Da leitura da IN nº 73/2020, que revogou integralmente a Instrução Normativa nº 5 de 2014, sua antecessora, percebe-se que ela trouxe alterações com o objetivo de modernizar o procedimento de pesquisa de preços e torná-lo mais detalhado.
Eduardo André Carvalho Schiefler[1]
Eduardo Prudente Vargas da Silva[2]
No dia 6 de agosto, foi publicado no Diário Oficial da União a Instrução Normativa nº 73/2020[3], da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, que dispõe sobre o procedimento administrativo de pesquisa de preços para a aquisição de bens e contratação de serviços em geral, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Da leitura da IN nº 73/2020, que revogou integralmente a Instrução Normativa nº 5 de 2014, sua antecessora, é possível perceber que ela trouxe alterações com o objetivo de modernizar o procedimento de pesquisa de preços e torná-lo mais detalhado. Resumidamente, a IN 73/2020 traz algumas mudanças bastante objetivas:
1- A aferição da vantajosidade das adesões às atas de registro de preços deverá ser realizada de acordo com o disposto na IN 73/2020 (cf. § 3º do artigo 1º).
2- Quando executarem recursos da União decorrentes de transferências voluntárias, os órgãos e entidades da administração pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, deverão realizar a pesquisa de preços de acordo com as disposições da IN 73/2020, (§ 2º do artigo 1º). Registra-se que, antes, não havia vinculação quanto à aplicação da IN 5/2014 para estes órgãos e entidades, embora ela fosse constantemente adotada como referência. Com a novidade da IN 73/2020, estes órgãos e entidades se encontram vinculados à normativa, ou seja, obrigados a observar as suas disposições nas hipóteses em que estiverem utilizando recursos federais decorrentes de transferências voluntárias.
3- Trouxe definições claras para “preço estimado”, “preço máximo” e “sobrepreço”, facilitando o entendimento com o objetivo de evitar discrepâncias quando da aplicação dos referidos conceitos (art. 2º).
Além disso, considerando que a fase de pesquisa de preço é uma fase interna de suma importância para o processo de contratação pública, a IN 73/2020 traz em seu artigo 3º uma formalidade maior: instituiu-se a obrigatoriedade de a pesquisa de preços ser materializada em documento que contenha informações mínimas, como (i) a identificação do responsável pela cotação, (ii) a descrição das fontes utilizadas, (iii) a série de preços coletados, (iv) o método adotado para se definir o valor estimado e (v) as justificativas para a metodologia adotada, em especial para a desconsideração de valores inexequíveis, inconsistentes (novo termo incorporado pela IN) e excessivamente elevados, se aplicável.
Em seu artigo 4º, a IN 73/2020 dispõe como critério de pesquisa a observação, sempre que possível, das condições comerciais praticadas pelos fornecedores, o que inclui os prazos e locais de entrega, a instalação e montagem do bem ou prestação do serviço, as formas de pagamento, o frete e as garantias exigidas, assim como marcas e modelos, quando for o caso.
Já em seu artigo 5º, a IN 73/2020 elencou os parâmetros de pesquisa que devem ser observados, os quais podem ser empregados de forma combinada ou não: (i) Painel de Preços, (ii) aquisições e contratações similares de outros entes públicos, (iii) dados de pesquisa publicada em mídia ou site especializados, ou de domínio amplo, e (iv) pesquisa direta com fornecedores. Da mesma forma que a sua antecessora, a IN 73/2020 determina que se deve priorizar os parâmetros estabelecidos nos incisos I e II – o que reafirma a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU)[4].
De toda forma, a IN 73/2020 trouxe novidades também nesse quesito, conforme se verifica da tabela abaixo:
Especificamente quanto à pesquisa direta junto aos fornecedores, vale ressaltar que a IN nº 73/2020, em seu artigo 5º, § 2º, prescreve como deverá ocorrer o procedimento de pesquisa, exigindo (i) a solicitação formal de cotação contenha o prazo de resposta conferido ao fornecedor, compatível com a complexidade do objeto; (ii) a obtenção de propostas formais que contenham no mínimo: a descrição do objeto, valor unitário e total, o CPF ou CNPJ do proponente, o endereço e telefone de contato e a data de emissão da proposta; e (iii) o registro, nos autos da contratação, da relação de fornecedores que foram consultados e não enviaram propostas. Em comparação com a IN 5/2014, observa-se que esta restringia-se somente à exigência de um procedimento formal, sem detalhar como deveria ocorrer.
Veja-se que, por se tratar de um momento delicado para a administração pública, a pesquisa direta com fornecedores sofreu alterações no sentido de tornar mais clara as exigências de formalização e o rigor dos diálogos público-privados[5] (administração-fornecedores), de forma a exigir formalidades indispensáveis à lisura do procedimento. Ao que tudo indica, o intuito dessa formalização não visa a impedir ou burocratizar as relações comunicacionais, mas aumentar o nível de segurança para a administração e às próprias partes envolvidas (agentes público e econômico).
Outra importante novidade trazida é que, diferentemente do artigo 4º da IN 5/2014, a IN 73/2020 não proíbe, ao menos expressamente, a obtenção de estimativa de preços em sítios de leilão ou de intermediação de vendas, de forma que, em tese, pode-se proceder à realização de pesquisa de preços em marketplaces. Trata-se de inovação que caminha ao lado do que foi anunciado recentemente pelo Ministério da Economia: que o governo federal estuda implantar uma nova plataforma de comércio eletrônico nas compras públicas[6].
Ademais, o artigo 7º da IN 73/2020 discorreu sobre a necessidade de instrução dos processos administrativos de inexigibilidade de licitação, os quais deverão conter a devida justificativa de que o preço ofertado à administração é condizente com o praticado pelo mercado, em especial por meio de (i) documentos fiscais ou contratos de objetos idênticos[7], comercializados pela futura contratada, emitidos no período de até 1 (um) ano anterior à data da autorização da inexigibilidade pela autoridade competente; e de (ii) tabelas de preços vigentes divulgadas pela futura contratada em sites especializados ou de domínio amplo, contendo data e hora de acesso.
Trata-se de parâmetros exemplificativos, tendo em vista que o § 1º do artigo 7º dispõe que “Poderão ser utilizados outros critérios ou métodos, desde que devidamente justificados nos autos pelo gestor responsável e aprovados pela autoridade competente.”.
Está aí mais uma prova de que a IN 73/2020 surgiu também para conferir mais formalidade ao procedimento de pesquisa de preços, prezando pelo registro e formalização dos procedimentos nos autos do processo administrativo – o que, evidentemente, confere mais transparência ao processo de contratação pública e, inclusive, maior segurança ao gestor, que poderá, caso necessário, comprovar as boas práticas adotadas e evidenciar a sua atuação de boa-fé.
Frise-se que, caso a futura contratada não tenha comercializado o objeto em momento anterior, a justificativa de preço poderá ser realizada por meio de objetos de mesma natureza (objetos similares). E mais: a IN 73/2020 esclarece que esse procedimento, previsto no caput às hipóteses de inexigibilidade, também se aplica, no que couber, às hipóteses de dispensa de licitação, em especial as previstas nos incisos III, IV, XV, XVI e XVII do artigo 24 da Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos)[8].
A IN 73/2020 deixa claro, também, que, se a justificativa de preços indicar a possibilidade de competição no mercado, a inexigibilidade não poderá ser realizada pela administração. Nesse ponto, vale fazer um registro: a pluralidade de prestadores de serviços ou fornecedores nem sempre corresponde à viabilidade de competição, havendo exceções como as previstas no artigo 25, incisos II e III da Lei nº 8.666/1993[9].
Torna-se evidente, portanto, a finalidade e a importância de do procedimento de pesquisa de preços. Isto é, para além da orçamentação dos preços a serem pagos pela administração, o procedimento de pesquisa também se presta para verificar se o processo de contratação pública deve ser levado a cabo por meio de licitação ou de contratação direta. Assim, entende-se que andou bem a IN 73/2020 ao prever expressamente essa vedação à inexigibilidade de licitação quando da verificação da viabilidade de competição.
Por fim, em suas disposições finais (artigo 10), a IN 73/2020 prevê que o preço máximo a ser praticado na contratação poderá assumir valor distinto do preço estimado na pesquisa de preços feita, mas desde que haja justificativa para o acréscimo ou subtração de percentual e que sejam observadas a atratividade do mercado e a mitigação de risco de sobrepreço, sendo vedada a adoção de qualquer critério estatístico ou matemático que incida a maior sobre os preços máximos.
Em linhas gerais, portanto, a IN 73/2020 surgiu para aprimorar o procedimento de pesquisa de preços no âmbito do Poder Executivo Federal, conferindo mais formalidade a essa fase tão essencial ao processo de contratação pública, cuja existência de falhas, não raramente, é responsável por gerar inúmeros problemas posteriores à administração pública e aos contratados.
[1] Advogado no escritório Schiefler Advocacia. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019) e de artigos acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia.
[2] Estagiário no escritório Schiefler Advocacia. Graduando em Direito pela Rede de Ensino Doctum. Integrante da Associação Internacional de Advogados e Estudantes LawTalks.
[3] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-73-de-5-de-agosto-de-2020-270711836. Acesso em 10 ago. 2020.
[4] A pesquisa de preços para elaboração do orçamento estimativo da licitação não pode ter como único foco propostas solicitadas a fornecedores. Ela deve priorizar os parâmetros disponíveis no Painel de Preços do Portal de Compras do Governo Federal e as contratações similares realizadas por entes públicos, em observância à IN-SLTI 5/2014. (Boletim de Jurisprudência nº 213 de 23/04/2018 – Acórdão 718/2018, Plenário. Relator Ministro André de Carvalho, julgado em 04/04/2018)
[5] Sobre os diálogos público-privados, recomenda-se a leitura da obra Diálogos público-privados, de Gustavo Henrique Carvalho Schiefler: SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
[6] Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/julho/governo-debate-com-sociedade-implantacao-de-marketplace-para-compras-publicas. Acesso em 10 ago. 2020.
[7] Como se verá adiante, a justificativa de preço poderá ser realizada mediante objetos de mesma natureza, ou seja, similares (e não idênticos), nas hipóteses em que a futura contratada não tenha comercializado previamente o objeto.
[8] Art. 24. É dispensável a licitação: […]
III – nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem;
IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos; […]
XV – para a aquisição ou restauração de obras de arte e objetos históricos, de autenticidade certificada, desde que compatíveis ou inerentes às finalidades do órgão ou entidade.
XVI – para a impressão dos diários oficiais, de formulários padronizados de uso da administração, e de edições técnicas oficiais, bem como para prestação de serviços de informática a pessoa jurídica de direito público interno, por órgãos ou entidades que integrem a Administração Pública, criados para esse fim específico;
XVII – para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira, necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência da garantia;
[9] Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: […]
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III – para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
Read MorePara além da participação do Gustavo como especialista, tanto ele como o advogado Eduardo Schiefler propuseram enunciados que foram selecionados para debate nas comissões de trabalho.
