
CONTRATAÇÃO DE EMPRESA COM CNAE DIVERGENTE DO OBJETO LICITADO: ANÁLISE JURÍDICA SOB A LEI 14.133/2021
Introdução
A contratação pública de empresas cuja inscrição no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) não apresenta atividade econômica (CNAE) correspondente ao objeto licitado levanta importantes questões jurídicas. Com a entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), é fundamental analisar como ficam os requisitos de habilitação das licitantes nesse contexto.
Este artigo aprofunda o tema à luz da nova legislação, em especial no que tange à habilitação jurídica e à qualificação técnica dos licitantes, e examina entendimentos jurisprudenciais relevantes do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a matéria. O objetivo é esclarecer se a ausência de determinado CNAE no cadastro da empresa pode, por si só, impedi-la de contratar com a Administração Pública, mesmo quando esteja tecnicamente apta a executar o objeto licitado.
CNAE e Objeto Licitado: Conceitos e Implicações
A Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) é o código oficial que identifica as atividades econômicas exercidas por uma empresa. No cadastro do CNPJ, cada pessoa jurídica informa um ou vários CNAEs correspondentes aos ramos de atuação aos quais se dedica.
Em licitações públicas, muitas vezes se menciona o CNAE da empresa como indicativo de sua aptidão para realizar o objeto contratual. Entretanto, o CNAE em si não define de forma absoluta a capacidade de uma empresa executar determinado serviço ou obra.
Ele é uma referência administrativa e fiscal das atividades empresariais, mas não um limitador legal das atividades que a empresa pode exercer – desde que estas estejam abrangidas, ainda que genericamente, em seu objeto social (a descrição das atividades permitidas em seu contrato ou estatuto social).
É relativamente comum que editais de licitação contenham cláusulas exigindo que a empresa licitante tenha finalidade ou ramo de atuação ligado ao objeto licitado. Essa prática busca garantir que apenas concorram empresas “do ramo” do objeto da contratação. Contudo, surge o questionamento: se a empresa não tem em seu cadastro um CNAE específico para aquela atividade, mas comprova que já a executou com qualidade, poderia ser inabilitada?
A Nova Lei de Licitações e Contratos e a jurisprudência moderna apontam para um tratamento mais flexível e focado na capacidade real da empresa, conforme veremos a seguir.
Habilitação Jurídica na Lei 14.133/2021
A habilitação jurídica diz respeito à capacidade da empresa de exercer direitos e assumir obrigações perante a Administração. Na Lei nº 14.133/2021, diferentemente da legislação anterior, simplificou-se a exigência de habilitação jurídica.
Segundo o art. 66 da nova lei, a documentação se limita à comprovação da existência jurídica da pessoa e, quando cabível, de autorização específica para o exercício da atividade a ser contratada. Em outras palavras, basta demonstrar que a empresa existe formalmente (por meio do contrato social registrado, CNPJ ativo etc.) e que não há impedimentos legais para que atue naquele ramo – se a lei exigir alguma autorização especial (por exemplo, licenças ou registro em conselho profissional para atividades regulamentadas).
Importante destacar que a lei não menciona nenhuma obrigação de que o objeto social ou o CNAE da empresa coincida exatamente com o objeto licitado. A ênfase está na regularidade formal da empresa e na autorização legal quando a atividade exigir condição especial (por exemplo, registro na Anvisa para certas atividades de saúde, ou no CREA/CAU para serviços de engenharia/arquitetura, etc.).
Fora dessas hipóteses de exigência legal específica, não há base legal para desclassificar licitantes unicamente porque seu cadastro empresarial não listava determinada atividade. Tal entendimento é coerente com o princípio da ampla concorrência (ou competitividade) previsto na própria Lei 14.133/2021 e na Constituição Federal (art. 37, XXI), que proíbe a Administração de restringir injustificadamente a participação de interessados na licitação.
Qualificação Técnica: Comprovação de Capacidade x CNAE
Enquanto a habilitação jurídica cuida dos aspectos formais de existência e capacidade legal da empresa, a qualificação técnica verifica se o licitante possui aptidão técnica para executar o contrato. A Lei 14.133/2021 disciplina a qualificação técnica principalmente em seu art. 67, que trata da documentação técnico-profissional e técnico-operacional exigível.
