmente ocupada, também veda a hipótese de que um juiz, com base nos elementos do caso concreto e em atenção à razoabilidade e proporcionalidade entre conduta e sanção, restrinja a condenação ao cargo que serviu como instrumento para a prática do ato de improbidade.
[1] Informações obtidas por meio de notícia veiculada no site do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Cf. http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16092020-Perda-de-funcao-publica-por-improbidade-atinge-qualquer-outro-cargo-ocupado-no-momento-da-condenacao-definitiva.aspx. Acesso em 16 set. 2020.
[2] Art. 20. A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Parágrafo único. A autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual.
[3] ANDRADE, Landolfo. Aplicabilidade da sanção de perda da função pública sobre qualquer função exercida pelo agente ímprobo ao tempo do trânsito em julgado da decisão condenatória. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/07/23/sancao-perda-da-funcao-publica/.
[4] STJ, REsp 1297021/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/11/2013.
Read MoreRobôs proferirem decisões administrativas é decerto inovador. A necessidade de motivação, não.
Nesta terça-feira (1º de setembro de 2020), Eduardo Schiefler e Matheus Dezan publicaram o artigo “A decisão administrativa robótica e o dever de motivação” no Portal Jurídico JOTA, o qual pode ser visualizado neste link.
O artigo também contou com a participação do Professor Fabiano Hartmann, da Universidade de Brasília (UnB), e é resultado das pesquisas do grupo Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB), liderado pelo Prof. Fabiano.
Em razão da relevância do tema, vamos republicá-lo na íntegra, com a autorização dos autores:
A decisão administrativa robótica e o dever de motivação
Por Eduardo Schiefler, Fabiano Hartmann Peixoto e Matheus Lopes Dezan
A tecnologia está transformando a sociedade e isso não é segredo para ninguém.
A despeito de a prosperidade tecnológica não se desenvolver de modo uniforme ou impactar de forma heterogênea todos os campos de vida humana, havendo rotinas mais ou menos impactadas pela incidência de ferramentas tecnológico-operacionais, o fato inconteste é que há muito tempo a aplicação massiva das tecnologias no cotidiano dos seres humanos já deixou de ser apenas uma hipótese para se tornar uma questão de quando ou em que grau seremos impactados.
E o direito administrativo não foi poupado. Não havia dúvidas que a tecnologia se desenvolveria a ponto de permear o regime jurídico administrativo. A questão é que esse campo, costumeiramente tido por imutável e perene, em razão de sua principiologia própria, está sendo bombardeado por constantes transformações que almejam (e com razão) trazer mais eficiência e controle à Administração Pública.
Por conta desse cenário, vemos com naturalidade e animação as discussões cada vez mais frequentes sobre o uso de ferramentas tecnológicas pelo poder público. Não se surpreende, portanto, que elas tenham sido levadas à I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, ocorrida entre os dias 3 e 7 de agosto de 2020, com o objetivo de discutir posições interpretativas sobre as normas jurídicas (lei, jurisprudência e doutrina) e, ao final, produzir e publicar enunciados[1].
Na ocasião, após a aprovação na comissão temática, a reunião Plenária da I Jornada de Direito Administrativo votou e aprovou o Enunciado 12, segundo o qual “A decisão administrativa robótica deve ser suficientemente motivada, sendo a sua opacidade motivo de invalidação.”.
Fazendo uma reflexão sobre o texto aprovado, verifica-se que, embora o tema de decisões administrativas robóticas seja realmente inovador — e enfrente, evidentemente, críticas por seu caráter disruptivo —, o Enunciado 12 não inova no campo do direito administrativo.
Explica-se: a questão de robôs proferirem decisões administrativas é decerto inovadora. A necessidade de que as decisões administrativas sejam motivadas, todavia, não o é. E, mais do que isso, não basta que sejam motivadas as decisões administrativas, pois importa que sejam suficientemente motivadas — e isso não é, repita-se, novidade.
Trata-se de consequência direta do arcabouço jurídico-constitucional trazido à ordem normativa brasileira pela Constituição Federal de 1988, que transfigurou a relação público-privada e que conferiu ampla gama de novos direitos aos cidadãos e de deveres à administração pública brasileira. É dizer: a Constituição modificou a maneira com que os indivíduos particulares se relacionam com o poder público, assim como a tecnologia também o pretende fazer.
É nesse exato sentido que se entende que o Enunciado 12 não inova na ciência do direito administrativo:
Seja uma decisão administrativa manualmente redigida, seja uma decisão eletrônica ou, ainda, seja uma decisão robótica, elas devem apresentar motivação suficiente, sem escusas para o contrário, sob pena de serem inválidas perante as prescrições do ordenamento jurídico brasileiro.