Está ocorrendo nesta semana a I Jornada de Direito Administrativo, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, que tem por objetivo a produção e discussão de enunciados que visam à delineação interpretativa sobre o Direito Administrativo, a fim de adequá-la às inovações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais. A Jornada está sendo coordenada pela Min. Assusete Magalhães (STJ), Min. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto (TSE), Prof. Cesar Augusto Guimarães Pereira e pelo Juiz Federal Daniel Marchionatti Barbosa.
Amanhã (quinta-feira), acontecerão os debates nas comissões temáticas e o advogado Gustavo Schiefler participará como especialista convidado da comissão “Licitações, Contratos Administrativos, Concessões e Parcerias Público-Privadas“, coordenada pelo Desembargador Federal João Batista Moreira e pelos Profs. Eduardo Jordão e Joel de Menezes Niebuhr.
Para além da participação do Gustavo como especialista, tanto ele como o advogado Eduardo Schiefler propuseram enunciados que foram selecionados para debate nas comissões de trabalho.
Por essa razão, o advogado Eduardo Schiefler participará da comissão “Regime jurídico administrativo, Poderes da administração, Ato administrativo, Discricionariedade, Agentes públicos e Bens públicos“, coordenada pelo Ministro Benedito Gonçalves (STJ) e pelos Profs. Fabricio Macedo Motta e Juliana Bonacorsi de Palma.
Os enunciados aprovados nas comissões temáticas serão levados à reunião plenária para aprovação, que acontecerá no dia 7 de agosto (sexta-feira).
Gustavo Schiefler – Advogado. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Educação Executiva pela Harvard Law School (Program on Negotiation). Pesquisador Visitante no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht, em Hamburgo (Alemanha).
Eduardo Schiefler – Advogado no escritório Schiefler Advocacia. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019) e de artigos acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia.
Read MoreA empresa contratada não pode ser prejudicada por falha em projeto básico, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração.
Vinícius da Silva Oliveira[1]
A Lei nº 8.666/1993 – Lei de Licitações e Contratos Administrativos – prevê como dever da Administração Pública a apresentação, no processo licitatório, de todos os elementos e informações necessários à elaboração das propostas pelos licitantes, o que se dá pelo projeto básico[2] ou pelo termo de referência[3].
Ou seja, a Administração Pública possui a responsabilidade de elaborar um projeto básico ou um termo de referência que possua todas as diretrizes necessárias à elaboração, pelos licitantes, das propostas. Dessa forma, os particulares que desejam contratar com o Poder Público conhecerão completamente o objeto da licitação, de modo a permitir a devida orçamentação de preços e a avaliação de riscos.
Isso é evidente, pois que, se a licitação é processo ótimo e isonômico de contratação pública, que almeja à contratação do concorrente mais qualificado e apto ao exercício do serviço público, conclui-se por ser imprescindível o cumprimento de tais requisitos pela Administração; conforme devidamente explicitado no artigo 47 da Lei Federal nº 8.666/1993, in verbis:
Art. 47. Nas licitações para a execução de obras e serviços, quando for adotada a modalidade de execução de empreitada por preço global, a Administração deverá fornecer obrigatoriamente, junto com o edital, todos os elementos e informações necessários para que os licitantes possam elaborar suas propostas de preços com total e completo conhecimento do objeto da licitação.
Sobre essa disposição, Marçal Justen Filho assevera que “O art. 47 formulou disposição de cristalina obviedade e teoricamente dispensável. Em qualquer caso, a Administração tem o dever de detalhar o objeto da licitação e fornecer aos interessados informações completas, que permitam a formulação de propostas perfeitas. Isso se verifica não apenas no caso da empreitada por preço global, tema que foi examinado por ocasião da exposição acerca dos arts. 6.º, VIII, e 10 […]”[4].
E é ao se fitar essa escritura que se pode questionar o seguinte: caso o contrato administrativo, firmado com o vencedor do processo licitatório, tenha de ser aditado por necessidade de adequação do projeto inicial causada por falha técnica da própria Administração pública no projeto, será tal aditamento juridicamente válido, e trará ele prejuízo ao contratado?
É certo que, nesse caso, em sendo o erro da Administração, não pode o contratado prejudicar-se, pois o ônus concernente à elaboração de edital e projeto escorreitos é daquela, conforme preleciona, novamente, Marçal Justen Filho:
O art. 47 é obstáculo à elaboração de editais introduzindo fatores aleatórios em licitações de obras e serviços, mesmo quando a execução se deva fazer sob empreitada por preço global. A Administração tem o dever de apurar todas as circunstâncias que possam influenciar na execução do futuro contrato, especialmente quando a empreitada for por preço global. É nulo o edital que albergue fatores ocultos ou aleatórios acerca da execução do objeto licitado.[5]
Assim, deve a Administração zelar pela clareza no que concerne ao edital e também às cláusulas essenciais pertinentes ao objeto. Afinal, os licitantes só poderão concorrer isonomicamente se souberem pelo que estão concorrendo e quais devem ser os parâmetros de suas propostas.
Motivo outro não há, portanto, para que se entenda a questão de outra forma, no que toca à possibilidade do aditamento de contrato decorrente de falha da Administração, que não desta: se a falha, por parte da Administração Pública, efetivamente ocorreu, e se persiste o interesse na execução do objeto contratual, não há outra conduta a ser praticada que não a de aditar o contrato para corrigir todas as consequências decorrentes do erro da Administração. Ou então, que se promova a rescisão contratual, indenizando-se o particular contratado pelas perdas e danos.
Aliás, não é outro o entendimento da jurisprudência. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) já reconheceu que pode ser “impossível a execução de contrato por falha no projeto desenvolvido pela contratante”[6]. Além disso, em outro julgado, também decidiu que a presença de falha técnica no projeto apresentado pela Administração Pública autoriza o aditamento do objeto do contrato. Veja-se a ementa do acórdão:
RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO DE PROCEDIMENTO COMUM – DIREITO ADMINISTRAÇÃO – LICITAÇÃO – CONTRATO ADMINISTRATIVO – INADIMPLEMENTO – REQUERIMENTO DE DESISTÊNCIA OFERECIDO PELA LICITANTE VENCEDORA – RECUSA MANIFESTADA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – RESCISÃO CONTRATUAL – IMPOSIÇÃO DA MULTA PREVISTA NO CONTRATO – PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO DA NULIDADE DA REFERIDA SANÇÃO PECUNIÁRIA – POSSIBILIDADE.
[…]
2. No mérito, presença de falha técnica no projeto apresentado pela Administração Pública, reconhecida por meio da prova pericial produzida nos autos, durante a instrução do processo, sob o crivo do contraditório.
3. Tal situação autorizava o aditamento do objeto do contrato.
4. Violação do disposto no artigo 47 da Lei Federal nº 8.666/93.
5. Inexistência de culpa da licitante no inadimplemento do contrato. […][7]
Também não destoa dessa razão de decidir a jurisprudência do notório Tribunal de Contas da União (TCU), mais eminente órgão de controle dos processos de contratação pública.
No Acórdão 1.847/2005 – Plenário, o TCU asseverava a importância do projeto básico como forma de “representar uma projeção detalhada do futuro contrato, com elementos suficientes para caracterizar a obra ou serviço a ser executado”, de sorte que sua insuficiência acarretaria necessidade de “alterações contratuais supervenientes”. Leia-se trecho:
Acórdão 1847/2005 Plenário (Voto do Ministro Relator)
Na realidade, o projeto básico de um certame licitatório, nos moldes preconizados na Lei de Licitações, não é exigência meramente formal, para que se proceda a licitações de obras, nos termos do inciso I do § 2º do art. 7º da mesma lei. A meu ver, a minúcia do inciso IX do art. 6º do Estatuto Licitatório revela a importância do tema para uma contratação, no sentido de que o projeto básico deve representar uma projeção detalhada do futuro contrato, com elementos suficientes para caracterizar a obra ou serviço a ser executado e informações relevantes sobre a viabilidade e a conveniência técnica e econômica do empreendimento examinado.
Vícios de imprecisão no projeto básico de uma licitação podem ensejar não apenas violação aos princípios da isonomia e da obtenção da melhor proposta, mas também distorções no planejamento físico e financeiro inicialmente previsto, com alterações contratuais supervenientes, que, em muitos casos, apenas aumentam a necessidade de aporte de recursos orçamentários e retardam a conclusão dos serviços. […].
Contudo, se acaso restava ainda alguma centelha de dúvida sobre a (i)legalidade tocante ao ato de culpar-se o contratado no caso de aditamento contratual decorrente de falha no projeto básico, foi aquela totalmente dirimida pela TC 044.312/2012 do TCU, que culminou no Acórdão nº 1.977/2013 – Plenário, de seguinte texto:
VOTO
[…]
44. A dicotomia em questão está em balancear a idealização da empreitada global com a vedação do enriquecimento sem causa. Não seria concebível que falhas na elaboração do edital redundem, com justa causa, em um superfaturamento. Tampouco a Administração poderia se beneficiar de erro que ela própria cometeu, pagando por um produto preço relevantemente inferior que o seu justo preço de mercado. Erro preliminar da própria Administração, independentemente do tipo de empreitada, não pode redundar em ganhos ilícitos; porque se ilícito for, o enriquecimento de uma parte, em detrimento de outra, sem causa jurídica válida, faz-se vedado.
[…]
55. Na realidade, aquele erro, se constatado tempestivamente antes da abertura dos envelopes, levaria à alteração compulsória da planilha orçamentária, com reabertura de prazo aos concorrentes, em poder de autotutela, para reavaliarem o seu preço (art. 53 da Lei 9.784/99 e art. 21, § 4º c/c art. 49 da Lei de Licitações). Quando identificado, durante a execução contratual, para convalidação desse vício, um aditivo contratual faz-se cabível (art. 55 da Lei 9.784/99).
56. Pequenos lapsos na quantificação dos serviços (até certo ponto comum, visto que cada orçamentista não apresentaria, nas vírgulas, quantidades idênticas), levando em conta a característica das empreitadas globais – em estabelecer imprecisões quantitativas como álea ordinária da contratada –, não conduzem à mácula no procedimento licitatório, tanto por não afetar essa “livre manifestação de vontade”, como, principalmente, por não inviabilizarem a obtenção da “melhor proposta”.
57. Tal visão também se harmoniza com a teoria administrativa, em sobrelevar o que pode ser chamado de “fato novo”, legítimo para ensejar a revisão contratual, capaz de sanear – ou convalidar – aquela anulabilidade. Se aquele erro praticado pela Administração não podia ser percebido pela empresa média, pode-se classificá-lo como evento posterior, em álea extraordinária, não derivado de conduta culposa do particular, em congruência com a teoria de imprevisão. A aplicação do art. 65 da Lei de Licitações, em densificação ao disposto no art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, faz-se compulsória.