Dentre os meios de comprovação de qualificação técnica permitidos, destacam-se: apresentação de atestados de capacidade técnica (fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado que atestem que a empresa realizou serviços ou forneceu bens semelhantes ao objeto da licitação), indicações de equipe técnica e aparelhamento adequados, e registro em conselho profissional, quando aplicável.
Em suma, a lei prioriza a comprovação concreta da experiência e capacidade técnica da empresa, por meio de atestados e certificações, em vez de se ater a classificações formais. Não há no art. 67 ou em qualquer dispositivo da Lei 14.133/2021 previsão de exigência do código CNAE como condição de qualificação. A Administração deve exigir prova da capacidade técnica pertinente ao objeto (por exemplo, atestados de serviços similares já executados), o que é muito mais eficaz para avaliar a aptidão do que verificar se determinada atividade consta ou não do cadastro fiscal da empresa.
Assim, do ponto de vista estritamente legal, nada impede que uma empresa sem o CNAE exato do objeto licitado participe e seja habilitada, desde que comprove, por outras vias, que tem condições técnicas de executar o contrato. Essa comprovação ocorre mediante os documentos de qualificação técnica elencados na lei – e não pela simples classificação fiscal.
Em última análise, o que se busca é a garantia de que a contratada entregue o objeto com qualidade, e isso se verifica pelos seus antecedentes de desempenho (experiência pretérita) e estrutura atual, e não por códigos de inscrição econômica.
Jurisprudência do TCU sobre CNAE e Objeto Social do Licitante
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União tem reiteradamente firmado entendimento de que o CNAE ou a descrição específica do objeto social da empresa não constituem, por si sós, elementos essenciais para habilitação, se a capacidade técnica restar devidamente demonstrada.
Em casos concretos, o TCU vem decidindo que a inabilitação fundada exclusivamente na ausência de determinado CNAE configura formalismo excessivo e viola o caráter competitivo da licitação. Desde meados dos anos 2000, o TCU assinala que a Administração não deve restringir a competição exigindo correspondência exata entre o ramo de atividade registrado da empresa e o objeto licitado.
No Acórdão nº 571/2006 – TCU (2ª Câmara), por exemplo, discutiu-se a situação de um licitante cujo contrato social não continha, de forma expressa, a atividade específica objeto da licitação (transporte de pessoas). Naquela oportunidade, o Tribunal ponderou que a empresa havia apresentado três atestados de capacidade técnica por entes públicos distintos, comprovando experiência na execução do serviço pretendido. Concluiu, então, ser irrazoável exigir que o objeto social preveja minuciosamente cada subatividade ligada à atividade principal desempenhada: “Se uma empresa apresenta experiência adequada e suficiente para o desempenho de certa atividade, não seria razoável exigir que ela tenha detalhado o seu objeto social a ponto de prever expressamente todas as subatividades complementares à atividade principal”. Nesse caso, o TCU entendeu que a desclassificação da empresa com base unicamente nessa lacuna do contrato social feriu o interesse público, pois impediu a seleção da melhor proposta possível – entendimento inteiramente alinhado ao princípio da competitividade.
Essa linha de raciocínio foi posteriormente reafirmada em diversos outros precedentes do TCU.
No Acórdão nº 1203/2011 – Plenário, citando um exemplo, o Tribunal julgou indevida a inabilitação de empresa que não possuía CNAE específico para transporte de cargas leves, pois a licitante demonstrara já ter executado serviços semelhantes para a própria Administração contratante em contrato anterior – evidência de capacidade técnica que se sobrepôs a meras formalidades cadastrais.
De forma semelhante, no Acórdão nº 9365/2015 – 2ª Câmara, uma licitante de serviços de alimentação foi mantida na disputa apesar de não ter o CNAE exato de “distribuição de refeições”, porque apresentou atestados comprovando larga experiência no fornecimento de refeições em eventos de grande porte.
Mais recentemente, em pleno vigorar da nova lei, o Acórdão nº 444/2021 – Plenário reforçou esse entendimento ao considerar ilegal a desclassificação de uma empresa por divergência de CNAE em um pregão para recuperação de estradas vicinais – o TCU ressaltou que o essencial era a comprovação da experiência da empresa em atividades análogas, tratando a exigência rígida de CNAE como indevida por comprometer a seleção da proposta mais vantajosa.
