Se a Administração Pública deixar de pagar por mais de 90 dias, a empresa contratada não precisa de autorização judicial para suspender a execução das suas obrigações contratuais.
Enunciado 6 – O atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional.
As licitações e contratos administrativos firmados pela Administração Pública direta e por parcela[1] da Administração indireta são regidos, regra geral, pela Lei Federal nº 8.666/1993, que estabelece normas gerais pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Esta Lei prevê, em seu artigo 78, diversas hipóteses que constituem motivo para a rescisão do contrato administrativo celebrado com a Administração Pública. Para o que interessa ao assunto que se está abordando, vale transcrever in verbis o inciso XV do artigo 78:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
[…]
XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;
A regra é clara: se o Poder Público não cumprir com a contraprestação financeira acordada em contrato, por mais de 90 dias, a empresa contratada está autorizada a rescindir o contrato, o que só pode ser realizado por decisão judicial, ou a suspender o cumprimento das suas obrigações, ou seja, autoriza-se a suspensão do contrato até o cumprimento por parte da Administração. Este dispositivo trata de ferramenta extremamente valiosa para as empresas contratadas, as quais estão situadas em uma posição de fragilidade jurídica em comparação às prerrogativas da Administração em matéria de contrato administrativo.
A bem da verdade, o artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993 positiva e atrai ao campo das licitações e contratos administrativos a oponibilidade da exceção do contrato não cumprido, também conhecida como exceptio non adimpleti contractus.
Em matéria de direito privado, esta hipótese está prevista nos artigos 476 e 477 do Código Civil[2], os quais vedam a possibilidade de que algum dos contratantes exija, antes de cumprida a sua obrigação, o implemento da do outro. Já no que toca ao campo dos contratos administrativos, MARÇAL JUSTEN FILHO entende que “A exceptio non adimpleti contractus adquire configuração específica no campo dos contratos administrativos”, sendo admitida a recusa do contratado em desempenhar as suas obrigações “quando a Administração incorrer em atraso superior a noventa dias do pagamento de obras, serviços ou fornecimento já realizados (art. 78, XV)”[3].
Por óbvio, a hipótese de rescisão/suspensão contratual ventilada não é aplicada sem que haja controvérsia sobre os seus efeitos e, especialmente, sobre a possibilidade de que a empresa contratada simplesmente decida, proativamente, suspender a execução das suas obrigações contratuais.
Com o objetivo de trazer mais clareza a esse instituto, tão importante para fortalecer a segurança jurídica no âmbito dos contratos administrativos e evitar que os contratados sejam obrigados a manter execução contratual em franco prejuízo, este tema foi objeto de discussão na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, tendo sido aprovado o Enunciado 6 com o seguinte teor:
Enunciado 6
O atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional.
De acordo com o texto do enunciado aprovado, que repete em boa parte o conteúdo do dispositivo legal, um detalhe, que já foi objeto de controvérsia, torna-o importante ferramenta para tornar mais clara e efetiva a incidência da hipótese do inciso XV do artigo 78 da Lei nos casos concretos: a prescindibilidade de que a empresa contratada obtenha autorização judicial para suspender o cumprimento das suas obrigações contratuais.
Ao que parece, o Enunciado 6 busca consolidar ainda mais o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no paradigmático julgamento do REsp nº 910.802/RJ, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, segundo o qual a Lei nº 8.666/1993 não exige a obtenção de provimento jurisdicional para que o contrato esteja autorizado a optar pela suspensão da execução contratual. Confira-se:
[…] 4. Com o advento da Lei 8.666/93, não tem mais sentido a discussão doutrinária sobre o cabimento ou não da inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a Administração, ante o teor do art. 78, XV, do referido diploma legal. Por isso, despicienda a análise da questão sob o prisma do princípio da continuidade do serviço público.
5.Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito.
6.Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido.
(STJ, REsp 910.802/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/06/2008)
Como era de se esperar, tendo em vista a função do STJ de uniformizar as interpretações dos Tribunais brasileiros atinentes à legislação federal, este acórdão balizou o entendimento de que o provimento jurisdicional é desnecessário nessas hipóteses. Cita-se como exemplo mais um julgado do STJ, que faz referência expressa ao REsp nº 910.802/RJ:
[…] 10. O Superior Tribunal de Justiça consagra entendimento no sentido de que a regra de não-aplicação da exceptio non adimpleti contractus, em sede de contrato administrativo, não é absoluta, tendo em vista que, após o advento da Lei 8.666/93, passou-se a permitir sua incidência, em certas circunstâncias, mormente na hipótese de atraso no pagamento, pela Administração Pública, por mais de noventa dias (art. 78, XV). A propósito: AgRg no REsp 326.871/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 20.2.2008; RMS 15.154/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 2.12.2002. Além disso, não merece prosperar o fundamento do acórdão recorrido de que as empresas necessitariam pleitear judicialmente a suspensão do contrato, por inadimplemento da Administração Pública. Isso, porque, conforme bem delineado pela Ministra Eliana Calmon no julgamento do REsp 910.802/RJ (2ª Turma, DJe de 6.8.2008), “condicionar a suspensão da execução do contrato ao provimento judicial, é fazer da lei letra morta”. […]
11.Recurso especial parcialmente provido, apenas para afastar a multa aplicada em sede de embargos declaratórios.
(STJ, REsp 879.046/DF, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/05/2009, DJe 18/06/2009)
A jurisprudência dos demais Tribunais brasileiros está consoante o entendimento do STJ, como se verifica, exemplificativamente, da seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), que afastou multa imposta à empresa contratada pela Administração por ter interrompido a execução das suas obrigações:
[…] 3. O art. 78, inciso XV, da Lei 8.666/93 é claro ao consignar que é motivo de rescisão do contrato o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração, assegurando ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação.
4.Restando demonstrado que houve a entrega dos materiais médico-hospitalares pela apelada, conforme contratado, e que o atraso no pagamento, em período superior a 90 dias, se deu por responsabilidade exclusiva da Administração Pública, impõe-se o afastamento da multa aplicada, devendo ser restituída a glosa da fatura de pagamento pela medicação fornecida.
5.Não há necessidade de pronunciamento jurisdicional para suspensão de fornecimento de insumos à Administração Pública. No caso em análise, no mesmo dia em que foi recebida a nota de emprenho, a fornecedora notificou extrajudicialmente o Distrito Federal quanto à impossibilidade de cumprir com o prazo devido ao inadimplemento do ente estatal.
6.Recurso conhecido e desprovido. Sentença mantida.
(TJ-DF 07058804220198070018 DF 0705880-42.2019.8.07.0018, Relator: ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO, Data de Julgamento: 27/05/2020, 5ª Turma Cível)
Os demais Tribunais brasileiros caminham no mesmo sentido, como se vê dos julgados dos Tribunais de Justiça dos Estados de Santa Catarina (TJSC), no qual se reconheceu que “Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito” (MS 4006820-94.2018.8.24.0000, julgado em 21/05/2013), e do Rio de Janeiro (TJRJ), que reconheceu que “PODE O CONTRATADO, LICITAMENTE, SUSPENDER A EXECUÇÃO DO CONTRATO, SENDO DESNECESSÁRIA, NESSA HIPÓTESE, A TUTELA JURISDICIONAL PORQUE O ART. 78, XV, DA LEI 8.666/93 LHE GARANTE TAL DIREITO” (AI: 00508620920198190000, , Data de Julgamento: 11/02/2020).
Sobre o tema, são esclarecedores os ensinamentos de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, a qual reconhece a licitude da suspensão contratual na hipótese em que a Administração não proceda ao pagamento em prazo superior a 90 dias:
A Lei nº 8.666/93 previu uma hipótese em que é possível, com critério objetivo, saber se é dado ou não ao particular suspender a execução do contrato. Trata-se da norma do artigo 78, inciso XV, segundo a qual constitui motivo para rescisão do contrato “o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimentos, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação”.
Isto significa que, ultrapassados os 90 dias sem que a Administração efetue os pagamentos em atraso, é dado ao contratado, licitamente, suspender a execução do contrato.[4]
Assim, é de se observar que a doutrina caminha no sentido de que a obtenção de provimento jurisdicional não é requisito indispensável para que o contratado oponha a exceção de contrato não cumprido.
Nesse sentido, a tese fixada no Enunciado 6 aprovado na Jornada pacifica o entendimento de que, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro (legislação, jurisprudência e doutrina), a empresa contratada está autorizada a suspender a execução das suas obrigações contratuais quando a Administração Pública deixar de realizar o pagamento devido por mais de 90 dias, sem que, para tanto, precise obter provimento jurisdicional.
[1] As licitações e contratos pertinentes às empresas públicas e às sociedades de economia mista são reguladas pela Lei Federal nº 13.303/2016, o que, todavia, não impede a aplicação do Enunciado 6 aos contratos regidos por esta norma.
[2] Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 559.
[4] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
Read MoreA consolidação do entendimento por meio de enunciado foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
Enunciado 5 – O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A Lei nº 13.019/2014, também conhecida como o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, é a norma legal que dispõe sobre as relações de parceria entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil – OSC e que estabelece os parâmetros que devem ser observados pelos entes públicos e privados, em prol de atribuir às parcerias uma maior transparência, eficiência e controle.
Como se vê do seu artigo 1º, esta Lei se presta a instituir “normas gerais para as parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação.”.
Do artigo 2º da norma, é possível observar uma série de conceitos atinentes à matéria, buscando delimitar com acurácia as definições e institutos que são legalmente regulados. Por exemplo, o conceito de organização da sociedade civil: que é fundamental para a compreensão deste texto e que está previsto no inciso I do artigo 2º, in verbis:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
I – organização da sociedade civil: (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999 ; as integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à pobreza e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social. (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
Acontece que, como é comum no Direito brasileiro, muitos conceitos constantes de dispositivos normativos, pela amplitude semântica de sua redação, são responsáveis por causar debates jurisprudenciais e acadêmicos sobre a forma considerada correta de interpretá-los.
Não é diferente com a definição trazida pelo artigo 2º, inciso IV, sobre quem deve ser considerado “dirigente” de uma OSC:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
IV – dirigente: pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil, habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
Veja-se que o atual conceito trazido pela Lei nº 13.019/2014 é aquele definido pela alteração imposta pela Lei nº 13.204/2015. Anteriormente, quando da edição do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, o inciso IV do artigo 2º era simplório, prevendo apenas que é considerado dirigente a “pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil”.
Ou seja, com a adição textual da alteração normativa, detalhou-se o conceito para evidenciar que dirigente é a pessoa que, tendo poderes de administração, gestão ou controle, está “habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros”.
Contudo, a controvérsia conceitual ainda persistiu, residindo principalmente na possibilidade de se considerar membros de alguns órgãos específicos das organizações da sociedade civil (como os Conselhos Consultivo, Fiscal ou Curador) como “dirigentes” para fins da Lei nº 13.019/2014. Esta tese, inclusive, tornava-se ainda mais forte nas hipóteses em que o próprio estatuto social da OSC define como “dirigentes” os membros desses conselhos.