[…]
59. De toda essa digressão, resume-se que, de pequenos erros quantitativos, não decorrerão termos aditivos em empreitadas globais, por se tratarem de erros acidentais, incapazes de interferir na formação de vontades e, principalmente, na formação de proposta a ser ofertada, a ser tida como a mais vantajosa. Indicação contrária também tornaria o regime de empreitada global em desuso, posto que, na prática, toda obra seria executada como se preço unitário fosse.
60. Erros de materialidade relevante (por erros substanciais) sujeitam-se a um juízo acurado de valor, que envolverá, também, além das consequências financeiras – em termos de materialidade – a avaliação culposa da contratante, em um juízo de boa-fé objetiva.
61. Na realidade, quando a Administração erra ao subestimar consideravelmente as quantidades (e consequentemente, preços), a ponderação acerca da nulidade da relação contratual – a ser eventualmente convalidada via termo aditivo – deve se pautar pela exigibilidade da percepção da falha pela parte lesada (a contratada); até mesmo para evitar um dolo negativo do particular, com o objetivo de obter proveito próprio.
62. Não significa dizer, em paralelismo, que se detectadas superestimativas relevantes, consideradas imperceptíveis às licitantes – e, portanto, com ausência de culpa do particular – não estaria evidenciada nulidade (a “autorizar o superfaturamento”). Nesses casos, aplicam-se imperativamente outros princípios fundamentais do direito público (como o da economicidade e o da obtenção da maior vantagem). O erro do agente da Administração pode ser considerado inescusável, em seu dever de moderar a contratação sob os preços de mercado. Nesta situação, o contrato superfaturado seria uma nulidade a ser corrigida de forma imediata.
[…]
ACÓRDÃO Nº 1977/2013 – TCU – Plenário
[…]
9. Acórdão:
[…]
9.1.8. excepcionalmente, de maneira a evitar o enriquecimento sem causa de qualquer das partes, como também para garantia do valor fundamental da melhor proposta e da isonomia, caso, por erro ou omissão no orçamento, se encontrarem subestimativas ou superestimativas relevantes nos quantitativos da planilha orçamentária, poderão ser ajustados termos aditivos para restabelecer a equação econômico-financeira da avença, situação em que se tomarão os seguintes cuidados:
9.1.8.1. observar se a alteração contratual decorrente não supera ao estabelecido no art. 13, inciso II, do Decreto 7.983/2013, cumulativamente com o respeito aos limites previstos nos §§ 1º e 2º do art. 65 da Lei 8.666/93, estes últimos, relativos a todos acréscimos e supressões contratuais;
9.1.8.2. examinar se a modificação do ajuste não ensejará a ocorrência do “jogo de planilhas”, com redução injustificada do desconto inicialmente ofertado em relação ao preço base do certame no ato da assinatura do contrato, em prol do que estabelece o art. 14 do Decreto 7.983/2013, como também do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal;
9.1.8.3. avaliar se a correção de quantitativos, bem como a inclusão de serviço omitido, não está compensada por distorções em outros itens contratuais que tornem o valor global da avença compatível com o de mercado;
9.1.8.4. verificar, nas superestimativas relevantes, a redundarem no eventual pagamento do objeto acima do preço de mercado e, consequentemente, em um superfaturamento, se houve a retificação do acordo mediante termo aditivo, em prol do princípio guardado nos arts. 3º, caput c/c art. 6º, inciso IX, alínea “f”; art. 15, § 6º; e art. 43, inciso IV, todos da Lei 8.666/93;
9.1.8.5. verificar, nas subestimativas relevantes, em cada caso concreto, a justeza na prolação do termo aditivo firmado, considerando a envergadura do erro em relação ao valor global da avença, em comparação do que seria exigível incluir como risco/contingência no BDI para o regime de empreitada global, como também da exigibilidade de identificação prévia da falha pelas licitantes – atenuada pelo erro cometido pela própria Administração –, à luz, ainda, dos princípios da vedação ao enriquecimento sem causa, da isonomia, da vinculação ao instrumento convocatório, do dever de licitar, da autotutela, da proporcionalidade, da economicidade, da moralidade, do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e do interesse público primário; […]
Apesar de existirem esforços infralegais em sentido contrário, tal como ocorre na previsão contida no inciso II do artigo 13 do Decreto Federal nº 7.983/2013[8], é seguro concluir que erros na documentação que serve como base para a apresentação das propostas na licitação não podem ter as suas consequências financeiras negativas atribuídas ao contratado. A atribuição do risco pelas eventuais falhas no projeto básico ao particular, além de proporcionar o enriquecimento sem causa do contratante, ocasionaria o indesejado efeito de aumento dos preços praticados nessas licitações, dada a necessidade de precificação do risco.
De se concluir então que, salvo nos casos em que a falha constante do projeto básico, ou termo de referência, seja plenamente detectável pelo licitante vencedor do certame, o erro da Administração faz exsurgir, nos casos em que a contratada não opta pela rescisão contratual, o direito ao aditamento do contrato administrativo, com vistas a evitar enriquecimento ilícito da parte contratante, e, por conseguinte, com vistas a sanar a irregularidade oriunda desse ato administrativo maculado.
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Contratos Administrativos: Reequilíbrio Econômico-Financeiro e COVID-19.
Orientações da AGU sobre o tratamento e gestão dos contratos de terceirização durante a pandemia de Covid-19.
[1] Vinícius da Silva Oliveira – Estagiário de Direito no Escritório Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
[2] Lei Federal nº 8.666/93, Art. 6º […] IX – Projeto Básico – conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução, devendo conter os seguintes elementos: […]
[3] Decreto nº 3.555/2000, Art. 8º […] II – o termo de referência é o documento que deverá conter elementos capazes de propiciar a avaliação do custo pela Administração, diante de orçamento detalhado, considerando os preços praticados no mercado, a definição dos métodos, a estratégia de suprimento e o prazo de execução do contrato;
[4] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 8.666/93. ed 16., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 849.
[5] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 8.666/93. ed 16., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 849.
[6] TJSP; Remessa Necessária Cível nº 0016580-34.2009.8.26.0053; Rel. o Des. José Maria Câmara Junior; 8ª Câmara de Direito Público; j. 14.6.17.
[7] TJ-SP – AC: 00014286320158260431 SP 0001428-63.2015.8.26.0431, Relator: Francisco Bianco, Data de Julgamento: 05/06/2019, 5ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 05/06/2019.
[8] Art. 13. Em caso de adoção dos regimes de empreitada por preço global e de empreitada integral, deverão ser observadas as seguintes disposições para formação e aceitabilidade dos preços: […] II – deverá constar do edital e do contrato cláusula expressa de concordância do contratado com a adequação do projeto que integrar o edital de licitação e as alterações contratuais sob alegação de falhas ou omissões em qualquer das peças, orçamentos, plantas, especificações, memoriais e estudos técnicos preliminares do projeto não poderão ultrapassar, no seu conjunto, dez por cento do valor total do contrato, computando-se esse percentual para verificação do limite previsto no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993.
Read MoreO Tribunal de Contas do Distrito Federal acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame.
O Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) suspendeu cautelarmente, no fim de maio, licitação de serviços de publicidade lançada por empresa estatal do Distrito Federal, pois vislumbrou indícios de irregularidade na pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes[1].
Especificamente, o TCDF acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame. Segundo a decisão, confirmada por unanimidade pelo Plenário da Corte de Contas, “não houve manifestação técnica quanto aos casos de pontuação cuja diferença fosse superior a 20%, caracterizando a existência da fumaça do bom direito na representação tratada nos autos, frente, principalmente, à previsão legal constante do art. 6º, inc. VII, da Lei nº 12.232/2010”.
Para entender melhor o caso analisado pelo TCDF, é importante levar em conta que, com a publicação da Lei Federal nº 12.232/2010, as licitações para a contratação de agências de propaganda receberam um regulamento especial, motivo pelo qual a Lei Federal nº 8666/1993 passou a ser aplicada apenas subsidiariamente nesses casos. O motivo da existência de uma lei especial, com evidente procedimento mais rigoroso para o julgamento das pontuações técnicas, se deve ao fato de que as licitações para serviços de publicidade são naturalmente mais suscetíveis a direcionamentos e favorecimentos indevidos, sobretudo em razão da natureza do julgamento das propostas técnicas.
A preocupação acentuada com a etapa de julgamento das propostas técnicas para contratações desse objeto está expressa na justificativa da proposta legislativa que gerou a Lei Federal nº 12.232/2010. Leia-se o seguinte excerto da exposição de motivos do PL nº 3305/2008:
Tem a nossa experiência recente nos mostrado que a ausência de um tratamento normativo específico para essa matéria possibilita que, nesse campo, grandes arbitrariedades ocorram em todo o país. Empresas de publicidade contratadas com óbvio favorecimento, com base em critérios de julgamento subjetivos, contratos que encobrem a possibilidade de novos ajustes imorais com terceiros, pagamentos indevidos, desvios de verbas públicas destinadas à publicidade com fins patrimoniais privados ou para custeio de campanhas eleitorais são apenas alguns exemplos de transgressões que compõem um cenário já bem conhecido nos dias em que vivemos. [2]
Entre as exigências específicas da Lei Federal nº 12.232/2010, encontra-se a obrigação de a subcomissão técnica (aquela que julga as propostas técnicas dos licitantes) reavaliar a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% da pontuação máxima deste quesito. Como visto, a reavaliação da pontuação fica a cargo de uma subcomissão técnica, prevista no § 1º do artigo 10 da Lei, e deve ser realizada em conformidade com os critérios objetivos estabelecidos no edital de licitação. Confira-se o dispositivo:
Art. 6º A elaboração do instrumento convocatório das licitações previstas nesta Lei obedecerá às exigências do art. 40 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com exceção das previstas nos incisos I e II do seu § 2º, e às seguintes:
[…]
VII – a subcomissão técnica prevista no § 1º do art. 10 desta Lei reavaliará a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% (vinte por cento) da pontuação máxima do quesito, com o fim de restabelecer o equilíbrio das pontuações atribuídas, de conformidade com os critérios objetivos postos no instrumento convocatório.
Nessas hipóteses, dever-se-á igualmente observar o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010, que prevê o envio das planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso à comissão permanente ou especial de licitação. Esta é considerada uma condição essencial do julgamento nas licitações de serviços de publicidade, uma vez que a ausência de motivação para as pontuações pode impedir o controle sobre o seu mérito, facilitando eventuais direcionamentos.
