
Obrigatoriedade de diligência prévia na desclassificação de propostas inexequíveis, conforme a Lei 14.133/2021
Introdução
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) trouxe importantes inovações, dentre elas um critério objetivo para identificar propostas possivelmente inexequíveis (ou seja, de valor tão baixo que seriam inexequíveis na prática).
No entanto, longe de permitir a desclassificação automática dessas propostas, a lei e a jurisprudência exigem que a Administração Pública realize uma diligência prévia antes de inabilitar (desclassificar) uma proposta por inexequibilidade. Em recente decisão (Acórdão 803/2024 do Tribunal de Contas da União – TCU), essa obrigatoriedade foi reforçada, consolidando o entendimento de que o órgão licitante deve oportunizar ao licitante a chance de comprovar a viabilidade de sua oferta.
Neste artigo, será explorado o contexto legal e jurisprudencial desse tema, as implicações práticas para as empresas licitantes e exemplos de como a atuação jurídica especializada pode proteger os interesses do licitante. Veremos a definição de proposta inexequível, a análise do §4º do art. 59 da Lei 14.133/21, o papel da diligência prévia, os riscos da desclassificação automática e boas práticas para licitantes.
Proposta inexequível: conceito e critério legal na Lei 14.133/2021
Em licitações públicas, considera-se inexequível a proposta cujo preço é tão baixo que não permitiria a execução satisfatória do objeto licitado. Em outras palavras, é uma oferta antieconômica ou inviável, que levanta suspeitas de que o licitante não conseguirá cumprir o contrato por aquele valor.
A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 59, traz parâmetros objetivos para identificar possíveis propostas inexequíveis, especialmente em contratos de obras e serviços de engenharia. O §4º do art. 59 estabelece que, “No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”. Ou seja, a nova lei fixa um limite percentual (75% do orçamento estimado) abaixo do qual a proposta deve ser tratada com suspeita de inexequibilidade.
Exemplo prático: Suponha que a Administração estime que determinada obra de engenharia custe R$ 1.000.000,00. Se um licitante apresentar proposta de valor inferior a R$ 750.000,00 (75% do orçamento), essa oferta se enquadrará como potencialmente inexequível segundo o critério legal. Nessa situação, a proposta não pode ser simplesmente descartada de imediato, mas sim avaliada com maior cuidado mediante diligências.
Importante destacar que esse critério objetivo não significa que qualquer proposta abaixo de 75% do orçamento seja inexequível em termos absolutos, mas apenas que presume-se sua inexequibilidade até prova em contrário. A experiência prática demonstra que podem existir justificativas legítimas para um preço significativamente inferior, como tecnologias inovadoras que reduzem custos, condições comerciais vantajosas, estoque de materiais a preços baixos, estratégia empresarial de menor margem de lucro para entrar no mercado, entre outros. Por isso, é necessário analisar caso a caso se aquela oferta pode, de fato, ser executada pelo proponente.
Essa compreensão de que o parâmetro numérico gera apenas uma presunção relativa não é nova. A antiga Lei nº 8.666/1993 (agora revogada) já previa critério semelhante (70% em obras de engenharia, conforme seu art. 48, §1º, alínea a e b) e, naquela época, o TCU firmou entendimento de que esse era um indicador relativo, não uma regra absoluta.
Esse entendimento foi consolidado na Súmula 262 do TCU, a qual enuncia que “o critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta”. Em suma, já na vigência da lei antiga ficou assente que a Administração deve permitir que o proponente com preço suspeito demonstre que, apesar de baixo, seu preço é viável.
A Lei 14.133/2021 seguiu filosofia semelhante: embora tenha fixado um critério objetivo (75% do orçamento) para alertar sobre possível inexequibilidade, ela contém dispositivos que asseguram a possibilidade de o licitante provar a exequibilidade da sua proposta. Esses dispositivos impõem, como veremos a seguir, um verdadeiro dever de diligência prévia por parte do órgão público antes de efetivar a desclassificação.
Aplicação da IN nº 73/2022 na Inexequibilidade de Propostas para Bens e Serviços Comuns
A Instrução Normativa SEGES/MGI nº 73/2022 trouxe, no âmbito das licitações de bens e serviços comuns, um critério objetivo para identificar propostas presumivelmente inexequíveis. De acordo com o art. 34 dessa IN, considera-se indício de inexequibilidade qualquer proposta cujo valor seja inferior a 50% do valor estimado (orçado) pela Administração.
Em outras palavras, uma oferta abaixo de metade do preço de referência do edital é automaticamente sinalizada como possivelmente inviável.
Importa destacar que a IN 73/2022 adota o termo indício, indicando que esse critério de 50% serve como uma presunção relativa – um alerta inicial, não uma desclassificação automática. Tanto é que a própria norma exige, no parágrafo único do art. 34, a realização de diligência antes de confirmar a inexequibilidade, a fim de verificar objetivamente a capacidade de execução daquela proposta de baixo valor.
Nesse procedimento, o agente de contratação (pregoeiro) deverá averiguar se os custos do licitante ultrapassam o valor ofertado e se inexistem ganhos ou fatores compensatórios (custos de oportunidade) que justifiquem o preço tão reduzido. Somente se a diligência comprovar que o licitante não teria como cumprir o contrato sem incorrer em prejuízo (ou sem um motivo econômico válido para ofertar tão abaixo do mercado) é que a proposta será formalmente declarada inexequível e desclassificada.
É importante comparar esse critério dos 50% da IN 73/2022 com o parâmetro estabelecido na Lei nº 14.133/2021, especificamente no §4º do art. 59, que trata da inexequibilidade em obras e serviços de engenharia.
A Lei 14.133/21 determina que, no caso de contratos de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas com valores inferiores a 75% do valor orçado pelo órgão público. Ou seja, para obras e serviços de engenharia, a própria lei fixou um limite de 75% do orçamento como piso de viabilidade – qualquer proposta abaixo disso é presumida inexequível de acordo com a legislação.
Trata-se de um parâmetro mais rigoroso do que o aplicado a bens e serviços comuns (75% contra 50%), refletindo a natureza distinta desses objetos.
Bens e serviços comuns geralmente permitem margens de desconto maiores devido à padronização e competitividade de mercado, de modo que preços muito baixos (até certa medida) podem ainda ser exequíveis.
Já obras e serviços de engenharia envolvem custos fixos significativos, riscos e complexidades que tornam impraticáveis descontos tão expressivos – daí o limite mais elevado de 75%.
Em síntese, conforme o tipo de objeto licitado, aplica-se um critério distinto de inexequibilidade: nas licitações de itens comuns vale a regra dos 50% do estimado (conforme a IN 73/2022), ao passo que nas contratações de obras/engenharia vigora a regra dos 75% do estimado (conforme a Lei 14.133).
Vale lembrar ainda que a Lei 14.133/2021 não estipulou um percentual fixo para bens e serviços em geral, lacuna essa preenchida, no âmbito federal, pela IN 73/2022. Assim, cada modalidade de objeto possui sua faixa de alerta: abaixo de 50% para itens comuns, abaixo de 75% para engenharia – sempre exigindo a análise adequada da viabilidade antes de qualquer decisão definitiva.
Exemplo prático: Considere uma licitação para fornecimento de 100 unidades de determinado equipamento, com valor estimado oficial de R$ 100.000,00. Suponha que o Licitante A apresente uma proposta de R$ 48.000,00, equivalente a 48% do valor orçado. Segundo o critério da IN 73/2022, essa oferta está abaixo do limite de 50%, configurando um forte indício de inexequibilidade. Nessa situação, o pregoeiro (agente de contratação) deve instaurar diligência para que o Licitante A comprove como será possível executar o objeto por esse preço extraordinariamente baixo. O licitante poderá, por exemplo, apresentar uma planilha detalhada de custos, demonstrando que obteve preços excepcionais de insumos ou que dispõe de estoque e logística eficiente, de forma que seus custos totais fiquem dentro do valor proposto. Poderá ainda alegar alguma estratégia comercial específica – como vender sem margem de lucro imediata visando benefícios futuros (ganhar mercado, publicidade, etc.) – o que se enquadraria em “custos de oportunidade” justificadores da oferta atípica. Caso o Licitante A comprove satisfatoriamente a exequibilidade (viabilidade) da proposta nesse procedimento de diligência, sua oferta deverá ser mantida na disputa. Por outro lado, se não conseguir demonstrar de forma convincente que executará o contrato por R$ 48 mil sem prejuízo ou quebra da qualidade, a administração desclassificará a proposta por inexequibilidade. Note que, sem esse rito de verificação, a proposta poderia ser sumariamente excluída por estar abaixo de 50%, mas a IN 73/2022 garante ao licitante essa oportunidade de esclarecimento antes da desclassificação.
O dever de diligência prévia no art. 59 da Lei 14.133/2021
A nova Lei de Licitações também deixou claro nos seus próprios termos que a Administração Pública tem o dever de verificar a exequibilidade das propostas suspeitas, em vez de simplesmente desclassificá-las de plano. Duas previsões do art. 59 são centrais aqui:
- Art. 59, inciso IV: determina a desclassificação das propostas que “não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração”. Ou seja, a Administração pode exigir que o licitante demonstre a viabilidade de sua oferta; se ele não conseguir demonstrar quando exigido, aí sim sua proposta será desclassificada como inexequível.
- Art. 59, §2º: dispõe que “a Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo”. Em outras palavras, a lei faculta (e implicitamente obriga, diante do interesse público) que a equipe de licitação realize todas as verificações necessárias junto ao licitante para confirmar se a proposta é exequível.
Essas regras deixam claro que o critério de 75% do §4º não implica uma desclassificação imediata. Trata-se de uma presunção relativa de inexequibilidade que aciona o dever de verificação.
Portanto, cabe à Administração promover diligências quando se deparar com uma proposta abaixo do patamar indicativo. Na prática, essa diligência prévia envolve medidas como:
- Solicitação formal de esclarecimentos e documentos ao licitante, referentes à formação de seu preço. Por exemplo, pedir planilhas de composição de custos, notas fiscais de insumos, comprovantes de que o licitante possui condições especiais (descontos de fornecedores, estrutura própria, menor carga tributária etc.) que justifiquem o preço ofertado.
- Análise técnica detalhada dos elementos apresentados. A comissão de licitação deve verificar se os custos alegados são compatíveis com os de mercado, se as quantidades e produtividade estimadas pelo licitante são razoáveis, e se a margem de lucro (se houver) está dentro de um patamar realista.
- Comparação com parâmetros externos, quando possível. A Administração pode confrontar os dados do licitante com referências de preços em bancos de dados públicos, contratos similares já executados, tabelas oficiais (por exemplo, SINAPI para construção civil, em se tratando de obras) etc., para aferir a coerência da proposta.
- Decisão fundamentada: Após a análise, se ficar demonstrado que, apesar de estar abaixo de 75% do orçamento, a proposta é exequível, a empresa não poderá ser desclassificada por preço inexequível. Por outro lado, se o licitante não conseguir comprovar de forma satisfatória a viabilidade ou se ficar claro que os números não fecham (por exemplo, o custo dos insumos básicos já supera o valor proposto), aí sim a desclassificação por inexequibilidade estará amparada, devendo ser formalizada com a devida justificativa.
Resumidamente, a diligência prévia é a etapa em que se verifica, de maneira transparente e técnica, se a oferta aparentemente muito baixa pode ser sustentada na execução do contrato. Essa exigência não é apenas uma opção da Administração, mas configura um verdadeiro dever, visto que decorre do princípio do procedimento formal correto, do estímulo à competitividade e, até mesmo, dos direitos ao contraditório e ampla defesa do licitante.
Afinal, desclassificar um concorrente sem lhe dar chance de explicar seu preço equivaleria a uma sanção prematura e poderia eliminar indevidamente a proposta possivelmente mais vantajosa para a Administração.
Jurisprudência do TCU
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem se mostrado alinhada com essa leitura da lei, reforçando que o limite de 75% é uma presunção relativa e que a diligência prévia é obrigatória.
Como mencionado, a Súmula 262/TCU (editada em 2010 sob a égide da Lei 8.666) já estabelecia expressamente que a Administração deve oportunizar ao licitante a prova da exequibilidade da proposta suspeita. Com a vigência da Lei 14.133/2021, o TCU passou a enfrentar casos práticos envolvendo o novo critério de 75%, e suas decisões reafirmaram essa compreensão.
Destaca-se, em especial, o Acórdão 803/2024 – Plenário do TCU (relatado pelo Min. Benjamin Zymler, julgado em 24/04/2024), que abordou diretamente a interpretação do art. 59, §4º da Lei 14.133/21. Nesse caso, discutia-se uma possível contradição entre a lei e uma norma infralegal (Instrução Normativa Seges/MGI 2/2023) que autorizava a realização de diligências quando houvesse proposta inferior a 75% do orçamento. Alegava-se que a lei teria criado um critério absoluto (ou seja, abaixo de 75% seria inexequível sem discussão), de modo que a previsão de diligência na IN seria ilegal.
O TCU, contudo, afastou essa interpretação literal rígida do §4º. O plenário do Tribunal fez observações importantes: uma leitura inflexível do limite de 75% poderia, na verdade, prejudicar a competição e até contrariar princípios constitucionais. Isso porque, se todos soubessem que ofertas abaixo de 75% seriam desclassificadas automaticamente, os licitantes tenderiam a não ofertar descontos além desse patamar – na prática, congelando o desconto máximo em 25%. Isso eliminaria a disputa por preços melhores, pois nenhum concorrente iria abaixo disso com medo de ser eliminado. Como resultado, muitos certames poderiam acabar empatados justamente nesse limite, forçando o uso de critérios de desempate. Segundo o TCU, tal cenário frustraria o objetivo da licitação de obter a proposta mais vantajosa e poderia até afrontar o princípio da economicidade e o dever de licitar previstos na Constituição.
Além disso, o Acórdão 803/2024 salientou que não cabe ao Estado uma tutela excessiva dos licitantes a ponto de fixar um corte absoluto para preços. Cada empresa conhece sua estrutura de custos e suas estratégias. Um critério legal fixo não consegue abarcar todas as nuances da atividade econômica. Citou-se, por exemplo, a situação de uma empresa que deliberadamente faz uma proposta muito barata visando obter experiência ou um atestado técnico, mesmo arcando com pouco ou nenhum lucro – uma decisão empresarial válida em certos contextos. Se a Administração impuser um paternalismo exagerado, poderia estar interferindo indevidamente na liberdade do setor privado assumir riscos calculados.
Por outro lado, o TCU reconheceu que propostas excessivamente baixas podem ocultar intenções prejudiciais, aludindo ao chamado “risco moral”. Esse risco ocorre quando o licitante assume postura irresponsável por saber que, se não conseguir cumprir o contrato, as consequências podem recair em parte sobre a Administração (por exemplo, ele abandona a obra após executar a parte mais lucrativa, deixando o restante para ser contratado de emergência, ou então ganha a licitação barato já contando em pedir aditivos ilegais posteriormente para aumentar o valor). Porém, conforme frisou o Acórdão 803/2024, a solução para coibir esse risco moral não é fixar um critério inflexível de preço, mas sim aprimorar os procedimentos de análise e fiscalização. Ou seja, cabe à Administração, no momento da licitação e da execução contratual, ser rigorosa na avaliação das propostas (incluindo exigência de demonstração de exequibilidade) e no acompanhamento do contrato, de modo a evitar comportamentos oportunistas.
Em conclusão, o TCU julgou improcedente a representação que alegava a ilegalidade das diligências e afirmou, em caráter pedagógico, que o §4º do art. 59 da Lei 14.133 deve ser interpretado à luz do §2º do mesmo artigo. Não se trata de uma presunção absoluta de inexequibilidade, mas relativa. O resultado prático desse entendimento é: sempre que uma proposta estiver abaixo do referencial de 75%, a Administração deve acionar o mecanismo da diligência, dando oportunidade ao licitante de comprovar a exequibilidade da sua oferta, em atenção ao que determinam o inciso IV e o §2º do art. 59.
Somente após essa apuração, e caso o proponente não consiga dissipar as dúvidas sobre sua capacidade de executar pelo preço proposto, é que a desclassificação por inexequibilidade estará juridicamente respaldada.
Vale mencionar que esse posicionamento do Acórdão 803/2024 não é isolado. Outros precedentes do TCU, também já sob a vigência da Lei 14.133, seguem na mesma linha. Por exemplo, o Acórdão 465/2024-Plenário igualmente registrou que a regra do art. 59, §4º gera presunção relativa e impõe o dever de dar ao licitante a chance de demonstrar a viabilidade de sua proposta.