Em razão da importância do assunto, este tema foi proposto para discussão no âmbito da 1ª Jornada de Direito Administrativo do Conselho de Justiça Federal, tendo sido aprovado e publicado como o Enunciado 5:
Enunciado 5
O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
O texto enunciativo foi aprovado após intensos debates por especialistas em Direito Administrativo provenientes de todo o Brasil, de forma que entrou-se em consenso de que a definição de “dirigentes de organização da sociedade civil, estabelecido pelo artigo 2º, inciso IV, da Lei nº 13.019/2014, diz respeito àqueles profissionais com atuação efetiva na gestão executiva da entidade, não abarcando profissionais que exerçam funções meramente fiscalizadoras ou consultivas, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A consolidação do entendimento por meio de enunciado aprovado na 1ª Jornada de Direito Administrativo foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
A importância da segurança jurídica, especificamente quanto ao que versa o Enunciado 5, pode ser aferida dos ensinamentos de Marçal Justen Filho, segundo o qual a atuação das OSC deve ser regulada pelas regras do Direito Administrativo:
As atividades administrativas desenvolvidas fora dos limites da estrutura estatal devem ser disciplinadas pelo direito. A generosidade inerente à atuação não estatal de interesse coletivo não dispensa controle jurídico. A relevância da função não produz imunidade ao direito.
Existindo organizações estruturadas de modo estável e permanente para promover a satisfação de interesses coletivos e os direitos fundamentais, haverá a aplicação de princípios do direito administrativo.
Lembre-se, ademais, que as organizações da sociedade civil desenvolvem atuação que, muitas vezes, é onerosa – mas não na acepção de refletir uma organização empresarial privada. Trata-se da percepção de vantagens provenientes de cofres públicos, de recebimento de doações e assim por diante. Ainda que essas entidades não visem ao lucro, sua atuação é custeada por recursos públicos e privados. A gestão desses recursos se sujeita aos mesmos instrumentos de controle aplicáveis à atuação estatal.
Até é possível que, no futuro, a atividade administrativa não estatal seja disciplinada por um ramo especial do direito. Até que tal se configure, é necessário estender o direito administrativo para esse relevante segmento de atividades de interesse coletivo.[1]
A exata delimitação dos indivíduos que pertencem ao quadro das organizações da sociedade civil é relevante, também, porque a própria Lei nº 13.019/2014 prevê impedimentos de celebração de parceria entre Administração e OSC nos casos em que a entidade possuir, como dirigente, pessoa que ocupa determinados cargos ou que foi condenada pela prática de determinados atos. É o que dispõe o artigo 39:
Art. 39. Ficará impedida de celebrar qualquer modalidade de parceria prevista nesta Lei a organização da sociedade civil que: […]
III – tenha como dirigente membro de Poder ou do Ministério Público, ou dirigente de órgão ou entidade da administração pública da mesma esfera governamental na qual será celebrado o termo de colaboração ou de fomento, estendendo-se a vedação aos respectivos cônjuges ou companheiros, bem como parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o segundo grau; […]
VII – tenha entre seus dirigentes pessoa:
a) cujas contas relativas a parcerias tenham sido julgadas irregulares ou rejeitadas por Tribunal ou Conselho de Contas de qualquer esfera da Federação, em decisão irrecorrível, nos últimos 8 (oito) anos;
b) julgada responsável por falta grave e inabilitada para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, enquanto durar a inabilitação;
c) considerada responsável por ato de improbidade, enquanto durarem os prazos estabelecidos nos incisos I, II e III do art. 12 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.
§ 1º Nas hipóteses deste artigo, é igualmente vedada a transferência de novos recursos no âmbito de parcerias em execução, excetuando-se os casos de serviços essenciais que não podem ser adiados sob pena de prejuízo ao erário ou à população, desde que precedida de expressa e fundamentada autorização do dirigente máximo do órgão ou entidade da administração pública, sob pena de responsabilidade solidária.
§ 2º Em qualquer das hipóteses previstas no caput, persiste o impedimento para celebrar parceria enquanto não houver o ressarcimento do dano ao erário, pelo qual seja responsável a organização da sociedade civil ou seu dirigente. […]
§ 5º A vedação prevista no inciso III não se aplica à celebração de parcerias com entidades que, pela sua própria natureza, sejam constituídas pelas autoridades referidas naquele inciso, sendo vedado que a mesma pessoa figure no termo de colaboração, no termo de fomento ou no acordo de cooperação simultaneamente como dirigente e administrador público
O tema se torna ainda mais essencial quando se verifica que o Tribunal de Contas da União (TCU) possui entendimento consolidado de que é plenamente válida a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. É o que se verifica do Acórdão nº 1908/2019 do Plenário:
2. A tomada de contas especial foi instaurada em razão da omissão no dever de prestar contas da aplicação dos recursos que lhe foram repassados pelo Incra por força do Convênio CRT/RN/40.000/2006, que teve por objeto a prestação de assessoria social, técnica e jurídica a famílias acampadas, com vistas ao alcance das metas propostas no Plano Regional de Reforma Agrária para o Rio Grande do Norte.
3. Em sua peça recursal, o recorrente alega, em suma, a prescrição da pretensão de ressarcimento, questiona a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil e apresenta elementos novos com o objetivo de prestar contas e comprovar a execução das despesas (peças 62/73). […]
14. Da mesma forma, não merece prosperar o argumento de que é inconstitucional a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. Esta Corte de Contas já firmou entendimento contrário por meio da Súmula TCU 286, que assim se pronuncia: “A pessoa jurídica de direito privado destinatária de transferências voluntárias de recursos federais feitas com vistas à consecução de uma finalidade pública responde solidariamente com seus administradores pelos danos causados o erário na aplicação desses recursos”.[2]
Voltando-se ao conteúdo Enunciado 5, é de se notar que a sua redação repete como elemento caracterizador da figura do “dirigente” o exercício de atividades de administração, gestão e controle da organização, além dos poderes de representação da pessoa jurídica perante terceiros, exigindo que o profissional possua esses poderes para que lhe seja atribuído a roupagem da referida figura legal.
Nesse sentido, é ínsito apontar que a Lei decidiu por caracterizar o dirigente a partir do escopo das funções executivas a que esse se dedica, esclarecendo que o dirigente da OSC, nos termos da Lei, corresponde àquele profissional que é responsável pela administração, gestão e controle executivo da entidade, não abrangendo outros cargos que exerçam funções substancialmente distintas.
Essa definição, inclusive, está em conformidade com o entendimento da Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP e com o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), que definem, respectivamente, o dirigente como “pessoa física que detenha poderes de administração, gestão e controle da organização da sociedade civil”[3] e “pessoas que serão responsáveis pela direção da associação”[4].
Logo, conclui-se que quaisquer cargos de órgãos das organizações de sociedades civis que não exerçam atividades de gestão executiva estão fora do espectro conceitual de “dirigentes”, ainda que essa seja a designação atribuída pelo estatuto dessas entidades.
Como a Lei escolheu definir o dirigente pelo escopo das funções que este realiza, pouco importa o nome atribuído pelo estatuto a algum cargo de um órgão meramente fiscalizador ou consultivo, sendo determinante, para fins legais, apenas a capacidade de poder executivo e de representação que determinado cargo atribui, na prática, a um profissional dentro da estrutura da organização da sociedade civil.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 129-130.
[2] TCU, Acórdão nº 1908/2019, Plenário. Relator: ANA ARRAES, Data de Julgamento: 14/08/2019.
[3] OAB/SP, Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor. Guia Prático da Lei de Parcerias: Lei nº 13.019/2014. Outubro de 2017. p. 13.
[4] TCE/SP. Manual Básico de Repasses Públicos ao Terceiro Setor. Ano 2016. p. 20. Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/publicacoes/repasses_publicos_terceiro_setor.pdf. Acesso em 23 out. 2020.
Read MoreO enunciado aprovado é categórico ao destacar a necessidade de uma seleção imparcial quando ocorrer a restrição do número de participantes no Procedimento de Manifestação de Interesse - PMI, visando-se, assim, o atendimento ao disposto no artigo 37, caput, como também o efetivo alcance do interesse público.
Enunciado 1 – A autorização para apresentação de projetos, levantamentos, investigações ou estudos no âmbito do Procedimento de Manifestação de Interesse, quando concedida mediante restrição ao número de participantes, deve se dar por meio de seleção imparcial dos interessados, com ampla publicidade e critérios objetivos.
O Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI é um procedimento consultivo-colaborativo, regido no âmbito federal pelo Decreto nº 8.428/2015, por meio do qual a Administração Pública possibilita que particulares elaborem e aprofundem estudos e projetos que servirão de parâmetro para uma projetada contratação pública, geralmente na área de delegação de utilidades públicas (concessões, PPPs, etc)[1].
Este diálogo público-privado tem como objetivo facilitar o planejamento da contratação pública para a Administração Pública, pois permite que haja a participação ativa dos próprios interessados em atendê-la, os quais, sendo especialistas no tema demandado, possuem a expertise necessária para identificar a demanda e adequar o projeto a esta, minimizando custos e riscos.
De tal modo, embora não seja vinculativo e não enseje qualquer direito de preferência em uma licitação pública futura, surge o questionamento sobre o possível favorecimento do interessado que participa solitariamente deste procedimento administrativo, e não em conjunto com outros potenciais concorrentes.
Em um primeiro momento, o Decreto Federal nº 8.428/2015, que regulamenta este procedimento no âmbito federal, vedava a aposição de qualquer restrição sobre o número de interessados em participar da elaboração dos projetos no Procedimento de Manifestação de Interesse. Ou seja, o decreto continha a regra de que qualquer interessado poderia remeter o seu projeto, sem a possibilidade de a Administração estipular um número limitado de participantes. Assim, em primeiro momento, essa vedação à restrição ocorria porque entendida como teoricamente benéfica, visto que a elaboração de diversos projetos e a participação de diversos interessados poderiam facilitar a elaboração de um projeto final mais consistente e/ou dificultaria um possível favorecimento de determinado interessado nesta etapa preliminar de planejamento contratual.
Contudo, na prática, essa vedação à limitação de participantes acabou por gerar uma situação indesejada: nos casos em que havia um grande número de projetos apresentados, a Administração Pública deparou-se com dificuldades para analisá-los, tornando-se até mesmo ineficaz em sua análise, assim como muitos projetos apresentados eram precários, o que, isoladamente ou em conjunto, não atendiam ao objetivo deste procedimento.
Diante deste contexto, o Decreto Federal nº 10.104/2019 alterou o inciso I do artigo 6º do Decreto Federal nº 8.428/2015, de forma a possibilitar que a Administração Pública, analisado o caso em concreto, limite o número de interessados no Procedimento de Manifestação de Interesse. In verbis:
Art. 6º A autorização para apresentação de projetos, levantamentos, investigações e estudos:
I – poderá ser conferida com exclusividade ou a número limitado de interessados; (Redação dada pelo Decreto nº 10.104, de 2019)
O objetivo de tal alteração é que a Administração Pública, podendo limitar o número de interessados, valha-se de tal faculdade, quando necessário, para deter maior capacidade institucional na análise dos projetos apresentados no PMI.
Essa limitação do número de interessados, contudo, acentua o risco de desvirtuamento do procedimento e esbarra também no critério de escolha dos interessados.
O decreto trouxe a possibilidade jurídica de restringir o número de participantes, mas como escolher quem irá participar? Pode a Administração Pública escolher arbitrariamente quem deseja que participe?
Esta temática foi objeto de debates na 1ª Jornada de Direito Administrativo, do Conselho da Justiça Federal, ocorrida em agosto de 2020. Na ocasião, o conjunto de especialistas em Direito Administrativo, que participou do evento, formou consenso em aprovar o seguinte enunciado:
Enunciado 1
A autorização para apresentação de projetos, levantamentos, investigações ou estudos no âmbito do Procedimento de Manifestação de Interesse, quando concedida mediante restrição ao número de participantes, deve se dar por meio de seleção imparcial dos interessados, com ampla publicidade e critérios objetivos.