Desse modo, as razões das pontuações devem ser registradas por escrito pela subcomissão técnica e encaminhadas à comissão permanente ou especial, quer incida na hipótese regulada pelo inciso VII do artigo 6º, quer não. Veja-se como a exigência de manifestação escrita é expressa na Lei nº 12.232/2010:
Art. 11. Os invólucros com as propostas técnicas e de preços serão entregues à comissão permanente ou especial na data, local e horário determinados no instrumento convocatório. […]
§ 4º O processamento e o julgamento da licitação obedecerão ao seguinte procedimento: […]
V – análise individualizada e julgamento dos quesitos referentes às informações de que trata o art. 8º desta Lei, desclassificando-se as que desatenderem quaisquer das exigências legais ou estabelecidas no instrumento convocatório;
VI – elaboração de ata de julgamento dos quesitos mencionados no inciso V deste artigo e encaminhamento à comissão permanente ou especial, juntamente com as propostas, as planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso.
Ou seja, a subcomissão técnica precisa justificar expressamente os motivos que justificam a atribuição da nota, sob pena de violar diversas regras que regem a atividade administrativa e que permeiam todos os processos de contratação pública, em especial os deveres de motivação dos atos administrativos e do tratamento isonômico, além dos princípios da publicidade e da impessoalidade.
É preciso que os licitantes saibam os motivos que levaram à pontuação dos quesitos quando da análise da sua proposta técnica, caso contrário serão impedidos de, se necessário, exercer o seu direito constitucional de defesa. Neste sentido, encontra-se a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), segundo a qual “a ausência de justificativa escrita acerca das pontuações e das razões que as fundamentam em cada caso, nos procedimentos licitatórios para oferta de serviços de publicidade, afronta o que dispõe o art. 11, § 4º, inciso IV, da Lei 12.232/2010”[3].
Acontece que, não obstante a clareza das determinações legais, nem sempre a subcomissão técnica registra por escrito a justificativa das razões que basearam a avaliação ou a reavaliação de determinada pontuação, descumprindo assim o inciso VII do artigo 6º e/ou o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010. No caso noticiado, pela violação do inciso VII do artigo 6º da referida lei, como salientado, o Tribunal confirmou a necessidade de realizar a sobredita reavaliação e, por unanimidade, dada a ausência de tal procedimento, suspendeu cautelarmente o certame.
A decisão noticiada confirma a competência legítima dos Tribunais de Contas em intervir cautelarmente para evitar irregularidade no curso da licitação pública, assim como o entendimento de que, nas licitações submetidas à Lei Federal nº 12.232/2020, configura ilegalidade a ausência de reavaliação da pontuação concedida a um quesito de um determinado licitante, quando a diferença entre a maior e a menor pontuação, atribuída pelos integrantes da subcomissão técnica, for superior a 20% da pontuação máxima do quesito.
[1] TCDF – Decisão nº 1798/2020, Plenário. Relator: Antônio Renato Alves Rainha. Data de Julgamento: 27/05/2020.
[2] Projeto de Lei nº 3305/2008, Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=391688 Acesso em 29 jun. 2020.
[3] TCU – Acórdão nº 2813/2017, Plenário. Relator: AROLDO CEDRAZ, Data de Julgamento: 06/12/2017.
Read MoreEm caso de haver prejuízo à contratada em contrato administrativo decorrente de fato relacionado ao COVID-19, a Administração deve restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro contratual, indenizando a contratada.
Vinicius da Silva Oliveira[1]
“Alea iacta est”. Foi com esta frase que Júlio César rogou sorte a si quando atravessou o rio Rubicão, ato que culminou na guerra civil contra Pompeu e os optimates, da qual saiu aquele vitorioso. O dado foi lançado, e, para sua sorte, virou-se ao Imperador a face da vitória.
Etimologicamente, o termo alea tem origem no latim, significando, denotativamente, “dado”, e, conotativamente, sorte, acaso, randomicidade, aleatoriedade. No âmbito jurídico pátrio, o termo “álea”, parido do Direito Romano, é deveras recorrente na teoria dos contratos, significando situação contratual em que a reciprocidade das obrigações onerosas e sinalagmáticas é frágil ou inexistente, podendo vir a ser quebrantada por caso fortuito ou evento de força maior.[2]
Assim, um contrato será aleatório quando ao menos uma das partes assume o risco de adimplir sua obrigação mesmo que haja risco de que a contraprestação obrigacional não seja equitativa ou existente, devido a acontecimento incerto e futuro, como é o caso do contrato de seguro; e, ao revés, será comutativo quando as partes contratantes, em sua declaração de vontade, delimitam direitos e deveres recíprocos, previsíveis e certos, como é o caso da compra e venda.[3]
Os contratos administrativos, por estarem sempre necessariamente banhados pelos princípios da legalidade, da publicidade e da vinculação ao instrumento público convocatório, entre outros, têm, naturalmente, cariz oneroso, sinalagmático e comutativo, sendo, pois, razoavelmente equânimes e certas as obrigações recíprocas firmadas entre a Administração e a contratada, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, da Lei 8.666/1993.[4]
Tanto assim o é que, quando da licitação, o termo de referência ou o projeto básico vincula a Administração à contratada, e, da mesma forma, a proposta vincula a contratada à Administração; e, perpassando-se essas fases, vê-se no contrato administrativo firmado entre elas a perfeita materialização das bilateralidade e comutatividade contratuais[5], consubstanciadas nos direitos e deveres que cada contraente tem uma para com a outra, com vistas a manter o equilíbrio econômico-financeiro contratual, conforme, por exemplo, as disposições dos artigos 77 a 80 da Lei Federal nº 8.666/1993, para ficar só nela.
No plano jurídico abstrato, portanto, não há que se hesitar: se o contrato sujeita prestação ou prestações a risco anormal, futuro e incerto, é ele aleatório; se, ao contrário, o contrato firma obrigações recíprocas, certas e previsíveis aos contraentes – inclusive em relação à previsibilidade dos riscos normais do negócio –, é ele comutativo. Mas o plano dos fatos não costuma corroborar estritamente o plano jurídico das ideias; a disposição tipicamente a priori do texto legal não é capaz de prever a vicissitude inerente aos casos da vida.
Que fazer, então, se, durante a execução de um contrato comutativo, sua ínsita comutatividade desvanecer-se em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis ou inevitáveis, tornando a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra?
É com o uso da teoria da imprevisão que esse impasse é diluído.
A teoria da imprevisão está expressa na Seção IV do Capítulo II do Título V do Livro I da Parte Especial do Código Civil de 2002, denominada Da Resolução [Contratual] por Onerosidade Excessiva, continente dos artigos 478, 479 e 480 do édito. Essa teoria concebe, em interpretação sistemática com o artigo 393, que, nesses casos de onerosidade excessiva, o contraente prejudicado poderá pedir a resolução do contrato; pedir que sua prestação seja reduzida na medida do desequilíbrio; ou, como terceira solução, poderá o contraente beneficiado modificar equitativamente as condições do contrato, restabelecendo a comutatividade contratual.
A teoria, entretanto, está espraiada pelo ordenamento, e, no âmbito dos contratos administrativos, ganha contornos e balizas, estabelecidos pelas normas cogentes típicas do Direito Público, sobretudo pelo inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal e pelos artigos 54 e 65, II, d, da Lei Federal nº 8.666/1993. Diante dessa roupagem, de mesma essência, passa-se a falar no reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, por sua revisão, visando à comutativa realocação dos riscos contratuais.
Materializa-se por meio desses dispositivos exceção à corriqueira comutatividade dos contratos administrativos, que, como regra, respeitam o basilar princípio de que pacta sunt servanda[6] nos exatos termos em que foram avençados. Assim não o sendo, tem-se presente uma exceção, que se justifica na existência de álea econômica, a qual quebra decerto o almejado estado de subsistência das coisas[7] atinentes às recíprocas obrigações contratuais.
É certo dizer, então, que a álea econômica é extraordinária e excedente aos mitigados e normais riscos inerentes ao contrato administrativo – assumidos quando da aceitação da proposta por parte da Administração –, advindo de instabilidade econômica, social, sanitária – consequente de caso fortuito ou de força maior – que acarrete estado de imprevisão, quer pelos impactos de seus efeitos, quer pela imprevisibilidade de suas consequências, e nunca dependente da parte.[8]
Mas, afinal, a pandemia decorrente do COVID-19 pode ser entendida como evento que enseja a aplicabilidade da teoria da imprevisão, sobretudo no que toca à revisão do contrato administrativo celebrado anteriormente, e vigente durante seus efeitos, para restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro?
A resposta, evidentemente, é afirmativa.
É que as consequências jurídicas desta pandemia nos contratos administrativos são dela diretamente paridas. Ocorre, no caso, justamente a situação tutelada pelo inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, que obriga à manutenção das condições efetivas da proposta (ou seja, as condições do momento em que foi apresentada, antes da COVID-19). É, também, a situação tutelada pela necessidade de a Administração proceder à “justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento”, devendo ela restabelecer os encargos e retribuição que restaram inicialmente pactuados quando “sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”, nos termos do artigo 65, II, d, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Ademais, com vista no artigo 54 da Lei Federal nº 8.666/1933, que aplica subsidiariamente aos contratos administrativos as disposições do direito privado, e conquanto não haja consenso doutrinário no que toca à identidade conceitual, ou não, entre caso fortuito e de força maior, lê-se do caput do artigo 393 do Código Civil que “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado” e do seu parágrafo único que “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Isso, aplicado ao contrato administrativo, caracteriza álea extraordinária, a qual, por sua vez, justifica a aplicação da teoria da imprevisão para o reequilibrar.
A pandemia da COVID-19 é essencialmente fato necessário extraordinário, imprevisível, de arrefecimento incerto. Dessa forma, empresa que seja parte contratada de um contrato firmado com a Administração e que tenha sido prejudicada, na execução de seus serviços ou na entrega de seu produto, pelos impactos sanitários e socioeconômicos exsurgidos daquela, tem, nos termos da lei, direito subjetivo à purgação da álea econômica do caso, devendo a Administração revisar o contrato, e, consequentemente, restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro.
Aplicabilidade bastante evidente dá-se no caso em que o contrato administrativo teve de ser suspenso em razão da pandemia, e não por culpa da contratada ou por decisão fundamentada da Administração. Nessa situação, deverá esta, sempre que possível, promover a revisão contratual, para dirimir a álea econômica, e, consequentemente, restabelecer o equilíbrio entre os direitos e deveres das partes – como bem asserta a Advocacia-Geral da União (AGU) no Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU[9], cuja conclusão é a de que “A pandemia do novo coronavírus configura força maior ou caso fortuito, caracterizando álea extraordinária para fins de aplicação da teoria da imprevisão a justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes […]”[10].
A bem da verdade, a responsabilidade da Administração, como contratante, não resta encerrada no direito da parte contratada de ter o contrato revisado, com vistas a dirimir os riscos extraordinários do contrato. O restabelecimento do equilíbrio do contrato não pressupõe somente o abalizamento equânime das cláusulas, mas, também, como consectário deontológico, o dever da Administração de indenizar a contratada pelos prejuízos decorrentes da pandemia – quer tenha de haver a resolução contratual, quer não.
