O Registro de Preços na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos
No mercado de contratações públicas, uma prática muito comum é a celebração ou a adesão a uma ata de registro de preços. Por meio deste documento, a Administração Pública e um potencial fornecedor ou prestador de serviços formalizam um compromisso de contratação futura. O conjunto de procedimentos que antecede este compromisso de contratação futura é chamado de sistema de registro de preços.
Para compreender o funcionamento deste modelo, imagine-se que a Administração Pública precise contratar determinado bem ou serviço, mas que não consiga estimar, com precisão, quando efetivamente precisará deste bem ou serviço e em qual quantidade. É justamente neste contexto que se faz oportuno o registro de preços, como uma forma de garantir que, quando a demanda surgir, a Administração Pública possa ser imediatamente atendida na medida das suas necessidades.
A título de exemplo, considere-se que o Poder Público tem o dever de fornecer determinado medicamento à população, mas que a sua demanda varia, de modo que, comprando em excesso, corre-se o risco de que decorra o prazo de validade antes a distribuição desses medicamentos, enquanto, se comprar em quantidade insuficiente, tem-se o risco de não atender à demanda. No caso, o que pode fazer o Poder Público é celebrar uma ata de registro de preços, na qual bastará estimar a quantidade máxima da sua demanda, e o particular se vinculará à obrigação de fornecer o medicamento até essa quantidade máxima durante o período de vigência deste compromisso.
Diante dessa situação, vemos a importância do registro de preços para a Administração Pública brasileira. Não por outro motivo, ao tratar do tema, a Lei nº 14.133/2021 – a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – trouxe uma série de novidades, buscando potencializar as vantagens do registro de preços. Neste artigo, abordaremos os principais pontos do registro de preços na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
A possibilidade de estabelecer preços diferentes para o mesmo bem ou serviço
Um primeiro ponto relevante sobre a regulamentação do registro de preços é a possibilidade de que o potencial fornecedor ou prestador de serviço estabeleça preços distintos para o mesmo bem ou serviço. Essa possibilidade é delimitada pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos para situações específicas, previstas no art. 82, III. São elas:
- Quando o objeto contratado for entregue em locais diferentes;
- Em razão da forma e do local de acondicionamento;
- Em razão do tamanho do lote;
- Por outros motivos justificados no processo.
Em todas essas situações, é natural que o potencial fornecedor ou prestador de serviço tenha um incremento em seus custos para atender a Administração Pública. Reconhecendo essa situação, a Nova Lei de Licitações permitiu expressamente o oferecimento de preços distintos. Todavia, sendo o caso, é recomendável que o edital referente à contratação preveja expressamente tal possibilidade, e que o potencial fornecedor ou prestador de serviço justifique a variação dos preços no processo de contratação.
Possibilidade de proposta em quantitativo inferior ao máximo previsto no edital
Outro ponto da regulamentação do registro de preços na Nova Lei de Licitações que também se relaciona com as propostas oferecidas pelos potenciais fornecedores ou prestadores de serviços diz respeito à possibilidade de que o proponente se vincule a um quantitativo inferior ao máximo previsto no edital.
Sobre isso, é importante compreender que, no sistema de registro de preços, o quantitativo previsto no edital e na própria ata de registro de preços é apenas um limite máximo, e não vincula a Administração Pública, que poderá contratar somente na medida do que for necessário para atender a sua demanda durante o prazo de vigência do compromisso celebrado.
Todavia, nem sempre o fornecedor ou prestador de serviço que pode oferecer os melhores preços tem capacidade para se comprometer com o quantitativo máximo definido em edital. Diante disso, a Nova Lei de Licitações admitiu expressamente a possibilidade de que sejam oferecidas propostas em quantidade inferior àquela prevista no edital. Contudo, sendo o caso, recomenda-se que isso somente seja feito se expressamente autorizado no próprio edital.
O sistema de registro de preços para obras e serviços de engenharia
A Nova Lei de Licitações também trouxe uma importante novidade ao permitir, expressamente, a utilização do sistema de registro de preços para contratações envolvendo obras e serviços de engenharia. Essa possibilidade é abordada nos arts. 82, § 2º, e 85 desta Lei, que estabelece as seguintes condições:
Realização prévia de pesquisa de mercado;
- Seleção de acordo com os procedimentos previstos em regulamento;
- Desenvolvimento de rotina de controle;
- Atualização periódica dos preços registrados;
- Definição do período de validade do registro de preços;
- Inclusão, em ata, do licitante que aceitar cotar preços iguais aos do licitante vencedor na sequência de classificação e inclusão do licitante que mantiver sua proposta original;
- Existência de projeto padronizado, sem complexidade técnica e operacional;
- Necessidade permanente ou frequente de obra ou do serviço contratado.
O sistema de registro de preços nas hipóteses de contratação direta
A Nova Lei de Licitações também inovou na regulamentação do regime do sistema de registro de preços ao permitir a utilização desta modelagem para contratações diretas, isto é, por inexigibilidade ou dispensa de licitação. Essa permissão consta tanto no art. 6º, XLVI e XLVII, quanto no artigo 82, § 6º, desta Lei.
Nesse sentido, em que pese a Lei nº 8.666/1993 não vedasse expressamente a aplicação do sistema de registro de preços para contratações diretas, ela também não autorizava essa prática, havendo, portanto, uma omissão legislativa. Ao regulamentar o tema em âmbito federal, o Decreto nº 7.892/2013 manteve a lacuna legislativa.
Por isso é que, neste contexto, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos inova ao autorizar expressamente a possibilidade de usar o sistema de registro de preços nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade de licitação.
O aumento do prazo máximo de vigência das atas de registro de preços
Quanto ao prazo de vigência das atas de registro de preços, a Nova Lei de Licitações previu que esse prazo é de um ano, mas que é possível a sua prorrogação por mais um ano, desde que comprovada a vantajosidade do preço registrados. Sendo assim, passa a ser possível a extensão do prazo de validade de ata de registro de preços pelo período de até dois anos.
Vale sempre notar, todavia, que a vigência da ata de registro de preços não se confunde com a vigência dos contratos celebrados a partir dela, que podem durar para além do prazo de validade da ata.
Obrigatoriedade da contratação
Outro ponto relevante sobre a regulamentação do registro de preços na Nova Lei de Licitações diz respeito à vinculação da Administração Pública à contratação por meio da ata de registro de preços. Isso porque, conforme o art. 83 desta Lei, a Administração não estará obrigada a contratar o bem ou serviço constante em ata de registro de preços daquele fornecedor ou prestador de serviço, podendo realizar licitação específica para tanto, desde que justifique essa escolha.
A possibilidade e os limites para a adesão ou “carona” no Sistema de Registro de Preços
A possibilidade de adesão ou “carona” no sistema de registro de preços também foi alvo de regulamentação pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que tratou do tema no art. 86, § 2º. A regulamentação impõe as seguintes condições para a adesão de órgãos ou entidades administrativas não participantes da ata de registro de preços:
- Apresentação de justificativa da vantagem da adesão;
- Demonstração de que os valores registrados estão compatíveis com aqueles praticados no mercado;
- Prévias consulta e aceitação do órgão ou entidade gerenciadora da ata e do fornecedor ou prestador de serviços.
Nessa linha, também é importante compreender os limites para a adesão em ata de registro de preços. No caso, esses limites se baseiam no quantitativo máximo registrado na ata em que ocorrerá a adesão. Um desses limites diz respeito à quantidade máxima de cada item registrado em ata que poderá ser adquirido pelo órgão ou entidade aderente, que não poderá superar a metade do quantitativo máximo registrado em ata. Além disso, no total, somando-se todas as adesões, não se poderá adquirir mais do que o dobro do quantitativo máximo registrado em ata.
Para ilustrar, imagine-se que um órgão celebrou uma ata de registro de preços para adquirir 100 unidades de determinado bem. Por óbvio, este órgão gerenciador da ata não poderá superar o quantitativo máximo nela previsto. Quanto aos órgãos ou entidades que tenham interesse em aderir a esta ata, eles poderão fazer, cada qual, até o limite de 50 unidades. Ao todo, os órgãos ou entidades aderentes não poderão superar o limite de 200 unidades. Supondo-se que cada aderente adquirisse 10 unidades, seria possível realizar até 20 adesões a partir da mesma ata, observadas as demais condições legais.
Considerações finais
Como visto, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos traz uma série de novidades importantes para o sistema de registro de preços. Além dos pontos apresentados neste artigo, vale mencionar, também, a previsão dos critérios de julgamento da licitação, que deverão ser de menor preço ou maior desconto sobre tabela, e a possibilidade de alteração de preços registrados em ata, e de licitação por registro de preços sem prévia estimativa do quantitativo máximo, hipótese em que deverá ser previsto o valor máximo a ser despendido em contratações.
Diante de um cenário repleto de inovações legislativas, é importante que o fornecedor ou prestador de serviços que costuma participar de atas de registro de preços esteja atento e ciente das novidades, sejam aquelas trazidas na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ou mesmo na regulamentação específica do tema por cada órgão ou entidade administrativa, a fim de que possa aperfeiçoar suas práticas comerciais, garantindo mais segurança e eficiência.
Read MoreO que é uma Inteligência Artificial e como ela pode ser utilizada na Nova Lei de Licitações?
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea é, sem sombra de dúvidas, uma sociedade digital. Isso significa dizer que vivemos hoje em um mundo altamente tecnológico, comunicativo e informacional, com relacionamentos econômico-sociais cada vez mais complexos, difusos e virtuais.
Para acompanhar o exponencial crescimento da tecnologia, todas as áreas do conhecimento precisam se manter atualizadas e buscar o estado da arte, inclusive a jurídica. Nesse campo, temos uma área em especial que regulamenta a relação entre cidadãos e o Estado e que, por essa razão, está diretamente ligada às demandas e necessidades de uma sociedade digital: o Direito Administrativo.
Nesse contexto, é evidente que o Direito Administrativo é fortemente impactado pelas inovações que, cotidianamente, surgem no âmbito dos mais variados setores da sociedade. Com efeito, um dos instrumentos de inovação mais comentados dos últimos anos, a Inteligência Artificial (IA), é o maior exemplo atual de tecnologia disruptiva capaz de revolucionar as atividades administrativas e a governança pública.
A despeito das desconfianças e dos desafios que invariável e historicamente envolvem a assunção de tecnologias disruptivas, o fato é que, entre os benefícios que a Inteligência Artificial pode proporcionar às relações público-público e público-privadas, podemos citar como as principais a capacidade de conferir maior celeridade, eficiência, auditabilidade, transparência e confiabilidade às rotinas administrativas e às ações dos particulares que interagem com a administração pública.
Mas como a administração pública pode se utilizar dessa tecnologia para melhorar suas tarefas? Para responder a essa pergunta, precisamos primeiro entender o que pode ser considerada uma Inteligência Artificial.