Portanto, a comunidade jurídica dedicada ao Direito Administrativo formou consenso no sentido de que, embora a opção em adotar o Procedimento de Manifestação de Interesse seja um ato discricionário da Administração Pública, a escolha dos participantes deve necessariamente ser realizada a partir de uma seleção imparcial, com critérios objetivos e ampla publicidade.
Este entendimento era defendido por Gustavo Schiefler, em sua obra Diálogos Público-Privados, conforme:
“Assim, se, por alguma razão justificada, o objetivo da administração pública é selecionar um único participante para a elaboração colaborativa dos estudos técnicos que darão origem a determinado projeto, não poderá simplesmente analisar os diferentes candidatos e motivar a sua escolha de exclusividade a partir de critérios racionais, adequados e objetivos. Há um elemento essencial para essa operação, que não pode ser afastado: os critérios de eleição devem ser previamente conhecidos pelos interessados, o que remete, justamente, ao lançamento de um edital e à promoção de um processo seletivo análogo à licitação pública. Esse é o procedimento-padrão previsto na legislação para os casos em que é preciso escolher apenas um dentre vários potenciais fornecedores ou prestadores de serviços.
Ainda que não se pretenda a contratação do particular, mas somente a concessão de uma autorização qualificada para que realize estudos e projetos, haverá de ser conduzido um chamamento público para a sua eleição, sob pena de violação do princípio da isonomia e da impessoalidade. E este chamamento público, que conterá as regras de qualificação e seleção, terá de ser necessariamente aberto a todo o conjunto de eventuais interessados. Não se descarta, na hipótese dos diálogos prévios às licitações públicas, que excepcionalmente apenas um particular seja eleito para a interlocução; essa seleção, no entanto, como regra, deverá ser antecedida de um procedimento aberto e isonômico. Sendo viável a competição, não há como obter uma decisão legítima de exclusão de participantes sem que haja o confronto entre os diferentes potenciais interessados – especialmente em diálogos público-privados cujo resultado pode conferir benefícios econômicos substanciais, como é o caso do procedimento de manifestação de interesse (PMI), em que o participante pode obter o ressarcimento pelos dispêndios incorridos nos estudos, que podem chegar a cifras milionárias.”[2]
Diante deste entendimento, nos casos onde for adotado o Procedimento de Manifestação de Interesse e a Administração Pública optar por limitar o número de participantes, é imperioso que seja prestigiado o princípio da impessoalidade na escolha dos participantes, mediante procedimento objetivo e dotado de publicidade, similar, embora simplificado, à lógica adotada no âmbito das próprias licitações públicas, regida pela Lei Federal nº 8.666/1993.
Vale ressaltar que este tema já foi objeto de preocupação das instâncias técnicas do Tribunal de Contas da União (TCU), como se verifica do relatório do Acórdão nº 1096/2019 – Plenário:
Tratam os autos de acompanhamento do primeiro estágio de desestatização, relativo à concessão do lote rodoviário que compreende os segmentos das rodovias BR-364/365/GO/MG entre as cidades de Jataí/GO e Uberlândia/MG, segundo o rito da Instrução Normativa-TCU 46/2004.
[…]
367. Nesse contexto, de viabilizar um novo corredor logístico pela BR-364, foi lançado o Edital de Chamamento Público nº 3/2014 com vistas à elaboração dos estudos para a concessão da BR-364/GO/MG, no trecho entre o entroncamento com a BR-060 (A) (Jataí) até o entroncamento com a BR-153 (A) / 262 (A) (Comendador Gomes) […].
369. No entanto, a única empresa que levou adiante a elaboração dos estudos, por meio do procedimento de manifestação de interesses (PMI) decorrente do Edital de Chamamento Público 3/2014, privilegiou o corredor logístico preexistente (BR-364/365/GO/MG) em detrimento da alternativa que permitiria reduzir os custos logísticos (BR-364/GO/MG) entre as áreas produtoras do centro-oeste e os polos consumidores e exportadores do sudeste.
370. Ocorre que a empresa responsável pelos estudos (EGP) faz parte do grupo empresarial que administra a concessão da BR-050/GO/MG (MGO Rodovias) e, para os interesses desse grupo (peça 60) , a viabilização de um corredor logístico alternativo pela BR-364/GO/MG teria efeitos negativos para seu resultado, uma vez que sua concessão capta o tráfego proveniente do corredor logístico atual (BR-364/365/GO/MG) , a partir de Uberlândia/MG, com direção ao Estado de São Paulo, passando por duas praças de pedágio.
371. Há que se registrar, por conseguinte, a existência de conflito de interesses no processo de escolha dos trechos rodoviários que constaram dos estudos de viabilidade apresentados ao TCU e, ainda, que o corredor logístico da BR-364/365/GO/MG, a ser contemplado com investimentos de aproximadamente R$ 2 bilhões (ref. julho/2016) ao longo de trinta anos, não é aquele que otimiza a cadeia logística nacional, de acordo com o planejamento governamental existente para o setor de transportes.[3]
É nesse sentido que o enunciado aprovado é categórico ao destacar a necessidade de uma seleção imparcial quando ocorrer a restrição do número de participantes, visando-se, assim, o atendimento ao disposto no artigo 37, caput, como também o efetivo alcance do interesse público.
Outro ponto a ser destacado, sobre a necessidade de isonomia na escolha dos interessados, é o fato de que essa restrição deve ser encarada como uma exceção à regra de ampla abertura à participação de interessados, uma vez que a diminuição desse universo poderá acarretar uma diminuição na competitividade em uma licitação futura, baseada nos projetos apresentados, fato que reforça a necessidade de adoção de um procedimento objetivo e isonômico entre os interessados.
Nesse sentido, a tese fixada no Enunciado 1 da 1ª JDA do Conselho da Justiça Federal consolida o entendimento de que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, quando ocorrer a restrição de interessados no Procedimento de Manifestação de Interesse, a Administração Pública deverá adotar critérios objetivos e isonômicos na escolha dos participantes.
[1] Conforme conceitua Gustavo Schiefler, o PMI é um procedimento administrativo consultivo “por meio do qual a Administração Pública organiza em regulamento a oportunidade para que particulares, por conta e risco, elaborem modelagens com vistas à estruturação da delegação de utilidades públicas, geralmente por via de concessão comum ou de parceria público-privada, requerendo, para tanto, que sejam apresentados estudos e projetos específicos, conforme diretrizes predefinidas, que sejam úteis à licitação pública e ao respectivo contrato, sem que seja garantido o ressarcimento pelos respectivos dispêndios, a adoção do material elaborado ou o lançamento da licitação pública, tampouco qualquer vantagem formal do participante sobre outros particulares.”. Cf. SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 97.
[2] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos Público-Privados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 184 e 185.
[3] TCU, Acórdão 1096/2019 – Plenário. Relator Ministro Bruno Dantas, julgado em 15/05/2019.
Read MoreAinda que exista norma infraconstitucional limitando a jornada semanal para a acumulação de cargos públicos, a regularidade da acumulação depende apenas da compatibilidade de horários.
É de conhecimento comum que, em regra, os cargos públicos são inacumuláveis. Trata-se de restrição imposta pelo inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal, segundo o qual só é possível uma mesma pessoa ocupar um único cargo, sendo que, para ocupar outro, faz-se necessário a sua exoneração do anterior.
Leia-se o referido inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[…]
XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;
A leitura do dispositivo, portanto, não deixa dúvidas sobre a impossibilidade de acumulação de cargos públicos, assim como estabelece uma exceção que, a princípio, também seria de interpretação fácil. No entanto, a exceção permitida pela Constituição recebe contornos não tão simples na prática administrativa.
Como se depreende dos grifos conscientemente inseridos, o inciso XVI do artigo 37 estabelece somente dois critérios gerais que devem ser respeitados: (i) estar entre as profissões dispostas no rol de alíneas do inciso XVI e, ao mesmo tempo, (ii) comprovar a compatibilidade de horários.
Ou seja, uma primeira interpretação – e que é a mais correta, como se verá – leva a crer que é irrelevante o fato de que a jornada semanal do indivíduo que ocupa dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, quando somadas, perfaz mais de 60 horas: basta que seja demonstrada a compatibilidade de horários.
Acontece que, como dito, a aplicação prática da exceção trazida pelo texto constitucional não é tão simples como aparenta ser na teoria. E é por essa razão que, há muito tempo, o Poder Judiciário se debruça sobre o tema.
É o caso, por exemplo, do Recurso Especial nº 1767955/RJ, julgado em abril de 2019, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Pautado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), prevaleceu na Corte o entendimento de que o único requisito para a acumulação de “cargos acumuláveis” (de acordo com a Constituição, com o perdão da repetição) depende apenas da compatibilidade de horários. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS REMUNERADOS. ÁREA DA SAÚDE. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. REQUISITO ÚNICO. AFERIÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES DO STF. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. A Primeira Seção desta Corte Superior tem reconhecido a impossibilidade de acumulação remunerada de cargos ou empregos públicos privativos de profissionais da área de saúde quando a jornada de trabalho for superior a 60 (sessenta) horas semanais.
2. Contudo, ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, posicionam-se “[…] no sentido de que a acumulação de cargos públicos de profissionais da área de saúde, prevista no art. 37, XVI, da CF/88, não se sujeita ao limite de 60 horas semanais previsto em norma infraconstitucional, pois inexiste tal requisito na Constituição Federal” (RE 1.094.802 AgR, Relator Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 11/5/2018, DJe 24/5/2018).
3. Segundo a orientação da Corte Maior, o único requisito estabelecido para a acumulação é a compatibilidade de horários no exercício das funções, cujo cumprimento deverá ser aferido pela administração pública. Precedentes do STF.
4. Adequação do entendimento da Primeira Seção desta Corte ao posicionamento consolidado no Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
5. Recurso especial a que se nega provimento.[1]
O Tribunal de Contas da União (TCU) também segue o mesmo entendimento. Assim o foi ao decidir, em fevereiro de 2019, que “a questão da incompatibilidade de horários entre os cargos acumuláveis deve ser estudada caso a caso, sem a limitação objetiva de 60 horas semanais”:
9. De início, insta destacar que, com base na denominação dos cargos exercidos pelos interessados, a acumulação dessas ocupações é permitida. Tal situação encontra amparo na redação atual da alínea ‘c’, inciso XVI, do art. 37 da Constituição Federal de 1988, resguardada no período anterior à EC 19/98 pelo Art. 17, § 2º, do ADCT, uma vez que, tanto os cargos que os interessados exercem na União, quanto nas outras esferas, são privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.
10. No que concerne às respostas encaminhadas pela Unidade Jurisdicionada, verificou-se que as escalas de horários dos vínculos são compatíveis.
[…]
23. Desse modo, com base nos Acórdãos 1.338/2011-TCU-Plenário, de relatoria do Ministro Augusto Nardes, e 1.168/2012-TCU-Plenário, de relatoria do Ministro José Jorge, nos quais se firmou o entendimento de que a questão da incompatibilidade de horários entre os cargos acumuláveis deve ser estudada caso a caso, sem a limitação objetiva de 60 horas semanais, conclui-se que inexiste irregularidade nas admissões das interessadas.