Vê-se, logo, que a pandemia decorrente do COVID-19 veio fortuita e inevitavelmente, dando início à crise sanitária, econômica e social que ainda assola o povo brasileiro. No plano jurídico dos contratos administrativos, do mesmo modo, os contraentes viram-se em crise, impotentes em face da Administração e muita vez impossibilitados de prestarem os serviços ou entregarem os produtos avençados, devido ao extraordinário e inevitável estado de coisas atual.
Desse modo, ao menos no que tange aos contratos administrativos de contratação pública, conclui-se sem hesitação: o reequilíbrio econômico-financeiro, tão caro que é ao contrato administrativo, é pleito justificado, à Administração, diante da cesárea aleatoriedade ínsita à crise nascida da pandemia do COVID-19.
[1] Estagiário de Direito no Escritório Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
[2] GOMES, Orlando. Contratos. ed. 18, Rio de Janeiro: Forense, 1999. pp. 74-75.
[3] Ibidem.
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. ed. 10, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 468.
[5] É certo, porém, que a comutatividade do contrato administrativo não implica a inexistência de álea, de riscos. O que a lei não admite é que os riscos suportados pelos contratantes extrapolem os riscos normais da contratação, inerentes à natureza do negócio. Logo, não se há de falar, por exemplo, em reequilíbrio de contrato de compra e venda de mercadoria importada em que haja certa variação cambial entre o oferecimento da proposta e a efetiva aquisição pelo importador; nem de risco normal de contrato prestação de serviços de vigilância os quais, num determinado mês, ocorram mais que noutro; nem de contratação de obra na qual determinada aplicação de material precise ser refeita em razão de alguma reação química incomum dos insumos.
[6] Em tradução livre, “os pactos devem ser observados”.
[7] Trata-se da cláusula rebus sic stantibus, haurida do Direito Romano.
[8] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
[9] Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU. Disponível em: <https://licitacao.paginas.ufsc.br/files/2020/03/Parecer-AGU-Concess%C3%A3o-Transportes-Recomposi%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2020.
[10] No caso, tratava-se de contrato administrativo de concessão, mas é de se ressaltar que a caracterização do evento, e consequente direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, serve, a fortiori ratione, ao gênero contrato administrativo.
Read MoreOs três pareceres consultivos elaborados pela Advocacia Geral da União (AGU) formulam uma análise jurídica da questão e indicam possíveis caminhos para a gestão dos contratos terceirizados.
Nesta quarta-feira (16 de junho de 2020), Victoria Magnani teve o artigo “Orientações da AGU sobre o tratamento e gestão dos contratos de terceirização durante a pandemia de Covid-19“, de sua autoria, publicado no blog da Zênite Informação, o qual pode ser visualizado neste link. Em razão da relevância do tema, vamos republicá-lo na íntegra, com a autorização da autora:
Orientações da AGU sobre o tratamento e gestão dos contratos de terceirização durante a pandemia de Covid-19.
Victoria Magnani[1]
Devido à situação excepcional vivida atualmente, em virtude da pandemia de covid-19, os órgãos da Administração Pública em geral vêm realizando uma série de mudanças e adaptações no sentido de migrar boa parte dos colaboradores para o regime de teletrabalho/home office, em um esforço para reduzir a taxa de contaminação pelo vírus Sars-Cov-19 (coronavírus).
Contudo, ressalta-se que as alternativas formuladas pelo Poder Público a fim de lidar com os impactos da pandemia foram pensadas com vistas a balizar a atuação de servidores, empregados públicos, estagiários e demais colaboradores que possuem vínculo direto com a Administração Pública, não tendo sido emitida, porém, orientação normativa central para esclarecer o tratamento que deve ser dado aos empregados terceirizados, os quais possuem vínculo jurídico contratual com as empresas contratadas pela Administração.
Essa situação levou administradores de todo o país a um cenário de incertezas e insegurança na tomada de decisões, o que, por sua vez, motivou a formulação de questionamentos com vistas a esclarecer o tratamento que deve ser dado aos contratos terceirizados no âmbito da Administração Pública. A Advocacia-Geral da União (AGU), nesse ínterim, publicou três pareceres consultivos sobre o assunto, formulando uma análise jurídica da questão e indicando possíveis caminhos para a gestão dos contratos terceirizados no âmbito da pandemia do novo coronavírus.
Foram publicados o Parecer nº 106/2020, formulado pelo Departamento de Assuntos Jurídicos Internos (DAJI) da Secretaria Geral de Consultoria/AGU; o Parecer nº 63/2020, publicado pela Consultoria Jurídica junto à Controladoria Geral da União (CONJUR-CGU/AGU); e o Parecer nº 310/2020, elaborado pela Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Educação (CONJUR-MEC), vinculada à Consultoria Geral da União/AGU.
Destaca-se que as deliberações propostas pela Advocacia-Geral da União no contexto dos pareceres supracitados dizem respeito a medidas mitigadoras destinadas aos casos em que a Administração decide manter vigentes os contratos de prestação de serviços terceirizados, uma vez que não se exclui a eventual possibilidade de rescisão contratual unilateral pela Administração, por motivo de força maior, em especial nos casos em que esta for comprovadamente a medida mais benéfica aos interesses públicos.
Os pareceres em questão versam sobre diferentes aspectos e reflexos contratuais decorrentes dos impactos da covid-19 nos contratos firmados pela Administração com empresas prestadoras de serviços terceirizados e, devido ao fato de terem sido formulados por órgãos consultivos diversos, alguns questionamentos se repetem, motivo pelo qual será feita uma análise conjunta das orientações enunciadas em cada parecer.
É possível a substituição dos empregados terceirizados que integram grupos de risco?
Sim. Primeiramente, destaca-se que são enquadrados como pertencentes aos grupos de risco, segundo o Ministério da Saúde, pessoas acima de 60 anos, portadores de doenças cardiovasculares ou respiratórias, diabéticos, portadores de doença neurológica ou renal, bem como pessoas que tenham comorbidades tais quais imunodepressão, obesidade, asma e puérperas[2].
No âmbito do Parecer nº 106/2020[3], a Secretaria-Geral de Administração, através da Nota Técnica n. 35/2020/CLOG/SGA/AGU, formulou questionamento acerca da possibilidade de exigir que as empresas contratadas pela Administração façam a substituição de empregados terceirizados que estejam enquadrados nos chamados grupos de risco. A conclusão exposta no parecer elaborado pelo Departamento de Assuntos Jurídicos Internos (DAJI) da Secretaria Geral de Consultoria/AGU foi no sentido de que é possível à Administração, sim, proceder a tal exigência.
Isso porque, apesar de haver vedação ao direcionamento na contratação de terceirizados para trabalhar nas empresas contratadas (vide art. 5º, inciso III da Instrução Normativa nº 5, de 26 de maio de 2017, que dispõe sobre as regras e diretrizes do procedimento de contratação de serviços sob o regime de execução indireta no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional), tem-se que, em virtude da excepcionalidade e gravidade da situação atual, não parece ilegal a tentativa de negociar com a empresa o remanejamento das pessoas enquadradas nos grupos de risco para atividades dentro da própria empresa terceirizada, ou que possam ser executadas de modo remoto, destinando pessoas menos vulneráveis às atividades que exijam exclusivamente execução presencial.
Ademais, o parecer ressaltou que o próprio portal de compras do Governo Federal[4] já recomendou o levantamento dos empregados pertencentes aos grupos de risco para a avaliação da necessidade de suspensão ou substituição temporária na prestação de serviços por esses terceirizados, nos termos das “Recomendações Covid-19 – Contratos de prestação de serviços terceirizados”, que orientam a aplicação por analogia da Nota Técnica nº 66/2018- Delog/Seges/MP para o contexto de pandemia.
O Parecer nº 310/2020[5], por sua vez, endossa esse entendimento, citando, inclusive, o mesmo art. 3º das “Recomendações Covid-19 – Contratos de prestação de serviços terceirizados”. Segundo a manifestação, que orienta o afastamento dos prestadores de serviço terceirizados que se encontram no “grupo de risco”, será aplicado o art. 3º da Lei nº 13.979/2020, que estabelece que “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: (…) “§ 3º Será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo”.
Logo, a área de recursos humanos pode conceder falta justificada nesta hipótese, assim como os encarregados dos contratos de terceirização podem fazer uso de tais medidas. A verificação de pertencimento do empregado terceirizado ao grupo de risco, por sua vez, caberá à própria empresa terceirizada que, tão logo encaminhada a autodeclaração de pertencimento feita pelo empregado, avaliará caso a caso se o trabalhador em questão faz jus à liberação, por estar este incluído no grupo de risco.
O parecer ressaltou, ainda, que não cabe à Administração esse encargo, em razão de não ser ela a empregadora, mas, sim, a tomadora do serviço. Caberá à Administração tão somente solicitar à empresa contratada relatório sobre os empregados afastados, identificando a motivação e o período de afastamento respectivo, que deverá ser acordado entre a Administração Pública e a empresa, em virtude da instabilidade vivenciada.
É possível inserir os terceirizados em trabalho remoto?
Sim. Acerca da viabilidade de inserção dos empregados terceirizados em trabalho remoto, todos os pareceres emitidos pela Advocacia-Geral da União se mostraram favoráveis à tal alternativa, desde que verificada a possibilidade de realização das atividades em regime de teletrabalho.
Nos termos do Parecer nº 106/2020, a Instrução Normativa nº 21, de 16 de março de 2020, que traz orientações aos órgãos e entidades do Sistema de Pessoal Civil da Administração Pública Federal – SIPEC, estabelece, em seu art. 6º-A, as medidas de proteção para enfrentamento da emergência de saúde pública, bem como, no art. 7º, que “Caberá ao Ministro de Estado ou à autoridade máxima da entidade, em conjunto com o dirigente de gestão de pessoas, assegurar a preservação e funcionamento das atividades administrativas e dos serviços considerados essenciais ou estratégicos, utilizando com razoabilidade os instrumentos previstos nos art. 6º-A e art. 6º-B, a fim de assegurar a continuidade da prestação do serviço público”.
Segundo o parecer, apesar de a referida Instrução Normativa ter sido expedida para os servidores com vínculo direto com a Administração Pública, não há qualquer razoabilidade em desvincular os serviços terceirizados da prestação efetiva do serviço público. Assim, tendo em vista o contexto atual, a AGU manifestou-se no sentido de que o art. 7º da Instrução Normativa nº 21 autoriza o Excelentíssimo Senhor Advogado-Geral da União a, em caráter excepcional e temporário, visando assegurar a continuidade de prestação do serviço público, adotar as medidas gerais de prevenção, cautela e redução da transmissibilidade previstas nos arts. 6º-A e B da referida IN, consistentes na adoção de regime de jornada em turnos alternados de revezamento ou em trabalho remoto, para aqueles terceirizados que exerçam atividades compatíveis com esta modalidade.