I) O que é Inteligência Artificial?
Compreender o que é Inteligência Artificial é, na verdade, uma tarefa árdua, uma vez que não existe uma denominação em comum para esse tipo de tecnologia. A própria história da tecnologia nos dá uma pista sobre a dificuldade de definição dessa tecnologia, uma vez que várias ferramentas que, antigamente, poderiam ser consideradas inteligentes (a exemplo da calculadora), hoje podem não mais ser assim vistos por diversos estudiosos.
Apesar de não existir uma definição universal sobre o que é IA, esse fato não é necessariamente encarado como negativo, tendo em vista que a ausência de definição rígida permitiu e permite que a tecnologia se desenvolva de forma mais difusa.
Um dos primeiros estudiosos a se debruçar sobre IA foi Alan Turing, conhecido como o “Pai da Computação”, o qual desenvolveu o “Teste de Turing”. Nesse teste, um ser humano teria de avaliar se os textos fornecidos foram feitos por uma máquina ou por um humano, e caso a máquina conseguisse “se passar por uma pessoa”, ela passaria com sucesso no teste.
Hoje, a título de pesquisa, entende-se por mais correto subdividir a área da Inteligência Artificial, a exemplo do que foi feito pela IBM em seu artigo intitulado “What is artificial intelligence?” (O que é Inteligência Artificial?). Dessa forma, nós podemos entender IA não como algo geral, mas que possui suas próprias subdivisões e cada qual para um fim: a (i) Narrow Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Limitada), ou também chamada de Weak Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Fraca); e (ii) Strong Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Forte).
De maneira simplificada, pode-se entender que uma IA Fraca (Narrow AI) é treinada para trabalhar com dados e situações específicas, ou seja, ela é especializada na realização de tarefas específicas.
Por exemplo, a maioria de nós temos hoje em nossos bolsos sistemas de IA Fraca, como é o caso de programas de reconhecimento facial/de voz de nossos smartphones. A siri, assistente virtual dos produtos da Apple, é um exemplo de IA Fraca. Apesar de aparentar possuir uma “consciência” pela alta interação com o usuário, os assistentes virtuais de voz basicamente processam nossa voz e linguagem e, a partir disso, se utilizam desse processamento para buscar, em mecanismos de pesquisa, resultados para as demandas do usuário.
Isso é feito pelo que se denomina de Machine Learning (aprendizado de máquina), aplicação pela qual as IAs, por meio do acesso aos sistemas de dados, podem “aprender” por si mesmas a interpretar e aprender com base nos dados e padrões. Isto é, aprende-se com a experiência. Assim é que, toda vez que perguntamos algo para um assistente de voz e ele erra, dificilmente o erro acontecerá de novo, uma vez que a IA buscará se adaptar e aprender com a experiência vivenciada.
Entretanto, não deixe se enganar pela facilidade com que temos acesso a tais dispositivos inteligentes, uma vez que as IAs Fracas são mecanismos altamente complexos e que processam enormes quantidades de dados. Isto é, apesar de vivermos rodeados de sistemas inteligentes, isso não os tornam simples de serem desenvolvidos e aperfeiçoados.
Aliás, um exemplo que demonstra que a IA não é algo da terceira década do século XXI é que, em 2017, o Google desenvolveu uma IA Fraca denominada “AlphaZero AI”, que ensinou a si mesma a jogar xadrez em quatro horas e ganhou do programa de IA que até então era campeã do mundo em xadrez, o Stockfish 8.
A antítese para uma IA Fraca seria uma IA Forte (Strong AI), que em termos gerais seria capaz de realizar várias funções, eventualmente ensinando a si mesma como resolver novos problemas. Podemos imaginar esse tipo de IA como as pensadas nos filmes Sci-fi, como o caso de “O Exterminador do Futuro” ou “A.I. – Inteligência Artificial”, e de maneira bem pessimista em “2001: Uma Odisséia no Espaço”.
Esse tipo de IA teria “autoconsciência” e não necessitaria de humanos para que se desenvolvesse. Na verdade, poder-se-ia considerar que a IA tomaria suas “próprias decisões” e teria sua “própria mente”, em inteligência comparativamente igual ou até maior a dos humanos – como é o caso das Artificial Super Intelligence (ASI), que logo mais mencionaremos. Ou seja, podemos entender esse tipo de IA como aquelas que os críticos tanto temem dominar o mundo e os seres humanos. A grande questão é que os caminhos para o desenvolvimento de IAs Fortes têm cada vez tomado mais forma. Não se pode dizer ainda que existem IAs desse tipo, mas já não se pode mais afirmar que se trata de uma fantasia.
E, como digna da complexidade que acompanha o assunto, a Strong AI ainda pode ser dividida em mais duas outras: a Artificial General Intelligence (AGI) (Inteligência Artificial Geral) e Artificial Super Intelligence (ASI) (Super Inteligência Artificial), sendo que “Uma AGI é uma forma teórica de IA na qual sua inteligência seria equivalente à de um humano, sendo autoconsciente com a habilidade de resolver problemas, aprender e planejar o futuro. Já uma ASI, também ainda teórica, teria uma inteligência muito superior a um humano.”
Diante de tudo o que foi exposto, compartilhamos da conclusão de Fabiano Hartmann Peixoto e Roberta Zumblick Martins da Silva, segundo os quais uma boa maneira de se compreender o termo Inteligência Artificial é “como um termo guarda-chuva: que abriga uma série de aplicações e tecnologias diferentes”, cada qual para uma destinação específica.
No mais, para a finalidade que se quer dar à Inteligência Artificial como um auxiliador da Administração Pública, entendemos como adequado nos restringir à aplicação da IA Fraca (Narrow AI), ou seja, um sistema que seja treinado e focado no processamento de padrões e dados para a realização de tarefas específicas.
II) Como uma Inteligência Artificial pode ser utilizada pela a Administração Pública em suas contratações com particulares?
Antes de falarmos da aplicação das IAs às compras públicas, é pertinente que façamos o destaque para a inclusão da inovação tecnológica que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) fez no mundo das contratações públicas.
Por exemplo, a Nova Lei de Licitações estabeleceu, no seu artigo 11, inciso IV, o incentivo à inovação e o desenvolvimento nacional sustentável como objetivo dos processos licitatórios. Essa previsão, apesar de não ser uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro, é um forte estímulo para a consolidação da inovação nas contratações públicas. A administração pública deve sempre buscar inovar, facilitar e dinamizar as compras públicas, modernizando e aproximando as licitações da tecnologia e da realidade do mercado.
A Nova Lei de Licitações também estabeleceu como regra a tramitação eletrônica do processo administrativo (art. 17, §2º), bem como criou o Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP. Ambas as medidas demonstram o espírito da nova legislação de se valer de ferramentas tecnológicas para modernizar o regime jurídico de licitações e contratos, o qual historicamente sempre foi reconhecido por ser analógico e extremamente burocrático.
Além disso, tanto a utilização de processos administrativos eletrônicos como a criação do PNCP permitem que sistemas que operam mediante Inteligência Artificial sejam desenvolvidos e utilizados pela administração pública e por particulares, especialmente na atividade de controle interno, externo e social das compras públicas, sem falar nas próprias rotinas internas dos órgãos públicos.
Dito isso, considerando o caráter inovador da Nova Lei de Licitações, é essencial que nós entendamos como uma Inteligência Artificial pode ser utilizada, efetivamente, para o benefício da Administração e seus administrados.
III) Como uma IA pode ser usada nas contratações públicas?
Apesar da recente empolgação com as possibilidades de uso de IAs – como o ChatGPT, desenvolvido pela Open AI –, muito ainda há o que se discutir sobre o seu uso para substituição de operadores do direito no dia a dia, uma vez que a sensibilidade e análise humana são fundamentais para o Direito e sua prática, especialmente em se tratando da administração pública e da sua relação com os cidadãos.
Contudo, por certo é que uma Inteligência Artificial é muito útil na substituição de seres humanos em processos mecânicos e repetitivos, os quais se utilizam de dados e padrões para sua consecução, a exemplo de minutas de recursos, análise de preços e elaboração de relatórios. A execução dessas atividades pode, hoje, ser auxiliada por ferramentas de IA, sem necessariamente substituir o operador humano – que ainda terá a essencialidade de sua percepção e criatividade humanas.
Um dos motivos que permitem que a IA auxilie os humanos em tais atividades é o Processo de Linguagem Natural (Natural Language Processing – NLP), que, em síntese, significa a habilidade das máquinas de “ler” ou “entender” a linguagem humana, sendo capaz de “traduzir” o que nós falamos e escrevemos para a linguagem das máquinas, como a Java e Python, entre outras. E não só uma tradução literal é feita, como também a análise do contexto, preferências, e demais complexidades de interpretação e diálogo que os sistemas usam para refinar cada vez mais a capacidade de resposta e processamento de dados, o que é chamado, grosso modo, de deep learning.
Assim é que, ao estabelecer o processo administrativo eletrônico como regra, a Nova Lei de Licitações não só tem o potencial de tornar as compras públicas mais céleres e eficientes, como também facilita a disponibilização, seja interna ou externa, de dados e informações que potencializam o uso de IA, por exemplo, que podem atuar como verdadeiros agentes fiscalizadores dos procedimentos licitatórios, seja dos órgãos de controle interno e externo, seja dos cidadãos que possuem o interesse de fiscalizar a atividade administrativa.
Somado a isso, a criação de uma plataforma online de licitações públicas, o Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP, que tem entre suas finalidades a centralização de diversas informações relevantes relacionadas com as contratações públicas regidas pela nova lei, em formato de dados abertos, permitindo que as ferramentas de IA atuem e auxiliem as atividades de controle nas compras públicas.
Aliás, tal possibilidade está prevista, inclusive, no artigo 169 da Nova Lei de Licitações, que consigna expressamente a adoção de recursos de tecnologia da informação para as atividades de controle das compras públicas:
Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa
Por fim, listamos abaixo alguns exemplos de uso de Inteligência Artificial no ambiente licitatório, com o intuito de demonstrar como uma IA poder ser utilizada para ajudar no controle das compras públicas:
(i) estruturar dados inicialmente não estruturados, a fim de facilitar a análise e o processamento por máquina;
(ii) organizar automaticamente os documentos dos processos administrativos;
(iii) aplicar a técnica de ocerização de arquivos em imagem para transformá-los em formato texto pesquisável;
(iv) realizar o cruzamento de dados para apurar possíveis óbices à participação de empresas em licitações em andamento ou à contratação ao final;
(v) reduzir a termo, de forma automatizada, as sessões públicas gravadas em áudio e vídeo;
(vi) efetuar pesquisas de preços e verificar orçamentos, propostas e cobranças, a fim de identificar possíveis superfaturamentos ou sobrepreços;
(vii) apoiar o processo de redação de relatórios, decisões e documentos em geral, com correção de texto e sugestão de jurisprudência e doutrina que podem ter relação com o caso concreto;
(viii) empreender a anonimização de possíveis dados sensíveis e sigilosos, em atenção às regras impostas pela Lei de Acesso à Informação e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei nº 13.709/2018); e
(ix) criar acervos de decisões administrativas e de modelos de atos administrativos a serem compartilhados entre os servidores públicos e as unidades de controle dos órgãos e das entidades.