24. Nota-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a exemplo dos julgamentos do MS 24.540/DF e do MS 26.085/DF, está alinhada às referidas decisões deste Tribunal, ou seja, a acumulação de cargos, para as situações permitidas constitucionalmente, está condicionada à compatibilidade de horários.
25. Portanto, com base no conjunto de verificações a que os atos foram submetidos não foi possível constatar qualquer óbice a apreciação pela legalidade, cabendo proposta para que sejam considerados legais.[2]
Ademais, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) pela inexistência de limitação de carga horária superior a 60 horas semanais, que já vinha sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Contas da União, foi reafirmado recentemente pela Suprema Corte, ocasião em que foi julgado o Tema 1081 de repercussão geral, referente à “Possibilidade de acumulação remunerada de cargos públicos, na forma do art. 37, inciso XVI, da Constituição Federal, quando há compatibilidade de horários”.
Do julgamento, fixou-se a tese de que “As hipóteses excepcionais autorizadoras de acumulação de cargos públicos previstas na Constituição Federal sujeitam-se, unicamente, a existência de compatibilidade de horários, verificada no caso concreto, ainda que haja norma infraconstitucional que limite a jornada semanal.”.
Ou seja, ainda que exista norma infraconstitucional (lei, decreto, resolução, portaria, etc.) limitando a jornada semanal para a acumulação de cargos públicos, a regularidade da acumulação depende apenas da compatibilidade de horários.
Depreende-se do exposto, portanto, que a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ), e também do TCU, permitem a acumulação de cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde nas hipóteses previstas no inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal, sem limitação de jornada semanal, bastando que o servidor demonstre a compatibilidade de horários.
[1] STJ, REsp 1767955/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/03/2019.
[2] TCU, Acórdão nº 1315/2019, Segunda Câmara, Relator Ministro André de Carvalho, julgado em 26/02/2019.
Read MoreA presença de falha técnica no projeto básico autoriza o aditamento do contrato administrativo?
A Lei nº 8.666/1993 – Lei de Licitações e Contratos Administrativos – prevê como dever da Administração Pública a apresentação, no processo licitatório, de todos os elementos e informações necessários à elaboração das propostas pelos licitantes, o que se dá pelo projeto básico[1] ou pelo termo de referência[2].
Ou seja, a Administração Pública possui a responsabilidade de elaborar um projeto básico ou um termo de referência que possua todas as diretrizes necessárias à elaboração, pelos licitantes, das propostas. Dessa forma, os particulares que desejam contratar com o Poder Público conhecerão completamente o objeto da licitação, de modo a permitir a devida orçamentação de preços e a avaliação de riscos.
Isso é evidente, pois que, se a licitação é processo ótimo e isonômico de contratação pública, que almeja à contratação do concorrente mais qualificado e apto ao exercício do serviço público, conclui-se por ser imprescindível o cumprimento de tais requisitos pela Administração; conforme devidamente explicitado no artigo 47 da Lei Federal nº 8.666/1993, in verbis:
Art. 47. Nas licitações para a execução de obras e serviços, quando for adotada a modalidade de execução de empreitada por preço global, a Administração deverá fornecer obrigatoriamente, junto com o edital, todos os elementos e informações necessários para que os licitantes possam elaborar suas propostas de preços com total e completo conhecimento do objeto da licitação.
Sobre essa disposição, Marçal Justen Filho assevera que “O art. 47 formulou disposição de cristalina obviedade e teoricamente dispensável. Em qualquer caso, a Administração tem o dever de detalhar o objeto da licitação e fornecer aos interessados informações completas, que permitam a formulação de propostas perfeitas. Isso se verifica não apenas no caso da empreitada por preço global, tema que foi examinado por ocasião da exposição acerca dos arts. 6.º, VIII, e 10 […]”[3].
E é ao se fitar essa escritura que se pode questionar o seguinte: caso o contrato administrativo, firmado com o vencedor do processo licitatório, tenha de ser aditado por necessidade de adequação do projeto inicial causada por falha técnica da própria Administração pública no projeto, será tal aditamento juridicamente válido, e trará ele prejuízo ao contratado?
É certo que, nesse caso, em sendo o erro da Administração, não pode o contratado prejudicar-se, pois o ônus concernente à elaboração de edital e projeto escorreitos é daquela, conforme preleciona, novamente, Marçal Justen Filho:
O art. 47 é obstáculo à elaboração de editais introduzindo fatores aleatórios em licitações de obras e serviços, mesmo quando a execução se deva fazer sob empreitada por preço global. A Administração tem o dever de apurar todas as circunstâncias que possam influenciar na execução do futuro contrato, especialmente quando a empreitada for por preço global. É nulo o edital que albergue fatores ocultos ou aleatórios acerca da execução do objeto licitado.[4]
Assim, deve a Administração zelar pela clareza no que concerne ao edital e também às cláusulas essenciais pertinentes ao objeto. Afinal, os licitantes só poderão concorrer isonomicamente se souberem pelo que estão concorrendo e quais devem ser os parâmetros de suas propostas.
Motivo outro não há, portanto, para que se entenda a questão de outra forma, no que toca à possibilidade do aditamento de contrato decorrente de falha da Administração, que não desta: se a falha, por parte da Administração Pública, efetivamente ocorreu, e se persiste o interesse na execução do objeto contratual, não há outra conduta a ser praticada que não a de aditar o contrato para corrigir todas as consequências decorrentes do erro da Administração. Ou então, que se promova a rescisão contratual, indenizando-se o particular contratado pelas perdas e danos.
Aliás, não é outro o entendimento da jurisprudência. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) já reconheceu que pode ser “impossível a execução de contrato por falha no projeto desenvolvido pela contratante”[5]. Além disso, em outro julgado, também decidiu que a presença de falha técnica no projeto apresentado pela Administração Pública autoriza o aditamento do objeto do contrato. Veja-se a ementa do acórdão:
RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO DE PROCEDIMENTO COMUM – DIREITO ADMINISTRAÇÃO – LICITAÇÃO – CONTRATO ADMINISTRATIVO – INADIMPLEMENTO – REQUERIMENTO DE DESISTÊNCIA OFERECIDO PELA LICITANTE VENCEDORA – RECUSA MANIFESTADA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – RESCISÃO CONTRATUAL – IMPOSIÇÃO DA MULTA PREVISTA NO CONTRATO – PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO DA NULIDADE DA REFERIDA SANÇÃO PECUNIÁRIA – POSSIBILIDADE.
[…]
2. No mérito, presença de falha técnica no projeto apresentado pela Administração Pública, reconhecida por meio da prova pericial produzida nos autos, durante a instrução do processo, sob o crivo do contraditório.
3. Tal situação autorizava o aditamento do objeto do contrato.
4. Violação do disposto no artigo 47 da Lei Federal nº 8.666/93.
5. Inexistência de culpa da licitante no inadimplemento do contrato. […][6]
Também não destoa dessa razão de decidir a jurisprudência do notório Tribunal de Contas da União (TCU), mais eminente órgão de controle dos processos de contratação pública.
No Acórdão 1.847/2005 – Plenário, o TCU asseverava a importância do projeto básico como forma de “representar uma projeção detalhada do futuro contrato, com elementos suficientes para caracterizar a obra ou serviço a ser executado”, de sorte que sua insuficiência acarretaria necessidade de “alterações contratuais supervenientes”. Leia-se trecho:
Acórdão 1847/2005 Plenário (Voto do Ministro Relator)
Na realidade, o projeto básico de um certame licitatório, nos moldes preconizados na Lei de Licitações, não é exigência meramente formal, para que se proceda a licitações de obras, nos termos do inciso I do § 2º do art. 7º da mesma lei. A meu ver, a minúcia do inciso IX do art. 6º do Estatuto Licitatório revela a importância do tema para uma contratação, no sentido de que o projeto básico deve representar uma projeção detalhada do futuro contrato, com elementos suficientes para caracterizar a obra ou serviço a ser executado e informações relevantes sobre a viabilidade e a conveniência técnica e econômica do empreendimento examinado.
Vícios de imprecisão no projeto básico de uma licitação podem ensejar não apenas violação aos princípios da isonomia e da obtenção da melhor proposta, mas também distorções no planejamento físico e financeiro inicialmente previsto, com alterações contratuais supervenientes, que, em muitos casos, apenas aumentam a necessidade de aporte de recursos orçamentários e retardam a conclusão dos serviços. […].
Contudo, se acaso restava ainda alguma centelha de dúvida sobre a (i)legalidade tocante ao ato de culpar-se o contratado no caso de aditamento contratual decorrente de falha no projeto básico, foi aquela totalmente dirimida pela TC 044.312/2012 do TCU, que culminou no Acórdão nº 1.977/2013 – Plenário, de seguinte texto:
VOTO
[…]
44. A dicotomia em questão está em balancear a idealização da empreitada global com a vedação do enriquecimento sem causa. Não seria concebível que falhas na elaboração do edital redundem, com justa causa, em um superfaturamento. Tampouco a Administração poderia se beneficiar de erro que ela própria cometeu, pagando por um produto preço relevantemente inferior que o seu justo preço de mercado. Erro preliminar da própria Administração, independentemente do tipo de empreitada, não pode redundar em ganhos ilícitos; porque se ilícito for, o enriquecimento de uma parte, em detrimento de outra, sem causa jurídica válida, faz-se vedado.
[…]
55. Na realidade, aquele erro, se constatado tempestivamente antes da abertura dos envelopes, levaria à alteração compulsória da planilha orçamentária, com reabertura de prazo aos concorrentes, em poder de autotutela, para reavaliarem o seu preço (art. 53 da Lei 9.784/99 e art. 21, § 4º c/c art. 49 da Lei de Licitações). Quando identificado, durante a execução contratual, para convalidação desse vício, um aditivo contratual faz-se cabível (art. 55 da Lei 9.784/99).
56. Pequenos lapsos na quantificação dos serviços (até certo ponto comum, visto que cada orçamentista não apresentaria, nas vírgulas, quantidades idênticas), levando em conta a característica das empreitadas globais – em estabelecer imprecisões quantitativas como álea ordinária da contratada –, não conduzem à mácula no procedimento licitatório, tanto por não afetar essa “livre manifestação de vontade”, como, principalmente, por não inviabilizarem a obtenção da “melhor proposta”.
57. Tal visão também se harmoniza com a teoria administrativa, em sobrelevar o que pode ser chamado de “fato novo”, legítimo para ensejar a revisão contratual, capaz de sanear – ou convalidar – aquela anulabilidade. Se aquele erro praticado pela Administração não podia ser percebido pela empresa média, pode-se classificá-lo como evento posterior, em álea extraordinária, não derivado de conduta culposa do particular, em congruência com a teoria de imprevisão. A aplicação do art. 65 da Lei de Licitações, em densificação ao disposto no art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, faz-se compulsória.
[…]
59. De toda essa digressão, resume-se que, de pequenos erros quantitativos, não decorrerão termos aditivos em empreitadas globais, por se tratarem de erros acidentais, incapazes de interferir na formação de vontades e, principalmente, na formação de proposta a ser ofertada, a ser tida como a mais vantajosa. Indicação contrária também tornaria o regime de empreitada global em desuso, posto que, na prática, toda obra seria executada como se preço unitário fosse.
60. Erros de materialidade relevante (por erros substanciais) sujeitam-se a um juízo acurado de valor, que envolverá, também, além das consequências financeiras – em termos de materialidade – a avaliação culposa da contratante, em um juízo de boa-fé objetiva.