Por sua vez, o Parecer nº 63/2020[6] concluiu que, respeitados os princípios da supremacia e indisponibilidade do interesse público, bem como da eficiência, há possibilidade de ajustar o acompanhamento dos contratos terceirizados para viabilizar a execução desses contratos de forma remota. Portanto, ante a excepcionalidade da pandemia, o órgão em questão sustenta a viabilidade de se orientar a maneira de execução dos contratos terceirizados, de forma a permitir sua execução remota. Isso, contudo, deverá ser feito por meio da avaliação de pertinência, e com base na singularidade de cada atividade prestada, nos termos das já mencionadas “Recomendações Covid-19 – Contratos de Prestação de Serviços Terceirizados”.
Ademais, o Parecer nº 310/2020 também posicionou-se no sentido de que é possível o trabalho remoto por parte dos empregados terceirizados, assinalando, porém, que serão necessários ajustes na relação trabalhista em questão, devendo ser avaliado pela Administração juntamente com a empresa contratada quais atividades poderão ser exercidas por meio do teletrabalho.
Quais os reflexos salariais decorrentes da “suspensão” de contratos terceirizados e da inserção de trabalhadores em regime de teletrabalho?
Quanto aos reflexos salariais advindos da suspensão dos contratos de trabalho com os empregados terceirizados, o Parecer nº 310/2020 assinala que, no caso do terceirizado que integra grupo de risco, trata-se em verdade de hipótese de interrupção do contrato de trabalho, uma vez que há contagem do tempo de serviço, bem como manutenção dos encargos trabalhistas devidos pelo empregador, visto que os efeitos da interrupção irão atingir apenas a cláusula de prestação obreira de serviços, mantidas em vigência as demais cláusulas contratuais. Nesse caso, não se presta trabalho, tampouco se fica à disposição, mas se computa o tempo de serviço e paga-se o salário.
No âmbito do Parecer nº 106/2020 foi exarado entendimento semelhante, destacando que, conforme recomendação constante do portal de compras governamentais, é possível suspender/reduzir o efetivo de terceirizados, nos termos da Nota Técnica nº 66/2018- Delog/Seges/MP, sendo tal redução ou suspensão, contudo, efetuada sem prejuízo da remuneração. Nesse sentido, as únicas parcelas cujo pagamento pode deixar de ser efetivado são as referentes ao auxílio-alimentação e ao vale-transporte dos dias não trabalhados efetivamente.
É possível a manutenção do pagamento do benefício de vale-transporte e auxílio-alimentação para os terceirizados inseridos em regime de teletrabalho?
Para os terceirizados inseridos em regime de teletrabalho/home office, por sua vez, o Parecer nº 310/2020 dispõe que serão descontadas apenas as parcelas referentes ao vale-transporte, visto que não há custo com deslocamento a ser ressarcido ao empregado. Isso porque, nos termos da Lei nº 7.619/1987, o vale-transporte será concedido “para utilização efetiva em despesas de deslocamento residência-trabalho e vice-versa”, não havendo que se falar em pagamento desta verba no caso de ausência de deslocamento por parte do empregado terceirizado.
Quanto ao vale-alimentação e vale-refeição, uma vez que não há obrigação legal ao fornecimento de nenhum dos dois benefícios, sendo a sua concessão uma liberalidade do empregador, o terceirizado afastado poderá continuar a receber ou ter seu benefício reduzido/cessado, a depender do que estiver previsto na Convenção Coletiva de Trabalho da categoria. Destaca-se que, regra geral, os valores despendidos a título de vale-alimentação ou vale-refeição possuem natureza salarial, motivo pelo qual deve ser mantido seu pagamento em caso de execução de trabalho remoto por parte dos terceirizados.
Por fim, o Parecer nº 63/2020 se manifestou pela viabilidade jurídica de recebimento do benefício de vale-alimentação pelos colaboradores que estejam inseridos em trabalho remoto, uma vez que a prestação do serviço do terceirizado permanece ocorrendo, apenas se dá de forma remota. Nesse sentido, o terceirizado deve receber o que determina a convenção trabalhista firmada pelo sindicato da categoria, ou, caso não haja estipulação específica em convenção de trabalho, mas a empresa ofereça espontaneamente o benefício para todos os seus empregados, cabe a ela manter os benefícios mesmo que em trabalho remoto. Quanto ao vale-transporte, porém, a conclusão foi no sentido de que é incabível, visto que não há deslocamento do trabalhador em questão que enseje o pagamento da benesse.
De quem é a responsabilidade pela gestão contratual?
Do particular contratado pela Administração. Quanto à gestão do contrato, o Parecer nº 63/2020 apresentou conclusão no sentido de que cabe à Administração Pública orientar a sua execução, nos termos dos do §§ 1º e 2º do art. 67 da Lei nº 8.666/1993, cabendo ao particular, contudo, a execução propriamente dita da gestão do trabalho remoto por parte dos terceirizados, sob pena de ocorrer indevida assunção por parte da Administração da relação trabalhista entre a empresa terceirizada e seus colaboradores. Dessa forma, a gestão efetiva do trabalho remoto deve ser realizada pelo encarregado dos contratos, e não pela Administração, no intuito de não configurar a gestão direta contratual por parte desta.
É possível realizar ajustes contratuais sem a devida formalização dos termos aditivos?
Sim. No que tange à formalização dos ajustes contratuais necessários para permitir a execução do teletrabalho pelos empregados terceirizados, o parecer aduziu, ainda, acerca da possibilidade de que sejam encaminhados às empresas comunicados de ajustes contratuais, mediante justificativa no bojo do processo administrativo que evidencie o interesse público envolvido na alteração contratual, ressaltando que as alterações que gerem economicidade e melhoria na gestão e alocação de recursos não caracterizam ingerência, tendo em vista o interesse público em se evitar gastos indiretos à Administração.
O Parecer nº 106/2020, na mesma linha, apresentou conclusão no sentido de que, tendo em vista a situação excepcionalíssima e emergencial enfrentada, caso não haja tempo hábil para a formalização do termo aditivo contratual sem ampliação do risco a vidas humanas, a área competente deve juntar a devida justificativa de impossibilidade ao processo administrativo. Contudo, uma vez que a suspensão/redução constitui modificação das cláusulas contratuais, nos termos da Nota Técnica nº 66 – 2018 – Delog/Seges/MP, impõe-se a posterior formalização em termo aditivo.
A empresa prestadora de serviços terceirizados tem direito ao reequilíbrio financeiro do contrato?
Nos termos do Parecer nº 106/2020, havendo negativa da empresa quanto à determinação de suspensão/redução dos contratos por conta de questões econômico-financeiras (por exemplo, sob a alegação de que a planilha de formação de preços somente contém previsão de afastamentos legais), esta pode ter direito ao reequilíbrio financeiro do contrato. Se, comprovados, in casu, os requisitos legais necessários à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro fundada na ocorrência de álea extraordinária, nos termos do art. 65, inciso II, alínea “d” da Lei nº 8.666/93, e da Orientação Normativa nº 22/2009, da AGU, assistirá tal direito à empresa.
O Parecer nº 310/2020 apresentou posição semelhante, frisando que, uma vez comprovado o atendimento aos requisitos legais para cada hipótese de recomposição da equação econômico-financeira contratual, quais sejam, reajuste, revisão ou repactuação, assistirá tal direito à empresa terceirizada ou à própria Administração, salientando, porém, que não há como ser feita análise jurídica geral sobre a presença dos pressupostos para o restabelecimento da equação econômico-financeira do contrato administrativo, a qual deverá ser feita pela Administração em cada contrato que tenha mão de obra terceirizada, respeitadas as singularidades de cada caso.
Qual o procedimento a ser adotado para os terceirizados que se enquadram em algum grupo de risco e para aqueles que não integram grupos de risco?
Sintetizando a diferenciação de tratamento entre os empregados terceirizados que integram algum grupo de risco e aqueles que não integram, o Parecer nº 310/2020 trouxe as seguintes conclusões:
[1] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente cursando a oitava fase. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET Direito UFSC de 2017 a 2019, e atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica no campo do Direito Ambiental do Trabalho como bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC.
[2] Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46764-coronavirus-43-079-casos-e-2-741-mortes. Acesso em 12 jun. 2020.
[3] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-DAJI-terceirizados.pdf.pdf.pdf. Acesso em 12 jun. 2020.
[4] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/noticias/1264-recomendcoes-covid-19-terceirizados. Acesso em 12 jun. 2020.
[5] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-Consulta-SAA-Liberao-dos-Terceirizados.pdf. Acesso em 14 jun. 2020.
[6] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-63—COVID-19.pdf. Acesso em 14 jun. 2020.
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A Administração Pública deve pagar pelos serviços prestados por empresa contratada, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual, nas hipóteses em que, no momento da execução, havia consentimento da Administração.
A Administração deve pagar por serviços prestados, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual.
Nesta quarta-feira (03/06/2020), a 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) decidiu, por unanimidade, que a Administração Pública deve pagar pelos serviços prestados por empresa contratada, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual, nas hipóteses em que, no momento da execução, havia consentimento da Administração.
No caso concreto, deu-se provimento a recurso de apelação interposto contra sentença que havia julgado improcedente a pretensão de empresa contratada de receber a devida contraprestação por serviços que, segundo a Administração, não estavam previstos em contrato, mas que foram solicitados e autorizados à época da execução contratual. No acórdão, consignou-se que “embora prestado o serviço sem a observância das cláusulas contidas no Contrato Administrativo, bem como fora do seu objeto, sem irresignação oportuna da sociedade de economia mista contratada, é devida a contraprestação, sob pena de enriquecimento sem causa, situação vedada pelo ordenamento jurídico.”[1].
O acórdão prolatado pelo TJDFT segue entendimento consolidado na jurisprudência pátria, no sentido de que a ausência de contraprestação, pela Administração Pública, aos serviços prestados por empresa contratada, ainda que eventualmente em extrapolação do objeto contratual, configura enriquecimento sem causa. Ou seja, trata-se de uma prática ilícita, passível de ser corrigida pelo Poder Judiciário em favor dos particulares que executam serviços ou fornecem bens em favor do Poder público.
O precedente do TJDFT reconheceu o princípio geral de direito que determina a vedação ao enriquecimento sem causa, norma jurídica que inspirou a regra prevista no parágrafo único do artigo 59 da Lei Federal nº 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), que possui o seguinte teor:
Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão jurisdicional responsável por uniformizar os entendimentos das decisões judiciais de todo o Brasil, no que toca à interpretação da legislação federal, também reconhece como devida a contraprestação aos serviços realizados em favor da Administração, mesmo em caso de nulidade do contrato. Trata-se também de um desdobramento da vedação à invocação da própria torpeza em benefício da Administração[2].
Para o advogado Eduardo Schiefler, que atuou na causa julgada pelo TJDFT, o dever de ressarcir a empresa contratada persistiria mesmo se não houvesse o consentimento formal da Administração, bastando que não se opusesse à sua prestação, nos termos da jurisprudência sobre o assunto.