Para as empresas licitantes, essa jurisprudência é uma garantia de que seus direitos serão respeitados: se oferecerem um preço agressivo (baixo), não poderão ser eliminadas sumariamente sem chance de se defender. Contudo, também traz responsabilidades, pois caberá a elas reunir e apresentar elementos técnicos convincentes quando forem chamadas a justificar seus preços.
Jurisprudência do TCU: reforço à presunção relativa e à obrigatoriedade de diligência
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem se consolidado no sentido de que o limite de 75% do valor estimado, previsto no §4º do art. 59 da Lei nº 14.133/2021, bem como o de 50% previsto no art. 34 da Instrução Normativa SEGES/MGI nº 73/2022, configuram apenas uma presunção relativa de inexequibilidade, e não uma presunção absoluta. Assim, impõe-se à Administração Pública o dever de realizar diligência prévia, sempre que a proposta apresentar indícios de inexequibilidade com base nesse parâmetro.
Essa orientação encontra respaldo desde a Súmula 262/TCU, editada sob a égide da antiga Lei nº 8.666/1993, que já reconhecia a necessidade de oportunizar ao licitante a demonstração da exequibilidade da proposta suspeita. Com a vigência da nova lei, o TCU reafirmou esse entendimento em diversas decisões relevantes.
Dentre elas, merece destaque o Acórdão nº 803/2024 – Plenário do TCU (rel. Min. Benjamin Zymler), que enfrentou diretamente o tema da interpretação do §4º do art. 59. Na ocasião, afastou-se a tese de que a norma teria criado um critério absoluto de desclassificação automática, ao reconhecer que a realização de diligência para apuração da viabilidade econômica da proposta é obrigatória, mesmo quando esta se encontrar abaixo do limite de 75%.
O Tribunal ressaltou que uma leitura inflexível do dispositivo legal poderia restringir indevidamente a competitividade, ao desencorajar propostas com descontos mais agressivos. Além disso, apontou que o papel do Estado não é exercer tutela paternalista sobre os licitantes, mas sim assegurar que propostas exequíveis e vantajosas tenham a oportunidade de prevalecer — desde que o proponente consiga comprovar tecnicamente sua capacidade de execução.
Mais recentemente, essa jurisprudência foi reforçada com ainda mais clareza pelo Acórdão nº 214/2025 – Plenário do TCU, que deve ser considerado como o precedente mais atual e contundente sobre o tema. Nesse julgamento, o Tribunal reiterou que a Administração não pode desclassificar proposta com fundamento exclusivo no §4º do art. 59 da Lei 14.133/2021, sem antes oportunizar ao licitante a demonstração da exequibilidade por meio de diligência, sob pena de violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da busca pela proposta mais vantajosa.
O acórdão foi categórico ao afirmar que a interpretação sistemática dos §§2º e 4º do art. 59 conduz à obrigatoriedade de diligência sempre que houver dúvida quanto à exequibilidade da proposta. Ressaltou-se, inclusive, que essa etapa é condição de validade da própria desclassificação, sob pena de nulidade do ato.
Para as empresas licitantes, essa jurisprudência representa uma dupla garantia: o direito de defender propostas competitivas e o dever de estar preparadas para justificar, com base técnica, a viabilidade econômica da sua oferta.
Riscos da desclassificação automática sem diligência
Desconsiderar esse dever de diligência prévia e partir para a desclassificação automática de uma proposta suspeita de inexequível representa um grave risco jurídico e prático tanto para a Administração quanto para os licitantes envolvidos. Dentre os principais problemas de uma inabilitação sumária sem observância do procedimento adequado, destacam-se:
- Nulidade do ato e do certame: Uma desclassificação feita em desacordo com a Lei 14.133/21 e a jurisprudência do TCU pode ser declarada inválida. O licitante prejudicado tem o direito de apresentar recurso administrativo no próprio processo licitatório, alegando a irregularidade (violação do art. 59, §2º e inc. IV). Caso a comissão de licitação mantenha a decisão ilegal, é possível buscar a anulação do ato via representação aos órgãos de controle (como o TCU ou os Tribunais de Contas estaduais/municipais) ou mesmo por ação judicial.
- Violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa: A Constituição Federal (art. 5º, LV) assegura o direito ao contraditório e à ampla defesa nos processos administrativos. Embora um julgamento de propostas não seja um “processo sancionador” típico, a exclusão de uma proposta legítima sem chance de defesa fere o senso de justiça procedimental. Os órgãos de controle e o Poder Judiciário têm reconhecido que o licitante deve ser ouvido quanto à viabilidade de sua proposta antes de ser afastado, sob pena de ofensa a princípios basilares do Direito Administrativo.
- Prejuízo à competitividade e à economicidade: Como apontado pelo TCU, eliminar automaticamente propostas abaixo de certo patamar pode distorcer o jogo competitivo. Em vez de incentivar descontos maiores (beneficiando a Administração com preços mais baixos), um critério rígido desestimula propostas ousadas. Isso significa que a Administração pode acabar pagando mais caro por contratar uma proposta “segura” (acima de 75%) quando poderia ter obtido uma oferta válida de menor valor. Ou seja, a falta de diligência pode levar à contratação de uma proposta menos vantajosa economicamente, contrariando o princípio da busca da proposta mais vantajosa.
- Risco de responsabilização do agente público: Os agentes da comissão de licitação ou o pregoeiro que deixarem de realizar diligência e efetuarem uma desclassificação indevida podem ser responsabilizados. O TCU já qualificou a desclassificação sem diligência como irregularidade passível de apontamento em auditorias. Em casos graves, isso pode levar a sanções aos responsáveis, como multas ou determinações de correção do procedimento.
- Imagem e confiança no processo licitatório: Para os licitantes, ver propostas descartadas sem análise gera desconfiança na lisura do certame. Empresas idôneas podem se sentir desestimuladas a participar de futuras licitações daquele órgão, receosas de arbitrariedades. A longo prazo, isso reduz a competição nos certames, o que também prejudica a Administração.
Em face desses riscos, fica evidente que não compensa “queimar etapas”. O procedimento correto – isto é, investigar a exequibilidade por meio de diligência – não é burocracia excessiva, mas sim uma garantia de segurança jurídica e de decisão acertada. Inclusive, a diligência bem conduzida não tende a alongar demasiadamente o certame; pelo contrário, pode evitar impugnações e atrasos futuros. Muitas vezes, basta conceder ao licitante um prazo curto (24 ou 48 horas) para apresentar esclarecimentos/documentos, analisar rapidamente em seguida, e então tomar a decisão fundamentada. Esse pequeno investimento de tempo previne uma série de problemas maiores adiante.
Do ponto de vista do licitante, caso ele seja vítima de uma inabilitação por inexequibilidade sem ter havido diligência, é crucial que saiba que pode e deve reagir. Os caminhos incluem interpor recurso administrativo contra a desclassificação, juntando toda a documentação que comprove a exequibilidade e citando a legislação e precedentes do TCU favoráveis. Se mesmo assim não for revertido, buscar a via judicial ou representação ao TCU são alternativas. Nessas horas, contar com assessoria jurídica especializada, como a do Schiefler Advocacia, faz a diferença para reverter o quadro com rapidez e efetividade.
Boas práticas para licitantes: preparando-se para comprovar a exequibilidade
Para as empresas que participam de licitações, especialmente em setores de obras e engenharia (onde o critério de 75% se aplica), seguem algumas boas práticas a adotar visando prevenir problemas com alegações de inexequibilidade e se proteger caso elas surjam:
- Elaboração cuidadosa da proposta: Antes de tudo, o licitante deve montar sua proposta de preço com base em uma planilha de custos realista. Identifique todos os custos diretos (materiais, mão de obra, equipamentos, logística) e indiretos, tributos incidentes, margens etc. Se o preço final ofertado for muito baixo em relação ao orçamento público, certifique-se de que internamente você consegue justificar cada cifra. Isso já serve de preparação para uma eventual diligência.
- Documentação de suporte pronta: Tenha à mão documentos que possam comprovar condições vantajosas da sua empresa. Por exemplo: cotações de fornecedores com valores menores que os usuais, demonstrações de eficiência produtiva, comprovantes de estoque próprio de material, contratos anteriores em que executou serviço similar por preço equivalente, enfim, qualquer evidência de que você consegue realizar pelo valor proposto. Essa documentação poderá ser apresentada rapidamente se a comissão solicitar esclarecimentos.
- Atenção ao edital e comunicações da licitação: O edital pode prever expressamente como será avaliada a exequibilidade e quais documentos podem ser exigidos. Siga essas regras. Além disso, fique atento durante a sessão ou fase de julgamento: se o pregoeiro/comissão mencionar suspeita de inexequibilidade, esteja pronto para requerer a oportunidade de demonstrar sua exequibilidade (caso não seja automaticamente concedida). Faça constar em ata, se possível, seu compromisso de apresentar justificativas.
- Responda prontamente às diligências: Se a Administração abrir diligência para comprovação de exequibilidade, observe rigorosamente o prazo concedido e responda de forma completa. Entregue todos os documentos solicitados e, se cabível, acrescente uma explicação por escrito, clara e objetiva, indicando como chegou àquele preço e porque ele é exequível. Essa resposta bem fundamentada frequentemente é suficiente para convencer a comissão e evitar a desclassificação.
- Recurso bem fundamentado em caso de desclassificação indevida: Caso, apesar de tudo, sua proposta seja desclassificada sem chance de esclarecimento (ou você julgue que a avaliação foi equivocada), interponha recurso administrativo. Demonstrar conhecimento técnico-jurídico firme pode fazer a própria Administração reconsiderar a decisão, evitando escalonar o conflito.
- Assessoria jurídica especializada: Conte com apoio de advogados experientes em licitações antes, durante e depois do certame. Essa parceria preventiva pode evitar que o problema de inexequibilidade sequer aconteça, ou tratar rapidamente dele se surgir, protegendo sua posição no certame.
Adotando essas boas práticas, o licitante minimiza consideravelmente o risco de ser surpreendido por uma inabilitação por inexequibilidade. E mesmo que seus preços agressivos despertem questionamentos, estará bem aparelhado para demonstrar a viabilidade e assegurar sua vitória legítima na licitação.
A participação em licitações públicas envolve desafios técnicos e jurídicos significativos, sobretudo diante da possibilidade de desclassificação por inexequibilidade. Nesse contexto, contar com uma assessoria jurídica especializada, como a oferecida pelo Schiefler Advocacia, é fundamental para proteger os interesses das empresas licitantes. Atuamos desde a análise preventiva dos editais e elaboração estratégica das propostas, passando pelo acompanhamento criterioso do certame e intervenções técnicas imediatas, até a apresentação robusta de justificativas técnicas e recursos administrativos contra decisões indevidas.
Além disso, nossa equipe está preparada para representar empresas perante Tribunais de Contas e Poder Judiciário, sempre embasada em sólida argumentação jurídica e técnica, amparada pela mais recente jurisprudência do TCU. Nossa atuação continua na fase contratual, garantindo apoio jurídico em situações que demandem reequilíbrio econômico-financeiro e renegociações, assegurando, assim, a execução sustentável e vantajosa dos contratos administrativos.
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Contratação de Empresa com CNAE Divergente do Objeto Licitado: Análise Jurídica sob a Lei 14.133/2021
Introdução
A contratação pública de empresas cuja inscrição no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) não apresenta atividade econômica (CNAE) correspondente ao objeto licitado levanta importantes questões jurídicas. Com a entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), é fundamental analisar como ficam os requisitos de habilitação das licitantes nesse contexto.
Este artigo aprofunda o tema à luz da nova legislação, em especial no que tange à habilitação jurídica e à qualificação técnica dos licitantes, e examina entendimentos jurisprudenciais relevantes do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a matéria. O objetivo é esclarecer se a ausência de determinado CNAE no cadastro da empresa pode, por si só, impedi-la de contratar com a Administração Pública, mesmo quando esteja tecnicamente apta a executar o objeto licitado.
CNAE e Objeto Licitado: Conceitos e Implicações
A Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) é o código oficial que identifica as atividades econômicas exercidas por uma empresa. No cadastro do CNPJ, cada pessoa jurídica informa um ou vários CNAEs correspondentes aos ramos de atuação aos quais se dedica.
Em licitações públicas, muitas vezes se menciona o CNAE da empresa como indicativo de sua aptidão para realizar o objeto contratual. Entretanto, o CNAE em si não define de forma absoluta a capacidade de uma empresa executar determinado serviço ou obra.
Ele é uma referência administrativa e fiscal das atividades empresariais, mas não um limitador legal das atividades que a empresa pode exercer – desde que estas estejam abrangidas, ainda que genericamente, em seu objeto social (a descrição das atividades permitidas em seu contrato ou estatuto social).
É relativamente comum que editais de licitação contenham cláusulas exigindo que a empresa licitante tenha finalidade ou ramo de atuação ligado ao objeto licitado. Essa prática busca garantir que apenas concorram empresas “do ramo” do objeto da contratação. Contudo, surge o questionamento: se a empresa não tem em seu cadastro um CNAE específico para aquela atividade, mas comprova que já a executou com qualidade, poderia ser inabilitada?
A Nova Lei de Licitações e Contratos e a jurisprudência moderna apontam para um tratamento mais flexível e focado na capacidade real da empresa, conforme veremos a seguir.
Habilitação Jurídica na Lei 14.133/2021
A habilitação jurídica diz respeito à capacidade da empresa de exercer direitos e assumir obrigações perante a Administração. Na Lei nº 14.133/2021, diferentemente da legislação anterior, simplificou-se a exigência de habilitação jurídica.
Segundo o art. 66 da nova lei, a documentação se limita à comprovação da existência jurídica da pessoa e, quando cabível, de autorização específica para o exercício da atividade a ser contratada. Em outras palavras, basta demonstrar que a empresa existe formalmente (por meio do contrato social registrado, CNPJ ativo etc.) e que não há impedimentos legais para que atue naquele ramo – se a lei exigir alguma autorização especial (por exemplo, licenças ou registro em conselho profissional para atividades regulamentadas).
Importante destacar que a lei não menciona nenhuma obrigação de que o objeto social ou o CNAE da empresa coincida exatamente com o objeto licitado. A ênfase está na regularidade formal da empresa e na autorização legal quando a atividade exigir condição especial (por exemplo, registro na Anvisa para certas atividades de saúde, ou no CREA/CAU para serviços de engenharia/arquitetura, etc.).
Fora dessas hipóteses de exigência legal específica, não há base legal para desclassificar licitantes unicamente porque seu cadastro empresarial não listava determinada atividade. Tal entendimento é coerente com o princípio da ampla concorrência (ou competitividade) previsto na própria Lei 14.133/2021 e na Constituição Federal (art. 37, XXI), que proíbe a Administração de restringir injustificadamente a participação de interessados na licitação.
Qualificação Técnica: Comprovação de Capacidade x CNAE
Enquanto a habilitação jurídica cuida dos aspectos formais de existência e capacidade legal da empresa, a qualificação técnica verifica se o licitante possui aptidão técnica para executar o contrato. A Lei 14.133/2021 disciplina a qualificação técnica principalmente em seu art. 67, que trata da documentação técnico-profissional e técnico-operacional exigível.
Dentre os meios de comprovação de qualificação técnica permitidos, destacam-se: apresentação de atestados de capacidade técnica (fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado que atestem que a empresa realizou serviços ou forneceu bens semelhantes ao objeto da licitação), indicações de equipe técnica e aparelhamento adequados, e registro em conselho profissional, quando aplicável.
Em suma, a lei prioriza a comprovação concreta da experiência e capacidade técnica da empresa, por meio de atestados e certificações, em vez de se ater a classificações formais. Não há no art. 67 ou em qualquer dispositivo da Lei 14.133/2021 previsão de exigência do código CNAE como condição de qualificação. A Administração deve exigir prova da capacidade técnica pertinente ao objeto (por exemplo, atestados de serviços similares já executados), o que é muito mais eficaz para avaliar a aptidão do que verificar se determinada atividade consta ou não do cadastro fiscal da empresa.
Assim, do ponto de vista estritamente legal, nada impede que uma empresa sem o CNAE exato do objeto licitado participe e seja habilitada, desde que comprove, por outras vias, que tem condições técnicas de executar o contrato. Essa comprovação ocorre mediante os documentos de qualificação técnica elencados na lei – e não pela simples classificação fiscal.