61. Na realidade, quando a Administração erra ao subestimar consideravelmente as quantidades (e consequentemente, preços), a ponderação acerca da nulidade da relação contratual – a ser eventualmente convalidada via termo aditivo – deve se pautar pela exigibilidade da percepção da falha pela parte lesada (a contratada); até mesmo para evitar um dolo negativo do particular, com o objetivo de obter proveito próprio.
62. Não significa dizer, em paralelismo, que se detectadas superestimativas relevantes, consideradas imperceptíveis às licitantes – e, portanto, com ausência de culpa do particular – não estaria evidenciada nulidade (a “autorizar o superfaturamento”). Nesses casos, aplicam-se imperativamente outros princípios fundamentais do direito público (como o da economicidade e o da obtenção da maior vantagem). O erro do agente da Administração pode ser considerado inescusável, em seu dever de moderar a contratação sob os preços de mercado. Nesta situação, o contrato superfaturado seria uma nulidade a ser corrigida de forma imediata.
[…]
ACÓRDÃO Nº 1977/2013 – TCU – Plenário
[…]
9. Acórdão:
[…]
9.1.8. excepcionalmente, de maneira a evitar o enriquecimento sem causa de qualquer das partes, como também para garantia do valor fundamental da melhor proposta e da isonomia, caso, por erro ou omissão no orçamento, se encontrarem subestimativas ou superestimativas relevantes nos quantitativos da planilha orçamentária, poderão ser ajustados termos aditivos para restabelecer a equação econômico-financeira da avença, situação em que se tomarão os seguintes cuidados:
9.1.8.1. observar se a alteração contratual decorrente não supera ao estabelecido no art. 13, inciso II, do Decreto 7.983/2013, cumulativamente com o respeito aos limites previstos nos §§ 1º e 2º do art. 65 da Lei 8.666/93, estes últimos, relativos a todos acréscimos e supressões contratuais;
9.1.8.2. examinar se a modificação do ajuste não ensejará a ocorrência do “jogo de planilhas”, com redução injustificada do desconto inicialmente ofertado em relação ao preço base do certame no ato da assinatura do contrato, em prol do que estabelece o art. 14 do Decreto 7.983/2013, como também do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal;
9.1.8.3. avaliar se a correção de quantitativos, bem como a inclusão de serviço omitido, não está compensada por distorções em outros itens contratuais que tornem o valor global da avença compatível com o de mercado;
9.1.8.4. verificar, nas superestimativas relevantes, a redundarem no eventual pagamento do objeto acima do preço de mercado e, consequentemente, em um superfaturamento, se houve a retificação do acordo mediante termo aditivo, em prol do princípio guardado nos arts. 3º, caput c/c art. 6º, inciso IX, alínea “f”; art. 15, § 6º; e art. 43, inciso IV, todos da Lei 8.666/93;
9.1.8.5. verificar, nas subestimativas relevantes, em cada caso concreto, a justeza na prolação do termo aditivo firmado, considerando a envergadura do erro em relação ao valor global da avença, em comparação do que seria exigível incluir como risco/contingência no BDI para o regime de empreitada global, como também da exigibilidade de identificação prévia da falha pelas licitantes – atenuada pelo erro cometido pela própria Administração –, à luz, ainda, dos princípios da vedação ao enriquecimento sem causa, da isonomia, da vinculação ao instrumento convocatório, do dever de licitar, da autotutela, da proporcionalidade, da economicidade, da moralidade, do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e do interesse público primário; […]
Apesar de existirem esforços infralegais em sentido contrário, tal como ocorre na previsão contida no inciso II do artigo 13 do Decreto Federal nº 7.983/2013[7], é seguro concluir que erros na documentação que serve como base para a apresentação das propostas na licitação não podem ter as suas consequências financeiras negativas atribuídas ao contratado. A atribuição do risco pelas eventuais falhas no projeto básico ao particular, além de proporcionar o enriquecimento sem causa do contratante, ocasionaria o indesejado efeito de aumento dos preços praticados nessas licitações, dada a necessidade de precificação do risco.
De se concluir então que, salvo nos casos em que a falha constante do projeto básico, ou termo de referência, seja plenamente detectável pelo licitante vencedor do certame, o erro da Administração faz exsurgir, nos casos em que a contratada não opta pela rescisão contratual, o direito ao aditamento do contrato administrativo, com vistas a evitar enriquecimento ilícito da parte contratante, e, por conseguinte, com vistas a sanar a irregularidade oriunda desse ato administrativo maculado.
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[1] Lei Federal nº 8.666/93, Art. 6º […] IX – Projeto Básico – conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução, devendo conter os seguintes elementos: […]
[2] Decreto nº 3.555/2000, Art. 8º […] II – o termo de referência é o documento que deverá conter elementos capazes de propiciar a avaliação do custo pela Administração, diante de orçamento detalhado, considerando os preços praticados no mercado, a definição dos métodos, a estratégia de suprimento e o prazo de execução do contrato;
[3] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 8.666/93. ed 16., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 849.
[4] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 8.666/93. ed 16., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 849.
[5] TJSP; Remessa Necessária Cível nº 0016580-34.2009.8.26.0053; Rel. o Des. José Maria Câmara Junior; 8ª Câmara de Direito Público; j. 14.6.17.
[6] TJ-SP – AC: 00014286320158260431 SP 0001428-63.2015.8.26.0431, Relator: Francisco Bianco, Data de Julgamento: 05/06/2019, 5ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 05/06/2019.
[7] Art. 13. Em caso de adoção dos regimes de empreitada por preço global e de empreitada integral, deverão ser observadas as seguintes disposições para formação e aceitabilidade dos preços: […] II – deverá constar do edital e do contrato cláusula expressa de concordância do contratado com a adequação do projeto que integrar o edital de licitação e as alterações contratuais sob alegação de falhas ou omissões em qualquer das peças, orçamentos, plantas, especificações, memoriais e estudos técnicos preliminares do projeto não poderão ultrapassar, no seu conjunto, dez por cento do valor total do contrato, computando-se esse percentual para verificação do limite previsto no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993.
Read MoreO Tribunal de Contas do Distrito Federal acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame.
O Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) suspendeu cautelarmente, no fim de maio, licitação de serviços de publicidade lançada por empresa estatal do Distrito Federal, pois vislumbrou indícios de irregularidade na pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes[1].
Especificamente, o TCDF acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame. Segundo a decisão, confirmada por unanimidade pelo Plenário da Corte de Contas, “não houve manifestação técnica quanto aos casos de pontuação cuja diferença fosse superior a 20%, caracterizando a existência da fumaça do bom direito na representação tratada nos autos, frente, principalmente, à previsão legal constante do art. 6º, inc. VII, da Lei nº 12.232/2010”.
Para entender melhor o caso analisado pelo TCDF, é importante levar em conta que, com a publicação da Lei Federal nº 12.232/2010, as licitações para a contratação de agências de propaganda receberam um regulamento especial, motivo pelo qual a Lei Federal nº 8666/1993 passou a ser aplicada apenas subsidiariamente nesses casos. O motivo da existência de uma lei especial, com evidente procedimento mais rigoroso para o julgamento das pontuações técnicas, se deve ao fato de que as licitações para serviços de publicidade são naturalmente mais suscetíveis a direcionamentos e favorecimentos indevidos, sobretudo em razão da natureza do julgamento das propostas técnicas.
A preocupação acentuada com a etapa de julgamento das propostas técnicas para contratações desse objeto está expressa na justificativa da proposta legislativa que gerou a Lei Federal nº 12.232/2010. Leia-se o seguinte excerto da exposição de motivos do PL nº 3305/2008:
Tem a nossa experiência recente nos mostrado que a ausência de um tratamento normativo específico para essa matéria possibilita que, nesse campo, grandes arbitrariedades ocorram em todo o país. Empresas de publicidade contratadas com óbvio favorecimento, com base em critérios de julgamento subjetivos, contratos que encobrem a possibilidade de novos ajustes imorais com terceiros, pagamentos indevidos, desvios de verbas públicas destinadas à publicidade com fins patrimoniais privados ou para custeio de campanhas eleitorais são apenas alguns exemplos de transgressões que compõem um cenário já bem conhecido nos dias em que vivemos. [2]
Entre as exigências específicas da Lei Federal nº 12.232/2010, encontra-se a obrigação de a subcomissão técnica (aquela que julga as propostas técnicas dos licitantes) reavaliar a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% da pontuação máxima deste quesito. Como visto, a reavaliação da pontuação fica a cargo de uma subcomissão técnica, prevista no § 1º do artigo 10 da Lei, e deve ser realizada em conformidade com os critérios objetivos estabelecidos no edital de licitação. Confira-se o dispositivo:
Art. 6º A elaboração do instrumento convocatório das licitações previstas nesta Lei obedecerá às exigências do art. 40 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com exceção das previstas nos incisos I e II do seu § 2º, e às seguintes:
[…]
VII – a subcomissão técnica prevista no § 1º do art. 10 desta Lei reavaliará a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% (vinte por cento) da pontuação máxima do quesito, com o fim de restabelecer o equilíbrio das pontuações atribuídas, de conformidade com os critérios objetivos postos no instrumento convocatório.
Nessas hipóteses, dever-se-á igualmente observar o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010, que prevê o envio das planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso à comissão permanente ou especial de licitação. Esta é considerada uma condição essencial do julgamento nas licitações de serviços de publicidade, uma vez que a ausência de motivação para as pontuações pode impedir o controle sobre o seu mérito, facilitando eventuais direcionamentos.
Desse modo, as razões das pontuações devem ser registradas por escrito pela subcomissão técnica e encaminhadas à comissão permanente ou especial, quer incida na hipótese regulada pelo inciso VII do artigo 6º, quer não. Veja-se como a exigência de manifestação escrita é expressa na Lei nº 12.232/2010:
Art. 11. Os invólucros com as propostas técnicas e de preços serão entregues à comissão permanente ou especial na data, local e horário determinados no instrumento convocatório. […]
§ 4º O processamento e o julgamento da licitação obedecerão ao seguinte procedimento: […]
V – análise individualizada e julgamento dos quesitos referentes às informações de que trata o art. 8º desta Lei, desclassificando-se as que desatenderem quaisquer das exigências legais ou estabelecidas no instrumento convocatório;
VI – elaboração de ata de julgamento dos quesitos mencionados no inciso V deste artigo e encaminhamento à comissão permanente ou especial, juntamente com as propostas, as planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso.
Ou seja, a subcomissão técnica precisa justificar expressamente os motivos que justificam a atribuição da nota, sob pena de violar diversas regras que regem a atividade administrativa e que permeiam todos os processos de contratação pública, em especial os deveres de motivação dos atos administrativos e do tratamento isonômico, além dos princípios da publicidade e da impessoalidade.
É preciso que os licitantes saibam os motivos que levaram à pontuação dos quesitos quando da análise da sua proposta técnica, caso contrário serão impedidos de, se necessário, exercer o seu direito constitucional de defesa. Neste sentido, encontra-se a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), segundo a qual “a ausência de justificativa escrita acerca das pontuações e das razões que as fundamentam em cada caso, nos procedimentos licitatórios para oferta de serviços de publicidade, afronta o que dispõe o art. 11, § 4º, inciso IV, da Lei 12.232/2010”[3].