IV) Conclusão
Esse texto teve por objetivo apresentar, de forma didática e minimamente técnica, a Inteligência Artificial e como ela pode contribuir para melhorar os processos de contratações públicas. Basicamente, conclui-se que o uso da IA pode tornar os procedimentos licitatórios mais céleres e efetivos, cumprindo com o princípio da eficiência, baluarte da administração pública.
Com a Nova Lei de Licitações, a inovação como objetivo nas compras públicas foi oficializada, criando um ambiente propício para o uso de sistemas inteligentes e aumentando as chances de que as alterações trazidas pela nova legislação incrementem a celeridade, eficiência, auditabilidade, transparência e confiabilidade das compras públicas.
O Portal Nacional de Compras Públicas – PNCP e a consolidação do processo administrativo eletrônico como regra nos processos de contratações públicas foram marcos importantes para a aplicação de novas tecnologias e a adaptação do ambiente licitatório às mudanças.
Certamente, ainda há muito a ser explorado na evolução das IAs e o seu uso pela administração pública, mas é fato que já vem sendo utilizado no âmbito público e pelos órgãos de controle, sendo atualmente um importante instrumento que contribui para a governança das contratações públicas.
Read MoreNova Lei de Licitações e o Procedimento de Intenção de Registro de Preços
1. O Procedimento da IRP
Previsto na Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), o procedimento público de intenção de registro de preços (IRP) tem, como finalidade básica, permitir que um órgão da Administração avise outros órgãos públicos sobre a sua intenção em licitar por intermédio do Sistema de Registro de Preços (SRP).
O instrumento é utilizado para possibilitar, durante a fase interna da licitação, que outros órgãos ou entidades do Poder Público possam participar de Ata de Registro de Preços (ARP) para a aquisição de um mesmo produto ou de determinado serviço, trazendo-se, assim, eficiência e até mesmo economicidade para a atividade administrativa.
Ou seja, quando determinado órgão verifica a necessidade de promover uma licitação por meio do Sistema de Registro de Preços, deve viabilizar a IRP para que possibilite que outras entidades da Administração Pública participem do mesmo processo licitatório, se assim desejarem.
Um dos propósitos da IRP é fazer com que a Administração Pública obtenha uma economia de escala, com o aumento do quantitativo licitado e com a consequente redução do valor unitário por item – evitando que vários órgãos promovam várias licitações quando o produto ou serviço a ser contratado é o mesmo.
Assim, a título de exemplo, se determinado hospital verifica a necessidade de assentos para os acompanhantes em sua estrutura interna, poderá tornar pública essa sua intenção em adquirir novos assentos através da IRP e possibilitar que outros órgãos manifestem seu desejo em também participar da futura licitação.
Na Nova Lei de Licitações, a IRP se encontra no artigo 86, que regulamenta o procedimento, sua aplicação e as condições em que poderá ser utilizado pela Administração Pública, visando a conduzir o processo de participação dos órgãos ou entidades interessados na inscrição da Ata de Registro de Preços.
2. Conceito e Função
A IRP é realizada por quem a lei denomina de Órgão Gerenciador, responsável pela abertura do processo licitatório a partir do Sistema do Registro de Preços. Na prática, a intenção tornada pública pelo Órgão Gerenciador abre a possibilidade para que as demais entidades da Administração Pública (Órgãos Participantes), salvo os casos excepcionados em lei, participem da ata de registro de preços e promovam o registro em conjunto.
O artigo 86 revela também que a IRP não consiste em uma licitação. Na verdade, a IRP corresponde a uma fase preparatória da licitação por Sistema Registro de Preços, que é um procedimento auxiliar das licitações e contratações públicas, conforme estabelecido no artigo 78, IV, da Lei nº 14.133/2021.
No que diz respeito à finalidade da IRP, essa etapa visa a garantir uma economia de escala para a Administração Pública e a trazer maior eficiência administrativa, evitando que várias licitações relacionadas a um mesmo objeto sejam realizadas.
Dessa forma, à medida que é realizado o registro de preços conjunto, a partir da inscrição dos órgãos ou entidades interessados na ata, há um aumento dos quantitativos licitados. Esse aumento faz com que a adoção desse procedimento ofereça uma considerável economia ao erário público e caracterize a intenção de registro de preços como uma estratégia importante para fins de atendimento ao princípio da eficiência.
3. A Intenção de Registro de Preços é obrigatória?
De modo a reforçar a importância da IRP no certame público, uma interpretação possível sobre o artigo 86 da Nova Lei de Licitações é a de que a manifestação da intenção do registro de preços configura um dever reservado ao Órgão Gerenciador. A regra que consta do dispositivo estabelece que este órgão, responsável pela condução da licitação, deverá, no prazo mínimo de oito dias úteis, anunciar a sua intenção pública de promover o registro, e, com isso, possibilitar que os demais órgãos e entidades do Poder Público possam participar do certame.
No entanto, o próprio o § 1º do mesmo artigo 86 admite a possibilidade da dispensa da intenção de registro de preços. A redação proposta pelo parágrafo acaba trazendo uma pequena confusão na leitura de todo o dispositivo legal, já que esta dispensa se daria “quando o órgão ou entidade gerenciadora for o único contratante”.
Uma interpretação razoável sobre o tema, portanto, é que o próprio órgão ou entidade possui discricionariedade para decidir motivadamente se realizará ou não o procedimento de IRP, a despeito do termo “deverá” contido no caput do artigo 86 da NLLCA.
Vale ressaltar que esta dispensa à IRP precisa ser devidamente justificada, cabendo ao Órgão Gerenciador demonstrar a necessidade da sua participação exclusiva na Ata de Registro de Preços. Sobre essas justificativas, o dispositivo em comento versa sobre a instituição de um regulamento, que, então, deve abordar as hipóteses de afastamento da realização da intenção de registro de preços.
Entende-se que essa dispensa também poderá ser empregada quando houver alguma inviabilidade operacional, a exemplo da falta de capacidade de gerenciar a ata de registro de preços. Evidentemente, tais hipóteses de dispensa devem ser devidamente justificadas, já que a regra legal é realizar o procedimento público de IRP.
4. Conclusão
O procedimento público de registro de preços (IRP) representa um procedimento importante para o sistema de registro de preços. É verdade que são instrumentos administrativos especialmente relacionados com os órgãos e as entidades pertencentes ao Poder Público, o que não retira a importância de que as empresas interessadas em contratar com a administração pública ignorem as suas peculiaridades.
No âmbito da Nova Lei de Licitações, a IRP servirá para que outros órgãos e entidades públicas possam comunicar ao órgão gerenciador o objeto que pretendem contratar e os seus quantitativos.
Observa-se que a IRP é uma etapa reconhecida pela Lei nº 14.133/2021 e deve ser observada por aqueles envolvidos no processo licitatório, sendo que, a partir de uma interpretação da Nova Lei de Licitações, sua obrigatoriedade é a regra a ser adotada, apesar de existir certa discricionariedade, desde que justificada, para que não seja realizada.
Se você possui alguma dúvida ou sugestão em relação ao tema? Entre em contato conosco por meio do e-mail contato@schiefler.adv.br, para que um dos nossos advogados especialistas na área possa lhe atender.
Read MoreSe o campo geral das licitações e contratações públicas pode(e deve) se modificar com as interpretações sobre a Lei nº 14.133/2021, é possível que o microssistema especial das estatais também possa sofrer uma influência reflexa - abrindo-se aqui, possivelmente, o espaço para a aplicação subsidiária ou para analogia nos casos de lacunas a serem preenchidas na aplicação.
Com a publicação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, promulgada no dia 1º de abril de 2021 sob o número 14.133, significativas mudanças são realizadas neste campo do direito administrativo brasileiro, em todos os âmbitos das Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, positivando entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, mas também trazendo inovações práticas que deverão ser levadas em consideração pelos gestores públicos e pelos particulares interessados em contratar com o Poder Público (confira aqui as três novidades que você precisa conhecer sobre a Lei nº 14.133/2021).
Dada a sua vasta abrangência, é legítimo que surja a dúvida se o novo diploma se aplica às estatais e, em caso afirmativo, de que modo afetaria suas licitações e seus contratos administrativos.
Antes de se buscar a resposta, é preciso entender o que são as chamadas estatais e a que regime jurídico estão submetidas no direito administrativo pátrio. Atualmente, a expressão [empresas] estatais é utilizada na doutrina para se referir de modo geral a qualquer das entidades empresariais regidas pela Lei nº 13.303/2016. Conforme o caput do seu art. 1º, estas entidades são as empresas públicas e as sociedade de economia mista e suas subsidiárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos. Não é por outra razão que a Lei nº 13.303/2016 é a chamada de Lei das Estatais e, desde a sua promulgação, tem regido, na condição de estatuto especial, as licitações e os contratos administrativos realizados por essas entidades.
Assim, considerando a preexistência do regime jurídico específico da Lei nº 13.303/2016, a Lei nº 14.133/2021 oferece à questão que serve de título a este artigo uma resposta preliminar já no seu art. 1º, § 1º, o qual determina que “Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.”
O fato de a nova Lei de Licitações ter distinguido o regime jurídico das estatais encontra, de certo modo, explicação no caráter da Lei nº 13.303/2016. Como se percebe, a Lei das Estatais é especial, isto é, prescreve regime próprio de licitações e contratos para estas entidades, que já se sobrepunha ao regime tradicional de licitações, anteriormente baseado na Lei nº 8.666/93 (normas para licitações e contratos administrativos), na Lei nº 10.520/02 (modalidade pregão) e na Lei nº 12.462/12 (Regime Diferenciado de Contratações – RDC). A nova Lei de Licitações, neste sentido, respeitou a especialidade da Lei nº 13.303/2016.
Contudo, em que pese o seu caráter especial, a Lei das Estatais prevê, explicitamente, três casos de aplicação de dispositivos normativos que devem ser encontrados alhures. Com efeito, o art. 32, inciso IV, da Lei nº 13.303/2016 estabelece que:
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes:
[…]IV – adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.