Isso porque a motivação das decisões administrativas é requisito formalístico de validade dos atos administrativos decisórios[2], dado que o regramento dos atos da administração pública (imperativo fortalecido pela nova sistemática de direito administrativo inaugurada pela ordem constitucional de 1988) exige que a gestão da res publica ocorra de modo responsivo e transparente — o que, de certo modo, é favorecido pela adoção cada vez mais frequente de processos administrativos eletrônicos[3] e de sistemas de inteligência artificial pela administração. Nesse comento, o registro formal dos motivos de fato e de direito que orientaram o processo de tomada de decisão é medida que se impõe, para que seja desimpedido, como deve ser, o controle jurídico e social sobre os atos administrativos[4].
Ademais, a distintiva importância conferida à motivação das decisões administrativas para a ordem jurídica contemporânea pode ser adequadamente exemplificada pela construção doutrinária da teoria dos motivos determinantes, a qual preceitua que a validade das decisões administrativas guarda vínculo sincrético com os pressupostos objetivos que as constituem. Significa dizer que a decisão administrativa, ainda que discricionária, deve operar sobre motivos verdadeiros, existentes e corretamente qualificados, a fim de produzir efeitos válidos no mundo jurídico. Revelada a falsidade, a inexistência ou a inadequada qualificação dos motivos de fato expostos pelo administrador, de modo que não haja nexo lógico entre esses elementos fáticos e os motivos legais elencados, far-se-á inválido o ato administrativo.
Nada obstante, a instrução veiculada pelo Enunciado 12 aprovado na I Jornada de Direito Administrativo evidencia a imbricação entre requisitos de ordens jurídica e técnica impostos às decisões administrativas robóticas. Importa, dessa forma, que o sistema decisório automatizado seja apto a operar com linguagem natural[5] e com a logicidade do sistema de normas positivadas, de modo tal que dê forma à exposição satisfatória das razões de fato e de direito que guiaram o processo de tomada de decisão.
Trata-se de meio de preconizar a transparência das decisões administrativas robóticas como que vinculada à construção automatizada da forma de apresentação do conteúdo decisório, para que seja válido o ato administrativo operado de forma tão singular e, por vezes, epistemologicamente opaco. É por essa razão que a transparência das decisões administrativas robóticas depende de que o sistema de explicação de critérios decisórios produza resultados satisfatórios à cognição não somente do teor da decisão, mas dos fundamentos fáticos, jurídicos e tecnológicos que a compõe.
Inclusive, esse é o mesmo raciocínio que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) desenvolve ao tratar das decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais (artigo 20, § 1º), aqui aplicada por analogia. Na prática, a LGPD garante ao titular dos dados o acesso a “informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada”.
O raciocínio, como dito, é o mesmo. Mas no campo das decisões administrativas o imperativo de se ter motivação expressa e correlacionada com a realidade dos fatos se impõe pela natureza peculiar da atuação administrativa, que tem por objetivo precípuo a satisfação dos direitos fundamentais dos cidadãos. É dizer, a própria razão de existir da administração pública depende do atendimento aos direitos dos indivíduos. É isto que confere legitimidade à sua atuação e é, assim, que o dever de motivação se torna fundamental para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Portanto, ainda que não promova inovações em matéria de direito administrativo (uma vez que todas as espécies de decisões administrativas exigem motivação), o Enunciado 12 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal é uma novidade muito bem-vinda, pois ressalta a importância de discutir a inserção da tecnologia na administração pública, que é inevitável, assim como os seus impactos na relação público-privada e nos direitos dos cidadãos.
[1] Disponível em: I Jornada de Direito Administrativo será realizada em ambiente virtual, entre os dias 3 e 7 de agosto. Acesso em 15 de agosto de 2020.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 408.
[3] SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho. Processo administrativo eletrônico. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 43.
[4] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 175.
[5] HARTMANN PEIXOTO, Fabiano; MARTINS DA SILVA, Roberta Zumblick. Inteligência artificial e direito. 1. ed. Curitiba: Alteridade Editora, 2019. p. 82.
EDUARDO SCHIEFLER – Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019). E-mail: eduardo@schiefler.adv.br.
FABIANO HARTMANN PEIXOTO – Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito e do PPGD-UnB. Líder do Grupo de Pesquisa DR.IA. Coordenador do Projeto Victor (IA-STF) e Projeto Mandamus (IA-TJRR)
MATHEUS LOPES DEZAN – Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB). Integrante do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN). Integrante do Grupo de Estudos em Bioética e Biodireito (Bioethik/UFES). Membro do Grupo de Pesquisa em Análise Econômica do Direito (GEDE/UnB-IDP). E-mail: matheus.ldezan@gmail.com
Read MoreDa leitura da IN nº 73/2020, que revogou integralmente a Instrução Normativa nº 5 de 2014, sua antecessora, percebe-se que ela trouxe alterações com o objetivo de modernizar o procedimento de pesquisa de preços e torná-lo mais detalhado.