Acontece que, não obstante a clareza das determinações legais, nem sempre a subcomissão técnica registra por escrito a justificativa das razões que basearam a avaliação ou a reavaliação de determinada pontuação, descumprindo assim o inciso VII do artigo 6º e/ou o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010. No caso noticiado, pela violação do inciso VII do artigo 6º da referida lei, como salientado, o Tribunal confirmou a necessidade de realizar a sobredita reavaliação e, por unanimidade, dada a ausência de tal procedimento, suspendeu cautelarmente o certame.
A decisão noticiada confirma a competência legítima dos Tribunais de Contas em intervir cautelarmente para evitar irregularidade no curso da licitação pública, assim como o entendimento de que, nas licitações submetidas à Lei Federal nº 12.232/2020, configura ilegalidade a ausência de reavaliação da pontuação concedida a um quesito de um determinado licitante, quando a diferença entre a maior e a menor pontuação, atribuída pelos integrantes da subcomissão técnica, for superior a 20% da pontuação máxima do quesito.
[1] TCDF – Decisão nº 1798/2020, Plenário. Relator: Antônio Renato Alves Rainha. Data de Julgamento: 27/05/2020.
[2] Projeto de Lei nº 3305/2008, Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=391688 Acesso em 29 jun. 2020.
[3] TCU – Acórdão nº 2813/2017, Plenário. Relator: AROLDO CEDRAZ, Data de Julgamento: 06/12/2017.
Read MoreContratos Administrativos: Reequilíbrio Econômico-Financeiro e COVID-19
“Alea iacta est”. Foi com esta frase que Júlio César rogou sorte a si quando atravessou o rio Rubicão, ato que culminou na guerra civil contra Pompeu e os optimates, da qual saiu aquele vitorioso. O dado foi lançado, e, para sua sorte, virou-se ao Imperador a face da vitória.
Etimologicamente, o termo alea tem origem no latim, significando, denotativamente, “dado”, e, conotativamente, sorte, acaso, randomicidade, aleatoriedade. No âmbito jurídico pátrio, o termo “álea”, parido do Direito Romano, é deveras recorrente na teoria dos contratos, significando situação contratual em que a reciprocidade das obrigações onerosas e sinalagmáticas é frágil ou inexistente, podendo vir a ser quebrantada por caso fortuito ou evento de força maior.[1]
Assim, um contrato será aleatório quando ao menos uma das partes assume o risco de adimplir sua obrigação mesmo que haja risco de que a contraprestação obrigacional não seja equitativa ou existente, devido a acontecimento incerto e futuro, como é o caso do contrato de seguro; e, ao revés, será comutativo quando as partes contratantes, em sua declaração de vontade, delimitam direitos e deveres recíprocos, previsíveis e certos, como é o caso da compra e venda.[2]
Os contratos administrativos, por estarem sempre necessariamente banhados pelos princípios da legalidade, da publicidade e da vinculação ao instrumento público convocatório, entre outros, têm, naturalmente, cariz oneroso, sinalagmático e comutativo, sendo, pois, razoavelmente equânimes e certas as obrigações recíprocas firmadas entre a Administração e a contratada, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, da Lei 8.666/1993.[3]
Tanto assim o é que, quando da licitação, o termo de referência ou o projeto básico vincula a Administração à contratada, e, da mesma forma, a proposta vincula a contratada à Administração; e, perpassando-se essas fases, vê-se no contrato administrativo firmado entre elas a perfeita materialização das bilateralidade e comutatividade contratuais[4], consubstanciadas nos direitos e deveres que cada contraente tem uma para com a outra, com vistas a manter o equilíbrio econômico-financeiro contratual, conforme, por exemplo, as disposições dos artigos 77 a 80 da Lei Federal nº 8.666/1993, para ficar só nela.
No plano jurídico abstrato, portanto, não há que se hesitar: se o contrato sujeita prestação ou prestações a risco anormal, futuro e incerto, é ele aleatório; se, ao contrário, o contrato firma obrigações recíprocas, certas e previsíveis aos contraentes – inclusive em relação à previsibilidade dos riscos normais do negócio –, é ele comutativo. Mas o plano dos fatos não costuma corroborar estritamente o plano jurídico das ideias; a disposição tipicamente a priori do texto legal não é capaz de prever a vicissitude inerente aos casos da vida.
Que fazer, então, se, durante a execução de um contrato comutativo, sua ínsita comutatividade desvanecer-se em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis ou inevitáveis, tornando a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra?
É com o uso da teoria da imprevisão que esse impasse é diluído.
A teoria da imprevisão está expressa na Seção IV do Capítulo II do Título V do Livro I da Parte Especial do Código Civil de 2002, denominada Da Resolução [Contratual] por Onerosidade Excessiva, continente dos artigos 478, 479 e 480 do édito. Essa teoria concebe, em interpretação sistemática com o artigo 393, que, nesses casos de onerosidade excessiva, o contraente prejudicado poderá pedir a resolução do contrato; pedir que sua prestação seja reduzida na medida do desequilíbrio; ou, como terceira solução, poderá o contraente beneficiado modificar equitativamente as condições do contrato, restabelecendo a comutatividade contratual.
A teoria, entretanto, está espraiada pelo ordenamento, e, no âmbito dos contratos administrativos, ganha contornos e balizas, estabelecidos pelas normas cogentes típicas do Direito Público, sobretudo pelo inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal e pelos artigos 54 e 65, II, d, da Lei Federal nº 8.666/1993. Diante dessa roupagem, de mesma essência, passa-se a falar no reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, por sua revisão, visando à comutativa realocação dos riscos contratuais.
Materializa-se por meio desses dispositivos exceção à corriqueira comutatividade dos contratos administrativos, que, como regra, respeitam o basilar princípio de que pacta sunt servanda[5] nos exatos termos em que foram avençados. Assim não o sendo, tem-se presente uma exceção, que se justifica na existência de álea econômica, a qual quebra decerto o almejado estado de subsistência das coisas[6] atinentes às recíprocas obrigações contratuais.
É certo dizer, então, que a álea econômica é extraordinária e excedente aos mitigados e normais riscos inerentes ao contrato administrativo – assumidos quando da aceitação da proposta por parte da Administração –, advindo de instabilidade econômica, social, sanitária – consequente de caso fortuito ou de força maior – que acarrete estado de imprevisão, quer pelos impactos de seus efeitos, quer pela imprevisibilidade de suas consequências, e nunca dependente da parte.[7]
Mas, afinal, a pandemia decorrente do COVID-19 pode ser entendida como evento que enseja a aplicabilidade da teoria da imprevisão, sobretudo no que toca à revisão do contrato administrativo celebrado anteriormente, e vigente durante seus efeitos, para restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro?
A resposta, evidentemente, é afirmativa.
É que as consequências jurídicas desta pandemia nos contratos administrativos são dela diretamente paridas. Ocorre, no caso, justamente a situação tutelada pelo inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, que obriga à manutenção das condições efetivas da proposta (ou seja, as condições do momento em que foi apresentada, antes da COVID-19). É, também, a situação tutelada pela necessidade de a Administração proceder à “justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento”, devendo ela restabelecer os encargos e retribuição que restaram inicialmente pactuados quando “sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”, nos termos do artigo 65, II, d, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Ademais, com vista no artigo 54 da Lei Federal nº 8.666/1933, que aplica subsidiariamente aos contratos administrativos as disposições do direito privado, e conquanto não haja consenso doutrinário no que toca à identidade conceitual, ou não, entre caso fortuito e de força maior, lê-se do caput do artigo 393 do Código Civil que “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado” e do seu parágrafo único que “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Isso, aplicado ao contrato administrativo, caracteriza álea extraordinária, a qual, por sua vez, justifica a aplicação da teoria da imprevisão para o reequilibrar.
A pandemia da COVID-19 é essencialmente fato necessário extraordinário, imprevisível, de arrefecimento incerto. Dessa forma, empresa que seja parte contratada de um contrato firmado com a Administração e que tenha sido prejudicada, na execução de seus serviços ou na entrega de seu produto, pelos impactos sanitários e socioeconômicos exsurgidos daquela, tem, nos termos da lei, direito subjetivo à purgação da álea econômica do caso, devendo a Administração revisar o contrato, e, consequentemente, restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro.
Aplicabilidade bastante evidente dá-se no caso em que o contrato administrativo teve de ser suspenso em razão da pandemia, e não por culpa da contratada ou por decisão fundamentada da Administração. Nessa situação, deverá esta, sempre que possível, promover a revisão contratual, para dirimir a álea econômica, e, consequentemente, restabelecer o equilíbrio entre os direitos e deveres das partes – como bem asserta a Advocacia-Geral da União (AGU) no Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU[8], cuja conclusão é a de que “A pandemia do novo coronavírus configura força maior ou caso fortuito, caracterizando álea extraordinária para fins de aplicação da teoria da imprevisão a justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes […]”[9].
A bem da verdade, a responsabilidade da Administração, como contratante, não resta encerrada no direito da parte contratada de ter o contrato revisado, com vistas a dirimir os riscos extraordinários do contrato. O restabelecimento do equilíbrio do contrato não pressupõe somente o abalizamento equânime das cláusulas, mas, também, como consectário deontológico, o dever da Administração de indenizar a contratada pelos prejuízos decorrentes da pandemia – quer tenha de haver a resolução contratual, quer não.
Vê-se, logo, que a pandemia decorrente do COVID-19 veio fortuita e inevitavelmente, dando início à crise sanitária, econômica e social que ainda assola o povo brasileiro. No plano jurídico dos contratos administrativos, do mesmo modo, os contraentes viram-se em crise, impotentes em face da Administração e muita vez impossibilitados de prestarem os serviços ou entregarem os produtos avençados, devido ao extraordinário e inevitável estado de coisas atual.
Desse modo, ao menos no que tange aos contratos administrativos de contratação pública, conclui-se sem hesitação: o reequilíbrio econômico-financeiro, tão caro que é ao contrato administrativo, é pleito justificado, à Administração, diante da cesárea aleatoriedade ínsita à crise nascida da pandemia do COVID-19.
[1] GOMES, Orlando. Contratos. ed. 18, Rio de Janeiro: Forense, 1999. pp. 74-75.
[2] Ibidem.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. ed. 10, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 468.
[4] É certo, porém, que a comutatividade do contrato administrativo não implica a inexistência de álea, de riscos. O que a lei não admite é que os riscos suportados pelos contratantes extrapolem os riscos normais da contratação, inerentes à natureza do negócio. Logo, não se há de falar, por exemplo, em reequilíbrio de contrato de compra e venda de mercadoria importada em que haja certa variação cambial entre o oferecimento da proposta e a efetiva aquisição pelo importador; nem de risco normal de contrato prestação de serviços de vigilância os quais, num determinado mês, ocorram mais que noutro; nem de contratação de obra na qual determinada aplicação de material precise ser refeita em razão de alguma reação química incomum dos insumos.
[5] Em tradução livre, “os pactos devem ser observados”.
[6] Trata-se da cláusula rebus sic stantibus, haurida do Direito Romano.
[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
[8] Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU. Acesso em: 11 jun. 2020.
[9] No caso, tratava-se de contrato administrativo de concessão, mas é de se ressaltar que a caracterização do evento, e consequente direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, serve, a fortiori ratione, ao gênero contrato administrativo.
Read MoreOs três pareceres consultivos elaborados pela Advocacia Geral da União (AGU) formulam uma análise jurídica da questão e indicam possíveis caminhos para a gestão dos contratos terceirizados.