Por meio do artigo e inciso supracitados, a Lei das Estatais determina que, para a aquisição de bens e serviços comuns, deve-se adotar preferencialmente o pregão como modalidade de licitação. Contudo, destaca-se o entendimento doutrinário predominante segundo o qual a adoção da modalidade pregão pelas estatais se limita aos aspectos procedimentais, não excluindo a observância da Lei nº 13.303/2016 no que diz respeito aos demais aspectos substanciais do rito licitatório e do contrato.
Ao revogar expressamente a Lei nº 10.520/2002 (após decorridos dois anos da sua publicação oficial), a nova Lei de Licitações substitui a Lei do Pregão na regência desta modalidade, determinando, pelo comando do seu art. 189, que a Lei nº 14.133/2021 seja aplicada às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002, e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011. Como consequência, sendo o caso da adoção do pregão como modalidade de licitação pelas estatais, o regime a ser aplicado será o da nova Lei de Licitações. Essa circunstância faz surgir a questão de saber qual será o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o alcance da sua aplicabilidade, isto é, permanecerá limitado ao procedimento? Tal questão, provavelmente, será objeto de debates nos tribunais.
O segundo caso em que se vê mitigada a especialidade da Lei das Estatais é o previsto no seu art. 55, inciso III, que determina a adoção de critérios de desempate estabelecidos na Lei nº 8.666/1993. Veja-se:
Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate:
[…]III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Como a Lei nº 8.666/1993 também será revogada pela nova Lei de Licitações após decorridos dois anos da sua publicação oficial, os seus critérios de desempate se tornarão inaplicáveis e serão tacitamente substituídos pelos que são estabelecidos no § 1º do art. 60 da Lei nº 14.133/2021. Esta substituição promoverá algumas mudanças, notadamente em razão dos incisos I e IV do referido parágrafo, a saber: dar-se-á preferência para empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante ou, no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no território do Estado em que este se localize (inciso I); e para empresas que comprovem a prática de mitigação relativa à Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC, nos termos da Lei nº 12.187/2009 (inciso IV). Além disso, o inciso V do § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993, que assegurava preferência aos bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação, não é reproduzido na nova Lei de Licitações como critério de desempate, mas como exigência da fase de habilitação (art. 63, inciso IV).
A terceira remissão da Lei das Estatais encontra-se em seu art. 41, segundo o qual “Aplicam-se às licitações e contratos regidos por esta Lei as normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”.
Resta averiguar, então, o efeito do disposto no art. 178 Lei nº 14.133/2021. Este artigo acrescenta ao Código Penal os artigos 337-E a 337-P, sob o Capítulo II-B – Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos, transferindo para o códex próprio os dispositivos penais que integravam a Lei nº 8.666/1993, porquanto revogou expressa e imediatamente os seus artigos 89 a 108. Como consequência, o regime disciplinar penal aplicável à Lei das Estatais se encontra doravante no Código Penal, perdendo efeito o art. 41 da Lei nº 13.303/2016, o qual determinava a aplicação às licitações e contratos regidos por esta lei das normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666/1993. A mudança, porém, não se limita a este aspecto formal, pois este regime disciplinar sofreu algumas alterações de natureza material.
Isto se evidencia pela comparação dos novos tipos penais criados no Código Penal pela Lei nº 14.133/2021 com os correspondentes dispositivos revogados na Lei nº 8.666/1993, que revela, à primeira vista, uma continuidade normativo-típica, porém, com alterações nos preceitos secundários, mediante cominações mais gravosas e a substituição do regime de detenção pelo de reclusão.
A mudança mais vistosa consiste, portanto, no aumento do rigor punitivo, que tem consequências relevantes. Vejamos, por exemplo, os novos artigos 337-E e 337-L do Código Penal. Eles correspondem respectivamente aos revogados artigos 89 e 96 da Lei nº 8.666/1993, e previam penas de detenção de 3 (três) a 5 (cinco) anos e multa, e de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa, respectivamente. Além de promoverem mudanças na tipificação para ampliar a sua abrangência, os novos artigos mudaram a sua cominação, não somente substituindo a detenção pela reclusão, mas também majorando em um ano o tempo mínimo da pena de privação de liberdade, que passou a ser, para ambos os tipos penais, 4 (quatro) anos.
As consequências são relevantes. Em primeiro lugar, verifica-se o recrudescimento da punição, pois a pena de reclusão é reservada para condenações mais severas, sendo geralmente cumprida em estabelecimentos de segurança média ou máxima, permitindo o início do seu cumprimento em regime fechado. Em segundo lugar, com o aumento da pena mínima para 4 (quatro) anos, os artigos 337-E e 337-L impedem a celebração de acordos de não persecução penal, uma vez que o art. 28-A do Código de Processo Penal autoriza o Ministério Público a propor tal medida despenalizadora apenas em casos de “prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”.
Outra alteração digna de atenção no regime disciplinar penal doravante aplicável automaticamente a todas as licitações e contratos administrativos afeta diretamente o sistema de cálculo das multas cominadas. De fato, revogou-se o art. 99 da Lei nº 8.666/1993, que determinava o pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base devia corresponder ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente. Estes índices, porém, estavam limitados pelo disposto no parágrafo 1º, não podendo ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. Já o novo art. 337-P do Código Penal estabelece que a multa cominada aos crimes em licitações e contratos administrativos seguirá a metodologia de cálculo prevista neste Código, mantendo-se o limiar de 2% (dois por cento) sobre o valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta, sem, contudo, estipular um teto próprio, aplicando-se, porém, o limite máximo previsto no art. 49 do Códex Criminal.
Nem tudo, porém, é releitura do sistema disciplinar penal precedente. Há um tipo penal completamente novo, introduzido pelo artigo 337-O, que visa coibir a frustração do caráter competitivo da licitação ou da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Atente-se para o dispositivo do § 2º, que determina que a pena prevista no caput do artigo se aplica em dobro se o crime for praticado com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem.
Estas considerações nos permitem afirmar, por fim, que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos afeta as estatais, pelo menos, de três modos. Em primeiro lugar, sendo o caso da adoção do pregão como modalidade de licitação pelas estatais, a lei de regência para este procedimento passa a ser a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Em segundo lugar, os critérios de desempate que devem ser observados nos procedimentos licitatórios das empresas estatais estabelecidos § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993 serão substituídos pelos do § 1º do art. 60 da Lei nº 14.133/2021, com inovações referentes ao local de estabelecimento das concorrentes e à observância da Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC. E em terceiro lugar, o sistema disciplinar penal aplicável às estatais, que antes da publicação da Lei nº 14.133/2021, se encontravam, com remissão expressa, na Lei nº 8.666/1993, a partir de 1º de abril de 2021 se integram ao Código Penal, aplicando-se indiscriminadamente às licitações e contratos administrativos, pouco importando o seu regime jurídico. Além dessa alteração de cunho formal, verifica-se que, do ponto de vista material, ao proceder à sua transferência para o Código Penal, a Lei nº 14.133/2021 promoveu, de modo geral, um endurecimento do regime disciplinar penal, buscando, ao que tudo indica, responder a um anseio social de combate à corrupção.
Embora essas sejam as três únicas remissões expressas da Lei das Estatais aos antigos diplomas gerais de licitações, há que se ponderar que sendo a Lei nº 14.133/2021 um novo diploma geral, todo o léxico de licitações e contratações públicas passa a encontrar um novo fundamento legal “de base” neste mais recente diploma. Assim, há que se cogitar que a interpretação da Lei das Estatais poderá sofrer influência das interpretações futuras da Lei nº 14.133/2021. Em outras palavras, se o campo geral das licitações e contratações públicas pode (e deve) se modificar com as interpretações sobre a Lei nº 14.133/2021, é possível que o microssistema especial das estatais também possa sofrer uma influência reflexa – abrindo-se aqui, possivelmente, o espaço para a aplicação subsidiária ou para analogia nos casos de lacunas a serem preenchidas na aplicação.
Afora essas três modificações que possuem previsão de eficácia ou imediata ou para daqui a dois anos, portanto, resta ainda saber se e como a nova Lei de Licitações influenciará o regime especial de licitações e contratações das estatais. Essas, no entanto, são questões que serão respondidas pela doutrina, pelos tribunais e pelos operadores do Direito em geral – todos no seu devido tempo.
Read MoreA nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) já está em vigor, iniciando um processo de transformação histórico no direito administrativo brasileiro. E você, já sabe o que mudou? Neste texto, separamos três novidades da nova Lei de Licitações que você precisa saber.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) foi publicada em 1º de abril de 2021, após longos anos de debates e espera. Além de incorporar entendimentos já consolidados em Tribunais e conhecimentos provindos da doutrina, o novo diploma legal trouxe inovações que certamente promoverão uma transformação profunda na prática deste campo do direito administrativo brasileiro. Neste texto, selecionamos três novidades que, em breve, devem promover grandes alterações na dinâmica das licitações e dos contratos públicos, e que, por isso, você precisa conhecer.
Modalidades de Licitações
Uma das novidades mais notáveis da Lei nº 14.133/2021 diz respeito às modalidades de licitações previstas (art. 28), a saber: I) pregão; II) concorrência; III) concurso; IV) leilão; V) diálogo competitivo.
Em contraste com a Lei nº 8.666/93, a nova Lei extingue as modalidades de tomada de preços e convite, mantendo a previsão de concorrência, concurso e leilão, incorporando o pregão (antes em lei especial) e criando a modalidade do diálogo competitivo.
Ainda que, à primeira vista, possa parecer que a inovação tenha ocorrido de forma “tímida”, a nova Lei unifica os regimes em apenas um diploma e altera o critério para a definição das modalidades. Diferentemente da Lei nº 8.666/93, agora o valor estimado da contratação não é mais um critério de definição da modalidade, que passa a ser definida precipuamente pela natureza do objeto a ser licitado (conforme a previsão nos artigos 18 a 27). Da mesma forma, a simplificação das modalidades também reflete uma ampliação dos casos de contratação direta, havendo modificações das hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação.
Assim, se de um lado essas modificações parecem introduzir novos ares para a dinâmica das licitações, a novidade stricto sensu ficou a cargo da modalidade de “Diálogo Competitivo”. Segundo o art. 6º da Lei, que traz a definição dos seus principais conceitos, o diálogo competitivo deve ser entendido da seguinte forma:
XLII – diálogo competitivo: modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos.
Como se pode perceber, essa modalidade traz a permissão de que os próprios licitantes, previamente selecionados por critérios objetivos, possam contribuir para o desenvolvimento de alternativas que atendam às necessidades almejadas para uma determinada contratação pública. Dessa forma, a proposta final será apresentada somente após a conclusão dos diálogos e debates, de modo a induzir a criação de uma solução conjunta entre os setores públicos e privados – seguindo uma tendência de “horizontalização” já existente no direito administrativo brasileiro (vide, por exemplo, os Procedimentos de Manifestação de Interesse). As diretrizes gerais de funcionamento do instituto foram previstas no art. 32 da Lei, porém, certamente, haverá ainda muitas dúvidas acerca de sua condução, cabendo à construção doutrinária e jurisprudencial um importante papel para a eficácia dessa novidade.