Em última análise, o que se busca é a garantia de que a contratada entregue o objeto com qualidade, e isso se verifica pelos seus antecedentes de desempenho (experiência pretérita) e estrutura atual, e não por códigos de inscrição econômica.
Jurisprudência do TCU sobre CNAE e Objeto Social do Licitante
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União tem reiteradamente firmado entendimento de que o CNAE ou a descrição específica do objeto social da empresa não constituem, por si sós, elementos essenciais para habilitação, se a capacidade técnica restar devidamente demonstrada.
Em casos concretos, o TCU vem decidindo que a inabilitação fundada exclusivamente na ausência de determinado CNAE configura formalismo excessivo e viola o caráter competitivo da licitação. Desde meados dos anos 2000, o TCU assinala que a Administração não deve restringir a competição exigindo correspondência exata entre o ramo de atividade registrado da empresa e o objeto licitado.
No Acórdão nº 571/2006 – TCU (2ª Câmara), por exemplo, discutiu-se a situação de um licitante cujo contrato social não continha, de forma expressa, a atividade específica objeto da licitação (transporte de pessoas). Naquela oportunidade, o Tribunal ponderou que a empresa havia apresentado três atestados de capacidade técnica por entes públicos distintos, comprovando experiência na execução do serviço pretendido. Concluiu, então, ser irrazoável exigir que o objeto social preveja minuciosamente cada subatividade ligada à atividade principal desempenhada: “Se uma empresa apresenta experiência adequada e suficiente para o desempenho de certa atividade, não seria razoável exigir que ela tenha detalhado o seu objeto social a ponto de prever expressamente todas as subatividades complementares à atividade principal”. Nesse caso, o TCU entendeu que a desclassificação da empresa com base unicamente nessa lacuna do contrato social feriu o interesse público, pois impediu a seleção da melhor proposta possível – entendimento inteiramente alinhado ao princípio da competitividade.
Essa linha de raciocínio foi posteriormente reafirmada em diversos outros precedentes do TCU.
No Acórdão nº 1203/2011 – Plenário, citando um exemplo, o Tribunal julgou indevida a inabilitação de empresa que não possuía CNAE específico para transporte de cargas leves, pois a licitante demonstrara já ter executado serviços semelhantes para a própria Administração contratante em contrato anterior – evidência de capacidade técnica que se sobrepôs a meras formalidades cadastrais.
De forma semelhante, no Acórdão nº 9365/2015 – 2ª Câmara, uma licitante de serviços de alimentação foi mantida na disputa apesar de não ter o CNAE exato de “distribuição de refeições”, porque apresentou atestados comprovando larga experiência no fornecimento de refeições em eventos de grande porte.
Mais recentemente, em pleno vigorar da nova lei, o Acórdão nº 444/2021 – Plenário reforçou esse entendimento ao considerar ilegal a desclassificação de uma empresa por divergência de CNAE em um pregão para recuperação de estradas vicinais – o TCU ressaltou que o essencial era a comprovação da experiência da empresa em atividades análogas, tratando a exigência rígida de CNAE como indevida por comprometer a seleção da proposta mais vantajosa.
Em síntese, a posição consolidada do TCU é de que a ausência de determinada atividade no objeto social ou no CNAE da licitante não é motivo suficiente para inabilitá-la, desde que fique demonstrada sua aptidão técnica para executar o objeto contratual. Cláusulas editalícias que exijam estritamente a correspondência do CNAE como critério eliminatório tendem a ser consideradas restritivas em demasia. O foco deve recair sobre a comprovação efetiva da capacidade de desempenho – por meio de atestados, registros profissionais, qualificação de equipe, etc. – em observância aos arts. 67 e 69 da Lei 14.133/2021 e ao princípio da competitividade.
Consequências Práticas e Recomendações
Diante do arcabouço legal e jurisprudencial exposto, uma empresa pode, em tese, ser contratada pelo Poder Público mesmo que não possua, em seu CNPJ, CNAE correspondente ao objeto da licitação.
Não havendo vedação legal expressa, a ausência do código específico não impede a contratação se a licitante cumprir os demais requisitos de habilitação. Isso traz alívio para muitas empresas, especialmente as que diversificam seus serviços ao longo do tempo e nem sempre atualizam imediatamente seus CNAEs junto aos órgãos de registro.
Entretanto, é recomendável adotar boas práticas preventivas. Do ponto de vista prático, incluir no objeto social da empresa descrições amplas ou abrangentes das atividades que ela desenvolve (ou pretende desenvolver) pode evitar questionamentos nas fases de habilitação. Manter o cadastro CNAE atualizado com as principais atividades também é salutar – não por imposição legal, mas para reduzir resistências e necessidade de esclarecimentos perante comissões de licitação menos experientes.
Em caso de cláusulas restritivas no edital, a empresa deve considerar impugná-las administrativamente antes da licitação ou, se necessário, recorrer judicialmente ou aos órgãos de controle. A própria nova lei reforça a possibilidade de saneamento de falhas e flexibilização de exigências excessivas para ampliar a disputa (fundamento que embasa, por exemplo, o art. 9º, I, “b” e o art. 12, III, da Lei 14.133/2021, que vedam cláusulas ou práticas que frustrem o caráter competitivo injustificadamente).
Em suma, prevalece o meritório sobre o meramente formal: uma empresa tecnicamente qualificada não deve ser afastada apenas por não constar determinado código de atividade em seu CNPJ. A Administração Pública, ao conduzir suas licitações, deve buscar a proposta mais vantajosa e selecionar fornecedores capazes, evitando formalismos exagerados que não guardem relação direta com a futura execução contratual.
Esse entendimento, lastreado na lei e na jurisprudência do TCU, promove a competitividade e a eficiência nas contratações públicas, beneficiando tanto o setor público (que passa a contar com um leque maior de propostas qualificadas) quanto as empresas que, por sua expertise, podem participar de certames além das definições estritas de seus cadastros.
Conclusão
A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) consolida uma visão moderna da fase de habilitação: privilegia-se a efetiva capacidade jurídica e técnica do licitante em detrimento de formalidades cadastrais rígidas. Nesse cenário, exigir que o CNAE ou o objeto social do licitante seja idêntico ao objeto licitado não encontra amparo expresso na lei e vem sendo refutado pelos órgãos de controle. Desde que a empresa demonstre, com documentação hábil, estar legalmente constituída e tecnicamente apta a executar o contrato, não deverá ser inabilitada pela mera ausência de um código CNAE específico ligado ao objeto da licitação. Tal prática, além de juridicamente questionável, pode privar a Administração da melhor proposta, contrariando o interesse público.
Por todo o exposto, a resposta à indagação inicial é clara: é possível a contratação pública de empresa cujo CNPJ não apresente atividade econômica correspondente ao objeto licitado, desde que atendidos os requisitos legais de habilitação (existência jurídica regular e qualificação técnica comprovada por outros meios idôneos).
A atenção deve recair sobre a essência (capacidade de executar) e não sobre a forma (registro burocrático da atividade). Esse entendimento, respaldado pela jurisprudência do TCU, fortalece os princípios da isonomia e da competitividade nas licitações, ao mesmo tempo em que impõe às empresas o ônus de demonstrar sua qualificação de maneira robusta.
Diante das nuances legais e dos riscos envolvidos nas contratações públicas, é imprescindível contar com orientação jurídica especializada.
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Obrigatoriedade de Apresentação do Balanço Patrimonial por MEIs em Licitações Públicas
Fundamentos Legais: da Lei nº 8.666/1993 à Nova Lei nº 14.133/2021
A exigência de demonstrações contábeis (balanço patrimonial, DRE etc.) em licitações públicas tem base nas leis de licitações, tanto na antiga Lei nº 8.666/1993 quanto na nova Lei nº 14.133/2021. Essas normas visam garantir que os licitantes possuam saúde financeira mínima para cumprir um futuro contrato público.
Pela Lei nº 8.666/1993, a habilitação econômico-financeira restringia-se à apresentação de: (i) balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e na forma da lei, comprovando a boa situação financeira da empresa (não se admitindo balancetes ou balanços provisórios); (ii) certidão negativa de falência ou concordata (no caso de pessoa jurídica) ou de execução patrimonial (para pessoa física); e (iii) eventualmente, garantia limitada a 1% do valor do contrato. Em suma, a antiga lei exigia o balanço patrimonial do último ano como comprovação da capacidade econômico-financeira.
Com a Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), em vigor integral desde 2023, a regra foi mantida e até ampliada. O artigo 69 dessa lei estabelece que a habilitação econômico-financeira será demonstrada, de forma objetiva, pela apresentação de balanço patrimonial, demonstração do resultado do exercício (DRE) e demais demonstrações contábeis dos 2 (dois) últimos exercícios sociais, além da certidão negativa de falência/insolvência.
Ou seja, agora podem ser exigidos os balanços dos dois últimos anos, aumentando o escopo de análise das finanças do licitante. Há, contudo, uma salvaguarda para empresas novas: se o licitante tiver menos de 2 anos de constituição, os documentos contábeis se limitam ao último exercício encerrado. Essa evolução normativa demonstra que o legislador reforçou a necessidade de transparência financeira, sem dispensar micro ou pequenos empreendedores dessa obrigação.
Importante notar que essa obrigação legal vale para qualquer participante da licitação, incluindo microempresas, empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais (MEIs). A legislação especial das licitações, por sua natureza, impõe essas exigências a todos os concorrentes, visando resguardar o interesse público na contratação. No âmbito das leis de licitação, não há exceção expressa que dispense MEIs ou microempresas de apresentar balanço patrimonial – as únicas flexibilizações são aquelas gerais, como a possibilidade de exigir apenas o último balanço para empresas constituídas há menos de dois anos (no caso da Lei 14.133) e os benefícios da Lei Complementar nº 123/2006 que não incluem isenção de demonstrações contábeis, como veremos adiante.
Jurisprudência do TCU: MEI Deve Apresentar Balanço Patrimonial
Diante da dúvida se um Microempreendedor Individual, por ter obrigações contábeis simplificadas, precisaria mesmo entregar balanço patrimonial em licitações, o Tribunal de Contas da União (TCU) firmou entendimento claro: sim, deve apresentar. Em diversas decisões recentes, o TCU consolidou que as exigências das leis de licitação prevalecem sobre eventuais dispensas previstas em legislação civil ou comercial.
Um marco nesse entendimento foi o Acórdão nº 133/2022 do TCU – Plenário, de relatoria do Ministro Walton Alencar Rodrigues. Nessa decisão, o TCU examinou a participação de um MEI em licitação regida pela Lei 8.666/93 e concluiu que, mesmo que o Código Civil dispense o pequeno empresário de manter balanço, o MEI deve apresentá-lo se o edital exigir para fins de qualificação econômico-financeira. Conforme consta do voto, “ainda que o MEI esteja dispensado da elaboração do balanço patrimonial pelo Código Civil, para participação em licitação pública regida pela Lei 8.666/1993, deverá apresentar o balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e na forma da lei, conforme previsto no art. 31, inciso I, da Lei 8.666/1993”. Em outras palavras, a obrigação de demonstrar a boa situação financeira prevalece no âmbito da licitação, independentemente do regime simplificado do empresário.
Mais recentemente, já na vigência da nova lei, o TCU reafirmou esse entendimento no Acórdão nº 2586/2024 – Plenário. Nesse julgado, ao apreciar um recurso, o Tribunal adaptou a redação da orientação anterior para o contexto da Lei 14.133/2021. Ficou consignado que, em licitações sob a égide da Lei 14.133, o MEI – mesmo dispensado de escrituração contábil pelo Código Civil – deverá apresentar, quando exigido para comprovação de sua boa situação financeira, o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis do último exercício social, salvo nas hipóteses de dispensa de documentação previstas no art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021.
A referência ao art. 70, III, diz respeito a casos excepcionais em que a própria lei de licitações permite a dispensa de documentos de habilitação (por exemplo, contratações de menor valor com entrega imediata e pagamento único, conforme limites legais). Fora dessas situações excepcionais, o entendimento do TCU é peremptório: MEIs estão obrigados a apresentar suas demonstrações contábeis nas licitações, assim como qualquer outra empresa.
Essa posição não surgiu do nada – o TCU já vinha sinalizando em decisões anteriores que não poderia o edital isentar MEIs ou microempresas da apresentação de balanço. Por exemplo, em 2016 e 2017, o Tribunal censurou editais que desobrigavam balanço patrimonial, por violarem a Lei 8.666 e os princípios da isonomia. No Acórdão 1.857/2022, também do Plenário, reiterou-se que a desobrigação de balanço para ME/EPP é irregular, devendo os benefícios às microempresas limitar-se àqueles previstos na Lei Complementar 123/2006.
Ou seja, a jurisprudência do TCU tem sido consistente em não admitir tratamento favorecido além do previsto em lei, reforçando que a exigência de balanço patrimonial é regra geral para todos os licitantes.
O Conflito com o Código Civil e a Prevalência da Lei Especial de Licitações
A resistência de alguns microempreendedores em apresentar balanço patrimonial deriva do aparente conflito de normas. De um lado, o Código Civil (Lei nº 10.406/2002) estabelece, em seu art. 1.179, que todo empresário e sociedade empresária devem seguir um sistema de contabilidade e levantar anualmente balanço patrimonial e de resultado. Por outro lado, o próprio art. 1.179 do Código Civil, em seu §2º, dispensa dessas exigências “o pequeno empresário a que se refere o art. 970”. Na prática, este “pequeno empresário” abrange as microempresas e, por extensão, o microempreendedor individual (que é uma categoria criada posteriormente pela LC 123/2006, gozando de tratamento semelhante ao da microempresa). Além disso, a Lei Complementar nº 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte) permite que microempresas optantes pelo Simples Nacional adotem uma contabilidade simplificada, a critério do empreendedor. Em suma, a legislação civil e comercial não obriga o MEI a ter balanço patrimonial e escrituração completa, diferentemente de empresas maiores.
Diante disso, seria lógico questionar: por que exigir balanço do MEI na licitação, se a lei dispensa sua elaboração? A resposta está na hierarquia e especialidade das normas.
As regras de habilitação em licitações integram uma legislação especial (leis de licitação) voltada especificamente à contratação pública, com objetivos próprios de proteção ao interesse público (garantia da execução contratual, seleção de propostas vantajosas, isonomia entre licitantes, etc.). Já as disposições do Código Civil e da LC 123/2006 são normas gerais de direito empresarial e econômico, visando desburocratização e incentivo aos pequenos negócios de forma ampla.
Prevalece, nesse caso, o princípio de que a lei especial prevalece sobre a lei geral (lex specialis derrogat legi generali). O TCU explicitou exatamente isso: a licitação pública é regida por lei específica e, em razão dessa especialidade, afasta a aplicação da lei geral naquilo que for incompatível. Portanto, a dispensa contábil do art. 1.179 do Código Civil não isenta o MEI das exigências da Lei de Licitações, pois esta representa um microssistema próprio. Ademais, a Constituição Federal, ao tratar de licitações (art. 37, XXI), exige igualdade de condições e cumprimento estrito dos termos do edital e da lei. Isentar um licitante de apresentar documentos exigidos dos demais violaria a isonomia e a competitividade do certame.
Assim, a interpretação que se consolidou é de que o MEI pode, para efeitos do direito privado, não ter obrigação de escrituração mercantil completa, mas se ele optar por participar de licitação pública, deve atender às exigências documentais dessa legislação especial, inclusive no tocante ao balanço patrimonial.
Ressalte-se que a LC 123/2006, ao estabelecer tratamento favorecido às micro e pequenas empresas nas contratações públicas, não prevê a dispensa da documentação de qualificação econômico-financeira. Os benefícios ali elencados referem-se a outras medidas, como preferência em caso de empate, prazos para regularizar certidões fiscais, subdivisão de lotes, etc. Não há na LC 123/06 qualquer artigo isentando microempresas ou MEIs de apresentar balanços ou demonstrativos em licitações. Portanto, permitir que um MEI concorra sem comprovar sua situação financeira seria criar um benefício não previsto em lei, algo que os órgãos de controle rechaçam.
Em síntese, o entendimento dominante é que a obrigação de balanço patrimonial prevalece, e a dispensa do Código Civil não pode ser invocada para frustrar as exigências de habilitação fixadas nas leis de licitação.
Consequências da Não Apresentação do Balanço Patrimonial
A não apresentação do balanço patrimonial pelo MEI em um processo licitatório pode acarretar sérias consequências práticas, em especial a sua inabilitação imediata. Nos processos regidos tanto pela antiga Lei 8.666 quanto pela nova Lei 14.133, a fase de habilitação é eliminatória: o licitante que não entregar toda a documentação exigida no edital (observados os limites da lei) será desclassificado da licitação (inabilitado), não podendo prosseguir na disputa. Assim, um MEI que deixa de incluir suas demonstrações contábeis (quando o edital as exige) muito provavelmente será excluído do certame por não atender à qualificação econômico-financeira.