Nesta quarta-feira (16 de junho de 2020), Victoria Magnani teve o artigo “Orientações da AGU sobre o tratamento e gestão dos contratos de terceirização durante a pandemia de Covid-19“, de sua autoria, publicado no blog da Zênite Informação, o qual pode ser visualizado neste link. Em razão da relevância do tema, vamos republicá-lo na íntegra, com a autorização da autora:
Orientações da AGU sobre o tratamento e gestão dos contratos de terceirização durante a pandemia de Covid-19.
Victoria Magnani[1]
Devido à situação excepcional vivida atualmente, em virtude da pandemia de covid-19, os órgãos da Administração Pública em geral vêm realizando uma série de mudanças e adaptações no sentido de migrar boa parte dos colaboradores para o regime de teletrabalho/home office, em um esforço para reduzir a taxa de contaminação pelo vírus Sars-Cov-19 (coronavírus).
Contudo, ressalta-se que as alternativas formuladas pelo Poder Público a fim de lidar com os impactos da pandemia foram pensadas com vistas a balizar a atuação de servidores, empregados públicos, estagiários e demais colaboradores que possuem vínculo direto com a Administração Pública, não tendo sido emitida, porém, orientação normativa central para esclarecer o tratamento que deve ser dado aos empregados terceirizados, os quais possuem vínculo jurídico contratual com as empresas contratadas pela Administração.
Essa situação levou administradores de todo o país a um cenário de incertezas e insegurança na tomada de decisões, o que, por sua vez, motivou a formulação de questionamentos com vistas a esclarecer o tratamento que deve ser dado aos contratos terceirizados no âmbito da Administração Pública. A Advocacia-Geral da União (AGU), nesse ínterim, publicou três pareceres consultivos sobre o assunto, formulando uma análise jurídica da questão e indicando possíveis caminhos para a gestão dos contratos terceirizados no âmbito da pandemia do novo coronavírus.
Foram publicados o Parecer nº 106/2020, formulado pelo Departamento de Assuntos Jurídicos Internos (DAJI) da Secretaria Geral de Consultoria/AGU; o Parecer nº 63/2020, publicado pela Consultoria Jurídica junto à Controladoria Geral da União (CONJUR-CGU/AGU); e o Parecer nº 310/2020, elaborado pela Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Educação (CONJUR-MEC), vinculada à Consultoria Geral da União/AGU.
Destaca-se que as deliberações propostas pela Advocacia-Geral da União no contexto dos pareceres supracitados dizem respeito a medidas mitigadoras destinadas aos casos em que a Administração decide manter vigentes os contratos de prestação de serviços terceirizados, uma vez que não se exclui a eventual possibilidade de rescisão contratual unilateral pela Administração, por motivo de força maior, em especial nos casos em que esta for comprovadamente a medida mais benéfica aos interesses públicos.
Os pareceres em questão versam sobre diferentes aspectos e reflexos contratuais decorrentes dos impactos da covid-19 nos contratos firmados pela Administração com empresas prestadoras de serviços terceirizados e, devido ao fato de terem sido formulados por órgãos consultivos diversos, alguns questionamentos se repetem, motivo pelo qual será feita uma análise conjunta das orientações enunciadas em cada parecer.
É possível a substituição dos empregados terceirizados que integram grupos de risco?
Sim. Primeiramente, destaca-se que são enquadrados como pertencentes aos grupos de risco, segundo o Ministério da Saúde, pessoas acima de 60 anos, portadores de doenças cardiovasculares ou respiratórias, diabéticos, portadores de doença neurológica ou renal, bem como pessoas que tenham comorbidades tais quais imunodepressão, obesidade, asma e puérperas[2].
No âmbito do Parecer nº 106/2020[3], a Secretaria-Geral de Administração, através da Nota Técnica n. 35/2020/CLOG/SGA/AGU, formulou questionamento acerca da possibilidade de exigir que as empresas contratadas pela Administração façam a substituição de empregados terceirizados que estejam enquadrados nos chamados grupos de risco. A conclusão exposta no parecer elaborado pelo Departamento de Assuntos Jurídicos Internos (DAJI) da Secretaria Geral de Consultoria/AGU foi no sentido de que é possível à Administração, sim, proceder a tal exigência.
Isso porque, apesar de haver vedação ao direcionamento na contratação de terceirizados para trabalhar nas empresas contratadas (vide art. 5º, inciso III da Instrução Normativa nº 5, de 26 de maio de 2017, que dispõe sobre as regras e diretrizes do procedimento de contratação de serviços sob o regime de execução indireta no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional), tem-se que, em virtude da excepcionalidade e gravidade da situação atual, não parece ilegal a tentativa de negociar com a empresa o remanejamento das pessoas enquadradas nos grupos de risco para atividades dentro da própria empresa terceirizada, ou que possam ser executadas de modo remoto, destinando pessoas menos vulneráveis às atividades que exijam exclusivamente execução presencial.
Ademais, o parecer ressaltou que o próprio portal de compras do Governo Federal[4] já recomendou o levantamento dos empregados pertencentes aos grupos de risco para a avaliação da necessidade de suspensão ou substituição temporária na prestação de serviços por esses terceirizados, nos termos das “Recomendações Covid-19 – Contratos de prestação de serviços terceirizados”, que orientam a aplicação por analogia da Nota Técnica nº 66/2018- Delog/Seges/MP para o contexto de pandemia.
O Parecer nº 310/2020[5], por sua vez, endossa esse entendimento, citando, inclusive, o mesmo art. 3º das “Recomendações Covid-19 – Contratos de prestação de serviços terceirizados”. Segundo a manifestação, que orienta o afastamento dos prestadores de serviço terceirizados que se encontram no “grupo de risco”, será aplicado o art. 3º da Lei nº 13.979/2020, que estabelece que “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: (…) “§ 3º Será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo”.
Logo, a área de recursos humanos pode conceder falta justificada nesta hipótese, assim como os encarregados dos contratos de terceirização podem fazer uso de tais medidas. A verificação de pertencimento do empregado terceirizado ao grupo de risco, por sua vez, caberá à própria empresa terceirizada que, tão logo encaminhada a autodeclaração de pertencimento feita pelo empregado, avaliará caso a caso se o trabalhador em questão faz jus à liberação, por estar este incluído no grupo de risco.
O parecer ressaltou, ainda, que não cabe à Administração esse encargo, em razão de não ser ela a empregadora, mas, sim, a tomadora do serviço. Caberá à Administração tão somente solicitar à empresa contratada relatório sobre os empregados afastados, identificando a motivação e o período de afastamento respectivo, que deverá ser acordado entre a Administração Pública e a empresa, em virtude da instabilidade vivenciada.
É possível inserir os terceirizados em trabalho remoto?
Sim. Acerca da viabilidade de inserção dos empregados terceirizados em trabalho remoto, todos os pareceres emitidos pela Advocacia-Geral da União se mostraram favoráveis à tal alternativa, desde que verificada a possibilidade de realização das atividades em regime de teletrabalho.
Nos termos do Parecer nº 106/2020, a Instrução Normativa nº 21, de 16 de março de 2020, que traz orientações aos órgãos e entidades do Sistema de Pessoal Civil da Administração Pública Federal – SIPEC, estabelece, em seu art. 6º-A, as medidas de proteção para enfrentamento da emergência de saúde pública, bem como, no art. 7º, que “Caberá ao Ministro de Estado ou à autoridade máxima da entidade, em conjunto com o dirigente de gestão de pessoas, assegurar a preservação e funcionamento das atividades administrativas e dos serviços considerados essenciais ou estratégicos, utilizando com razoabilidade os instrumentos previstos nos art. 6º-A e art. 6º-B, a fim de assegurar a continuidade da prestação do serviço público”.
Segundo o parecer, apesar de a referida Instrução Normativa ter sido expedida para os servidores com vínculo direto com a Administração Pública, não há qualquer razoabilidade em desvincular os serviços terceirizados da prestação efetiva do serviço público. Assim, tendo em vista o contexto atual, a AGU manifestou-se no sentido de que o art. 7º da Instrução Normativa nº 21 autoriza o Excelentíssimo Senhor Advogado-Geral da União a, em caráter excepcional e temporário, visando assegurar a continuidade de prestação do serviço público, adotar as medidas gerais de prevenção, cautela e redução da transmissibilidade previstas nos arts. 6º-A e B da referida IN, consistentes na adoção de regime de jornada em turnos alternados de revezamento ou em trabalho remoto, para aqueles terceirizados que exerçam atividades compatíveis com esta modalidade.
Por sua vez, o Parecer nº 63/2020[6] concluiu que, respeitados os princípios da supremacia e indisponibilidade do interesse público, bem como da eficiência, há possibilidade de ajustar o acompanhamento dos contratos terceirizados para viabilizar a execução desses contratos de forma remota. Portanto, ante a excepcionalidade da pandemia, o órgão em questão sustenta a viabilidade de se orientar a maneira de execução dos contratos terceirizados, de forma a permitir sua execução remota. Isso, contudo, deverá ser feito por meio da avaliação de pertinência, e com base na singularidade de cada atividade prestada, nos termos das já mencionadas “Recomendações Covid-19 – Contratos de Prestação de Serviços Terceirizados”.
Ademais, o Parecer nº 310/2020 também posicionou-se no sentido de que é possível o trabalho remoto por parte dos empregados terceirizados, assinalando, porém, que serão necessários ajustes na relação trabalhista em questão, devendo ser avaliado pela Administração juntamente com a empresa contratada quais atividades poderão ser exercidas por meio do teletrabalho.
Quais os reflexos salariais decorrentes da “suspensão” de contratos terceirizados e da inserção de trabalhadores em regime de teletrabalho?
Quanto aos reflexos salariais advindos da suspensão dos contratos de trabalho com os empregados terceirizados, o Parecer nº 310/2020 assinala que, no caso do terceirizado que integra grupo de risco, trata-se em verdade de hipótese de interrupção do contrato de trabalho, uma vez que há contagem do tempo de serviço, bem como manutenção dos encargos trabalhistas devidos pelo empregador, visto que os efeitos da interrupção irão atingir apenas a cláusula de prestação obreira de serviços, mantidas em vigência as demais cláusulas contratuais. Nesse caso, não se presta trabalho, tampouco se fica à disposição, mas se computa o tempo de serviço e paga-se o salário.
No âmbito do Parecer nº 106/2020 foi exarado entendimento semelhante, destacando que, conforme recomendação constante do portal de compras governamentais, é possível suspender/reduzir o efetivo de terceirizados, nos termos da Nota Técnica nº 66/2018- Delog/Seges/MP, sendo tal redução ou suspensão, contudo, efetuada sem prejuízo da remuneração. Nesse sentido, as únicas parcelas cujo pagamento pode deixar de ser efetivado são as referentes ao auxílio-alimentação e ao vale-transporte dos dias não trabalhados efetivamente.
É possível a manutenção do pagamento do benefício de vale-transporte e auxílio-alimentação para os terceirizados inseridos em regime de teletrabalho?
Para os terceirizados inseridos em regime de teletrabalho/home office, por sua vez, o Parecer nº 310/2020 dispõe que serão descontadas apenas as parcelas referentes ao vale-transporte, visto que não há custo com deslocamento a ser ressarcido ao empregado. Isso porque, nos termos da Lei nº 7.619/1987, o vale-transporte será concedido “para utilização efetiva em despesas de deslocamento residência-trabalho e vice-versa”, não havendo que se falar em pagamento desta verba no caso de ausência de deslocamento por parte do empregado terceirizado.