As expectativas apontam que essa nova modalidade poderá contribuir especialmente para a contratação de objetos complexos, para os quais os antigos modelos de licitação eram insuficientes e resultavam, não raramente, em problemas de execução contratual. Essa é, portanto, uma novidade que possui potencial para beneficiar sobremaneira a qualidade dos contratos da Administração Pública – e que você precisa conhecer.
Inversão de fases: julgamento anterior à habilitação
Outra novidade relevante é a trazida pelo o art. 17 da nova Lei, que prevê, como regra geral, que as licitações deverão seguir uma sequência em que a fase de julgamento antecede a fase de habilitação. Com isso, a ordem “antiga” – em que primeiro ocorria a habilitação e depois o julgamento, conforme a Lei nº 8.666/93 – ainda será possível, porém, somente mediante ato motivado que torne explícitos os benefícios decorrentes de tal sequência (art. 17, §1º, da Lei nº 14.133/2021).
Embora essa chamada “inversão de fases” não chegue a ser uma novidade no ordenamento jurídico, uma vez que já era praticada na Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), a sua generalização afigura-se alvissareira para a desburocratização dos certames públicos. Com a sua extensão, como regra geral, a todas as modalidades de licitação, é possível que a condução de certames licitatórios se torne, na sua maior porção, mais simples e mais célere.
Atualmente um símbolo da burocracia, é consenso que a fase de habilitação representa uma desgastante etapa tanto para os licitantes quanto para as Comissões de Licitação. Com a inversão das fases, o licitante passará a concentrar-se primordialmente na proposta técnica a ser apresentada, deixando as trabalhosas tarefas de reunião e conferência de documentos de habilitação somente para o caso de já ter-se sagrado vencedor da etapa de julgamento. Além disso, a regularidade fiscal, em qualquer caso, somente será exigida “em momento posterior ao julgamento das propostas, e apenas do licitante mais bem classificado” (art. 63, III). Somada à preferência pela realização de modo eletrônico (art. 17, §2º, da Lei nº 14.133/2021), a antecedência da fase de julgamento sobre a fase de habilitação possivelmente irá estabelecer-se como um importante marco da efetividade e da celeridade das licitações brasileiras.
Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP
Com a finalidade de promover a transparência nas contratações públicas e aprofundar o processo de digitalização da Administração, o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) merece destaque como novidade e total atenção da comunidade jurídica.
A nova Lei de Licitações previu o PNCP no Capítulo I do seu Título V – Disposições Gerais, fixando a sua destinação e funcionalidades a serem oferecidas. Assim, com a proposta de ser o site oficial e centralizado das contratações públicas, o PNCP será, sem dúvidas, um arrojado passo de modernização das licitações brasileiras, avançando sobre uma frente já aberta, por exemplo, pelo site “ComprasNet”, de utilização do Governo Federal.
Igualmente em linha com a regra de preferência pela realização eletrônica dos certames, o Portal seguirá o formato de dados abertos, com a obrigatoriedade de manter um repositório de informações e documentos de abrangência nacional, a ser gerido pelo “Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas”, com representantes de todos os entes da Federação (art. 174, § 1º, da Lei nº 14.133/2021). A sua importância, no entanto, vai além de um mero repositório virtual, pois a Lei preceitua que a divulgação no PNCP será “condição indispensável para a eficácia” dos contratos públicos e seus aditamentos (art. 94, caput, da Lei nº 14,133/2021). Assim, se, por um lado, o PNCP é um locus juridicamente relevante para a eficácia dos contratos, por outro, as incertezas sobre o início do seu efetivo funcionamento acende um alerta para a aplicabilidade imediata da própria Lei nº 14.133/2021. Pois, diferentemente de outras previsões legais de implementação imediata, o Portal Nacional de Contratações Públicas ainda depende de sua estruturação no mundo material da Web. Como à eficácia da lei não é dado aguardar a criação do Portal, e como a própria lei não previu alternativas para este “período de transição”, é certo que a aplicação da nova Lei de Licitações terá um início fora do esquadro ideal do dever-ser. Neste sentido, temos que concordar com Schiefler, para quem “a nova Lei de Licitações já vigora entre nós, embora desacompanhada do PNCP”, não sendo este um problema impeditivo de sua aplicabilidade, para o qual se oferecem inúmeras soluções pragmáticas que cumprem o objetivo da lei.
Assim, diante das expectativas de efetivação do Portal Nacional de Contratações Públicas, só nos resta aguardar, com esperança, que essa novidade da nova Lei de Licitações possa, no futuro próximo, cumprir um importante papel de aprimoramento da accountability das contratações públicas. Fato indiscutível, no entanto, é que essa é uma previsão nova e sem precedentes para o direito administrativo brasileiro.
Por fim, apenas a título exemplificativo, poder-se-ia ainda mencionar novidades que aqui não foram contempladas, mas que certamente trarão mudanças nas licitações e contratações públicas, como: i) a criação do “agente de contratação” e da “comissão de contratação”; ii) a alteração nos critérios de julgamento das propostas; iii) a ampliação dos casos de contratação direta; iv) a exigência de programas de integridade para contratações de grande vulto; v) a previsão de novos regimes de execução contratual; vi) as alterações no Código Penal; e vii) a introdução e confirmação de métodos alternativos de solução de conflitos, como o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. Porém, como já dito inicialmente, este não é um texto que se propôs a exaurir todas as novidades da Lei nº 14.133/2021, mas tão somente informar aquelas que o leitor não poderia deixar de conhecer – e que, agora, já conhece.
Read MoreA Nova Lei de Licitações não representa uma ruptura, mas a continuação do modelo vigente, aprimorado a partir de inovações incrementais, cujo teor visa, principalmente, a reforçar a estabilidade das contratações públicas e a promover um ambiente de confiança na relação público-privada.
Eduardo Martins Pereira[1]
Desde o dia primeiro de abril de 2021, com a publicação da Lei Federal nº 14.133 (ou Nova Lei de Licitações, como vem sendo denominada), a atenção dos especialistas em Direito Público tem-se voltado para discutir o novel regramento e entender de que forma ele impactará a sistemática das contratações públicas.
Tal preocupação, aliás, é de extrema pertinência, haja vista a amplitude da Nova Lei de Licitações, que, ao prescrever a revogação (a acontecer em dois anos) e ocupar o espaço das Leis nº 8.666/1993 (antiga Lei de Licitações e de Contratos Administrativos), nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e nº 12.462/2011 (Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas), se torna a grande referência normativa em matéria de contratações públicas.
Nessa toada, busca-se aqui desvelar o impacto da Nova Lei sobre os contratos administrativos vigentes desde antes da entrada em vigor da nova sistemática (se impacto haverá), e também sobre os contratos administrativos firmados após a sua publicação.
Para tanto, importa inicialmente compreender como se dará o regime de transição entre as leis revogadas e a Nova Lei de Licitações. Isto é, entender se a antiga sistemática já foi integralmente substituída, se ainda continua vigente – seja de forma integral ou parcial –, e em qual medida os novos dispositivos já podem e/ou devem ser observados nos contratos administrativos.[2]
A aplicação e o regime de transição para a Nova Lei de Licitações
Sobre a vigência, o artigo 194 da Nova Lei de Licitações é taxativo:
Art. 194. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Com base neste dispositivo, conclui-se que a Nova Lei está apta a produzir efeitos jurídicos desde a sua publicação, em 01/04/2021, prescindindo-se do período de vacância ao qual a produção legislativa via de regra está sujeita.[3]
No entanto, a partir da leitura do artigo 193 da Nova Lei de Licitações[4], verifica-se que algumas das normas substituídas continuam em vigor, enquanto outras foram imediatamente revogadas.
Nesse sentido, tem-se que o regime de crimes e penas nas contratações públicas foi imediatamente derrogado, com o deslocamento da matéria para o Código Penal. De outro lado, a base normativa da antiga sistemática elencada no inciso II do artigo 193 somente será revogada após decorridos dois anos da publicação da Nova Lei, em 3 de abril de 2023.[5] Assim, do dia 1 de abril de 2021 até 3 de abril de 2023, inclusive, haverá dois regimes normativos para as contratações públicas.
Em atenção a essa circunstância, a Nova Lei de Licitações, no caput do seu artigo 191[6], confere à Administração o poder-dever de adotar a sistemática que melhor convenha aos seus interesses, a cada contratação, desde que o regime escolhido seja expressamente indicado no edital, ou no aviso ou instrumento de contratação direta.
Diante dessa situação, com dois regimes jurídicos para a realização de uma contratação pública, o novo regramento, no parágrafo único do seu artigo 191[7], indica que o regime que vigorará sobre cada contrato administrativo será aquele que regeu a respectiva licitação ou contratação direta.
Isto é, enquanto os dois regimes para contratações continuarem vigentes, o regime a que estará sujeito cada contrato administrativo será aquele eleito pela Administração para orientar o respectivo procedimento licitatório ou contratação direta. Em outras palavras, até que finde a vigência do antigo regime de contratações, sendo o último dia em 3 de abril de 2023, a Administração poderá decidir entre ambos os regimes para realizar a licitação ou a contratação direta. Ao fazê-lo, submeterá também o contrato administrativo à norma eleita, ainda que a vigência contratual se dê em prazo posterior à derrogação da lei, como se conclui da previsão contida no parágrafo único do artigo 191.
No mais, em seu artigo 190[8], a Nova Lei de Licitações limita os seus efeitos para os contratos celebrados após a sua entrada em vigor. É dizer, os contratos celebrados antes do dia 1º de abril de 2021 continuam sendo regidos pelo regime substituído, ainda que venham a ser prorrogados até mesmo após a expiração do referido regime, pois trata-se da mesma relação contratual.
Deste contexto, permite-se concluir que, mesmo após derrogado o antigo regime de contratações públicas, este continuará produzindo efeitos na execução dos contratos firmados sob sua égide.
Assim sendo, ante a ambivalência dos regimes legais, para descobrir qual deles rege determinado contrato administrativo, basta verificar a indicação da escolha do regime pela Administração, que deve ser publicizada no respectivo edital de licitação ou no aviso ou instrumento de contratação direta.
O impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos
Unificando diversas regras constantes em diplomas legais e infralegais, positivando entendimentos do Tribunal de Contas da União e acolhendo lições da doutrina, a Nova Lei de Licitações não representa uma ruptura com o antigo regime jurídico. Pelo contrário, verifica-se que o legislador optou pela continuidade dos institutos existentes com a inclusão de inovações incrementais[9], as quais surgem como propostas de solução para problemas já existentes.