Mesmo que o microempreendedor individual argumente que não possui balanço formal por não ser obrigado a elaborá-lo no dia a dia, a comissão de licitação ou pregoeiro não tem amparo legal para relevá-lo, salvo nas hipóteses excepcionalíssimas de dispensa de documentação previstas na lei (como contratações diretas ou licitações dispensáveis de baixo valor, conforme art. 70 da Lei 14.133, mencionadas). Na prática comum das licitações, a ausência do balanço no envelope de habilitação leva à inabilitação do MEI – ou de qualquer outra empresa nas mesmas condições.
Do ponto de vista do órgão público condutor da licitação, há também consequências caso ele tente flexibilizar indevidamente essa exigência. Se um edital dispensar o MEI de apresentar balanço patrimonial (tentando favorecer sua participação), tal cláusula será considerada ilegal e inconstitucional pelos órgãos de controle. O TCU já determinou ciência a entes públicos alertando que isentar MEIs da exigência do balanço contraria o art. 37, XXI, da CF/88 (princípio da isonomia e seleção da proposta mais vantajosa), bem como a Lei 8.666/93 e a jurisprudência consolidada. Isso significa que o procedimento licitatório pode ser impugnado por outros licitantes ou questionado pelos Tribunais de Contas, levando à anulação do edital ou à necessidade de correção das regras. Em suma, a Administração não pode criar exceções não previstas em lei sob pena de invalidar o certame.
Portanto, a não apresentação do balanço patrimonial resulta, para o MEI, na perda da oportunidade de contratar (desclassificação), e para o processo licitatório em si, no risco de nulidade caso a exigência tenha sido indevidamente dispensada.
Recomendações Práticas para MEIs e Pequenas Empresas em Licitações
Diante desse cenário, é fundamental que microempreendedores individuais e pequenas empresas tomem algumas precauções e adotem boas práticas ao se prepararem para participar de licitações públicas. Seguem algumas recomendações úteis:
- Mantenha a contabilidade em dia: Mesmo que a lei civil não o obrigue, o MEI deve preparar anualmente um balanço patrimonial e demonstrações de resultado. Busque auxílio de um contador para elaborar esses documentos conforme os princípios contábeis. Assim, quando surgir uma oportunidade de licitação, a empresa já terá em mãos as demonstrações do último exercício (ou dos dois últimos, se aplicável) prontas para apresentação.
- Verifique o edital com atenção: Ao se interessar por um certame, leia cuidadosamente a seção de habilitação econômico-financeira do edital. Identifique se é exigido balanço patrimonial e de quais exercícios. Verifique também se há menção a índices financeiros mínimos (ex.: liquidez corrente, solvência) a serem calculados a partir do balanço. Esteja preparado para apresentar os documentos e cálculos requeridos ou questione formalmente caso alguma exigência extrapole o permitido em lei.
- Utilize os mecanismos da lei a seu favor: Se o edital trouxer exigências muito rígidas ou em desconformidade com a legislação (por exemplo, pedir balanço de mais anos do que a lei exige, ou índices indevidos), protocolize um pedido de esclarecimento ou impugnação ao edital dentro do prazo cabível. A nova Lei de Licitações enfatiza a objetividade e a justificativa das exigências; portanto, o MEI pode e deve buscar a correção de clausulados excessivos para evitar ser barrado indevidamente. Garantir regras equilibradas faz parte do direito dos licitantes, especialmente dos pequenos negócios.
- Conheça os benefícios legais, mas não conte com perdão para documentação: Esteja ciente dos benefícios do Estatuto da Microempresa (LC 123/06) nas licitações, como empate ficto e preferência de contratação local. Porém, não interprete esses benefícios como perdão para faltas documentais. Diferentemente de algumas certidões fiscais que podem ser regularizadas em 5 dias úteis se a microempresa sair vencedora, o balanço patrimonial é um documento de qualificação cuja ausência pode não ser passível de correção posterior. Portanto, encare a preparação do balanço como parte indispensável do planejamento para licitar.
- Planejamento e investimento: Participar do mercado de compras governamentais exige profissionalização. Considere investir em assessoria contábil e jurídica especializadas em licitações. Isso ajuda a estruturar a empresa para atender aos editais (do ponto de vista documental, fiscal e trabalhista) e também a navegar nos procedimentos licitatórios sem incorrer em erros formais. O custo de manter contabilidade regular é compensado pelas oportunidades de negócios com o poder público que se abrem ao estar habilitado corretamente.
Seguindo essas orientações, o MEI e as pequenas empresas aumentam significativamente suas chances de sucesso nas licitações. Em resumo, a chave é antecipar-se às exigências, tratar a elaboração de balanço patrimonial como parte do negócio e não apenas uma burocracia, e valer-se dos instrumentos legais para competir em condições justas.
Considerações Finais
Em conclusão, a obrigatoriedade de apresentação do balanço patrimonial por MEIs em licitações públicas é hoje uma realidade incontornável do ordenamento jurídico brasileiro. A evolução normativa – da Lei 8.666/1993 para a Lei 14.133/2021 – reforçou a importância da qualificação econômico-financeira dos licitantes, e a jurisprudência do TCU consolidou o entendimento de que nem mesmo o regime simplificado dos microempreendedores individuais os exime desse dever legal.
Para evitar inabilitações e garantir a competitividade, os MEIs devem se preparar adequadamente, mantendo suas demonstrações contábeis em ordem e atendendo rigorosamente aos editais, valendo-se dos mecanismos de flexibilidade apenas nos estritos termos da lei.
A Atuação do Escritório Schiefler Advocacia
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O Registro de Preços na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos
No mercado de contratações públicas, uma prática muito comum é a celebração ou a adesão a uma ata de registro de preços. Por meio deste documento, a Administração Pública e um potencial fornecedor ou prestador de serviços formalizam um compromisso de contratação futura. O conjunto de procedimentos que antecede este compromisso de contratação futura é chamado de sistema de registro de preços.
Para compreender o funcionamento deste modelo, imagine-se que a Administração Pública precise contratar determinado bem ou serviço, mas que não consiga estimar, com precisão, quando efetivamente precisará deste bem ou serviço e em qual quantidade. É justamente neste contexto que se faz oportuno o registro de preços, como uma forma de garantir que, quando a demanda surgir, a Administração Pública possa ser imediatamente atendida na medida das suas necessidades.
A título de exemplo, considere-se que o Poder Público tem o dever de fornecer determinado medicamento à população, mas que a sua demanda varia, de modo que, comprando em excesso, corre-se o risco de que decorra o prazo de validade antes a distribuição desses medicamentos, enquanto, se comprar em quantidade insuficiente, tem-se o risco de não atender à demanda. No caso, o que pode fazer o Poder Público é celebrar uma ata de registro de preços, na qual bastará estimar a quantidade máxima da sua demanda, e o particular se vinculará à obrigação de fornecer o medicamento até essa quantidade máxima durante o período de vigência deste compromisso.
Diante dessa situação, vemos a importância do registro de preços para a Administração Pública brasileira. Não por outro motivo, ao tratar do tema, a Lei nº 14.133/2021 – a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – trouxe uma série de novidades, buscando potencializar as vantagens do registro de preços. Neste artigo, abordaremos os principais pontos do registro de preços na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
A possibilidade de estabelecer preços diferentes para o mesmo bem ou serviço
Um primeiro ponto relevante sobre a regulamentação do registro de preços é a possibilidade de que o potencial fornecedor ou prestador de serviço estabeleça preços distintos para o mesmo bem ou serviço. Essa possibilidade é delimitada pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos para situações específicas, previstas no art. 82, III. São elas:
- Quando o objeto contratado for entregue em locais diferentes;
- Em razão da forma e do local de acondicionamento;
- Em razão do tamanho do lote;
- Por outros motivos justificados no processo.
Em todas essas situações, é natural que o potencial fornecedor ou prestador de serviço tenha um incremento em seus custos para atender a Administração Pública. Reconhecendo essa situação, a Nova Lei de Licitações permitiu expressamente o oferecimento de preços distintos. Todavia, sendo o caso, é recomendável que o edital referente à contratação preveja expressamente tal possibilidade, e que o potencial fornecedor ou prestador de serviço justifique a variação dos preços no processo de contratação.
Possibilidade de proposta em quantitativo inferior ao máximo previsto no edital
Outro ponto da regulamentação do registro de preços na Nova Lei de Licitações que também se relaciona com as propostas oferecidas pelos potenciais fornecedores ou prestadores de serviços diz respeito à possibilidade de que o proponente se vincule a um quantitativo inferior ao máximo previsto no edital.
Sobre isso, é importante compreender que, no sistema de registro de preços, o quantitativo previsto no edital e na própria ata de registro de preços é apenas um limite máximo, e não vincula a Administração Pública, que poderá contratar somente na medida do que for necessário para atender a sua demanda durante o prazo de vigência do compromisso celebrado.
Todavia, nem sempre o fornecedor ou prestador de serviço que pode oferecer os melhores preços tem capacidade para se comprometer com o quantitativo máximo definido em edital. Diante disso, a Nova Lei de Licitações admitiu expressamente a possibilidade de que sejam oferecidas propostas em quantidade inferior àquela prevista no edital. Contudo, sendo o caso, recomenda-se que isso somente seja feito se expressamente autorizado no próprio edital.
O sistema de registro de preços para obras e serviços de engenharia
A Nova Lei de Licitações também trouxe uma importante novidade ao permitir, expressamente, a utilização do sistema de registro de preços para contratações envolvendo obras e serviços de engenharia. Essa possibilidade é abordada nos arts. 82, § 2º, e 85 desta Lei, que estabelece as seguintes condições:
Realização prévia de pesquisa de mercado;
- Seleção de acordo com os procedimentos previstos em regulamento;
- Desenvolvimento de rotina de controle;
- Atualização periódica dos preços registrados;
- Definição do período de validade do registro de preços;
- Inclusão, em ata, do licitante que aceitar cotar preços iguais aos do licitante vencedor na sequência de classificação e inclusão do licitante que mantiver sua proposta original;
- Existência de projeto padronizado, sem complexidade técnica e operacional;
- Necessidade permanente ou frequente de obra ou do serviço contratado.
O sistema de registro de preços nas hipóteses de contratação direta
A Nova Lei de Licitações também inovou na regulamentação do regime do sistema de registro de preços ao permitir a utilização desta modelagem para contratações diretas, isto é, por inexigibilidade ou dispensa de licitação. Essa permissão consta tanto no art. 6º, XLVI e XLVII, quanto no artigo 82, § 6º, desta Lei.
Nesse sentido, em que pese a Lei nº 8.666/1993 não vedasse expressamente a aplicação do sistema de registro de preços para contratações diretas, ela também não autorizava essa prática, havendo, portanto, uma omissão legislativa. Ao regulamentar o tema em âmbito federal, o Decreto nº 7.892/2013 manteve a lacuna legislativa.
Por isso é que, neste contexto, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos inova ao autorizar expressamente a possibilidade de usar o sistema de registro de preços nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade de licitação.
O aumento do prazo máximo de vigência das atas de registro de preços
Quanto ao prazo de vigência das atas de registro de preços, a Nova Lei de Licitações previu que esse prazo é de um ano, mas que é possível a sua prorrogação por mais um ano, desde que comprovada a vantajosidade do preço registrados. Sendo assim, passa a ser possível a extensão do prazo de validade de ata de registro de preços pelo período de até dois anos.
Vale sempre notar, todavia, que a vigência da ata de registro de preços não se confunde com a vigência dos contratos celebrados a partir dela, que podem durar para além do prazo de validade da ata.
Obrigatoriedade da contratação
Outro ponto relevante sobre a regulamentação do registro de preços na Nova Lei de Licitações diz respeito à vinculação da Administração Pública à contratação por meio da ata de registro de preços. Isso porque, conforme o art. 83 desta Lei, a Administração não estará obrigada a contratar o bem ou serviço constante em ata de registro de preços daquele fornecedor ou prestador de serviço, podendo realizar licitação específica para tanto, desde que justifique essa escolha.
A possibilidade e os limites para a adesão ou “carona” no Sistema de Registro de Preços
A possibilidade de adesão ou “carona” no sistema de registro de preços também foi alvo de regulamentação pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que tratou do tema no art. 86, § 2º. A regulamentação impõe as seguintes condições para a adesão de órgãos ou entidades administrativas não participantes da ata de registro de preços:
- Apresentação de justificativa da vantagem da adesão;
- Demonstração de que os valores registrados estão compatíveis com aqueles praticados no mercado;
- Prévias consulta e aceitação do órgão ou entidade gerenciadora da ata e do fornecedor ou prestador de serviços.
Nessa linha, também é importante compreender os limites para a adesão em ata de registro de preços. No caso, esses limites se baseiam no quantitativo máximo registrado na ata em que ocorrerá a adesão. Um desses limites diz respeito à quantidade máxima de cada item registrado em ata que poderá ser adquirido pelo órgão ou entidade aderente, que não poderá superar a metade do quantitativo máximo registrado em ata. Além disso, no total, somando-se todas as adesões, não se poderá adquirir mais do que o dobro do quantitativo máximo registrado em ata.
Para ilustrar, imagine-se que um órgão celebrou uma ata de registro de preços para adquirir 100 unidades de determinado bem. Por óbvio, este órgão gerenciador da ata não poderá superar o quantitativo máximo nela previsto. Quanto aos órgãos ou entidades que tenham interesse em aderir a esta ata, eles poderão fazer, cada qual, até o limite de 50 unidades. Ao todo, os órgãos ou entidades aderentes não poderão superar o limite de 200 unidades. Supondo-se que cada aderente adquirisse 10 unidades, seria possível realizar até 20 adesões a partir da mesma ata, observadas as demais condições legais.
Considerações finais
Como visto, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos traz uma série de novidades importantes para o sistema de registro de preços. Além dos pontos apresentados neste artigo, vale mencionar, também, a previsão dos critérios de julgamento da licitação, que deverão ser de menor preço ou maior desconto sobre tabela, e a possibilidade de alteração de preços registrados em ata, e de licitação por registro de preços sem prévia estimativa do quantitativo máximo, hipótese em que deverá ser previsto o valor máximo a ser despendido em contratações.
Diante de um cenário repleto de inovações legislativas, é importante que o fornecedor ou prestador de serviços que costuma participar de atas de registro de preços esteja atento e ciente das novidades, sejam aquelas trazidas na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ou mesmo na regulamentação específica do tema por cada órgão ou entidade administrativa, a fim de que possa aperfeiçoar suas práticas comerciais, garantindo mais segurança e eficiência.
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O que é uma Inteligência Artificial e como ela pode ser utilizada na Nova Lei de Licitações?
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea é, sem sombra de dúvidas, uma sociedade digital. Isso significa dizer que vivemos hoje em um mundo altamente tecnológico, comunicativo e informacional, com relacionamentos econômico-sociais cada vez mais complexos, difusos e virtuais.
Para acompanhar o exponencial crescimento da tecnologia, todas as áreas do conhecimento precisam se manter atualizadas e buscar o estado da arte, inclusive a jurídica. Nesse campo, temos uma área em especial que regulamenta a relação entre cidadãos e o Estado e que, por essa razão, está diretamente ligada às demandas e necessidades de uma sociedade digital: o Direito Administrativo.
Nesse contexto, é evidente que o Direito Administrativo é fortemente impactado pelas inovações que, cotidianamente, surgem no âmbito dos mais variados setores da sociedade. Com efeito, um dos instrumentos de inovação mais comentados dos últimos anos, a Inteligência Artificial (IA), é o maior exemplo atual de tecnologia disruptiva capaz de revolucionar as atividades administrativas e a governança pública.
A despeito das desconfianças e dos desafios que invariável e historicamente envolvem a assunção de tecnologias disruptivas, o fato é que, entre os benefícios que a Inteligência Artificial pode proporcionar às relações público-público e público-privadas, podemos citar como as principais a capacidade de conferir maior celeridade, eficiência, auditabilidade, transparência e confiabilidade às rotinas administrativas e às ações dos particulares que interagem com a administração pública.
Mas como a administração pública pode se utilizar dessa tecnologia para melhorar suas tarefas? Para responder a essa pergunta, precisamos primeiro entender o que pode ser considerada uma Inteligência Artificial.