É de se observar, portanto, que o ordenamento jurídico protege as empresas contratadas que prestaram serviços à Administração Pública, garantindo-lhes o direito a pagamento mesmo nas hipóteses em que a realização destes serviços não respeitou as cláusulas ou fugiu ao escopo do contrato administrativo, ou até mesmo nos casos em que a Administração não consentiu formalmente para a prestação das atividades.
[1] TJDFT, Apelação Cível nº 0709122-43.2018.8.07.0018. Relator Desembargador Eustaquio de Castro, 8ª Turma. Julgado em 03/06/2020.
[2] STJ, REsp 1365600/RJ, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/05/2019.
Read MoreOs efeitos da penalidade retroagem ou não aos contratos celebrados em momento anterior ao da sanção?
Os contratos administrativos vigentes e a superveniência de sanção restritiva do direito de licitar e de contratar: os efeitos da penalidade retroagem ou não aos contratos celebrados em momento anterior ao da sanção?
Se a dúvida sobre a amplitude da penalidade de suspensão de contratar com a Administração já é bastante pertinente (se é restrita ao ente sancionador ou abrange toda a administração pública brasileira[1]), há ainda outra questão a ser enfrentada no que toca ao tema: afinal, a suspensão temporária para contratar com a Administração – ou outra penalidade análoga, como a declaração de inidoneidade ou o impedimento de licitar e de contratar – produz efeito ex nunc ou ex tunc no que toca aos contratos vigentes, celebrados em momento anterior ao da infração?
Para que seja sanada esta dúvida, deve-se, primeiramente, recorrer à Lei nº 8.666/93, a Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Em seu artigo 87, a Lei dispõe, em ordem crescente de gravidade, sobre as sanções administrativas aplicáveis aos contratados que não honrarem o contrato administrativo, quer pela inexecução parcial, quer pela inexecução total das obrigações nele avençadas.
Em específico, os incisos III e IV desse artigo tratam, respectivamente, da sanção de suspensão temporária do direito de participação em processo licitatório e impedimento de contratar com a Administração, e da declaração de inidoneidade. Leia-se:
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
[…]
III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Percebe-se, da leitura do dispositivo, que inexiste expressão na norma a qual ampare a interpretação literal de que esta sanção administrativa, em regra, possuiria efeitos retroativos.
Esta conclusão apoia-se também no princípio da legalidade, insculpido no artigo 37 da Constituição Federal e que rege toda a atividade da Administração Pública, sendo verdadeira pedra-basilar, de modo que não se pode presumir na Lei o que não está nela escrito, sobretudo em se tratando de direito sancionatório.
Assim, ao menos no que toca à eficácia direta da sanção, não há dúvidas de que seus efeitos promanam-se, em regra, prospectivamente, e não de maneira ex tunc. E desse entendimento não destoa a jurisprudência, que o aplica com tal efeito à mais grave sanção de declaração de inidoneidade, prevista no inciso IV do mesmo artigo. Leia-se:
Administrativo. Declaração de lnidoneidade para licitar e contratar com a Administração Pública. Efeitos ex nunc da Declaração de lnidoneidade: Significado. Precedente da 1.ª Seção (STJ, MS 13.964/DF, DJe de 25/05/2009).
Portanto, da Lei Federal nº 8.666/1993 extrai-se interpretação sólida e benéfica ao licitante/contratado, de que a penalidade de suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de contratar com a Administração, ou mesmo a declaração de inidoneidade, produz efeito ex nunc (isto é, prospectivo – ao futuro), e não ex tunc (isto é, retroativo – ao passado).
No entanto, reside ainda a seguinte dúvida: os efeitos da sanção são, em regra, prospectivos, não havendo o que se cogitar de anulação de contratação vigente e sem relação com o vício que levou à sanção; mas, afinal, aplicar-se-á a penalidade, mesmo que prospectivamente, de alguma forma, aos contratos e licitações vigentes à época da declaração da sanção? Ou seja, ainda que não se reconheça a aplicação retroativa, o futuro das licitações e dos contratos em andamento poderá ser afetado? Será necessário promover a rescisão contratual?
Se a questão ventilada anteriormente é de menor controvérsia, não o é esta última.
No entendimento de Marçal Justen Filho, em relação à eficácia da punição sobre contratos vigentes, “O art. 55, XIII, determina que o contratado deverá manter os requisitos de habilitação e qualificação ao longo da execução do contrato. Essa disciplina é compatível com o entendimento de que o preenchimento dos requisitos de habilitação envolvem não propriamente uma formalidade a ser cumprida somente por ocasião da licitação, mas evidenciam a capacitação do sujeito para executar a contratação. Portanto, desaparecido o requisito de habilitação durante a contratação, o contrato deve ser rescindido.”.[2]
Malgrado o entendimento do reconhecido jurista, verifica-se, em certos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU), a existência de entendimento diverso: de que as sanções impeditivas do direito de licitar e de contratar não atingem, em regra, os contratos em curso.
A propósito, veja-se acórdão prolatado pelo Plenário do TCU em setembro de 2019, relatado pelo Ministro Augusto Sherman Cavalcanti:
Voto
12. Com efeito, a despeito da proximidade das datas, a superveniência da mencionada sanção administrativa, por si só, não teria o condão de ensejar a nulidade ou a rescisão do contrato em epígrafe, uma vez que a suspensão temporária para licitar produz efeitos ex nunc, não se aplicando automaticamente aos contratos já celebrados, sobretudo em contratos outros distintos do que gerou a sanção, consoante jurisprudência predominante desta Casa.
13. Como é sabido, em sanção mais grave de declaração de inidoneidade, esta Corte seguindo jurisprudência inaugurada pelo STJ nos MS 13.101-DF, Min. Eliana Calmon, de 9/12/2008, e 13.964, Min. Teori Zavascki, de 25/5/2009, estabeleceu que seus efeitos são para o futuro ou ex nunc, nos termos dos Acórdãos 1262/2009-Plenário, Min. José Jorge, e 1340/2011-Plenário, Min. Weder de Oliveira. Mesma regra se aplica a suspensão temporária para licitar.[3]
Ademais, como se percebe do Acórdão nº 2183/2019 do TCU, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão jurisdicional responsável pela uniformização dos entendimentos judiciais em todo o Brasil, estabeleceu a regra de que a sanção de inidoneidade produz efeito para o futuro (ex nunc), de modo a não prejudicar os contratos administrativos celebrados antes da aplicação da sanção. Confira-se o acórdão paradigma e um exemplo da jurisprudência surgida a partir dele:
ADMINISTRATIVO – LICITAÇÃO – INIDONEIDADE DECRETADA PELA CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO – ATO IMPUGNADO VIA MANDADO DE SEGURANÇA.
1. Empresa que, em processo administrativo regular, teve decretada a sua inidoneidade para licitar e contratar com o Poder Público, com base em fatos concretos.
2. Constitucionalidade da sanção aplicada com respaldo na Lei de Licitações, Lei 8.666/93 (arts. 87e 88).
3. Legalidade do ato administrativo sancionador que observou o devido processo legal, o contraditório e o princípio da proporcionalidade.
4. Inidoneidade que, como sanção, só produz efeito para o futuro (efeito ex nunc), sem interferir nos contratos já existentes e em andamento.
5. Segurança denegada.[4]
ADMINISTRATIVO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. PRECEDENTE DA 1ª SEÇÃO (MS 13.964/DF, DJe DE 25/05/2009).
Segundo precedentes da 1ª Seção, a declaração de inidoneidade “só produz efeito para o futuro (efeito ex nunc), sem interferir nos contratos já existentes e em andamento” (MS 13.101/DF, Min. Eliana Calmon, DJe de 09.12.2008). Afirma-se, com isso, que o efeito da sanção inibe a empresa de licitar ou contratar com a Administração Pública (Lei 8666/93, art. 87), sem, no entanto, acarretar, automaticamente, a rescisão de contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente e em curso de execução, notadamente os celebrados perante outros órgãos administrativos não vinculados à autoridade impetrada ou integrantes de outros entes da Federação (Estados, Distrito Federal e Municípios). Todavia, a ausência do efeito rescisório automático não compromete nem restringe a faculdade que têm as entidades da Administração Pública de, no âmbito da sua esfera autônoma de atuação, promover medidas administrativas específicas para rescindir os contratos, nos casos autorizados e observadas as formalidades estabelecidas nos artigos 77 a 80 da Lei 8.666/93. […][5]
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. JULGADO DA PRIMEIRA SEÇÃO (MS 13.964/DF, DJe DE 25.5.2009). AGRAVO INTERNO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA A QUE SE NEGA PROVIMENTO. […]
2. É certo que a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça entende que a sanção prevista no art. 87, III da Lei 8.666/1993 produz efeitos não apenas no âmbito do ente que a aplicou, mas na Administração Pública como um todo (REsp. 520.553/RJ, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 10.2.2011).
3. A declaração de idoneidade não tem a faculdade de afetar os contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente ou em fase de execução, sobretudo aqueles celebrados com entes públicos não vinculados à autoridade sancionadora e pertencente a Ente Federado diverso (MS 14.002/DF, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJe 6.11.2009).
4. A sanção aplicada tem efeitos apenas ex nunc para impedir que a Sociedade Empresária venha a licitar ou contratar com a Administração Pública pelo prazo estabelecido, não gerando como consequência imediata a rescisão automática de contratos administrativos já em curso (MS 13.101/DF, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Min. ELIANA CALMON, DJe 9.12.2008).5. Agravo Interno da Sociedade Empresária a que se nega provimento.[6]
A despeito desses precedentes, é de se ressaltar que a questão ainda é controversa na doutrina e na jurisprudência, havendo tanto entendimentos favoráveis quanto contrários ao sancionado no que toca aos contratos vigentes à época da suspensão.
Inclusive, tão controversa é a questão que a jurisprudência do STJ concebeu ainda um tertium genus de aplicação normativa, aplicando uma sorte de teoria mitigada da manutenção dos contratos vigentes, relegando tal decisão à discricionariedade motivada do gestor público. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. PRECEDENTE DA 1ª SEÇÃO […]. 1. Segundo precedentes da 1ª Seção, a declaração de inidoneidade “só produz efeito para o futuro (efeito ex nunc), sem interferir nos contratos já existentes e em andamento” (MS 13.101/DF, Min. Eliana Calmon, DJe de 09.12.2008). Afirma-se, com isso, que o efeito da sanção inibe a empresa de “licitar ou contratar com a Administração Pública” (Lei 8666/93, art. 87), sem, no entanto, acarretar, automaticamente, a rescisão de contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente e em curso de execução, notadamente os celebrados perante outros órgãos administrativos não vinculados à autoridade impetrada ou integrantes de outros entes da Federação (Estados, Distrito Federal e Municípios). Todavia, a ausência do efeito rescisório automático não compromete nem restringe a faculdade que têm as entidades da Administração Pública de, no âmbito da sua esfera autônoma de atuação, promover medidas administrativas específicas para rescindir os contratos, nos casos autorizados e observadas as formalidades estabelecidas nos artigos 77 a 80 da Lei 8.666/93. […][7]
Segundo este entendimento do STJ, a regra seria a da não aplicação automática da penalidade aos demais contratos vigentes; podendo, todavia, a Administração promover medidas administrativas justificadas e específicas para rescindir estes contratos.