Por si só, tal circunstância reduz o impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos, visto que muito do que já se tinha, ao menos sob a perspectiva pragmática, embora não legislativa, foi mantido. A despeito disso, importa destacar individualmente algumas das principais inovações trazidas, que irão impactar os contratos por ela regidos.
Nesse sentido, o artigo 103 da Nova Lei[10] traz a possibilidade da previsão da matriz de alocação de riscos nos contratos administrativos ordinários. Por meio dela, são previamente identificados os riscos contratuais previstos e presumíveis, alocando-se em cláusula contratual a responsabilidade por eles entre o contratante e contratado. Para a alocação dos riscos, serão consideradas as obrigações atribuídas a cada parte, a natureza dos riscos, o beneficiário das prestações e a capacidade para melhor gerenciá-los.
Vale registrar que a previsão de matriz de riscos já é uma realidade nos contratos de concessão, nos contratos das empresas estatais e nos contratos decorrentes do Regime Diferenciado de Contratações, mas a previsão legal incluída na Lei nº 14.133/2021 é considerada uma inovação na medida em que inclui essa previsão para os contratos comuns, mitigando o entendimento de que qualquer alteração nas circunstâncias originais da pactuação contratual em desfavor do particular geraria a obrigação de reequilíbrio econômico-financeiro pela Administração.
Ademais, conforme artigo 22[11], o próprio edital pode contemplar desde já a matriz de alocação de riscos, bem como mecanismos que afastem a ocorrência de sinistro e mitiguem os seus efeitos. Trata-se de previsão coerente com o regime público e necessária para a organização dos particulares interessados em firmar contratos administrativos, visto que a análise dos riscos que possam comprometer a boa execução do contrato compõe a fase preparatória do processo licitatório[12], e a alocação de riscos deve ser conhecida pelos particulares, pois impactará a proposta a ser apresentada.
Outra importante novidade do novo regramento é a previsão expressa da aplicabilidade de meios alternativos para a resolução de controvérsias. Notadamente, em seu artigo 151[13], reforça-se a possibilidade de que controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis sejam resolvidas mediante conciliação, mediação, comitês de resolução de disputas (dispute boards) e arbitragem – inclusive, em texto recente publicado pela Schiefler Advocacia, o advogado Murillo Preve tratou especificamente da temática da arbitragem na Nova Lei de Licitações.
Acerca dos pagamentos, foi incluída a possibilidade da criação de contas vinculadas para cada contrato[14], bem como o dever de pagamento da parcela incontroversa[15], no caso de conflito sobre o valor do débito. Ainda, permitiu-se expressamente a realização de pagamento antecipado nas hipóteses em que represente economia de recursos ou, ainda, seja condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço, circunstâncias estas que devem ser devidamente justificadas.[16]
Embora seja correto afirmar que as inovações ora mencionadas já existiam no regime jurídico em processo de substituição, é fato que não estavam previstas nas normas gerais de licitações e contratos, e agora estão.
Existem também algumas inovações incrementais que se qualificam como inéditas em relação ao regime anterior. Por exemplo, a Administração deverá, nos termos da Lei nº 14.133/2021, prever no edital a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor quando se tratar de uma licitação de grande vulto (isto é, aquelas cujo valor seja superior a R$ 200.000.000,00, nos termos do inciso XXII do artigo 6o), no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato[17]. O intuito é o estímulo ao desenvolvimento de políticas pautadas na ética, visando à construção de um ambiente saudável e limpo para a realização de negócios com o Poder Público.
Pode-se citar, também, a redução do prazo de inadimplemento para que o contratado tenha direito à extinção do contrato.[18] No antigo regime, o contratado só teria direito à extinção do contrato após três meses do inadimplemento da Administração, enquanto no novo regramento esse prazo passou a ser de dois meses.
Nas contratações de obras e serviços de engenharia, quando o edital exigir a prestação de garantia na modalidade seguro-garantia, passa a ser possível que a Administração estipule cláusula de retomada. Por meio dessa cláusula, em caso de inadimplemento pelo contratado, a seguradora pode assumir a obrigação de executar e concluir o objeto do contrato.[19]
Foi também estipulado o dever de que a Administração emita decisão sobre todas as solicitações e reclamações relacionadas à execução dos contratos, no prazo de um mês.[20]
No caso de alterações contratuais unilaterais pela Administração, seja aumentando ou diminuindo os encargos do contratado, deve também ser restabelecido o equilíbrio econômico-financeiro inicial no mesmo termo aditivo.[21] Nesse ponto, o novo regramento estabelece o reequilíbrio concomitante com a alteração contratual, inovando em relação ao antigo regime, que era omisso sobre o momento em que ela deveria ocorrer (Art. 65, § 6º, da Lei nº 8.666/1993).
Essas são algumas das inovações incrementais positivadas na Nova Lei de Licitações e que impactarão diretamente a execução dos contratos administrativos firmados sob a sua regência. Não obstante, para além desses contratos, não se pode negar a possibilidade de que a Nova Lei de Licitações seja considerada, por analogia, como uma diretriz também para as contratações subordinadas ao antigo regime normativo.
Isso porque, como visto, a Lei Federal nº 14.133/2021, em uma parcela significativa de suas disposições, nada mais faz do que estabilizar e positivar a jurisprudência, orientações e entendimentos já aceitos e existentes, registrando em lei inúmeras soluções pontuais e pragmáticas, criadas para as lacunas da Lei Federal nº 8.666/1993 e surgidas ao longo dos seus 28 anos de vigência. Nesse caso, necessário registrar, eventual aplicação em analogia deve se restringir às lacunas do antigo regime normativo, até mesmo para manter conformidade com a vedação contida no final do artigo 191 da Nova Lei.
Considerações finais
Dito isso, para compreensão do impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos, é necessário inicialmente entender a forma como eles estarão sujeitos ao novo regime.
Nesse sentido, viu-se que as novas licitações, bem como as contratações diretas firmadas desde 1o de abril de 2021 com indicação expressa da submissão ao novo regime, seguirão as previsões contidas na Lei nº 14.133/2021. Por outro lado, os contratos vigentes antes da promulgação da Nova Lei de Licitações, bem como as novas licitações e contratações diretas firmadas com base no regime antigo se manterão submetidos ao regramento antigo, ainda que após a derrogação da legislação passada. Isso porque, na sistemática adotada, os contratos seguirão os regimes nele originalmente previstos ao longo de toda sua vigência, de modo que, apesar de revogada, a antiga sistemática continuará produzindo efeitos por muitos anos no âmbito das contratações públicas.
Além disso, naqueles contratos submetidos ao novo regime, apesar da repercussão gerada pela promulgação da Lei Federal nº 14.133, com a opção legislativa de continuar com um regime já incorporado na cultura jurídica das contratações públicas, a tendência é que seu impacto seja restringido às inovações incrementais apresentadas pela norma, as quais visam, principalmente, a reforçar a estabilidade das contratações públicas e promover um ambiente de confiança na relação público-privada.
Nesse contexto, malgrado a regra geral seja de que um regime normativo não interfere nos contratos regidos pelo outro, haja vista a leitura do artigo 191 do novo regramento, não se exclui a hipótese em que as inovações trazidas pela Nova Lei de Licitações sejam consideradas por analogia nos contratos submetidos à antiga sistemática. Dessa forma, a Lei Federal nº 14.133/2021 impactaria também a execução dos contratos administrativos firmados antes mesmo da sua promulgação, bem como aqueles firmados após e seguindo o regime substituído.
[1] Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estagiário em Direito na Schiefler Advocacia. Membro do Laboratório de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Eleitoral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Contato: eduardomartins@schiefler.adv.br.
[2] Para além do presente texto, a equipe da Schiefler Advocacia elaborou um material exclusivo para explicar o regime de transição da Nova Lei de Licitações.
[3] Decreto-Lei nº 4.657/1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Art. 1º Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.
[4] Art. 193. Revogam-se:
I – os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;
II – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei;
[5] O prazo de dois anos se encerraria no dia 1 de abril de 2023, inclusive. No entanto, tratando-se de um sábado, com base no § 2º do artigo 183 da Nova Lei de Licitações, o último dia de vigência será prorrogado para o primeiro dia útil subsequente, de modo que a vigência das antigas normas se estenderá até o dia 3 de abril de 2023 (segunda-feira), inclusive, sendo este o seu último dia de vigência e também o dia de sua revogação.
[6] Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
[7] Art. 191. Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
[8] Art. 190. O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada.
[9] O termo inovação incremental foi cunhado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, e ajuda a entender como a Nova Lei de Licitações pretende solucionar algumas problemáticas já conhecidas nas contratações públicas. Em 1939, no livro intitulado Business Cycles, o economista diferencia os conceitos de inovação incremental e radical. O primeiro se pretende um progresso sobre algo preexistente, enquanto o segundo é acompanhado de rupturas.
[10] Art. 103. O contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, alocando-os entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados
1º A alocação de riscos de que trata o caput deste artigo considerará, em compatibilidade com as obrigações e os encargos atribuídos às partes no contrato, a natureza do risco, o beneficiário das prestações a que se vincula e a capacidade de cada setor para melhor gerenciá-lo.
[11] Art. 22. O edital poderá contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo.
[12] Art. 18. Inciso X – a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual;
[13] Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
[14] Art. 142. Disposição expressa no edital ou no contrato poderá prever pagamento em conta vinculada ou pagamento pela efetiva comprovação do fato gerador.
[15] Art. 143. No caso de controvérsia sobre a execução do objeto, quanto a dimensão, qualidade e quantidade, a parcela incontroversa deverá ser liberada no prazo previsto para pagamento.
[16] Art. 145. § 1º A antecipação de pagamento somente será permitida se propiciar sensível economia de recursos ou se representar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço, hipótese que deverá ser previamente justificada no processo licitatório e expressamente prevista no edital de licitação ou instrumento formal de contratação direta.
[17] Art. 25. § 4º Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.
[18] Art. 137. Inciso IV – atraso superior a 2 (dois) meses, contado da emissão da nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos pela Administração por despesas de obras, serviços ou fornecimentos;
[19] Art. 102. Na contratação de obras e serviços de engenharia, o edital poderá exigir a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia e prever a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato, hipótese em que: […]
[20] Art. 123. A Administração terá o dever de explicitamente emitir decisão sobre todas as solicitações e reclamações relacionadas à execução dos contratos regidos por esta Lei, ressalvados os requerimentos manifestamente impertinentes, meramente protelatórios ou de nenhum interesse para a boa execução do contrato.
Parágrafo único. Salvo disposição legal ou cláusula contratual que estabeleça prazo específico, concluída a instrução do requerimento, a Administração terá o prazo de 1 (um) mês para decidir, admitida a prorrogação motivada por igual período.