I) O que é Inteligência Artificial?
Compreender o que é Inteligência Artificial é, na verdade, uma tarefa árdua, uma vez que não existe uma denominação em comum para esse tipo de tecnologia. A própria história da tecnologia nos dá uma pista sobre a dificuldade de definição dessa tecnologia, uma vez que várias ferramentas que, antigamente, poderiam ser consideradas inteligentes (a exemplo da calculadora), hoje podem não mais ser assim vistos por diversos estudiosos.
Apesar de não existir uma definição universal sobre o que é IA, esse fato não é necessariamente encarado como negativo, tendo em vista que a ausência de definição rígida permitiu e permite que a tecnologia se desenvolva de forma mais difusa.
Um dos primeiros estudiosos a se debruçar sobre IA foi Alan Turing, conhecido como o “Pai da Computação”, o qual desenvolveu o “Teste de Turing”. Nesse teste, um ser humano teria de avaliar se os textos fornecidos foram feitos por uma máquina ou por um humano, e caso a máquina conseguisse “se passar por uma pessoa”, ela passaria com sucesso no teste.
Hoje, a título de pesquisa, entende-se por mais correto subdividir a área da Inteligência Artificial, a exemplo do que foi feito pela IBM em seu artigo intitulado “What is artificial intelligence?” (O que é Inteligência Artificial?). Dessa forma, nós podemos entender IA não como algo geral, mas que possui suas próprias subdivisões e cada qual para um fim: a (i) Narrow Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Limitada), ou também chamada de Weak Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Fraca); e (ii) Strong Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Forte).
De maneira simplificada, pode-se entender que uma IA Fraca (Narrow AI) é treinada para trabalhar com dados e situações específicas, ou seja, ela é especializada na realização de tarefas específicas.
Por exemplo, a maioria de nós temos hoje em nossos bolsos sistemas de IA Fraca, como é o caso de programas de reconhecimento facial/de voz de nossos smartphones. A siri, assistente virtual dos produtos da Apple, é um exemplo de IA Fraca. Apesar de aparentar possuir uma “consciência” pela alta interação com o usuário, os assistentes virtuais de voz basicamente processam nossa voz e linguagem e, a partir disso, se utilizam desse processamento para buscar, em mecanismos de pesquisa, resultados para as demandas do usuário.
Isso é feito pelo que se denomina de Machine Learning (aprendizado de máquina), aplicação pela qual as IAs, por meio do acesso aos sistemas de dados, podem “aprender” por si mesmas a interpretar e aprender com base nos dados e padrões. Isto é, aprende-se com a experiência. Assim é que, toda vez que perguntamos algo para um assistente de voz e ele erra, dificilmente o erro acontecerá de novo, uma vez que a IA buscará se adaptar e aprender com a experiência vivenciada.
Entretanto, não deixe se enganar pela facilidade com que temos acesso a tais dispositivos inteligentes, uma vez que as IAs Fracas são mecanismos altamente complexos e que processam enormes quantidades de dados. Isto é, apesar de vivermos rodeados de sistemas inteligentes, isso não os tornam simples de serem desenvolvidos e aperfeiçoados.
Aliás, um exemplo que demonstra que a IA não é algo da terceira década do século XXI é que, em 2017, o Google desenvolveu uma IA Fraca denominada “AlphaZero AI”, que ensinou a si mesma a jogar xadrez em quatro horas e ganhou do programa de IA que até então era campeã do mundo em xadrez, o Stockfish 8.
A antítese para uma IA Fraca seria uma IA Forte (Strong AI), que em termos gerais seria capaz de realizar várias funções, eventualmente ensinando a si mesma como resolver novos problemas. Podemos imaginar esse tipo de IA como as pensadas nos filmes Sci-fi, como o caso de “O Exterminador do Futuro” ou “A.I. – Inteligência Artificial”, e de maneira bem pessimista em “2001: Uma Odisséia no Espaço”.
Esse tipo de IA teria “autoconsciência” e não necessitaria de humanos para que se desenvolvesse. Na verdade, poder-se-ia considerar que a IA tomaria suas “próprias decisões” e teria sua “própria mente”, em inteligência comparativamente igual ou até maior a dos humanos – como é o caso das Artificial Super Intelligence (ASI), que logo mais mencionaremos. Ou seja, podemos entender esse tipo de IA como aquelas que os críticos tanto temem dominar o mundo e os seres humanos. A grande questão é que os caminhos para o desenvolvimento de IAs Fortes têm cada vez tomado mais forma. Não se pode dizer ainda que existem IAs desse tipo, mas já não se pode mais afirmar que se trata de uma fantasia.
E, como digna da complexidade que acompanha o assunto, a Strong AI ainda pode ser dividida em mais duas outras: a Artificial General Intelligence (AGI) (Inteligência Artificial Geral) e Artificial Super Intelligence (ASI) (Super Inteligência Artificial), sendo que “Uma AGI é uma forma teórica de IA na qual sua inteligência seria equivalente à de um humano, sendo autoconsciente com a habilidade de resolver problemas, aprender e planejar o futuro. Já uma ASI, também ainda teórica, teria uma inteligência muito superior a um humano.”
Diante de tudo o que foi exposto, compartilhamos da conclusão de Fabiano Hartmann Peixoto e Roberta Zumblick Martins da Silva, segundo os quais uma boa maneira de se compreender o termo Inteligência Artificial é “como um termo guarda-chuva: que abriga uma série de aplicações e tecnologias diferentes”, cada qual para uma destinação específica.
No mais, para a finalidade que se quer dar à Inteligência Artificial como um auxiliador da Administração Pública, entendemos como adequado nos restringir à aplicação da IA Fraca (Narrow AI), ou seja, um sistema que seja treinado e focado no processamento de padrões e dados para a realização de tarefas específicas.
II) Como uma Inteligência Artificial pode ser utilizada pela a Administração Pública em suas contratações com particulares?
Antes de falarmos da aplicação das IAs às compras públicas, é pertinente que façamos o destaque para a inclusão da inovação tecnológica que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) fez no mundo das contratações públicas.
Por exemplo, a Nova Lei de Licitações estabeleceu, no seu artigo 11, inciso IV, o incentivo à inovação e o desenvolvimento nacional sustentável como objetivo dos processos licitatórios. Essa previsão, apesar de não ser uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro, é um forte estímulo para a consolidação da inovação nas contratações públicas. A administração pública deve sempre buscar inovar, facilitar e dinamizar as compras públicas, modernizando e aproximando as licitações da tecnologia e da realidade do mercado.
A Nova Lei de Licitações também estabeleceu como regra a tramitação eletrônica do processo administrativo (art. 17, §2º), bem como criou o Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP. Ambas as medidas demonstram o espírito da nova legislação de se valer de ferramentas tecnológicas para modernizar o regime jurídico de licitações e contratos, o qual historicamente sempre foi reconhecido por ser analógico e extremamente burocrático.
Além disso, tanto a utilização de processos administrativos eletrônicos como a criação do PNCP permitem que sistemas que operam mediante Inteligência Artificial sejam desenvolvidos e utilizados pela administração pública e por particulares, especialmente na atividade de controle interno, externo e social das compras públicas, sem falar nas próprias rotinas internas dos órgãos públicos.
Dito isso, considerando o caráter inovador da Nova Lei de Licitações, é essencial que nós entendamos como uma Inteligência Artificial pode ser utilizada, efetivamente, para o benefício da Administração e seus administrados.
III) Como uma IA pode ser usada nas contratações públicas?
Apesar da recente empolgação com as possibilidades de uso de IAs – como o ChatGPT, desenvolvido pela Open AI –, muito ainda há o que se discutir sobre o seu uso para substituição de operadores do direito no dia a dia, uma vez que a sensibilidade e análise humana são fundamentais para o Direito e sua prática, especialmente em se tratando da administração pública e da sua relação com os cidadãos.
Contudo, por certo é que uma Inteligência Artificial é muito útil na substituição de seres humanos em processos mecânicos e repetitivos, os quais se utilizam de dados e padrões para sua consecução, a exemplo de minutas de recursos, análise de preços e elaboração de relatórios. A execução dessas atividades pode, hoje, ser auxiliada por ferramentas de IA, sem necessariamente substituir o operador humano – que ainda terá a essencialidade de sua percepção e criatividade humanas.
Um dos motivos que permitem que a IA auxilie os humanos em tais atividades é o Processo de Linguagem Natural (Natural Language Processing – NLP), que, em síntese, significa a habilidade das máquinas de “ler” ou “entender” a linguagem humana, sendo capaz de “traduzir” o que nós falamos e escrevemos para a linguagem das máquinas, como a Java e Python, entre outras. E não só uma tradução literal é feita, como também a análise do contexto, preferências, e demais complexidades de interpretação e diálogo que os sistemas usam para refinar cada vez mais a capacidade de resposta e processamento de dados, o que é chamado, grosso modo, de deep learning.
Assim é que, ao estabelecer o processo administrativo eletrônico como regra, a Nova Lei de Licitações não só tem o potencial de tornar as compras públicas mais céleres e eficientes, como também facilita a disponibilização, seja interna ou externa, de dados e informações que potencializam o uso de IA, por exemplo, que podem atuar como verdadeiros agentes fiscalizadores dos procedimentos licitatórios, seja dos órgãos de controle interno e externo, seja dos cidadãos que possuem o interesse de fiscalizar a atividade administrativa.
Somado a isso, a criação de uma plataforma online de licitações públicas, o Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP, que tem entre suas finalidades a centralização de diversas informações relevantes relacionadas com as contratações públicas regidas pela nova lei, em formato de dados abertos, permitindo que as ferramentas de IA atuem e auxiliem as atividades de controle nas compras públicas.
Aliás, tal possibilidade está prevista, inclusive, no artigo 169 da Nova Lei de Licitações, que consigna expressamente a adoção de recursos de tecnologia da informação para as atividades de controle das compras públicas:
Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa
Por fim, listamos abaixo alguns exemplos de uso de Inteligência Artificial no ambiente licitatório, com o intuito de demonstrar como uma IA poder ser utilizada para ajudar no controle das compras públicas:
(i) estruturar dados inicialmente não estruturados, a fim de facilitar a análise e o processamento por máquina;
(ii) organizar automaticamente os documentos dos processos administrativos;
(iii) aplicar a técnica de ocerização de arquivos em imagem para transformá-los em formato texto pesquisável;
(iv) realizar o cruzamento de dados para apurar possíveis óbices à participação de empresas em licitações em andamento ou à contratação ao final;
(v) reduzir a termo, de forma automatizada, as sessões públicas gravadas em áudio e vídeo;
(vi) efetuar pesquisas de preços e verificar orçamentos, propostas e cobranças, a fim de identificar possíveis superfaturamentos ou sobrepreços;
(vii) apoiar o processo de redação de relatórios, decisões e documentos em geral, com correção de texto e sugestão de jurisprudência e doutrina que podem ter relação com o caso concreto;
(viii) empreender a anonimização de possíveis dados sensíveis e sigilosos, em atenção às regras impostas pela Lei de Acesso à Informação e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei nº 13.709/2018); e
(ix) criar acervos de decisões administrativas e de modelos de atos administrativos a serem compartilhados entre os servidores públicos e as unidades de controle dos órgãos e das entidades.
IV) Conclusão
Esse texto teve por objetivo apresentar, de forma didática e minimamente técnica, a Inteligência Artificial e como ela pode contribuir para melhorar os processos de contratações públicas. Basicamente, conclui-se que o uso da IA pode tornar os procedimentos licitatórios mais céleres e efetivos, cumprindo com o princípio da eficiência, baluarte da administração pública.
Com a Nova Lei de Licitações, a inovação como objetivo nas compras públicas foi oficializada, criando um ambiente propício para o uso de sistemas inteligentes e aumentando as chances de que as alterações trazidas pela nova legislação incrementem a celeridade, eficiência, auditabilidade, transparência e confiabilidade das compras públicas.
O Portal Nacional de Compras Públicas – PNCP e a consolidação do processo administrativo eletrônico como regra nos processos de contratações públicas foram marcos importantes para a aplicação de novas tecnologias e a adaptação do ambiente licitatório às mudanças.
Certamente, ainda há muito a ser explorado na evolução das IAs e o seu uso pela administração pública, mas é fato que já vem sendo utilizado no âmbito público e pelos órgãos de controle, sendo atualmente um importante instrumento que contribui para a governança das contratações públicas.
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Nova Lei de Licitações e o Procedimento de Intenção de Registro de Preços
1. O Procedimento da IRP
Previsto na Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), o procedimento público de intenção de registro de preços (IRP) tem, como finalidade básica, permitir que um órgão da Administração avise outros órgãos públicos sobre a sua intenção em licitar por intermédio do Sistema de Registro de Preços (SRP).
O instrumento é utilizado para possibilitar, durante a fase interna da licitação, que outros órgãos ou entidades do Poder Público possam participar de Ata de Registro de Preços (ARP) para a aquisição de um mesmo produto ou de determinado serviço, trazendo-se, assim, eficiência e até mesmo economicidade para a atividade administrativa.
Ou seja, quando determinado órgão verifica a necessidade de promover uma licitação por meio do Sistema de Registro de Preços, deve viabilizar a IRP para que possibilite que outras entidades da Administração Pública participem do mesmo processo licitatório, se assim desejarem.
Um dos propósitos da IRP é fazer com que a Administração Pública obtenha uma economia de escala, com o aumento do quantitativo licitado e com a consequente redução do valor unitário por item – evitando que vários órgãos promovam várias licitações quando o produto ou serviço a ser contratado é o mesmo.
Assim, a título de exemplo, se determinado hospital verifica a necessidade de assentos para os acompanhantes em sua estrutura interna, poderá tornar pública essa sua intenção em adquirir novos assentos através da IRP e possibilitar que outros órgãos manifestem seu desejo em também participar da futura licitação.
Na Nova Lei de Licitações, a IRP se encontra no artigo 86, que regulamenta o procedimento, sua aplicação e as condições em que poderá ser utilizado pela Administração Pública, visando a conduzir o processo de participação dos órgãos ou entidades interessados na inscrição da Ata de Registro de Preços.
2. Conceito e Função
A IRP é realizada por quem a lei denomina de Órgão Gerenciador, responsável pela abertura do processo licitatório a partir do Sistema do Registro de Preços. Na prática, a intenção tornada pública pelo Órgão Gerenciador abre a possibilidade para que as demais entidades da Administração Pública (Órgãos Participantes), salvo os casos excepcionados em lei, participem da ata de registro de preços e promovam o registro em conjunto.
O artigo 86 revela também que a IRP não consiste em uma licitação. Na verdade, a IRP corresponde a uma fase preparatória da licitação por Sistema Registro de Preços, que é um procedimento auxiliar das licitações e contratações públicas, conforme estabelecido no artigo 78, IV, da Lei nº 14.133/2021.
No que diz respeito à finalidade da IRP, essa etapa visa a garantir uma economia de escala para a Administração Pública e a trazer maior eficiência administrativa, evitando que várias licitações relacionadas a um mesmo objeto sejam realizadas.
Dessa forma, à medida que é realizado o registro de preços conjunto, a partir da inscrição dos órgãos ou entidades interessados na ata, há um aumento dos quantitativos licitados. Esse aumento faz com que a adoção desse procedimento ofereça uma considerável economia ao erário público e caracterize a intenção de registro de preços como uma estratégia importante para fins de atendimento ao princípio da eficiência.
3. A Intenção de Registro de Preços é obrigatória?
De modo a reforçar a importância da IRP no certame público, uma interpretação possível sobre o artigo 86 da Nova Lei de Licitações é a de que a manifestação da intenção do registro de preços configura um dever reservado ao Órgão Gerenciador. A regra que consta do dispositivo estabelece que este órgão, responsável pela condução da licitação, deverá, no prazo mínimo de oito dias úteis, anunciar a sua intenção pública de promover o registro, e, com isso, possibilitar que os demais órgãos e entidades do Poder Público possam participar do certame.
No entanto, o próprio o § 1º do mesmo artigo 86 admite a possibilidade da dispensa da intenção de registro de preços. A redação proposta pelo parágrafo acaba trazendo uma pequena confusão na leitura de todo o dispositivo legal, já que esta dispensa se daria “quando o órgão ou entidade gerenciadora for o único contratante”.
Uma interpretação razoável sobre o tema, portanto, é que o próprio órgão ou entidade possui discricionariedade para decidir motivadamente se realizará ou não o procedimento de IRP, a despeito do termo “deverá” contido no caput do artigo 86 da NLLCA.