Eduardo André Carvalho Schiefler[1]
Eduardo Prudente Vargas da Silva[2]
No dia 6 de agosto, foi publicado no Diário Oficial da União a Instrução Normativa nº 73/2020[3], da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, que dispõe sobre o procedimento administrativo de pesquisa de preços para a aquisição de bens e contratação de serviços em geral, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Da leitura da IN nº 73/2020, que revogou integralmente a Instrução Normativa nº 5 de 2014, sua antecessora, é possível perceber que ela trouxe alterações com o objetivo de modernizar o procedimento de pesquisa de preços e torná-lo mais detalhado. Resumidamente, a IN 73/2020 traz algumas mudanças bastante objetivas:
1- A aferição da vantajosidade das adesões às atas de registro de preços deverá ser realizada de acordo com o disposto na IN 73/2020 (cf. § 3º do artigo 1º).
2- Quando executarem recursos da União decorrentes de transferências voluntárias, os órgãos e entidades da administração pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, deverão realizar a pesquisa de preços de acordo com as disposições da IN 73/2020, (§ 2º do artigo 1º). Registra-se que, antes, não havia vinculação quanto à aplicação da IN 5/2014 para estes órgãos e entidades, embora ela fosse constantemente adotada como referência. Com a novidade da IN 73/2020, estes órgãos e entidades se encontram vinculados à normativa, ou seja, obrigados a observar as suas disposições nas hipóteses em que estiverem utilizando recursos federais decorrentes de transferências voluntárias.
3- Trouxe definições claras para “preço estimado”, “preço máximo” e “sobrepreço”, facilitando o entendimento com o objetivo de evitar discrepâncias quando da aplicação dos referidos conceitos (art. 2º).
Além disso, considerando que a fase de pesquisa de preço é uma fase interna de suma importância para o processo de contratação pública, a IN 73/2020 traz em seu artigo 3º uma formalidade maior: instituiu-se a obrigatoriedade de a pesquisa de preços ser materializada em documento que contenha informações mínimas, como (i) a identificação do responsável pela cotação, (ii) a descrição das fontes utilizadas, (iii) a série de preços coletados, (iv) o método adotado para se definir o valor estimado e (v) as justificativas para a metodologia adotada, em especial para a desconsideração de valores inexequíveis, inconsistentes (novo termo incorporado pela IN) e excessivamente elevados, se aplicável.
Em seu artigo 4º, a IN 73/2020 dispõe como critério de pesquisa a observação, sempre que possível, das condições comerciais praticadas pelos fornecedores, o que inclui os prazos e locais de entrega, a instalação e montagem do bem ou prestação do serviço, as formas de pagamento, o frete e as garantias exigidas, assim como marcas e modelos, quando for o caso.
Já em seu artigo 5º, a IN 73/2020 elencou os parâmetros de pesquisa que devem ser observados, os quais podem ser empregados de forma combinada ou não: (i) Painel de Preços, (ii) aquisições e contratações similares de outros entes públicos, (iii) dados de pesquisa publicada em mídia ou site especializados, ou de domínio amplo, e (iv) pesquisa direta com fornecedores. Da mesma forma que a sua antecessora, a IN 73/2020 determina que se deve priorizar os parâmetros estabelecidos nos incisos I e II – o que reafirma a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU)[4].
De toda forma, a IN 73/2020 trouxe novidades também nesse quesito, conforme se verifica da tabela abaixo:
Especificamente quanto à pesquisa direta junto aos fornecedores, vale ressaltar que a IN nº 73/2020, em seu artigo 5º, § 2º, prescreve como deverá ocorrer o procedimento de pesquisa, exigindo (i) a solicitação formal de cotação contenha o prazo de resposta conferido ao fornecedor, compatível com a complexidade do objeto; (ii) a obtenção de propostas formais que contenham no mínimo: a descrição do objeto, valor unitário e total, o CPF ou CNPJ do proponente, o endereço e telefone de contato e a data de emissão da proposta; e (iii) o registro, nos autos da contratação, da relação de fornecedores que foram consultados e não enviaram propostas. Em comparação com a IN 5/2014, observa-se que esta restringia-se somente à exigência de um procedimento formal, sem detalhar como deveria ocorrer.
Veja-se que, por se tratar de um momento delicado para a administração pública, a pesquisa direta com fornecedores sofreu alterações no sentido de tornar mais clara as exigências de formalização e o rigor dos diálogos público-privados[5] (administração-fornecedores), de forma a exigir formalidades indispensáveis à lisura do procedimento. Ao que tudo indica, o intuito dessa formalização não visa a impedir ou burocratizar as relações comunicacionais, mas aumentar o nível de segurança para a administração e às próprias partes envolvidas (agentes público e econômico).
Outra importante novidade trazida é que, diferentemente do artigo 4º da IN 5/2014, a IN 73/2020 não proíbe, ao menos expressamente, a obtenção de estimativa de preços em sítios de leilão ou de intermediação de vendas, de forma que, em tese, pode-se proceder à realização de pesquisa de preços em marketplaces. Trata-se de inovação que caminha ao lado do que foi anunciado recentemente pelo Ministério da Economia: que o governo federal estuda implantar uma nova plataforma de comércio eletrônico nas compras públicas[6].