[21] Art. 130. Caso haja alteração unilateral do contrato que aumente ou diminua os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, no mesmo termo aditivo, o equilíbrio econômico-financeiro inicial.
Read MoreA abrangência da norma diz respeito a quem deverá respeitá-la e aplicá-la, sendo que, no caso da Nova Lei de Licitações, sujeitam-se a ela, em grau variado de vinculação, entes públicos e privados, que podem ser submetidos à sua aplicação integral ou parcial, inclusive, mediante regras especiais.
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) foi publicada em 1º de abril de 2021 e, desde então, teve início o período de transição entre a legislação antiga e a nova. Nesse sentido, existem dois pontos principais a serem compreendidos sobre a aplicação da nova lei: a sua vigência e a sua abrangência subjetiva, isto é, os destinatários da norma.
Quando se fala na vigência de uma norma, trata-se de discutir a partir de quando passam a valer as regras da nova legislação. Já a sua abrangência diz respeito a quem deverá respeitá-la. No caso da Nova Lei de Licitações, a sua abrangência é estabelecida já no seu artigo 1º, nos seguintes termos:
Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange:
I – os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa;
II – os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.
§1º Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.
§2º As contratações realizadas no âmbito das repartições públicas sediadas no exterior obedecerão às peculiaridades locais e aos princípios básicos estabelecidos nesta Lei, na forma de regulamentação específica a ser editada por ministro de Estado.
§3º Nas licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, podem ser admitidas:
I – condições decorrentes de acordos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República;
II – condições peculiares à seleção e à contratação constantes de normas e procedimentos das agências ou dos organismos, desde que:
a) sejam exigidas para a obtenção do empréstimo ou doação;
b) não conflitem com os princípios constitucionais em vigor;
c) sejam indicadas no respectivo contrato de empréstimo ou doação e tenham sido objeto de parecer favorável do órgão jurídico do contratante do financiamento previamente à celebração do referido contrato;
d) (VETADO).
§4º A documentação encaminhada ao Senado Federal para autorização do empréstimo de que trata o § 3º deste artigo deverá fazer referência às condições contratuais que incidam na hipótese do referido parágrafo.
§5º As contratações relativas à gestão, direta e indireta, das reservas internacionais do País, inclusive as de serviços conexos ou acessórios a essa atividade, serão disciplinadas em ato normativo próprio do Banco Central do Brasil, assegurada a observância dos princípios estabelecidos no caput do art. 37 da Constituição Federal.
Percebe-se que a Nova Lei de Licitações estabelece normas para as contratações públicas de entidades e órgãos da administração pública brasileira, especialmente a direta, autárquica e fundacional, sendo possível dividir a sua abrangência em aplicação integral e aplicação parcial da Lei. Vejamos.
A abrangência da Nova Lei de Licitações com aplicação integral
A Lei nº 14.133/2021 abrange integralmente todos os entes da administração pública direta da União e de todos os Estados e Municípios brasileiros, bem como do Distrito Federal. Ou seja, todos os órgãos do Poder Executivo destes entes federativos estarão sujeitos à Nova Lei de Licitações e deverão respeitar a totalidade dos dispositivos e regulamentações trazidas pela norma, que se propõe a unificar as disposições legais sobre licitações e contratos administrativos, que, antes, constavam apenas de forma esparsa no ordenamento jurídico brasileiro (como é o caso da Lei do Pregão e da Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC).
É importante observar, contudo, que a abrangência da Nova Lei de Licitações não se restringe ao Poder Executivo, tendo em vista não ser sinônimo de “Administração Pública”, a qual também pode representar os órgãos dos Poderes Judiciário e Legislativo, do Tribunal de Contas e do Ministério Público, especialmente quando do desempenho de funções administrativas (como visto no inciso I do artigo 1º da nova lei). Nessas situações, todos eles se sujeitam à Lei nº 14.133/2021, mesmo não pertencendo ao Poder Executivo da União, dos Estados, dos Municípios ou do Distrito Federal.
Além disso, apesar de a abrangência se estender a todos os municípios, enquanto entes federativos integrantes da administração direta, os municípios com até 20.000 habitantes possuem algumas regras especiais para a aplicação da Nova Lei de Licitações.
Em razão das diversas obrigações e adaptações trazidas pelo novo diploma legal, o artigo 176[1]Art. 176. Os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitantes terão o prazo de 6 (seis) anos, contado da data de publicação desta Lei, para cumprimento: I – dos requisitos estabelecidos no … Continue reading da Lei concedeu o prazo de 6 anos para que estes municípios cumpram algumas destas obrigações. Especificamente, os municípios com até 20.000 habitantes possuem prazo especial para a realização da licitação sob a forma eletrônica (sendo este o formato padrão estabelecido pela Nova Lei de Licitações), o atendimento às regras de divulgação em sítio eletrônico oficial, assim como para determinados requisitos de seleção e segregação de funções dos agentes públicos que colocarão em prática a nova lei.
A aplicação integral também se estende à administração pública indireta, mas tão somente às autarquias e fundações públicas (caput do artigo 1º). As empresas públicas e sociedades de economia mista estão apenas parcialmente sujeitas à Lei nº 14.133/2021, assim como estavam perante a Lei nº 8.666/1993, o que se verá a seguir.
A abrangência da Nova Lei de Licitações com aplicação parcial
As empresas públicas e as sociedades de economia mista, bem como as suas subsidiárias, estão sujeitas à Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais), que traz disposições sobre licitações e contratos administrativos para estas empresas. Ainda assim, as sociedades de economia mista e as empresas públicas estão sujeitas à Nova Lei de Licitações nos seguintes pontos:
- Critérios de desempate entre duas propostas (art. 60 da NLL[2]Nova Lei de Licitações:Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: I – disputa final, hipótese em que os … Continue readinge art. 55 da Lei das Estatais[3]Lei das Estatais: Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate: I – disputa final, em … Continue reading);
- Adoção da modalidade pregão para licitações (art. 32, IV, da Lei das Estatais[4]Lei das Estatais: Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes: […] IV – adoção preferencial da modalidade de licitação … Continue reading);
- Disposições penais (art. 178 da NLL e Título XI da Parte Especial do Código Penal).
Esta aplicação subsidiária se dá em razão do disposto no artigo 189 da Nova Lei de Licitações, que dispõe que as suas normas serão aplicadas nas hipóteses em que a legislação faz referência expressa à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (Lei do RCD)[5]Nova Lei de Licitações: Art. 189. Aplica-se esta Lei às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, à Lei nº 10.520, de 17 de … Continue reading.
Além destes, apesar de não haver previsão expressa na Lei nº 14.133/2021, também sofrem aplicação parcial os Serviços Sociais Autônomos – integrantes do chamado Sistema S. Estes entes não pertencem à Administração Direta nem à Administração Indireta, sendo considerados “instituições privadas, com característica paraestatal, criadas para atuar ao lado do Estado na persecução de interesses sociais relevantes”[6]Direito administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 1139.. Estas entidades não estão sujeitas às regras procedimentais da Nova Lei de Licitações, porquanto não fazem parte da administração pública, mas estão sujeitas aos princípios licitatórios previstos no artigo 5º do novo marco jurídico de contratações.
Isto porque, embora sejam consideradas pessoas de direito privado, atuam ao lado do Estado para atingir fins de interesse público[7]Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 252, p. 186-189, fev. 2015, seção Orientação Prática.. Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem o entendimento de que, apesar da necessidade de regulamentos próprios para contratações públicas, a utilização de recursos parafiscais pelas entidades do Sistema S impõe a necessidade da obediência aos princípios da legislação pertinente (Decisão nº 907/97 – Plenário)[8]TC-011.777/96-6. Decisão nº 907/97 – Plenário. Denúncia procedente, em parte. Inspeção realizada no local, objetivando apuração dos fatos constantes da peça acusatória relacionados com … Continue reading – notadamente a Lei nº 8.666/1993 e, agora, a Lei nº 14.133/2021.
Casos especiais de aplicação da Nova Lei de Licitações
Os §§ 2º a 5º do artigo 1º da Lei nº 14.133/2021 tratam da aplicação das regras da Nova Lei de Licitações em alguns casos especiais, que não se enquadram nas hipóteses mencionadas anteriormente. Vejamos.
As repartições públicas sediadas no exterior estão sujeitas aos princípios da Lei 14.133/2021, mas devem obedecer às peculiaridades legislativas do local em que estão sediadas e seguir regulamentações próprias a serem editadas pelo Ministro de Estado (art. 1º, § 2º).
Já nos casos de licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, são admitidas regras além da legislação brasileira, como tratados internacionais ou aplicação de normas ou procedimentos das próprias agências ou organismos internacionais (art.1º, § 3º).
As contratações relativas à gestão das reservas internacionais do país terão regulamentação própria, a ser editada pelo Banco Central do Brasil (art. 1º, § 5º). Estas reservas, também chamadas de reservas cambiais, “são os ativos do Brasil em moeda estrangeira e funcionam como uma espécie de seguro para o país fazer frente às suas obrigações no exterior”, conforme definição do próprio Banco Central[9]Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/reservasinternacionais. Acesso em 15/06/2021.. Ainda assim, a regulamentação do Banco Central do Brasil estará sujeita aos princípios norteadores da administração pública (art. 37, caput, da Constituição Federal) e da Lei nº 14.133/2021.
Por fim, não se aplicam as disposições da Nova Lei de Licitações aos “contratos que tenham por objeto operação de crédito, interno ou externo, e gestão de dívida pública”, inclusive as eventuais “contratações de agente financeiro e a concessão de garantia relacionadas a esses contratos” (vide art. 3º, I). Estão fora do âmbito de aplicação da Lei Federal nº 14.133/2021, igualmente, as contratações sujeitas a normas previstas em legislação própria (art. 3º, II).
Resumindo…
A abrangência da Nova Lei de Licitações atinge tanto a administração pública direta quanto a administração pública indireta, e, entre os entes abrangidos pela norma, a aplicação se dá conforme o seguinte:
Aplicação integral da nova Lei de Licitações
- Administração direta;
- Autarquias;
- Fundações públicas.
Aplicação parcial da nova Lei de Licitações
- Empresas públicas (aplicação primária da Lei nº 13.303/2016);
- Sociedades de Economia Mista (aplicação primária da Lei nº 13.303/2016);
- Sistema S (sujeito a regulamentos próprios para licitações e contratações públicas, com aplicação dos princípios da Nova Lei de Licitações);
Casos especiais
- Repartições Públicas sediadas no exterior;
- Licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira;
- Contratações relativas à gestão das reservas internacionais.