Vale ressaltar que esta dispensa à IRP precisa ser devidamente justificada, cabendo ao Órgão Gerenciador demonstrar a necessidade da sua participação exclusiva na Ata de Registro de Preços. Sobre essas justificativas, o dispositivo em comento versa sobre a instituição de um regulamento, que, então, deve abordar as hipóteses de afastamento da realização da intenção de registro de preços.
Entende-se que essa dispensa também poderá ser empregada quando houver alguma inviabilidade operacional, a exemplo da falta de capacidade de gerenciar a ata de registro de preços. Evidentemente, tais hipóteses de dispensa devem ser devidamente justificadas, já que a regra legal é realizar o procedimento público de IRP.
4. Conclusão
O procedimento público de registro de preços (IRP) representa um procedimento importante para o sistema de registro de preços. É verdade que são instrumentos administrativos especialmente relacionados com os órgãos e as entidades pertencentes ao Poder Público, o que não retira a importância de que as empresas interessadas em contratar com a administração pública ignorem as suas peculiaridades.
No âmbito da Nova Lei de Licitações, a IRP servirá para que outros órgãos e entidades públicas possam comunicar ao órgão gerenciador o objeto que pretendem contratar e os seus quantitativos.
Observa-se que a IRP é uma etapa reconhecida pela Lei nº 14.133/2021 e deve ser observada por aqueles envolvidos no processo licitatório, sendo que, a partir de uma interpretação da Nova Lei de Licitações, sua obrigatoriedade é a regra a ser adotada, apesar de existir certa discricionariedade, desde que justificada, para que não seja realizada.
Se você possui alguma dúvida ou sugestão em relação ao tema? Entre em contato conosco por meio do e-mail contato@schiefler.adv.br, para que um dos nossos advogados especialistas na área possa lhe atender.
Read MoreSe o campo geral das licitações e contratações públicas pode(e deve) se modificar com as interpretações sobre a Lei nº 14.133/2021, é possível que o microssistema especial das estatais também possa sofrer uma influência reflexa - abrindo-se aqui, possivelmente, o espaço para a aplicação subsidiária ou para analogia nos casos de lacunas a serem preenchidas na aplicação.
Com a publicação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, promulgada no dia 1º de abril de 2021 sob o número 14.133, significativas mudanças são realizadas neste campo do direito administrativo brasileiro, em todos os âmbitos das Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, positivando entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, mas também trazendo inovações práticas que deverão ser levadas em consideração pelos gestores públicos e pelos particulares interessados em contratar com o Poder Público (confira aqui as três novidades que você precisa conhecer sobre a Lei nº 14.133/2021).
Dada a sua vasta abrangência, é legítimo que surja a dúvida se o novo diploma se aplica às estatais e, em caso afirmativo, de que modo afetaria suas licitações e seus contratos administrativos.
Antes de se buscar a resposta, é preciso entender o que são as chamadas estatais e a que regime jurídico estão submetidas no direito administrativo pátrio. Atualmente, a expressão [empresas] estatais é utilizada na doutrina para se referir de modo geral a qualquer das entidades empresariais regidas pela Lei nº 13.303/2016. Conforme o caput do seu art. 1º, estas entidades são as empresas públicas e as sociedade de economia mista e suas subsidiárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos. Não é por outra razão que a Lei nº 13.303/2016 é a chamada de Lei das Estatais e, desde a sua promulgação, tem regido, na condição de estatuto especial, as licitações e os contratos administrativos realizados por essas entidades.
Assim, considerando a preexistência do regime jurídico específico da Lei nº 13.303/2016, a Lei nº 14.133/2021 oferece à questão que serve de título a este artigo uma resposta preliminar já no seu art. 1º, § 1º, o qual determina que “Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.”
O fato de a nova Lei de Licitações ter distinguido o regime jurídico das estatais encontra, de certo modo, explicação no caráter da Lei nº 13.303/2016. Como se percebe, a Lei das Estatais é especial, isto é, prescreve regime próprio de licitações e contratos para estas entidades, que já se sobrepunha ao regime tradicional de licitações, anteriormente baseado na Lei nº 8.666/93 (normas para licitações e contratos administrativos), na Lei nº 10.520/02 (modalidade pregão) e na Lei nº 12.462/12 (Regime Diferenciado de Contratações – RDC). A nova Lei de Licitações, neste sentido, respeitou a especialidade da Lei nº 13.303/2016.
Contudo, em que pese o seu caráter especial, a Lei das Estatais prevê, explicitamente, três casos de aplicação de dispositivos normativos que devem ser encontrados alhures. Com efeito, o art. 32, inciso IV, da Lei nº 13.303/2016 estabelece que:
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes:
[…]IV – adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.
Por meio do artigo e inciso supracitados, a Lei das Estatais determina que, para a aquisição de bens e serviços comuns, deve-se adotar preferencialmente o pregão como modalidade de licitação. Contudo, destaca-se o entendimento doutrinário predominante segundo o qual a adoção da modalidade pregão pelas estatais se limita aos aspectos procedimentais, não excluindo a observância da Lei nº 13.303/2016 no que diz respeito aos demais aspectos substanciais do rito licitatório e do contrato.
Ao revogar expressamente a Lei nº 10.520/2002 (após decorridos dois anos da sua publicação oficial), a nova Lei de Licitações substitui a Lei do Pregão na regência desta modalidade, determinando, pelo comando do seu art. 189, que a Lei nº 14.133/2021 seja aplicada às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002, e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011. Como consequência, sendo o caso da adoção do pregão como modalidade de licitação pelas estatais, o regime a ser aplicado será o da nova Lei de Licitações. Essa circunstância faz surgir a questão de saber qual será o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o alcance da sua aplicabilidade, isto é, permanecerá limitado ao procedimento? Tal questão, provavelmente, será objeto de debates nos tribunais.
O segundo caso em que se vê mitigada a especialidade da Lei das Estatais é o previsto no seu art. 55, inciso III, que determina a adoção de critérios de desempate estabelecidos na Lei nº 8.666/1993. Veja-se:
Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate:
[…]III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Como a Lei nº 8.666/1993 também será revogada pela nova Lei de Licitações após decorridos dois anos da sua publicação oficial, os seus critérios de desempate se tornarão inaplicáveis e serão tacitamente substituídos pelos que são estabelecidos no § 1º do art. 60 da Lei nº 14.133/2021. Esta substituição promoverá algumas mudanças, notadamente em razão dos incisos I e IV do referido parágrafo, a saber: dar-se-á preferência para empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante ou, no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no território do Estado em que este se localize (inciso I); e para empresas que comprovem a prática de mitigação relativa à Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC, nos termos da Lei nº 12.187/2009 (inciso IV). Além disso, o inciso V do § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993, que assegurava preferência aos bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação, não é reproduzido na nova Lei de Licitações como critério de desempate, mas como exigência da fase de habilitação (art. 63, inciso IV).
A terceira remissão da Lei das Estatais encontra-se em seu art. 41, segundo o qual “Aplicam-se às licitações e contratos regidos por esta Lei as normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”.
Resta averiguar, então, o efeito do disposto no art. 178 Lei nº 14.133/2021. Este artigo acrescenta ao Código Penal os artigos 337-E a 337-P, sob o Capítulo II-B – Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos, transferindo para o códex próprio os dispositivos penais que integravam a Lei nº 8.666/1993, porquanto revogou expressa e imediatamente os seus artigos 89 a 108. Como consequência, o regime disciplinar penal aplicável à Lei das Estatais se encontra doravante no Código Penal, perdendo efeito o art. 41 da Lei nº 13.303/2016, o qual determinava a aplicação às licitações e contratos regidos por esta lei das normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666/1993. A mudança, porém, não se limita a este aspecto formal, pois este regime disciplinar sofreu algumas alterações de natureza material.
Isto se evidencia pela comparação dos novos tipos penais criados no Código Penal pela Lei nº 14.133/2021 com os correspondentes dispositivos revogados na Lei nº 8.666/1993, que revela, à primeira vista, uma continuidade normativo-típica, porém, com alterações nos preceitos secundários, mediante cominações mais gravosas e a substituição do regime de detenção pelo de reclusão.
A mudança mais vistosa consiste, portanto, no aumento do rigor punitivo, que tem consequências relevantes. Vejamos, por exemplo, os novos artigos 337-E e 337-L do Código Penal. Eles correspondem respectivamente aos revogados artigos 89 e 96 da Lei nº 8.666/1993, e previam penas de detenção de 3 (três) a 5 (cinco) anos e multa, e de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa, respectivamente. Além de promoverem mudanças na tipificação para ampliar a sua abrangência, os novos artigos mudaram a sua cominação, não somente substituindo a detenção pela reclusão, mas também majorando em um ano o tempo mínimo da pena de privação de liberdade, que passou a ser, para ambos os tipos penais, 4 (quatro) anos.
As consequências são relevantes. Em primeiro lugar, verifica-se o recrudescimento da punição, pois a pena de reclusão é reservada para condenações mais severas, sendo geralmente cumprida em estabelecimentos de segurança média ou máxima, permitindo o início do seu cumprimento em regime fechado. Em segundo lugar, com o aumento da pena mínima para 4 (quatro) anos, os artigos 337-E e 337-L impedem a celebração de acordos de não persecução penal, uma vez que o art. 28-A do Código de Processo Penal autoriza o Ministério Público a propor tal medida despenalizadora apenas em casos de “prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”.
Outra alteração digna de atenção no regime disciplinar penal doravante aplicável automaticamente a todas as licitações e contratos administrativos afeta diretamente o sistema de cálculo das multas cominadas. De fato, revogou-se o art. 99 da Lei nº 8.666/1993, que determinava o pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base devia corresponder ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente. Estes índices, porém, estavam limitados pelo disposto no parágrafo 1º, não podendo ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. Já o novo art. 337-P do Código Penal estabelece que a multa cominada aos crimes em licitações e contratos administrativos seguirá a metodologia de cálculo prevista neste Código, mantendo-se o limiar de 2% (dois por cento) sobre o valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta, sem, contudo, estipular um teto próprio, aplicando-se, porém, o limite máximo previsto no art. 49 do Códex Criminal.
Nem tudo, porém, é releitura do sistema disciplinar penal precedente. Há um tipo penal completamente novo, introduzido pelo artigo 337-O, que visa coibir a frustração do caráter competitivo da licitação ou da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Atente-se para o dispositivo do § 2º, que determina que a pena prevista no caput do artigo se aplica em dobro se o crime for praticado com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem.
Estas considerações nos permitem afirmar, por fim, que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos afeta as estatais, pelo menos, de três modos. Em primeiro lugar, sendo o caso da adoção do pregão como modalidade de licitação pelas estatais, a lei de regência para este procedimento passa a ser a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Em segundo lugar, os critérios de desempate que devem ser observados nos procedimentos licitatórios das empresas estatais estabelecidos § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993 serão substituídos pelos do § 1º do art. 60 da Lei nº 14.133/2021, com inovações referentes ao local de estabelecimento das concorrentes e à observância da Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC. E em terceiro lugar, o sistema disciplinar penal aplicável às estatais, que antes da publicação da Lei nº 14.133/2021, se encontravam, com remissão expressa, na Lei nº 8.666/1993, a partir de 1º de abril de 2021 se integram ao Código Penal, aplicando-se indiscriminadamente às licitações e contratos administrativos, pouco importando o seu regime jurídico. Além dessa alteração de cunho formal, verifica-se que, do ponto de vista material, ao proceder à sua transferência para o Código Penal, a Lei nº 14.133/2021 promoveu, de modo geral, um endurecimento do regime disciplinar penal, buscando, ao que tudo indica, responder a um anseio social de combate à corrupção.
Embora essas sejam as três únicas remissões expressas da Lei das Estatais aos antigos diplomas gerais de licitações, há que se ponderar que sendo a Lei nº 14.133/2021 um novo diploma geral, todo o léxico de licitações e contratações públicas passa a encontrar um novo fundamento legal “de base” neste mais recente diploma. Assim, há que se cogitar que a interpretação da Lei das Estatais poderá sofrer influência das interpretações futuras da Lei nº 14.133/2021. Em outras palavras, se o campo geral das licitações e contratações públicas pode (e deve) se modificar com as interpretações sobre a Lei nº 14.133/2021, é possível que o microssistema especial das estatais também possa sofrer uma influência reflexa – abrindo-se aqui, possivelmente, o espaço para a aplicação subsidiária ou para analogia nos casos de lacunas a serem preenchidas na aplicação.
Afora essas três modificações que possuem previsão de eficácia ou imediata ou para daqui a dois anos, portanto, resta ainda saber se e como a nova Lei de Licitações influenciará o regime especial de licitações e contratações das estatais. Essas, no entanto, são questões que serão respondidas pela doutrina, pelos tribunais e pelos operadores do Direito em geral – todos no seu devido tempo.
Read MoreA nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) já está em vigor, iniciando um processo de transformação histórico no direito administrativo brasileiro. E você, já sabe o que mudou? Neste texto, separamos três novidades da nova Lei de Licitações que você precisa saber.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) foi publicada em 1º de abril de 2021, após longos anos de debates e espera. Além de incorporar entendimentos já consolidados em Tribunais e conhecimentos provindos da doutrina, o novo diploma legal trouxe inovações que certamente promoverão uma transformação profunda na prática deste campo do direito administrativo brasileiro. Neste texto, selecionamos três novidades que, em breve, devem promover grandes alterações na dinâmica das licitações e dos contratos públicos, e que, por isso, você precisa conhecer.
Modalidades de Licitações
Uma das novidades mais notáveis da Lei nº 14.133/2021 diz respeito às modalidades de licitações previstas (art. 28), a saber: I) pregão; II) concorrência; III) concurso; IV) leilão; V) diálogo competitivo.
Em contraste com a Lei nº 8.666/93, a nova Lei extingue as modalidades de tomada de preços e convite, mantendo a previsão de concorrência, concurso e leilão, incorporando o pregão (antes em lei especial) e criando a modalidade do diálogo competitivo.
Ainda que, à primeira vista, possa parecer que a inovação tenha ocorrido de forma “tímida”, a nova Lei unifica os regimes em apenas um diploma e altera o critério para a definição das modalidades. Diferentemente da Lei nº 8.666/93, agora o valor estimado da contratação não é mais um critério de definição da modalidade, que passa a ser definida precipuamente pela natureza do objeto a ser licitado (conforme a previsão nos artigos 18 a 27). Da mesma forma, a simplificação das modalidades também reflete uma ampliação dos casos de contratação direta, havendo modificações das hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação.
Assim, se de um lado essas modificações parecem introduzir novos ares para a dinâmica das licitações, a novidade stricto sensu ficou a cargo da modalidade de “Diálogo Competitivo”. Segundo o art. 6º da Lei, que traz a definição dos seus principais conceitos, o diálogo competitivo deve ser entendido da seguinte forma:
XLII – diálogo competitivo: modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos.
Como se pode perceber, essa modalidade traz a permissão de que os próprios licitantes, previamente selecionados por critérios objetivos, possam contribuir para o desenvolvimento de alternativas que atendam às necessidades almejadas para uma determinada contratação pública. Dessa forma, a proposta final será apresentada somente após a conclusão dos diálogos e debates, de modo a induzir a criação de uma solução conjunta entre os setores públicos e privados – seguindo uma tendência de “horizontalização” já existente no direito administrativo brasileiro (vide, por exemplo, os Procedimentos de Manifestação de Interesse). As diretrizes gerais de funcionamento do instituto foram previstas no art. 32 da Lei, porém, certamente, haverá ainda muitas dúvidas acerca de sua condução, cabendo à construção doutrinária e jurisprudencial um importante papel para a eficácia dessa novidade.
As expectativas apontam que essa nova modalidade poderá contribuir especialmente para a contratação de objetos complexos, para os quais os antigos modelos de licitação eram insuficientes e resultavam, não raramente, em problemas de execução contratual. Essa é, portanto, uma novidade que possui potencial para beneficiar sobremaneira a qualidade dos contratos da Administração Pública – e que você precisa conhecer.
Inversão de fases: julgamento anterior à habilitação
Outra novidade relevante é a trazida pelo o art. 17 da nova Lei, que prevê, como regra geral, que as licitações deverão seguir uma sequência em que a fase de julgamento antecede a fase de habilitação. Com isso, a ordem “antiga” – em que primeiro ocorria a habilitação e depois o julgamento, conforme a Lei nº 8.666/93 – ainda será possível, porém, somente mediante ato motivado que torne explícitos os benefícios decorrentes de tal sequência (art. 17, §1º, da Lei nº 14.133/2021).