Vê-se daí que, embora haja fundamentos tanto para a aplicação retroativa quanto para a aplicação prospectiva das sanções previstas nos incisos III e IV do artigo 87 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o tema ainda é objeto de controvérsia, não existindo posição sedimentada, sobretudo no que concerne à jurisprudência pátria.
Se, por um lado, a interpretação conjunta do 87 com o artigo 55, inciso XIII, da Lei Federal nº 8.666/93 enseja aplicação mais severa da norma, com o escopo de estender a penalidade a todos os contratos vigentes da apenada, uma interpretação mais benéfica e principiológica do ordenamento jurídico, calcada na legalidade estrita exigida no direito sancionatório, na tipicidade e na razoabilidade dos atos administrativos, conclui pela possibilidade de limitação da penalidade somente às licitações e aos contratos futuros.
[1] Cf. “A penalidade de suspensão temporária do direito de licitar é válida apenas para o órgão/entidade que aplicou a sanção?” Disponível em: https://schiefler.adv.br/a-penalidade-de-suspensao-temporaria-do-direito-de-licitar-e-valida-apenas-para-o-orgaoentidade-que-aplicou-a-sancao/.
[2] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 8.666/1993. ed. 16., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista do Tribunais, 2014. p. 1159.
[3] TCU, Acórdão nº 2183/2019, Plenário, Relator: AUGUSTO SHERMAN, Data de Julgamento: 11/09/2019.
[4] STJ, MS 13.101/DF, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/05/2008.
[5] STJ, MS 14.002/DF, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2009.
[6] STJ, AgInt no REsp 1552078/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 30/09/2019.
[7] MS nº 14.002-DF, Relator: Ministro Teori Albino Zavascki, 1ª Seção do STJ, DJe de 06.11.2009.
Read MoreÉ possível que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais, de modo que os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
A confidencialidade de informações da empresa estatal não pode acarretar prejuízo à ampla defesa do particular
Não é segredo que a Administração Pública brasileira está vinculada e deve ter a sua atuação alinhada com o ordenamento jurídico, em especial com o que dispõe o artigo 37 da Constituição Federal. Este dispositivo, ao prever o princípio da publicidade, impõe o caráter público dos atos e documentos administrativos como regra, e o sigilo como exceção.
Por este motivo, inclusive, o princípio da publicidade permeia todas as fases dos processos de contratação pública conduzidos pelos órgãos e entidades da Administração Pública brasileira, inclusive pelas empresas estatais.
Mas há uma peculiaridade relevante. No caso das empresas estatais, especialmente quando atuam em regime de livre mercado, ou seja, em concorrência com outros players do mercado, produzem informações cuja divulgação ao público pode afetar a sua governança corporativa, oferecer vantagens competitivas a outros agentes econômicos, ou ainda, impactar a competitividade de futuras licitações ou os interesses de acionistas minoritários. A legislação é sensível a esta questão e admite, em algumas hipóteses, a classificação de confidencialidade a informações de empresas estatais, vide, por exemplo, o artigo 22 da Lei de Acesso à Informação (Lei Federal nº 12.527/2011).
Especificamente no âmbito das contratações públicas, o regramento jurídico aplicável às empresas estatais também é mais permissivo em relação à sigilosidade de informações. Por exemplo, o artigo 34 da Lei Federal nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) estabelece, em caráter excepcional, o sigilo aos orçamentos estimados das licitações conduzidas pelas empresas estatais. Ou seja, nessa hipótese, a própria lei impõe o sigilo como regra, condicionando a publicidade do valor estimado do objeto da licitação à exigência de justificativa na fase de preparação. Inverte-se, portanto, a lógica tradicional de publicidade como regra nos processos de contratações públicas – e, em verdade, de toda a atividade administrativa.
A rigor, o principal motivo teórico que justificou a opção legislativa pela não divulgação do orçamento nas licitações empreendidas pelas empresas estatais refere-se a uma tentativa de evitar que os licitantes precifiquem as suas propostas de forma a orbitar o orçamento estipulado pela Administração, mitigando-se, assim, o risco de contratação por preços superiores ao valor de mercado. Mas questões relacionadas à governança corporativa da empresa e o impacto à competitividade de futuros certames também justificaram a criação desta regra.
Acontece que a possibilidade de que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais traz à tona um importante ponto que merece reflexão: os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
Isto é, o sigilo de informações produzidas pela empresa estatal nos processos de contratação pública empreendidos pode obstaculizar, de alguma forma, a defesa plena do licitante. Imagine-se, por exemplo, que a empresa estatal suspeita que determinado produto ou serviço foi oferecido com sobrepreço pelo licitante ou pela empresa já contratada, mas ao mesmo tempo se nega a revelar os documentos que embasam esta sua suspeita, que, se confirmada, poderá trazer obrigações de ressarcimento, ou mesmo penalidades, ao particular.
Nesses casos, o que deve prevalecer?
O Tribunal de Contas da União (TCU) abordou o tema e trouxe luzes à questão, esclarecendo que, apesar de existir respaldo legal para o sigilo de documentos de empresa estatal, as leis que admitem esta operação são normas infraconstitucionais e, portanto, não podem ferir os princípios dispostos na Constituição Federal de 1988. Confira-se o que julgou o TCU no Acórdão nº 423/2019, do Plenário:
Relatório
49. Embora a referida Sociedade de Economia Mista tenha declarado que alguns documentos acostados a estes autos sejam confidenciais, verifica-se a plena possibilidade de extensão da guarda do sigilo às partes do processo para que estas possam exercer, de forma completa, o seu direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, sem, contudo, retirar desses documentos o atributo de sigilo perante terceiros, impondo aos que tiverem acesso às informações sigilosas o cuidado necessário à sua guarda, sob pena de responsabilização por negligência no tratamento dessas informações.
50. A Carta Magna, em seu art. 5º, inciso LV, garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
51. De fato, nos processos em geral, a restrição de acesso ao conteúdo dos autos pode embaraçar o exercício do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa em sua plenitude, uma vez que cria assimetrias de informação entre os interessados e prejudica a bilateralidade do processo, dificultando, em última análise, a aclaração das questões apontadas nos autos. […]
64. […] Por sua vez, as empresas estatais devem se submeter aos princípios estabelecidos na Carta Magna, dentre os quais, o da transparência, que exsurge de diversos dispositivos da Constituição Federal, a exemplo do princípio da publicidade, grafado no art. 37, caput, ou o direito de obter informações de seu interesse junto a órgãos públicos, conforme preconiza o art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988.
A própria Carta da República prevê as hipóteses em que o direito à informação é relativizado, como quando o sigilo é imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5°, inciso XXXIII parte final), ou a fim de preservar o direito à intimidade (art. 5°, inciso LX).
Por óbvio, eventual classificação de sigilo de informações conferidas por legislação infraconstitucional, a exemplo do sigilo comercial, não pode obstaculizar o exercício de garantias asseguradas pelo manto constitucional.
Na espécie, a estatal manifesta preocupação com o fato de o Consórcio ter acesso a determinadas informações, especialmente, as do seu orçamento sigiloso.
Em situações análogas à que ora aqui se examina, esta Corte de Contas tem decidido que o sigilo imposto ao orçamento da estatal, em sua fase interna, não pode ser oposto ao exercício do contraditório e da ampla-defesa, a exemplo do que foi decidido nos Acórdãos 1.854/2015 e 2.254/2016, ambos do Plenário. (…)
VOTO
10. Além da devida observância ao princípio da publicidade (artigo 37, caput, da Constituição de 1988), há interesse público de que a apreciação de matérias como essa não seja afastada do escrutínio social, e este Tribunal não tem mais acatado o procedimento antes costumeiro de a Petrobras apontar, indiscriminadamente, sigilo das informações prestadas com a simples justificativa de que “os dados apresentados podem representar vantagem competitiva a outros agentes econômicos”, sem indicação específica de quais informações conteriam tal sensibilidade, ou de quais vantagens poderiam ser auferidas por terceiros que tomassem ciência desses dados (Acórdão 3.343/2015 – Plenário, da relatoria do ministro Vital do Rêgo). […]
14. Vale dizer que a interpretação de que o sigilo conferido a documentos constantes de procedimentos licitatórios, como o orçamento da estatal, não pode ser usado para impedir o exercício do contraditório e da ampla defesa não configura precedente isolado, mas refletiu evolução da jurisprudência sobre o tema, como se vê, por exemplo, nos Acórdãos 248/2016, 2.005 e 2.014/2017 – Plenário (relatores os ministros Vital do Rêgo, Benjamin Zymler e Bruno Dantas, respectivamente). […]
(TCU, Acórdão 423/2019, Plenário. Relatora Ministra Ana Arraes, julgado em 27/2/2019)
Nesse sentido, embora entenda que o ordenamento jurídico brasileiro admite o sigilo de documentos inseridos nos processos administrativos dedicados às contratações públicas de empresas estatais, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que, se houver conflito, deve prevalecer o direito à ampla defesa e ao contraditório das empresas particulares. Inclusive, previu-se a possibilidade de que o sigilo seja mantido em relação a terceiros, facultando-se, todavia, o pleno acesso pela empresa juridicamente interessada.
Em outras palavras, o que se reconheceu neste caso é que o sigilo das informações impediria o exercício do contraditório e da ampla defesa da empresa contratada, de modo que a confidencialidade das informações não poderia prevalecer.
O eventual sigilo de documentos das empresas estatais, portanto, não é absoluto. Aliás, como exemplifica o § 3º do artigo 34 da Lei das Estatais, ainda que a informação relativa ao valor estimado do objeto da licitação tenha caráter sigiloso, ela “será disponibilizada a órgãos de controle externo e interno, devendo a empresa pública ou a sociedade de economia mista registrar em documento formal sua disponibilização aos órgãos de controle, sempre que solicitado”. Além disso, especificamente no caso do orçamento estimado, a recomendação é que tal informação seja revelada ao público após a etapa de julgamento das propostas dos licitantes, exercendo apenas uma função temporária de promover propositalmente esta assimetria informacional durante a licitação.
Portanto, diante de uma situação concreta de confrontamento entre o direito de defesa e o sigilo de informações mantidas pela empresa estatal, é preciso analisar as peculiaridades do caso e o objetivo da norma legal, a fim de verificar se a manutenção do sigilo impediria ou não a defesa do particular. A depender da conclusão a ser tomada nessa análise, o sigilo pode ser levantado para que o contraditório e a ampla defesa sejam desempenhadas em sua plenitude.
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