Ademais, o artigo 7º da IN 73/2020 discorreu sobre a necessidade de instrução dos processos administrativos de inexigibilidade de licitação, os quais deverão conter a devida justificativa de que o preço ofertado à administração é condizente com o praticado pelo mercado, em especial por meio de (i) documentos fiscais ou contratos de objetos idênticos[7], comercializados pela futura contratada, emitidos no período de até 1 (um) ano anterior à data da autorização da inexigibilidade pela autoridade competente; e de (ii) tabelas de preços vigentes divulgadas pela futura contratada em sites especializados ou de domínio amplo, contendo data e hora de acesso.
Trata-se de parâmetros exemplificativos, tendo em vista que o § 1º do artigo 7º dispõe que “Poderão ser utilizados outros critérios ou métodos, desde que devidamente justificados nos autos pelo gestor responsável e aprovados pela autoridade competente.”.
Está aí mais uma prova de que a IN 73/2020 surgiu também para conferir mais formalidade ao procedimento de pesquisa de preços, prezando pelo registro e formalização dos procedimentos nos autos do processo administrativo – o que, evidentemente, confere mais transparência ao processo de contratação pública e, inclusive, maior segurança ao gestor, que poderá, caso necessário, comprovar as boas práticas adotadas e evidenciar a sua atuação de boa-fé.
Frise-se que, caso a futura contratada não tenha comercializado o objeto em momento anterior, a justificativa de preço poderá ser realizada por meio de objetos de mesma natureza (objetos similares). E mais: a IN 73/2020 esclarece que esse procedimento, previsto no caput às hipóteses de inexigibilidade, também se aplica, no que couber, às hipóteses de dispensa de licitação, em especial as previstas nos incisos III, IV, XV, XVI e XVII do artigo 24 da Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos)[8].
A IN 73/2020 deixa claro, também, que, se a justificativa de preços indicar a possibilidade de competição no mercado, a inexigibilidade não poderá ser realizada pela administração. Nesse ponto, vale fazer um registro: a pluralidade de prestadores de serviços ou fornecedores nem sempre corresponde à viabilidade de competição, havendo exceções como as previstas no artigo 25, incisos II e III da Lei nº 8.666/1993[9].
Torna-se evidente, portanto, a finalidade e a importância de do procedimento de pesquisa de preços. Isto é, para além da orçamentação dos preços a serem pagos pela administração, o procedimento de pesquisa também se presta para verificar se o processo de contratação pública deve ser levado a cabo por meio de licitação ou de contratação direta. Assim, entende-se que andou bem a IN 73/2020 ao prever expressamente essa vedação à inexigibilidade de licitação quando da verificação da viabilidade de competição.
Por fim, em suas disposições finais (artigo 10), a IN 73/2020 prevê que o preço máximo a ser praticado na contratação poderá assumir valor distinto do preço estimado na pesquisa de preços feita, mas desde que haja justificativa para o acréscimo ou subtração de percentual e que sejam observadas a atratividade do mercado e a mitigação de risco de sobrepreço, sendo vedada a adoção de qualquer critério estatístico ou matemático que incida a maior sobre os preços máximos.
Em linhas gerais, portanto, a IN 73/2020 surgiu para aprimorar o procedimento de pesquisa de preços no âmbito do Poder Executivo Federal, conferindo mais formalidade a essa fase tão essencial ao processo de contratação pública, cuja existência de falhas, não raramente, é responsável por gerar inúmeros problemas posteriores à administração pública e aos contratados.
[1] Advogado no escritório Schiefler Advocacia. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019) e de artigos acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia.
[2] Estagiário no escritório Schiefler Advocacia. Graduando em Direito pela Rede de Ensino Doctum. Integrante da Associação Internacional de Advogados e Estudantes LawTalks.
[3] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-73-de-5-de-agosto-de-2020-270711836. Acesso em 10 ago. 2020.
[4] A pesquisa de preços para elaboração do orçamento estimativo da licitação não pode ter como único foco propostas solicitadas a fornecedores. Ela deve priorizar os parâmetros disponíveis no Painel de Preços do Portal de Compras do Governo Federal e as contratações similares realizadas por entes públicos, em observância à IN-SLTI 5/2014. (Boletim de Jurisprudência nº 213 de 23/04/2018 – Acórdão 718/2018, Plenário. Relator Ministro André de Carvalho, julgado em 04/04/2018)
[5] Sobre os diálogos público-privados, recomenda-se a leitura da obra Diálogos público-privados, de Gustavo Henrique Carvalho Schiefler: SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
[6] Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/julho/governo-debate-com-sociedade-implantacao-de-marketplace-para-compras-publicas. Acesso em 10 ago. 2020.
[7] Como se verá adiante, a justificativa de preço poderá ser realizada mediante objetos de mesma natureza, ou seja, similares (e não idênticos), nas hipóteses em que a futura contratada não tenha comercializado previamente o objeto.
[8] Art. 24. É dispensável a licitação: […]
III – nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem;
IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos; […]
XV – para a aquisição ou restauração de obras de arte e objetos históricos, de autenticidade certificada, desde que compatíveis ou inerentes às finalidades do órgão ou entidade.