Embora essa chamada “inversão de fases” não chegue a ser uma novidade no ordenamento jurídico, uma vez que já era praticada na Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), a sua generalização afigura-se alvissareira para a desburocratização dos certames públicos. Com a sua extensão, como regra geral, a todas as modalidades de licitação, é possível que a condução de certames licitatórios se torne, na sua maior porção, mais simples e mais célere.
Atualmente um símbolo da burocracia, é consenso que a fase de habilitação representa uma desgastante etapa tanto para os licitantes quanto para as Comissões de Licitação. Com a inversão das fases, o licitante passará a concentrar-se primordialmente na proposta técnica a ser apresentada, deixando as trabalhosas tarefas de reunião e conferência de documentos de habilitação somente para o caso de já ter-se sagrado vencedor da etapa de julgamento. Além disso, a regularidade fiscal, em qualquer caso, somente será exigida “em momento posterior ao julgamento das propostas, e apenas do licitante mais bem classificado” (art. 63, III). Somada à preferência pela realização de modo eletrônico (art. 17, §2º, da Lei nº 14.133/2021), a antecedência da fase de julgamento sobre a fase de habilitação possivelmente irá estabelecer-se como um importante marco da efetividade e da celeridade das licitações brasileiras.
Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP
Com a finalidade de promover a transparência nas contratações públicas e aprofundar o processo de digitalização da Administração, o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) merece destaque como novidade e total atenção da comunidade jurídica.
A nova Lei de Licitações previu o PNCP no Capítulo I do seu Título V – Disposições Gerais, fixando a sua destinação e funcionalidades a serem oferecidas. Assim, com a proposta de ser o site oficial e centralizado das contratações públicas, o PNCP será, sem dúvidas, um arrojado passo de modernização das licitações brasileiras, avançando sobre uma frente já aberta, por exemplo, pelo site “ComprasNet”, de utilização do Governo Federal.
Igualmente em linha com a regra de preferência pela realização eletrônica dos certames, o Portal seguirá o formato de dados abertos, com a obrigatoriedade de manter um repositório de informações e documentos de abrangência nacional, a ser gerido pelo “Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas”, com representantes de todos os entes da Federação (art. 174, § 1º, da Lei nº 14.133/2021). A sua importância, no entanto, vai além de um mero repositório virtual, pois a Lei preceitua que a divulgação no PNCP será “condição indispensável para a eficácia” dos contratos públicos e seus aditamentos (art. 94, caput, da Lei nº 14,133/2021). Assim, se, por um lado, o PNCP é um locus juridicamente relevante para a eficácia dos contratos, por outro, as incertezas sobre o início do seu efetivo funcionamento acende um alerta para a aplicabilidade imediata da própria Lei nº 14.133/2021. Pois, diferentemente de outras previsões legais de implementação imediata, o Portal Nacional de Contratações Públicas ainda depende de sua estruturação no mundo material da Web. Como à eficácia da lei não é dado aguardar a criação do Portal, e como a própria lei não previu alternativas para este “período de transição”, é certo que a aplicação da nova Lei de Licitações terá um início fora do esquadro ideal do dever-ser. Neste sentido, temos que concordar com Schiefler, para quem “a nova Lei de Licitações já vigora entre nós, embora desacompanhada do PNCP”, não sendo este um problema impeditivo de sua aplicabilidade, para o qual se oferecem inúmeras soluções pragmáticas que cumprem o objetivo da lei.
Assim, diante das expectativas de efetivação do Portal Nacional de Contratações Públicas, só nos resta aguardar, com esperança, que essa novidade da nova Lei de Licitações possa, no futuro próximo, cumprir um importante papel de aprimoramento da accountability das contratações públicas. Fato indiscutível, no entanto, é que essa é uma previsão nova e sem precedentes para o direito administrativo brasileiro.
Por fim, apenas a título exemplificativo, poder-se-ia ainda mencionar novidades que aqui não foram contempladas, mas que certamente trarão mudanças nas licitações e contratações públicas, como: i) a criação do “agente de contratação” e da “comissão de contratação”; ii) a alteração nos critérios de julgamento das propostas; iii) a ampliação dos casos de contratação direta; iv) a exigência de programas de integridade para contratações de grande vulto; v) a previsão de novos regimes de execução contratual; vi) as alterações no Código Penal; e vii) a introdução e confirmação de métodos alternativos de solução de conflitos, como o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. Porém, como já dito inicialmente, este não é um texto que se propôs a exaurir todas as novidades da Lei nº 14.133/2021, mas tão somente informar aquelas que o leitor não poderia deixar de conhecer – e que, agora, já conhece.
Read MoreA Nova Lei de Licitações não representa uma ruptura, mas a continuação do modelo vigente, aprimorado a partir de inovações incrementais, cujo teor visa, principalmente, a reforçar a estabilidade das contratações públicas e a promover um ambiente de confiança na relação público-privada.
Eduardo Martins Pereira[1]
Desde o dia primeiro de abril de 2021, com a publicação da Lei Federal nº 14.133 (ou Nova Lei de Licitações, como vem sendo denominada), a atenção dos especialistas em Direito Público tem-se voltado para discutir o novel regramento e entender de que forma ele impactará a sistemática das contratações públicas.
Tal preocupação, aliás, é de extrema pertinência, haja vista a amplitude da Nova Lei de Licitações, que, ao prescrever a revogação (a acontecer em dois anos) e ocupar o espaço das Leis nº 8.666/1993 (antiga Lei de Licitações e de Contratos Administrativos), nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e nº 12.462/2011 (Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas), se torna a grande referência normativa em matéria de contratações públicas.
Nessa toada, busca-se aqui desvelar o impacto da Nova Lei sobre os contratos administrativos vigentes desde antes da entrada em vigor da nova sistemática (se impacto haverá), e também sobre os contratos administrativos firmados após a sua publicação.
Para tanto, importa inicialmente compreender como se dará o regime de transição entre as leis revogadas e a Nova Lei de Licitações. Isto é, entender se a antiga sistemática já foi integralmente substituída, se ainda continua vigente – seja de forma integral ou parcial –, e em qual medida os novos dispositivos já podem e/ou devem ser observados nos contratos administrativos.[2]
A aplicação e o regime de transição para a Nova Lei de Licitações
Sobre a vigência, o artigo 194 da Nova Lei de Licitações é taxativo:
Art. 194. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Com base neste dispositivo, conclui-se que a Nova Lei está apta a produzir efeitos jurídicos desde a sua publicação, em 01/04/2021, prescindindo-se do período de vacância ao qual a produção legislativa via de regra está sujeita.[3]
No entanto, a partir da leitura do artigo 193 da Nova Lei de Licitações[4], verifica-se que algumas das normas substituídas continuam em vigor, enquanto outras foram imediatamente revogadas.
Nesse sentido, tem-se que o regime de crimes e penas nas contratações públicas foi imediatamente derrogado, com o deslocamento da matéria para o Código Penal. De outro lado, a base normativa da antiga sistemática elencada no inciso II do artigo 193 somente será revogada após decorridos dois anos da publicação da Nova Lei, em 3 de abril de 2023.[5] Assim, do dia 1 de abril de 2021 até 3 de abril de 2023, inclusive, haverá dois regimes normativos para as contratações públicas.
Em atenção a essa circunstância, a Nova Lei de Licitações, no caput do seu artigo 191[6], confere à Administração o poder-dever de adotar a sistemática que melhor convenha aos seus interesses, a cada contratação, desde que o regime escolhido seja expressamente indicado no edital, ou no aviso ou instrumento de contratação direta.
Diante dessa situação, com dois regimes jurídicos para a realização de uma contratação pública, o novo regramento, no parágrafo único do seu artigo 191[7], indica que o regime que vigorará sobre cada contrato administrativo será aquele que regeu a respectiva licitação ou contratação direta.
Isto é, enquanto os dois regimes para contratações continuarem vigentes, o regime a que estará sujeito cada contrato administrativo será aquele eleito pela Administração para orientar o respectivo procedimento licitatório ou contratação direta. Em outras palavras, até que finde a vigência do antigo regime de contratações, sendo o último dia em 3 de abril de 2023, a Administração poderá decidir entre ambos os regimes para realizar a licitação ou a contratação direta. Ao fazê-lo, submeterá também o contrato administrativo à norma eleita, ainda que a vigência contratual se dê em prazo posterior à derrogação da lei, como se conclui da previsão contida no parágrafo único do artigo 191.
No mais, em seu artigo 190[8], a Nova Lei de Licitações limita os seus efeitos para os contratos celebrados após a sua entrada em vigor. É dizer, os contratos celebrados antes do dia 1º de abril de 2021 continuam sendo regidos pelo regime substituído, ainda que venham a ser prorrogados até mesmo após a expiração do referido regime, pois trata-se da mesma relação contratual.
Deste contexto, permite-se concluir que, mesmo após derrogado o antigo regime de contratações públicas, este continuará produzindo efeitos na execução dos contratos firmados sob sua égide.
Assim sendo, ante a ambivalência dos regimes legais, para descobrir qual deles rege determinado contrato administrativo, basta verificar a indicação da escolha do regime pela Administração, que deve ser publicizada no respectivo edital de licitação ou no aviso ou instrumento de contratação direta.
O impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos
Unificando diversas regras constantes em diplomas legais e infralegais, positivando entendimentos do Tribunal de Contas da União e acolhendo lições da doutrina, a Nova Lei de Licitações não representa uma ruptura com o antigo regime jurídico. Pelo contrário, verifica-se que o legislador optou pela continuidade dos institutos existentes com a inclusão de inovações incrementais[9], as quais surgem como propostas de solução para problemas já existentes.
Por si só, tal circunstância reduz o impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos, visto que muito do que já se tinha, ao menos sob a perspectiva pragmática, embora não legislativa, foi mantido. A despeito disso, importa destacar individualmente algumas das principais inovações trazidas, que irão impactar os contratos por ela regidos.
Nesse sentido, o artigo 103 da Nova Lei[10] traz a possibilidade da previsão da matriz de alocação de riscos nos contratos administrativos ordinários. Por meio dela, são previamente identificados os riscos contratuais previstos e presumíveis, alocando-se em cláusula contratual a responsabilidade por eles entre o contratante e contratado. Para a alocação dos riscos, serão consideradas as obrigações atribuídas a cada parte, a natureza dos riscos, o beneficiário das prestações e a capacidade para melhor gerenciá-los.
Vale registrar que a previsão de matriz de riscos já é uma realidade nos contratos de concessão, nos contratos das empresas estatais e nos contratos decorrentes do Regime Diferenciado de Contratações, mas a previsão legal incluída na Lei nº 14.133/2021 é considerada uma inovação na medida em que inclui essa previsão para os contratos comuns, mitigando o entendimento de que qualquer alteração nas circunstâncias originais da pactuação contratual em desfavor do particular geraria a obrigação de reequilíbrio econômico-financeiro pela Administração.
Ademais, conforme artigo 22[11], o próprio edital pode contemplar desde já a matriz de alocação de riscos, bem como mecanismos que afastem a ocorrência de sinistro e mitiguem os seus efeitos. Trata-se de previsão coerente com o regime público e necessária para a organização dos particulares interessados em firmar contratos administrativos, visto que a análise dos riscos que possam comprometer a boa execução do contrato compõe a fase preparatória do processo licitatório[12], e a alocação de riscos deve ser conhecida pelos particulares, pois impactará a proposta a ser apresentada.
Outra importante novidade do novo regramento é a previsão expressa da aplicabilidade de meios alternativos para a resolução de controvérsias. Notadamente, em seu artigo 151[13], reforça-se a possibilidade de que controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis sejam resolvidas mediante conciliação, mediação, comitês de resolução de disputas (dispute boards) e arbitragem – inclusive, em texto recente publicado pela Schiefler Advocacia, o advogado Murillo Preve tratou especificamente da temática da arbitragem na Nova Lei de Licitações.
Acerca dos pagamentos, foi incluída a possibilidade da criação de contas vinculadas para cada contrato[14], bem como o dever de pagamento da parcela incontroversa[15], no caso de conflito sobre o valor do débito. Ainda, permitiu-se expressamente a realização de pagamento antecipado nas hipóteses em que represente economia de recursos ou, ainda, seja condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço, circunstâncias estas que devem ser devidamente justificadas.[16]
Embora seja correto afirmar que as inovações ora mencionadas já existiam no regime jurídico em processo de substituição, é fato que não estavam previstas nas normas gerais de licitações e contratos, e agora estão.
Existem também algumas inovações incrementais que se qualificam como inéditas em relação ao regime anterior. Por exemplo, a Administração deverá, nos termos da Lei nº 14.133/2021, prever no edital a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor quando se tratar de uma licitação de grande vulto (isto é, aquelas cujo valor seja superior a R$ 200.000.000,00, nos termos do inciso XXII do artigo 6o), no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato[17]. O intuito é o estímulo ao desenvolvimento de políticas pautadas na ética, visando à construção de um ambiente saudável e limpo para a realização de negócios com o Poder Público.
Pode-se citar, também, a redução do prazo de inadimplemento para que o contratado tenha direito à extinção do contrato.[18] No antigo regime, o contratado só teria direito à extinção do contrato após três meses do inadimplemento da Administração, enquanto no novo regramento esse prazo passou a ser de dois meses.
Nas contratações de obras e serviços de engenharia, quando o edital exigir a prestação de garantia na modalidade seguro-garantia, passa a ser possível que a Administração estipule cláusula de retomada. Por meio dessa cláusula, em caso de inadimplemento pelo contratado, a seguradora pode assumir a obrigação de executar e concluir o objeto do contrato.[19]
Foi também estipulado o dever de que a Administração emita decisão sobre todas as solicitações e reclamações relacionadas à execução dos contratos, no prazo de um mês.[20]
No caso de alterações contratuais unilaterais pela Administração, seja aumentando ou diminuindo os encargos do contratado, deve também ser restabelecido o equilíbrio econômico-financeiro inicial no mesmo termo aditivo.[21] Nesse ponto, o novo regramento estabelece o reequilíbrio concomitante com a alteração contratual, inovando em relação ao antigo regime, que era omisso sobre o momento em que ela deveria ocorrer (Art. 65, § 6º, da Lei nº 8.666/1993).
Essas são algumas das inovações incrementais positivadas na Nova Lei de Licitações e que impactarão diretamente a execução dos contratos administrativos firmados sob a sua regência. Não obstante, para além desses contratos, não se pode negar a possibilidade de que a Nova Lei de Licitações seja considerada, por analogia, como uma diretriz também para as contratações subordinadas ao antigo regime normativo.
Isso porque, como visto, a Lei Federal nº 14.133/2021, em uma parcela significativa de suas disposições, nada mais faz do que estabilizar e positivar a jurisprudência, orientações e entendimentos já aceitos e existentes, registrando em lei inúmeras soluções pontuais e pragmáticas, criadas para as lacunas da Lei Federal nº 8.666/1993 e surgidas ao longo dos seus 28 anos de vigência. Nesse caso, necessário registrar, eventual aplicação em analogia deve se restringir às lacunas do antigo regime normativo, até mesmo para manter conformidade com a vedação contida no final do artigo 191 da Nova Lei.
Considerações finais
Dito isso, para compreensão do impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos, é necessário inicialmente entender a forma como eles estarão sujeitos ao novo regime.
Nesse sentido, viu-se que as novas licitações, bem como as contratações diretas firmadas desde 1o de abril de 2021 com indicação expressa da submissão ao novo regime, seguirão as previsões contidas na Lei nº 14.133/2021. Por outro lado, os contratos vigentes antes da promulgação da Nova Lei de Licitações, bem como as novas licitações e contratações diretas firmadas com base no regime antigo se manterão submetidos ao regramento antigo, ainda que após a derrogação da legislação passada. Isso porque, na sistemática adotada, os contratos seguirão os regimes nele originalmente previstos ao longo de toda sua vigência, de modo que, apesar de revogada, a antiga sistemática continuará produzindo efeitos por muitos anos no âmbito das contratações públicas.
Além disso, naqueles contratos submetidos ao novo regime, apesar da repercussão gerada pela promulgação da Lei Federal nº 14.133, com a opção legislativa de continuar com um regime já incorporado na cultura jurídica das contratações públicas, a tendência é que seu impacto seja restringido às inovações incrementais apresentadas pela norma, as quais visam, principalmente, a reforçar a estabilidade das contratações públicas e promover um ambiente de confiança na relação público-privada.