Quanto ao vale-alimentação e vale-refeição, uma vez que não há obrigação legal ao fornecimento de nenhum dos dois benefícios, sendo a sua concessão uma liberalidade do empregador, o terceirizado afastado poderá continuar a receber ou ter seu benefício reduzido/cessado, a depender do que estiver previsto na Convenção Coletiva de Trabalho da categoria. Destaca-se que, regra geral, os valores despendidos a título de vale-alimentação ou vale-refeição possuem natureza salarial, motivo pelo qual deve ser mantido seu pagamento em caso de execução de trabalho remoto por parte dos terceirizados.
Por fim, o Parecer nº 63/2020 se manifestou pela viabilidade jurídica de recebimento do benefício de vale-alimentação pelos colaboradores que estejam inseridos em trabalho remoto, uma vez que a prestação do serviço do terceirizado permanece ocorrendo, apenas se dá de forma remota. Nesse sentido, o terceirizado deve receber o que determina a convenção trabalhista firmada pelo sindicato da categoria, ou, caso não haja estipulação específica em convenção de trabalho, mas a empresa ofereça espontaneamente o benefício para todos os seus empregados, cabe a ela manter os benefícios mesmo que em trabalho remoto. Quanto ao vale-transporte, porém, a conclusão foi no sentido de que é incabível, visto que não há deslocamento do trabalhador em questão que enseje o pagamento da benesse.
De quem é a responsabilidade pela gestão contratual?
Do particular contratado pela Administração. Quanto à gestão do contrato, o Parecer nº 63/2020 apresentou conclusão no sentido de que cabe à Administração Pública orientar a sua execução, nos termos dos do §§ 1º e 2º do art. 67 da Lei nº 8.666/1993, cabendo ao particular, contudo, a execução propriamente dita da gestão do trabalho remoto por parte dos terceirizados, sob pena de ocorrer indevida assunção por parte da Administração da relação trabalhista entre a empresa terceirizada e seus colaboradores. Dessa forma, a gestão efetiva do trabalho remoto deve ser realizada pelo encarregado dos contratos, e não pela Administração, no intuito de não configurar a gestão direta contratual por parte desta.
É possível realizar ajustes contratuais sem a devida formalização dos termos aditivos?
Sim. No que tange à formalização dos ajustes contratuais necessários para permitir a execução do teletrabalho pelos empregados terceirizados, o parecer aduziu, ainda, acerca da possibilidade de que sejam encaminhados às empresas comunicados de ajustes contratuais, mediante justificativa no bojo do processo administrativo que evidencie o interesse público envolvido na alteração contratual, ressaltando que as alterações que gerem economicidade e melhoria na gestão e alocação de recursos não caracterizam ingerência, tendo em vista o interesse público em se evitar gastos indiretos à Administração.
O Parecer nº 106/2020, na mesma linha, apresentou conclusão no sentido de que, tendo em vista a situação excepcionalíssima e emergencial enfrentada, caso não haja tempo hábil para a formalização do termo aditivo contratual sem ampliação do risco a vidas humanas, a área competente deve juntar a devida justificativa de impossibilidade ao processo administrativo. Contudo, uma vez que a suspensão/redução constitui modificação das cláusulas contratuais, nos termos da Nota Técnica nº 66 – 2018 – Delog/Seges/MP, impõe-se a posterior formalização em termo aditivo.
A empresa prestadora de serviços terceirizados tem direito ao reequilíbrio financeiro do contrato?
Nos termos do Parecer nº 106/2020, havendo negativa da empresa quanto à determinação de suspensão/redução dos contratos por conta de questões econômico-financeiras (por exemplo, sob a alegação de que a planilha de formação de preços somente contém previsão de afastamentos legais), esta pode ter direito ao reequilíbrio financeiro do contrato. Se, comprovados, in casu, os requisitos legais necessários à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro fundada na ocorrência de álea extraordinária, nos termos do art. 65, inciso II, alínea “d” da Lei nº 8.666/93, e da Orientação Normativa nº 22/2009, da AGU, assistirá tal direito à empresa.
O Parecer nº 310/2020 apresentou posição semelhante, frisando que, uma vez comprovado o atendimento aos requisitos legais para cada hipótese de recomposição da equação econômico-financeira contratual, quais sejam, reajuste, revisão ou repactuação, assistirá tal direito à empresa terceirizada ou à própria Administração, salientando, porém, que não há como ser feita análise jurídica geral sobre a presença dos pressupostos para o restabelecimento da equação econômico-financeira do contrato administrativo, a qual deverá ser feita pela Administração em cada contrato que tenha mão de obra terceirizada, respeitadas as singularidades de cada caso.
Qual o procedimento a ser adotado para os terceirizados que se enquadram em algum grupo de risco e para aqueles que não integram grupos de risco?
Sintetizando a diferenciação de tratamento entre os empregados terceirizados que integram algum grupo de risco e aqueles que não integram, o Parecer nº 310/2020 trouxe as seguintes conclusões:
[1] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente cursando a oitava fase. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET Direito UFSC de 2017 a 2019, e atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica no campo do Direito Ambiental do Trabalho como bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC.
[2] Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46764-coronavirus-43-079-casos-e-2-741-mortes. Acesso em 12 jun. 2020.
[3] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-DAJI-terceirizados.pdf.pdf.pdf. Acesso em 12 jun. 2020.
[4] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/noticias/1264-recomendcoes-covid-19-terceirizados. Acesso em 12 jun. 2020.
[5] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-Consulta-SAA-Liberao-dos-Terceirizados.pdf. Acesso em 14 jun. 2020.
[6] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-63—COVID-19.pdf. Acesso em 14 jun. 2020.
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A Administração Pública deve pagar pelos serviços prestados por empresa contratada, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual, nas hipóteses em que, no momento da execução, havia consentimento da Administração.
A Administração deve pagar por serviços prestados, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual.
Nesta quarta-feira (03/06/2020), a 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) decidiu, por unanimidade, que a Administração Pública deve pagar pelos serviços prestados por empresa contratada, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual, nas hipóteses em que, no momento da execução, havia consentimento da Administração.
No caso concreto, deu-se provimento a recurso de apelação interposto contra sentença que havia julgado improcedente a pretensão de empresa contratada de receber a devida contraprestação por serviços que, segundo a Administração, não estavam previstos em contrato, mas que foram solicitados e autorizados à época da execução contratual. No acórdão, consignou-se que “embora prestado o serviço sem a observância das cláusulas contidas no Contrato Administrativo, bem como fora do seu objeto, sem irresignação oportuna da sociedade de economia mista contratada, é devida a contraprestação, sob pena de enriquecimento sem causa, situação vedada pelo ordenamento jurídico.”[1].
O acórdão prolatado pelo TJDFT segue entendimento consolidado na jurisprudência pátria, no sentido de que a ausência de contraprestação, pela Administração Pública, aos serviços prestados por empresa contratada, ainda que eventualmente em extrapolação do objeto contratual, configura enriquecimento sem causa. Ou seja, trata-se de uma prática ilícita, passível de ser corrigida pelo Poder Judiciário em favor dos particulares que executam serviços ou fornecem bens em favor do Poder público.
O precedente do TJDFT reconheceu o princípio geral de direito que determina a vedação ao enriquecimento sem causa, norma jurídica que inspirou a regra prevista no parágrafo único do artigo 59 da Lei Federal nº 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), que possui o seguinte teor:
Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão jurisdicional responsável por uniformizar os entendimentos das decisões judiciais de todo o Brasil, no que toca à interpretação da legislação federal, também reconhece como devida a contraprestação aos serviços realizados em favor da Administração, mesmo em caso de nulidade do contrato. Trata-se também de um desdobramento da vedação à invocação da própria torpeza em benefício da Administração[2].
Para o advogado Eduardo Schiefler, que atuou na causa julgada pelo TJDFT, o dever de ressarcir a empresa contratada persistiria mesmo se não houvesse o consentimento formal da Administração, bastando que não se opusesse à sua prestação, nos termos da jurisprudência sobre o assunto.
É de se observar, portanto, que o ordenamento jurídico protege as empresas contratadas que prestaram serviços à Administração Pública, garantindo-lhes o direito a pagamento mesmo nas hipóteses em que a realização destes serviços não respeitou as cláusulas ou fugiu ao escopo do contrato administrativo, ou até mesmo nos casos em que a Administração não consentiu formalmente para a prestação das atividades.
[1] TJDFT, Apelação Cível nº 0709122-43.2018.8.07.0018. Relator Desembargador Eustaquio de Castro, 8ª Turma. Julgado em 03/06/2020.
[2] STJ, REsp 1365600/RJ, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/05/2019.
Read MoreA medida busca promover a transparência e a eficiência dos processos administrativos de contratação pública, com incidência direta sobre a fase de planejamento da contratação pública.
O Ministério da Economia publicou, no dia 22 de maio de 2020, a Instrução Normativa n° 40 (IN 40)[1], que dispõe sobre a obrigatoriedade de que a contratação de bens, de obras e de serviços no âmbito da Administração Pública Federal seja precedida pela elaboração de Estudo Técnico Preliminar (ETP), com aporte tecnológico da plataforma virtual governamental denominada Sistema ETP Digital.
O ETP é documento incumbido de reunir, de registrar e de padronizar o processo de planejamento da contratação pública, bem como de apresentar os critérios e os motivos que ensejam a decisão administrativa pela contratação de bem, de obra ou de serviço. Para isso, exige-se a constância, no documento, da descrição da necessidade administrativa identificada, da descrição dos requisitos constitutivos do objeto apto a sanar a necessidade identificada, do registro do levantamento de mercado realizado pela Administração e de outros elementos, indicados expressamente no texto da IN 40/2020. Ademais, o ETP servirá de base ao Anteprojeto, ao Projeto Básico, ao Termo de Referência ou a documento similar, desde que se conclua pela contratação pública.
Por conseguinte, o Sistema ETP Digital performará como plataforma de registros e de consultas a ETPs, o que intenta possibilitar interoperatividade e comunicabilidade entre órgãos da Administração Pública no âmbito da contratação pública. À administração estadual e municipal será facultado o uso da plataforma. Para Cristiano Rocha Heckert, Secretário de Gestão do Ministério da Economia, “pela primeira vez teremos uma base de dados de estudos preliminares no país. Assim, um órgão poderá consultar no sistema o trabalho de outro órgão em alguma necessidade de aquisição que seja comum aos dois”[2].
A medida ministerial, que entrará em vigor a partir de 1° de julho de 2020, objetiva, em complemento ao regime jurídico de contratações públicas, aprimorar o processo de contratação por órgãos da Administração Pública direta, autárquica e fundacional, mediante a promoção da transparência e da eficiência procedimental-administrativas, por vias de padronização e de regramento da fase interna de planejamento da contratação pública.
[1] BRASIL. Instrução Normativa n° 40, de 22 de maio de 2020. Dispõe sobre a elaboração dos Estudos Técnicos Preliminares – ETP – para a aquisição de bens e a contratação de serviços e obras, no âmbito da administração Pública federal, direta, autárquica e sobre o Sistema ETP Digital. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-40-de-22-de-maio-de-2020-258465807. Acesso em: 27. mai. 2020.
[2] Economia moderniza planejamento para aquisição de bens, de serviços e obras. Governo Federal. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/maio/economia-moderniza-planejamento-para-a-aquisicao-de-bens-servicos-e-obras. Acesso em: 27. mai. 2020.
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