XVI – para a impressão dos diários oficiais, de formulários padronizados de uso da administração, e de edições técnicas oficiais, bem como para prestação de serviços de informática a pessoa jurídica de direito público interno, por órgãos ou entidades que integrem a Administração Pública, criados para esse fim específico;
XVII – para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira, necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência da garantia;
[9] Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: […]
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III – para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
Read MorePara além da participação do Gustavo como especialista, tanto ele como o advogado Eduardo Schiefler propuseram enunciados que foram selecionados para debate nas comissões de trabalho.
Está ocorrendo nesta semana a I Jornada de Direito Administrativo, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, que tem por objetivo a produção e discussão de enunciados que visam à delineação interpretativa sobre o Direito Administrativo, a fim de adequá-la às inovações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais. A Jornada está sendo coordenada pela Min. Assusete Magalhães (STJ), Min. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto (TSE), Prof. Cesar Augusto Guimarães Pereira e pelo Juiz Federal Daniel Marchionatti Barbosa.
Amanhã (quinta-feira), acontecerão os debates nas comissões temáticas e o advogado Gustavo Schiefler participará como especialista convidado da comissão “Licitações, Contratos Administrativos, Concessões e Parcerias Público-Privadas“, coordenada pelo Desembargador Federal João Batista Moreira e pelos Profs. Eduardo Jordão e Joel de Menezes Niebuhr.
Para além da participação do Gustavo como especialista, tanto ele como o advogado Eduardo Schiefler propuseram enunciados que foram selecionados para debate nas comissões de trabalho.
Por essa razão, o advogado Eduardo Schiefler participará da comissão “Regime jurídico administrativo, Poderes da administração, Ato administrativo, Discricionariedade, Agentes públicos e Bens públicos“, coordenada pelo Ministro Benedito Gonçalves (STJ) e pelos Profs. Fabricio Macedo Motta e Juliana Bonacorsi de Palma.
Os enunciados aprovados nas comissões temáticas serão levados à reunião plenária para aprovação, que acontecerá no dia 7 de agosto (sexta-feira).
Gustavo Schiefler – Advogado. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Educação Executiva pela Harvard Law School (Program on Negotiation). Pesquisador Visitante no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht, em Hamburgo (Alemanha).
Eduardo Schiefler – Advogado no escritório Schiefler Advocacia. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019) e de artigos acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia.
Read MoreA dificuldade de precisar os requisitos e a extensão da aplicabilidade pode levar à utilização equivocada de ambos os institutos.
Victoria Magnani[1]
Diante do contexto de pandemia vivenciado atualmente, bem como da alteração substancial na situação econômico-financeira de diversos empregadores decorrente dos impactos da Covid-19, uma leva de rescisões de contratos de trabalho vem sendo justificada por meio dos institutos da força maior e do fato do príncipe. Essa aplicação demonstrou ser, na maioria das vezes, equivocada, sobretudo devido à dificuldade de precisar os requisitos e a extensão da aplicabilidade dos dois institutos.
Tendo em vista o cenário de controvérsias que circunda a caracterização e aplicação da força maior e do fato do príncipe trabalhista, bem como da ausência de consenso acerca da possibilidade, ou não, de justificar eventual rescisão de contrato de trabalho no atual cenário pandêmico, com fundamento nos arts. 486, 501 e 502 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), traz-se aqui uma sistematização dos requisitos definidores de uma e outra situação, bem como dos reflexos práticos que uma dispensa por força maior ou fato do príncipe pode ocasionar.
A Força Maior
Acerca do instituto da força maior, tem-se que o estado de calamidade decorrente da pandemia da Covid-19 foi equiparado, por meio da edição da Medida Provisória nº 927, à hipótese de força maior, conforme se depreende do art. 1º, parágrafo único, do texto normativo. Ainda que posteriormente a referida Medida tenha perdido sua eficácia, a discussão em torno do instituto permanece, visto que a definição desta depende, eminentemente, da interpretação do caso concreto.
A força maior, definida no art. 501 da CLT como “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente”, constitui-se como hipótese de extinção contratual ocasionada por fatores tidos como excepcionais, que independem da conduta das partes[2]. Dessa maneira, cumpre destacar que a imprevidência do empregador tem o condão de excluir a razão de força maior, nos termos do § 1º do art. 501 da CLT, além de não serem aplicados os reflexos decorrentes do referido instituto aos acontecimentos que não afetem substancialmente a situação econômico-financeira da empresa (art. 501, § 2º).
Especificamente no que tange à rescisão contratual decorrente de motivo de força maior, a CLT dispõe no seu artigo 502 que, ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, será assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma do supracitado artigo, que será distinta em se tratando de trabalhador estável, não estável e com contrato por prazo determinado.