Nesse contexto, malgrado a regra geral seja de que um regime normativo não interfere nos contratos regidos pelo outro, haja vista a leitura do artigo 191 do novo regramento, não se exclui a hipótese em que as inovações trazidas pela Nova Lei de Licitações sejam consideradas por analogia nos contratos submetidos à antiga sistemática. Dessa forma, a Lei Federal nº 14.133/2021 impactaria também a execução dos contratos administrativos firmados antes mesmo da sua promulgação, bem como aqueles firmados após e seguindo o regime substituído.
[1] Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estagiário em Direito na Schiefler Advocacia. Membro do Laboratório de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Eleitoral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Contato: eduardomartins@schiefler.adv.br.
[2] Para além do presente texto, a equipe da Schiefler Advocacia elaborou um material exclusivo para explicar o regime de transição da Nova Lei de Licitações.
[3] Decreto-Lei nº 4.657/1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Art. 1º Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.
[4] Art. 193. Revogam-se:
I – os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;
II – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei;
[5] O prazo de dois anos se encerraria no dia 1 de abril de 2023, inclusive. No entanto, tratando-se de um sábado, com base no § 2º do artigo 183 da Nova Lei de Licitações, o último dia de vigência será prorrogado para o primeiro dia útil subsequente, de modo que a vigência das antigas normas se estenderá até o dia 3 de abril de 2023 (segunda-feira), inclusive, sendo este o seu último dia de vigência e também o dia de sua revogação.
[6] Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
[7] Art. 191. Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
[8] Art. 190. O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada.
[9] O termo inovação incremental foi cunhado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, e ajuda a entender como a Nova Lei de Licitações pretende solucionar algumas problemáticas já conhecidas nas contratações públicas. Em 1939, no livro intitulado Business Cycles, o economista diferencia os conceitos de inovação incremental e radical. O primeiro se pretende um progresso sobre algo preexistente, enquanto o segundo é acompanhado de rupturas.
[10] Art. 103. O contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, alocando-os entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados
1º A alocação de riscos de que trata o caput deste artigo considerará, em compatibilidade com as obrigações e os encargos atribuídos às partes no contrato, a natureza do risco, o beneficiário das prestações a que se vincula e a capacidade de cada setor para melhor gerenciá-lo.
[11] Art. 22. O edital poderá contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo.
[12] Art. 18. Inciso X – a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual;
[13] Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
[14] Art. 142. Disposição expressa no edital ou no contrato poderá prever pagamento em conta vinculada ou pagamento pela efetiva comprovação do fato gerador.
[15] Art. 143. No caso de controvérsia sobre a execução do objeto, quanto a dimensão, qualidade e quantidade, a parcela incontroversa deverá ser liberada no prazo previsto para pagamento.
[16] Art. 145. § 1º A antecipação de pagamento somente será permitida se propiciar sensível economia de recursos ou se representar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço, hipótese que deverá ser previamente justificada no processo licitatório e expressamente prevista no edital de licitação ou instrumento formal de contratação direta.
[17] Art. 25. § 4º Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.
[18] Art. 137. Inciso IV – atraso superior a 2 (dois) meses, contado da emissão da nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos pela Administração por despesas de obras, serviços ou fornecimentos;
[19] Art. 102. Na contratação de obras e serviços de engenharia, o edital poderá exigir a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia e prever a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato, hipótese em que: […]
[20] Art. 123. A Administração terá o dever de explicitamente emitir decisão sobre todas as solicitações e reclamações relacionadas à execução dos contratos regidos por esta Lei, ressalvados os requerimentos manifestamente impertinentes, meramente protelatórios ou de nenhum interesse para a boa execução do contrato.
Parágrafo único. Salvo disposição legal ou cláusula contratual que estabeleça prazo específico, concluída a instrução do requerimento, a Administração terá o prazo de 1 (um) mês para decidir, admitida a prorrogação motivada por igual período.
[21] Art. 130. Caso haja alteração unilateral do contrato que aumente ou diminua os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, no mesmo termo aditivo, o equilíbrio econômico-financeiro inicial.
Read MoreA abrangência da norma diz respeito a quem deverá respeitá-la e aplicá-la, sendo que, no caso da Nova Lei de Licitações, sujeitam-se a ela, em grau variado de vinculação, entes públicos e privados, que podem ser submetidos à sua aplicação integral ou parcial, inclusive, mediante regras especiais.
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) foi publicada em 1º de abril de 2021 e, desde então, teve início o período de transição entre a legislação antiga e a nova. Nesse sentido, existem dois pontos principais a serem compreendidos sobre a aplicação da nova lei: a sua vigência e a sua abrangência subjetiva, isto é, os destinatários da norma.
Quando se fala na vigência de uma norma, trata-se de discutir a partir de quando passam a valer as regras da nova legislação. Já a sua abrangência diz respeito a quem deverá respeitá-la. No caso da Nova Lei de Licitações, a sua abrangência é estabelecida já no seu artigo 1º, nos seguintes termos:
Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange:
I – os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa;
II – os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.
§1º Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.
§2º As contratações realizadas no âmbito das repartições públicas sediadas no exterior obedecerão às peculiaridades locais e aos princípios básicos estabelecidos nesta Lei, na forma de regulamentação específica a ser editada por ministro de Estado.
§3º Nas licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, podem ser admitidas:
I – condições decorrentes de acordos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República;
II – condições peculiares à seleção e à contratação constantes de normas e procedimentos das agências ou dos organismos, desde que:
a) sejam exigidas para a obtenção do empréstimo ou doação;
b) não conflitem com os princípios constitucionais em vigor;
c) sejam indicadas no respectivo contrato de empréstimo ou doação e tenham sido objeto de parecer favorável do órgão jurídico do contratante do financiamento previamente à celebração do referido contrato;
d) (VETADO).
§4º A documentação encaminhada ao Senado Federal para autorização do empréstimo de que trata o § 3º deste artigo deverá fazer referência às condições contratuais que incidam na hipótese do referido parágrafo.
§5º As contratações relativas à gestão, direta e indireta, das reservas internacionais do País, inclusive as de serviços conexos ou acessórios a essa atividade, serão disciplinadas em ato normativo próprio do Banco Central do Brasil, assegurada a observância dos princípios estabelecidos no caput do art. 37 da Constituição Federal.
Percebe-se que a Nova Lei de Licitações estabelece normas para as contratações públicas de entidades e órgãos da administração pública brasileira, especialmente a direta, autárquica e fundacional, sendo possível dividir a sua abrangência em aplicação integral e aplicação parcial da Lei. Vejamos.
A abrangência da Nova Lei de Licitações com aplicação integral
A Lei nº 14.133/2021 abrange integralmente todos os entes da administração pública direta da União e de todos os Estados e Municípios brasileiros, bem como do Distrito Federal. Ou seja, todos os órgãos do Poder Executivo destes entes federativos estarão sujeitos à Nova Lei de Licitações e deverão respeitar a totalidade dos dispositivos e regulamentações trazidas pela norma, que se propõe a unificar as disposições legais sobre licitações e contratos administrativos, que, antes, constavam apenas de forma esparsa no ordenamento jurídico brasileiro (como é o caso da Lei do Pregão e da Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC).
É importante observar, contudo, que a abrangência da Nova Lei de Licitações não se restringe ao Poder Executivo, tendo em vista não ser sinônimo de “Administração Pública”, a qual também pode representar os órgãos dos Poderes Judiciário e Legislativo, do Tribunal de Contas e do Ministério Público, especialmente quando do desempenho de funções administrativas (como visto no inciso I do artigo 1º da nova lei). Nessas situações, todos eles se sujeitam à Lei nº 14.133/2021, mesmo não pertencendo ao Poder Executivo da União, dos Estados, dos Municípios ou do Distrito Federal.
Além disso, apesar de a abrangência se estender a todos os municípios, enquanto entes federativos integrantes da administração direta, os municípios com até 20.000 habitantes possuem algumas regras especiais para a aplicação da Nova Lei de Licitações.
Em razão das diversas obrigações e adaptações trazidas pelo novo diploma legal, o artigo 176[1]Art. 176. Os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitantes terão o prazo de 6 (seis) anos, contado da data de publicação desta Lei, para cumprimento: I – dos requisitos estabelecidos no … Continue reading da Lei concedeu o prazo de 6 anos para que estes municípios cumpram algumas destas obrigações. Especificamente, os municípios com até 20.000 habitantes possuem prazo especial para a realização da licitação sob a forma eletrônica (sendo este o formato padrão estabelecido pela Nova Lei de Licitações), o atendimento às regras de divulgação em sítio eletrônico oficial, assim como para determinados requisitos de seleção e segregação de funções dos agentes públicos que colocarão em prática a nova lei.
A aplicação integral também se estende à administração pública indireta, mas tão somente às autarquias e fundações públicas (caput do artigo 1º). As empresas públicas e sociedades de economia mista estão apenas parcialmente sujeitas à Lei nº 14.133/2021, assim como estavam perante a Lei nº 8.666/1993, o que se verá a seguir.
A abrangência da Nova Lei de Licitações com aplicação parcial
As empresas públicas e as sociedades de economia mista, bem como as suas subsidiárias, estão sujeitas à Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais), que traz disposições sobre licitações e contratos administrativos para estas empresas. Ainda assim, as sociedades de economia mista e as empresas públicas estão sujeitas à Nova Lei de Licitações nos seguintes pontos:
- Critérios de desempate entre duas propostas (art. 60 da NLL[2]Nova Lei de Licitações:Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: I – disputa final, hipótese em que os … Continue readinge art. 55 da Lei das Estatais[3]Lei das Estatais: Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate: I – disputa final, em … Continue reading);
- Adoção da modalidade pregão para licitações (art. 32, IV, da Lei das Estatais[4]Lei das Estatais: Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes: […] IV – adoção preferencial da modalidade de licitação … Continue reading);
- Disposições penais (art. 178 da NLL e Título XI da Parte Especial do Código Penal).
Esta aplicação subsidiária se dá em razão do disposto no artigo 189 da Nova Lei de Licitações, que dispõe que as suas normas serão aplicadas nas hipóteses em que a legislação faz referência expressa à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (Lei do RCD)[5]Nova Lei de Licitações: Art. 189. Aplica-se esta Lei às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, à Lei nº 10.520, de 17 de … Continue reading.
Além destes, apesar de não haver previsão expressa na Lei nº 14.133/2021, também sofrem aplicação parcial os Serviços Sociais Autônomos – integrantes do chamado Sistema S. Estes entes não pertencem à Administração Direta nem à Administração Indireta, sendo considerados “instituições privadas, com característica paraestatal, criadas para atuar ao lado do Estado na persecução de interesses sociais relevantes”[6]Direito administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 1139.. Estas entidades não estão sujeitas às regras procedimentais da Nova Lei de Licitações, porquanto não fazem parte da administração pública, mas estão sujeitas aos princípios licitatórios previstos no artigo 5º do novo marco jurídico de contratações.
Isto porque, embora sejam consideradas pessoas de direito privado, atuam ao lado do Estado para atingir fins de interesse público[7]Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 252, p. 186-189, fev. 2015, seção Orientação Prática.. Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem o entendimento de que, apesar da necessidade de regulamentos próprios para contratações públicas, a utilização de recursos parafiscais pelas entidades do Sistema S impõe a necessidade da obediência aos princípios da legislação pertinente (Decisão nº 907/97 – Plenário)[8]TC-011.777/96-6. Decisão nº 907/97 – Plenário. Denúncia procedente, em parte. Inspeção realizada no local, objetivando apuração dos fatos constantes da peça acusatória relacionados com … Continue reading – notadamente a Lei nº 8.666/1993 e, agora, a Lei nº 14.133/2021.
Casos especiais de aplicação da Nova Lei de Licitações
Os §§ 2º a 5º do artigo 1º da Lei nº 14.133/2021 tratam da aplicação das regras da Nova Lei de Licitações em alguns casos especiais, que não se enquadram nas hipóteses mencionadas anteriormente. Vejamos.
As repartições públicas sediadas no exterior estão sujeitas aos princípios da Lei 14.133/2021, mas devem obedecer às peculiaridades legislativas do local em que estão sediadas e seguir regulamentações próprias a serem editadas pelo Ministro de Estado (art. 1º, § 2º).
Já nos casos de licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, são admitidas regras além da legislação brasileira, como tratados internacionais ou aplicação de normas ou procedimentos das próprias agências ou organismos internacionais (art.1º, § 3º).
As contratações relativas à gestão das reservas internacionais do país terão regulamentação própria, a ser editada pelo Banco Central do Brasil (art. 1º, § 5º). Estas reservas, também chamadas de reservas cambiais, “são os ativos do Brasil em moeda estrangeira e funcionam como uma espécie de seguro para o país fazer frente às suas obrigações no exterior”, conforme definição do próprio Banco Central[9]Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/reservasinternacionais. Acesso em 15/06/2021.. Ainda assim, a regulamentação do Banco Central do Brasil estará sujeita aos princípios norteadores da administração pública (art. 37, caput, da Constituição Federal) e da Lei nº 14.133/2021.
Por fim, não se aplicam as disposições da Nova Lei de Licitações aos “contratos que tenham por objeto operação de crédito, interno ou externo, e gestão de dívida pública”, inclusive as eventuais “contratações de agente financeiro e a concessão de garantia relacionadas a esses contratos” (vide art. 3º, I). Estão fora do âmbito de aplicação da Lei Federal nº 14.133/2021, igualmente, as contratações sujeitas a normas previstas em legislação própria (art. 3º, II).
Resumindo…
A abrangência da Nova Lei de Licitações atinge tanto a administração pública direta quanto a administração pública indireta, e, entre os entes abrangidos pela norma, a aplicação se dá conforme o seguinte:
Aplicação integral da nova Lei de Licitações
- Administração direta;
- Autarquias;
- Fundações públicas.
Aplicação parcial da nova Lei de Licitações
- Empresas públicas (aplicação primária da Lei nº 13.303/2016);
- Sociedades de Economia Mista (aplicação primária da Lei nº 13.303/2016);
- Sistema S (sujeito a regulamentos próprios para licitações e contratações públicas, com aplicação dos princípios da Nova Lei de Licitações);
Casos especiais
- Repartições Públicas sediadas no exterior;
- Licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira;
- Contratações relativas à gestão das reservas internacionais.
- Contratos para operação de crédito, interno ou externo, e gestão de dívida pública
Referências[+]
↑1 | Art. 176. Os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitantes terão o prazo de 6 (seis) anos, contado da data de publicação desta Lei, para cumprimento:
I – dos requisitos estabelecidos no art. 7º e no caput do art. 8º desta Lei; II – da obrigatoriedade de realização da licitação sob a forma eletrônica a que se refere o § 2º do art. 17 desta Lei; III – das regras relativas à divulgação em sítio eletrônico oficial. Parágrafo único. Enquanto não adotarem o PNCP, os Municípios a que se refere o caput deste artigo deverão: I – publicar, em diário oficial, as informações que esta Lei exige que sejam divulgadas em sítio eletrônico oficial, admitida a publicação de extrato; II – disponibilizar a versão física dos documentos em suas repartições, vedada a cobrança de qualquer valor, salvo o referente ao fornecimento de edital ou de cópia de documento, que não será superior ao custo de sua reprodução gráfica. |
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↑2 | Nova Lei de Licitações:Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:
I – disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação; II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei; III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento; IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle. […] |
↑3 | Lei das Estatais:
Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate: I – disputa final, em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta fechada, em ato contínuo ao encerramento da etapa de julgamento; II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, desde que exista sistema objetivo de avaliação instituído; III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991 , e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 ; IV – sorteio. |
↑4 | Lei das Estatais:
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes: […] IV – adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002 , para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado; |
↑5 | Nova Lei de Licitações:
Art. 189. Aplica-se esta Lei às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, à Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011. |
↑6 | Direito administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 1139. |
↑7 | Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 252, p. 186-189, fev. 2015, seção Orientação Prática. |
↑8 | TC-011.777/96-6. Decisão nº 907/97 – Plenário. Denúncia procedente, em parte. Inspeção realizada no local, objetivando apuração dos fatos constantes da peça acusatória relacionados com problemas em processos licitatórios e contratação de pessoal. Natureza jurídica dos serviços sociais autônomos. Inaplicabilidade dos procedimentos estritos da Lei 8.666 ao Sistema “S”. Necessidade de seus regulamentos próprios. Uso de recursos parafiscais impõe necessidade de obediência aos princípios gerais da legislação federal pertinente. Importância da Auditoria Operacional. Determinações. |
↑9 | Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/reservasinternacionais. Acesso em 15/06/2021. |