Em síntese, a posição consolidada do TCU é de que a ausência de determinada atividade no objeto social ou no CNAE da licitante não é motivo suficiente para inabilitá-la, desde que fique demonstrada sua aptidão técnica para executar o objeto contratual. Cláusulas editalícias que exijam estritamente a correspondência do CNAE como critério eliminatório tendem a ser consideradas restritivas em demasia. O foco deve recair sobre a comprovação efetiva da capacidade de desempenho – por meio de atestados, registros profissionais, qualificação de equipe, etc. – em observância aos arts. 67 e 69 da Lei 14.133/2021 e ao princípio da competitividade.
Consequências Práticas e Recomendações
Diante do arcabouço legal e jurisprudencial exposto, uma empresa pode, em tese, ser contratada pelo Poder Público mesmo que não possua, em seu CNPJ, CNAE correspondente ao objeto da licitação.
Não havendo vedação legal expressa, a ausência do código específico não impede a contratação se a licitante cumprir os demais requisitos de habilitação. Isso traz alívio para muitas empresas, especialmente as que diversificam seus serviços ao longo do tempo e nem sempre atualizam imediatamente seus CNAEs junto aos órgãos de registro.
Entretanto, é recomendável adotar boas práticas preventivas. Do ponto de vista prático, incluir no objeto social da empresa descrições amplas ou abrangentes das atividades que ela desenvolve (ou pretende desenvolver) pode evitar questionamentos nas fases de habilitação. Manter o cadastro CNAE atualizado com as principais atividades também é salutar – não por imposição legal, mas para reduzir resistências e necessidade de esclarecimentos perante comissões de licitação menos experientes.
Em caso de cláusulas restritivas no edital, a empresa deve considerar impugná-las administrativamente antes da licitação ou, se necessário, recorrer judicialmente ou aos órgãos de controle. A própria nova lei reforça a possibilidade de saneamento de falhas e flexibilização de exigências excessivas para ampliar a disputa (fundamento que embasa, por exemplo, o art. 9º, I, “b” e o art. 12, III, da Lei 14.133/2021, que vedam cláusulas ou práticas que frustrem o caráter competitivo injustificadamente).
Em suma, prevalece o meritório sobre o meramente formal: uma empresa tecnicamente qualificada não deve ser afastada apenas por não constar determinado código de atividade em seu CNPJ. A Administração Pública, ao conduzir suas licitações, deve buscar a proposta mais vantajosa e selecionar fornecedores capazes, evitando formalismos exagerados que não guardem relação direta com a futura execução contratual.
Esse entendimento, lastreado na lei e na jurisprudência do TCU, promove a competitividade e a eficiência nas contratações públicas, beneficiando tanto o setor público (que passa a contar com um leque maior de propostas qualificadas) quanto as empresas que, por sua expertise, podem participar de certames além das definições estritas de seus cadastros.
Conclusão
A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) consolida uma visão moderna da fase de habilitação: privilegia-se a efetiva capacidade jurídica e técnica do licitante em detrimento de formalidades cadastrais rígidas. Nesse cenário, exigir que o CNAE ou o objeto social do licitante seja idêntico ao objeto licitado não encontra amparo expresso na lei e vem sendo refutado pelos órgãos de controle. Desde que a empresa demonstre, com documentação hábil, estar legalmente constituída e tecnicamente apta a executar o contrato, não deverá ser inabilitada pela mera ausência de um código CNAE específico ligado ao objeto da licitação. Tal prática, além de juridicamente questionável, pode privar a Administração da melhor proposta, contrariando o interesse público.
Por todo o exposto, a resposta à indagação inicial é clara: é possível a contratação pública de empresa cujo CNPJ não apresente atividade econômica correspondente ao objeto licitado, desde que atendidos os requisitos legais de habilitação (existência jurídica regular e qualificação técnica comprovada por outros meios idôneos).
A atenção deve recair sobre a essência (capacidade de executar) e não sobre a forma (registro burocrático da atividade). Esse entendimento, respaldado pela jurisprudência do TCU, fortalece os princípios da isonomia e da competitividade nas licitações, ao mesmo tempo em que impõe às empresas o ônus de demonstrar sua qualificação de maneira robusta.
Diante das nuances legais e dos riscos envolvidos nas contratações públicas, é imprescindível contar com orientação jurídica especializada.
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