Cumpre ressaltar que a sistemática indenizatória celetista sofreu grandes modificações com o advento da Constituição Federal de 1988, que instituiu a obrigatoriedade do sistema indenizatório do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). Nos termos da Súmula nº 98 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que atesta a equivalência jurídica dos dois sistemas indenizatórios, é possível concluir que a redução da indenização prevista nos incisos do art. 502 da CLT equivale, dentro da sistemática atual, ao percentual rescisório pago sobre os depósitos contratuais do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Dessa forma, nos termos do art. 18, §§ 1º e 2º, da Lei Federal nº 8.036/90, que dispõe sobre o regime do FGTS, quando a dispensa ocorrer por força maior a multa indenizatória decai de 40% (quarenta por cento) para 20% (vinte por cento) sobre o valor total dos depósitos realizados na conta vinculada do FGTS durante a vigência do contrato de trabalho.
Especificamente no contexto da pandemia de Covid-19, em um primeiro momento parece que a rescisão contratual fundada em motivo de força maior geraria dois efeitos principais, sendo eles a redução da indenização do FGTS de 40% (quarenta por cento) para 20% (vinte por cento) e a perda do direito ao aviso-prévio indenizado, uma vez que se trata de situação imprevisível e inevitável, da qual foi vítima não apenas o trabalhador, mas, também, a empresa.
No que tange à redução da indenização rescisória, cabe destacar que o art. 502 da CLT, que trata especificamente da força maior enquanto motivo de rescisão de contrato de trabalho, estabelece, já no seu caput, um requisito essencial para viabilizar sua aplicação: o motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado.
Cumpre fazer, aqui, um parêntese: apesar da redação do art. 502 condicionar a hipótese de força maior à extinção da empresa ou de um de seus estabelecimentos, tem-se que, devido ao amplo processo de setorização decorrente do modelo de produção globalizado, não é aconselhável uma interpretação literal do dispositivo em questão. Em virtude do fenômeno crescente de setorização das empresas, que implica em uma divisão destas em unidades quase que autônomas (os “setores”), condicionar a aplicação da força maior à extinção da empresa como um todo, ou mesmo de um estabelecimento inteiro, seria medida contraproducente, uma vez que tal restrição não corresponde à realidade atual. Isso porque, em verdade, é muito mais plausível que ocorra a extinção de um único setor produtivo em decorrência de episódio de força maior do que a completa extinção da empresa em questão.
Dessa forma, recomenda-se uma interpretação mais ampla do art. 502 da CLT, que abranja também, para caracterização da força maior, a noção de “extinção do setor produtivo” no qual laborava o empregado.
Sob essa perspectiva, se o motivo de força maior for suficiente para ocasionar a extinção da empresa ou de um de seus setores, caberá a aplicação do art. 18, § 2º, da Lei Federal nº 8.036/90, segundo o qual, quando ocorrer despedida decorrente de força maior, o empregador deverá depositar na conta vinculada do trabalhador no FGTS importância igual a 20% (vinte por cento) do montante de todos os depósitos realizados durante a vigência do contrato de trabalho, em oposição aos 40% (quarenta por cento) exigidos para a rescisão sem justa causa.
O aviso-prévio indenizado, por sua vez, possui natureza jurídica de uma indenização substitutiva pelo descumprimento da obrigação de concessão do período desse aviso, cuja função é a de evitar rescisões abruptas[3]. Tendo em vista que se trata de uma indenização que decorre da rescisão contratual, no caso específico da rescisão de contrato de trabalho motivada por força maior, é o caso de aplicação do sistema indenizatório regulado pelo art. 502 da CLT e art. 18, § 2º, da Lei Federal nº 8.036/90, segundo o qual a indenização rescisória decorrente de força maior seria reduzida pela metade.
Isso porque, apesar da imprevisibilidade da situação não vitimar somente o trabalhador, mas também a empresa, não seria razoável privar o empregado do direito ao aviso-prévio indenizado, uma vez que este subsiste até mesmo na hipótese de culpa recíproca, ainda que reduzido à metade, nos termos do art. 484 da CLT e da Súmula nº 14 do Tribunal Superior do Trabalho. Logo, não seria coerente que a força maior fosse mais prejudicial ao trabalhador do que um cometimento de falta grave por parte desse, como o que ocorre na hipótese de culpa recíproca[4].
Do mesmo modo não seria justificável, sob o ponto de vista do cenário de calamidade atual, que o aviso prévio fosse indenizado de forma integral, uma vez que a empresa foi igualmente vítima das circunstâncias, também fazendo jus à medida protetiva que resguarde seus direitos. Assim, a solução mais adequada parece ser a do cabimento do aviso prévio indenizado, reduzido, porém, à metade.
Portanto, em caso de extinção da empresa ou de setor produtivo desta, requisito inafastável para aplicação do art. 502 da CLT, conclui-se que, se o contrato for rescindido com base na força maior, deverá o empregador depositar na conta vinculada do trabalhador no FGTS importância igual a 20% (vinte por cento) do montante de todos os depósitos realizados durante a vigência do contrato de trabalho, a título de indenização rescisória, além de ser cabível o aviso-prévio indenizado para rescisão fundada em força maior, sendo este, contudo, reduzido à metade.
Por outro lado, caso não haja a extinção da empresa (ou de um de seus setores), o entendimento aplicável parece se aproximar muito mais da solução proposta pela Lei nº 14.020/2020 (originada da Medida Provisória nº 936/2020), norma esta que regula as possibilidades de redução proporcional da jornada de trabalho e de salário, bem como de suspensão temporária do contrato de trabalho durante o período de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus.
O Fato do Príncipe
Outro instituto tornado relevante em função da situação atual é o factum principis, ou fato do príncipe. No âmbito trabalhista, o fato do príncipe diz respeito a uma situação excepcional disposta no art. 486 da CLT, na qual há “paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade”.
O instituto é uma espécie do gênero força maior, também denominado de “força maior imprópria”. Na seara trabalhista, o fato do príncipe possui como requisitos para sua caracterização, além dos inerentes à força maior própria, que são a imprevisibilidade, a inevitabilidade e a ausência de concurso do empregador para a ocorrência do evento; a existência de ato da administração que cause dano específico, de impacto direto e significativo à condição econômica da empresa[5].
Reconhecida a ocorrência de fato do príncipe trabalhista, o pagamento da indenização rescisória devida ficará a cargo do governo responsável pela paralisação do trabalho, seja ele municipal, estadual ou federal. Destaca-se que são raras as alegações de fato do príncipe no âmbito trabalhista, e ainda mais rara a procedência de tais alegações.
Contudo, caso reste caracterizada a hipótese de fato do príncipe, cumpre ressaltar que a sua abrangência restringe-se à indenização rescisória prevista no regime do FGTS, não sendo possível transmitir os demais encargos trabalhistas ao governo responsável pela paralisação do trabalho. Assim, não será toda e qualquer verba rescisória devida pelo empregador no momento da rescisão contratual que será repassada à autoridade administrativa que emitiu o ato de paralisação, mas tão somente a multa rescisória prevista na Lei Federal nº 8.036/90.
Especificamente quanto à possibilidade de aplicação do instituto do fato do príncipe no contexto de crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19, frisa-se que tal possibilidade foi expressamente vedada pela já mencionada Lei nº 14.020/20 que, em seu art. 29, dispõe:
Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT […] na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus […].
Ademais, para além de dispositivo expresso de lei, a aplicação do factum principis no contexto de pandemia esbarra no necessário caráter específico do dano causado, uma vez que, apesar de direto e significativo, o prejuízo ocasionado pelo ato administrativo que determina a paralisação das atividades não é direcionado a um ou outro grupo em particular. Pelo contrário, observa-se que as determinações emanadas pelas autoridades administrativas visando a contenção do vírus Sars-Cov-2 possuem um caráter generalista, atingindo os mais diversos setores econômicos e sociais.
Conclui-se, assim, acerca da (im)possibilidade de aplicação dos institutos da força maior e do fato do príncipe como justificativas à rescisão de contratos de trabalho no cenário da pandemia da Covid-19, que a força maior só poderá ser aplicada, com todas as ressalvas expostas e mediante evidente caracterização de todos os seus requisitos essenciais, para casos em que haja extinção da empresa, de estabelecimento desta ou de um de seus setores produtivos. Quanto ao fato do príncipe, destaca-se a sua inaplicabilidade, tendo em vista a vedação expressa introduzida pela Lei nº 14.020/20, que obsta a aplicação do instituto enquanto justificativa para rescisão do contrato de trabalho.
[1] Victoria Magnani – Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC no campo do Direito Ambiental do Trabalho. Membro do Grupo de Pesquisa em Meio Ambiente, Trabalho e Sustentabilidade – GP METAS.
[2] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18 ed. rev. e amp. – São Paulo: LTr, 2019.
[3]JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do Trabalho. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
[4] FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa; MARANHÃO, Ney. Covid-19: Força Maior e Fato do Príncipe. Editora RTM, 2020. Acesso em: 26 de jun. de 2020.
[5] GASIOLA, Gustavo Gil. O fato do príncipe no sistema de tutela dos contratos administrativos. In Revista digital de direito administrativo, v. 1, n. 1, p.69-84, 2014. Acesso em: 22 jun. 2020.
Read MoreA liminar afetava mais de cinquenta professores de diversas especialidades no Instituto Federal da Paraíba - IFPB.
A Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região suspendeu decisão liminar concedida em Ação Civil Pública que determinava a anulação das nomeações de mais de cinquenta professores de diversas especialidades aprovados em concurso público realizado pelo Instituto Federal da Paraíba – IFPB.
O concurso para professor do IFPB, cujo edital foi lançado em dezembro de 2018, atravessou regularmente todas as suas fases até a realização da prova de desempenho didático. Contudo, após a divulgação do resultado desta última etapa, os problemas iniciaram. Isso porque, num primeiro momento, a instituição de ensino e a banca organizadora do concurso se recusaram a entregar as cópias das gravações aos candidatos.
Diante de inúmeras reclamações dirigidas ao Ministério Público Federal, o órgão editou recomendação ao IFPB para franquear acesso às gravações de vídeos a todos os candidatos solicitantes e reabrir o prazo recursal, preservando o direito ao contraditório substantivo.
Seguindo a recomendação do MPF, o Instituto lançou edital permitindo que todos os interessados em ter acesso ao vídeo de sua prova de desempenho fizessem solicitação por e-mail. Ademais, o IFPB reabriu o prazo de recurso após a entrega dos vídeos, seguindo estritamente as orientações do órgão ministerial.
Acontece que, dos mais de 1.054 candidatos que realizaram a prova de desempenho, 35 notificaram a banca e o IFPB de que a gravação entregue continha falhas que inviabilizavam seu uso.
Nesta circunstância, a fim de preservar o direito destes candidatos de se utilizarem do vídeo para eventual interposição de recurso, o IFPB oportunizou a esses 35 candidatos que refizessem a prova de desempenho. No entanto, em diversos casos, os candidatos optaram em não refazer a prova e manter-se com a nota já anteriormente atribuída – anuindo com a nota conferida pela banca de concurso. Ao todo, 19 candidatos optaram por manter sua nota e 16 realizaram nova prova de desempenho.
Ocorre que após a adoção destas medidas, o MPF tomou conhecimento de que outros dois candidatos, além dos 35 que haviam notificado a banca e tiveram a oportunidade de refazer a prova de desempenho didático, a seu critério, também tiveram problemas com sua gravação e não haviam sido incluídos na lista das gravações defeituosas, motivo pelo qual também não puderam refazer a prova.
Diante desta circunstância, após a homologação do concurso público e da nomeação e posse de cerca de mais de quarenta novos professores na instituição, o MPF decidiu por ajuizar ação civil pública requerendo o refazimento de todas as provas de desempenho (didáticas) dos dezenove diferentes códigos de especialidade (seguramente mais de 500 novas provas de desempenho).
Na sequência, o juízo recebeu a ação e determinou que todas as nomeações decorrentes deste concurso público, nos dezenove códigos de vaga indicados, fossem integralmente anuladas, bem como determinou o refazimento de todas estas provas de desempenho.
Para os candidatos aprovados, a decisão foi dramática e estarrecedora.
Muitos deles vieram de outras regiões do país, do sul, sudeste, norte. Alguns haviam pedido exoneração dos cargos anteriormente ocupados, demissão de seus antigos empregos. Gastaram suas poupanças para viabilizar a mudança para a Paraíba. Eles haviam se submetido a todas as fases do concurso público, prova escrita, prova de desempenho e apresentação de seus títulos e sido devidamente aprovados e convocados pelo próprio IFPB, após a homologação do concurso. Aceitaram este desafio e missão que é a docência e ficaram sem chão ao saber que suas nomeações haviam sido anuladas sem que sequer tivessem a oportunidade de apresentar sua defesa ao juízo – inclusive porque, se o tivessem feito, possivelmente a decisão liminar com caráter anulatório jamais teria sido concedida.
Em alguns casos, a decisão inicialmente proferida continha argumentos adicionais que revelavam o seu equívoco. Num dos cargos, por exemplo, nenhum candidato havia refeito a prova de desempenho. Pelo contrário: o único candidato que havia manifestado problemas com sua gravação tinha sido nomeado e empossado no cargo sendo, ele próprio, prejudicado pela iniciativa do MPF e pela decisão do juízo.
Sensível a estes argumentos e, especialmente, ao manifesto prejuízo que o IFPB teria caso aquela decisão fosse mantida, com mais de 4.943 alunos que passariam a não ter professores para lecionar disciplinas imprescindíveis para sua formação, a Quarta Turma do TRF-5 reconheceu o descabimento desta decisão e determinou a manutenção das nomeações daqueles professores aprovados no concurso público.
Dentre os fundamentos da decisão proferida em sede recursal, que contou com a atuação do escritório Schiefler Advocacia, o Desembargador Relator argumentou pelo descabimento da medida de anulação das nomeações ante a inexistência de demonstração objetiva de que o refazimento das provas ensejou em benefício indevido aos candidatos (notadamente porque somente 16 refizeram as provas e sequer se tem notícia de que estes todos haviam sido nomeados). A bem da verdade, dezenas de candidatos que não refizeram as provas estavam efetivamente sendo prejudicados por aquela decisão. Ademais, como bem inserido no voto, aprovado por unanimidade, as alterações previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, notadamente o previsto no artigo 21, o qual estabeleceu o princípio da conservação, devendo-se manter, se possível o ato administrativo praticado. E encerra: ainda que se mostrasse imprescindível anular o ato administrativo, tal medida deve se realizar “modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais”.
Ao final, os professores aprovados no concurso público e empossados no cargo poderão, ao menos até o fim do trâmite judicial, concentrar suas energias na atividade para a qual toda a atividade administrativa, no IFPB, foi engendrada: o exercício do magistério.
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