- Contratos para operação de crédito, interno ou externo, e gestão de dívida pública
Referências[+]
↑1 | Art. 176. Os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitantes terão o prazo de 6 (seis) anos, contado da data de publicação desta Lei, para cumprimento:
I – dos requisitos estabelecidos no art. 7º e no caput do art. 8º desta Lei; II – da obrigatoriedade de realização da licitação sob a forma eletrônica a que se refere o § 2º do art. 17 desta Lei; III – das regras relativas à divulgação em sítio eletrônico oficial. Parágrafo único. Enquanto não adotarem o PNCP, os Municípios a que se refere o caput deste artigo deverão: I – publicar, em diário oficial, as informações que esta Lei exige que sejam divulgadas em sítio eletrônico oficial, admitida a publicação de extrato; II – disponibilizar a versão física dos documentos em suas repartições, vedada a cobrança de qualquer valor, salvo o referente ao fornecimento de edital ou de cópia de documento, que não será superior ao custo de sua reprodução gráfica. |
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↑2 | Nova Lei de Licitações:Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:
I – disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação; II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei; III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento; IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle. […] |
↑3 | Lei das Estatais:
Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate: I – disputa final, em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta fechada, em ato contínuo ao encerramento da etapa de julgamento; II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, desde que exista sistema objetivo de avaliação instituído; III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991 , e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 ; IV – sorteio. |
↑4 | Lei das Estatais:
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes: […] IV – adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002 , para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado; |
↑5 | Nova Lei de Licitações:
Art. 189. Aplica-se esta Lei às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, à Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011. |
↑6 | Direito administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 1139. |
↑7 | Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 252, p. 186-189, fev. 2015, seção Orientação Prática. |
↑8 | TC-011.777/96-6. Decisão nº 907/97 – Plenário. Denúncia procedente, em parte. Inspeção realizada no local, objetivando apuração dos fatos constantes da peça acusatória relacionados com problemas em processos licitatórios e contratação de pessoal. Natureza jurídica dos serviços sociais autônomos. Inaplicabilidade dos procedimentos estritos da Lei 8.666 ao Sistema “S”. Necessidade de seus regulamentos próprios. Uso de recursos parafiscais impõe necessidade de obediência aos princípios gerais da legislação federal pertinente. Importância da Auditoria Operacional. Determinações. |
↑9 | Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/reservasinternacionais. Acesso em 15/06/2021. |
A nova Lei de Licitações surge como um verdadeiro Código Nacional de Contratações Públicas e dedicou o Capítulo XII ao tema dos meios alternativos de resolução de controvérsias, entre seus artigos 151 a 154.
O ano de 2021 começou movimentado no mundo do Direito Administrativo. Depois de tanta espera – afinal, o projeto da nova Lei de Licitações teve seu início em 1995 -, a notícia de que a Lei nº 14.133/2021 seria sancionada no dia 01/04/2021 mais parecia uma daquelas costumeiras pegadinhas do dia da mentira. Por sorte, não era. Publicada em edição extra do Diário Oficial da União, a Lei nº 14.133/2021 surge como um verdadeiro Código Nacional de Contratações Públicas, isso porque unifica, em um único instrumento normativo, diversas regras constantes em diplomas legais e infralegais que serviam para regulamentar os procedimentos licitatórios e os contratos administrativos.
De todo modo, e embora se reconheçam seus méritos, para muitos administrativistas a nova Lei de Licitações deixou a desejar. Reproduz o mesmo DNA burocrático e demasiadamente formalista da Lei nº 8.666/93, e chega a soar, em alguns momentos, muito mais uma atualização da antiga Lei do que propriamente uma nova Lei de Licitações.
No que se refere aos meios alternativos de resolução de controvérsias, a nova Lei de Licitações dedicou o Capítulo XII ao tema, entre seus artigos 151 a 154. De maneira geral, não apresenta nenhuma grande inovação. Reproduz instrumentos tradicionais de autocomposição e heterocomposição no âmbito privado e já previstos em outras regulamentações administrativas. Ainda assim, é inegável o seu mérito ao positivar, enfim, uma cláusula geral autorizativa dos meios alternativos de resolução de controvérsias, deixando expressamente previsto que a administração pública pode valer-se desses mecanismos.
No seu artigo 151 a Lei nº 14.133/2021 menciona alguns dos meios alternativos de resolução de controvérsias que poderão ser utilizados:
Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
Como se pode perceber, a Lei nº 14.133/2021 exemplificou os seguintes mecanismos de resolução de conflitos: a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas (dispute boards) e – tema deste breve artigo de opinião – a arbitragem. A grande questão é que sobre este último mecanismo, a arbitragem, a nova Lei de Licitações o previu de maneira genérica, sendo insuficiente em vários aspectos e perdendo a chance de regulamentar inúmeros pontos importantes.
A Lei nº 14.133/2021, no parágrafo único do artigo 151, no artigo 152 e no artigo 154, trata o tema da arbitragem nos seguintes termos:
Art. 151 […]
Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.
Art. 152. A arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade.
[…]
Art. 154. O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.
Da redação acima, conclui-se que a Lei nº 14.133/2021 enfrenta, em resumo, três temas atinentes à arbitragem no âmbito da Administração Pública: (i) a questão da arbitrabilidade objetiva e dos direitos disponíveis; (ii) o princípio da publicidade vinculado ao procedimento arbitral; e (iii) a necessidade de que a arbitragem seja de direito. Ocorre que se trata de previsões insuficientes para a procedimentalização desses aspectos. Como já adianta o título deste artigo, muito mais do que dizer, no que se refere ao tema da arbitragem, a Lei nº 14.133/2021 infelizmente se destaca por aquilo que silenciou.
Nesse ponto são válidas as reflexões realizadas por mim ao abordar a Nova Lei de Licitações, quando esta ainda era o Projeto de Lei nº 4253/2020 do Senado Federal. Naquela ocasião destaquei:
Apesar de o Projeto de Lei nº 4253/2020 trazer que as questões passíveis de serem resolvidas serão as que envolvem direitos patrimoniais disponíveis e, até mesmo, ilustrar algumas dessas situações, não apresenta qualquer definição mais específica do que deve ser considerado como um “direito disponível”. Da mesma forma, embora o Projeto de Lei nº 4253/2020 destaque que a arbitragem observará o princípio da publicidade, não apresenta qualquer indicativo de que maneira essa publicidade deve se dar na prática. O ponto envolvendo a escolha dos árbitros segue o mesmo caminho. Ainda que o projeto da nova lei de licitações apresente que precisam ser observados critérios “isonômicos”, “técnicos” e “transparentes”, não se tem qualquer explicação adicional do que o Legislador entende por um processo de escolha com essas características[1].
Sem qualquer pretensão de exaurir o tema, mas sim possibilitar discussões sobre o assunto, neste breve texto faz-se um exercício oposto ao usual: pontua-se abaixo não aquilo que a nova Lei de Licitações disse sobre a Arbitragem, mas sim o que ela não disse (mas deveria ter dito).
A Lei nº 14.133/2021 não especificou quais as matérias que se enquadram dentro da categoria de direitos disponíveis. Embora preveja no parágrafo único do seu artigo 151 que “Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações”, chegando a exemplificar algumas matérias passíveis de serem resolvidas pela via arbitral, essa exemplificação é insuficiente. Ao apresentar previsões genéricas, a Lei nº 14.133/2021 perde a chance de, se não colocar fim nelas, pelo menos diminuir em muito as controvérsias que se originam de discussões envolvendo a arbitrabilidade objetiva.
Mais do que isso, não é como se a nova Lei de Licitações surgisse em um cenário em que outras leis ou mesmo administrativistas estudiosos da arbitragem já não tivessem enfrentado o tema e, por sua vez, apresentado listas muito mais robustas com as matérias passíveis de serem arbitradas e que poderiam ser utilizadas como exemplo pela Lei nº 14.133/2021.
Em âmbito normativo, por exemplo, tem-se o Decreto Federal nº 10.025/2019, que no seu artigo 2º estabeleceu que, entre outras, consideram-se controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis as que envolvam: (i) questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; (ii) o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de parceria; e (iii) o inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes.
Em âmbito doutrinário, por sua vez, retira-se da obra Curso Prático de arbitragem e administração pública, dos autores Gustavo Justino de Oliveira e Felipe Faiwichow Estefam, outra lista com matérias que seriam passíveis de serem resolvidas por meio da arbitragem. Para os autores, seriam arbitráveis:
- os termos sacramentados no contrato administrativo, pelas cláusulas regulamentares que são aquelas que disciplinam o modo e a forma da prestação do serviço;
- as cláusulas econômico-financeiras e monetárias que são aquelas que tratam da equação econômico-financeira do contrato;
- as hipóteses em que se assegura a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, pois dizem respeito ao aspecto econômico do contrato;
- as consequências patrimoniais advindas do uso das prerrogativas administrativas determinadas em cláusulas exorbitantes que afetem direitos do particular, especialmente as relacionadas ao dever de indenizar e recompor o equilíbrio econômico-financeiro.[2]
Como se pode observar, tanto o exemplo legislativo do Decreto Federal nº 10.025/2019, como o apresentado pelos autores supramencionados, trazem listas mais robustas, caminho que poderia ter sido adotado pela nova Lei de Licitações e que daria maior segurança jurídica ao instituto. Não foi, porém, o que aconteceu. Nesse ponto, a Lei nº 14.133/21 se omitiu.
Dando sequência à análise daquilo que a nova Lei de Licitações não disse, também se perdeu a oportunidade de procedimentalizar a aplicação do princípio da publicidade dos atos da Administração Pública vinculado ao instituto da arbitragem. Isso porque, há muito, quando se trata do princípio da publicidade no âmbito dos procedimentos arbitrais, a discussão deixou de ser sobre a necessidade da publicidade em arbitragens que envolvam a Administração Pública – é consenso que os processos arbitrais que envolvam ente estatal não podem ser sigilosos -, mas, sim, sobre como essa publicidade pode e deve se perfectibilizar na prática. Também sobre esse aspecto a Lei nº 14.133/21 deixa de se pronunciar.
A nova Lei de Licitações perde a oportunidade de responder uma série de questionamentos, tais como: (i) quais documentos do processo arbitral deverão ser públicos? (ii) quais atos do procedimento arbitral se submeteriam à exigência da publicidade? e, mais importante, (iii) as câmaras arbitrais e os seus regulamentos também devem ser públicos quando envolverem a Administração Pública? Igualmente nesse caso, tanto a doutrina, quanto leis anteriores, incluindo-se, regulamentos de câmaras, já enfrentaram essas discussões e poderiam ter servido de inspiração para a Lei nº 14.133/21.
Gustavo da Rocha Schmidt, em sua obra Arbitragem na Administração Pública traz à tona a discussão sobre aquele a quem compete o dever de publicidade, ou seja, se seria este um dever exclusivamente estatal ou uma previsão a ser seguida também pelos árbitros e entidades responsáveis por gerir o procedimento arbitral[3]. O autor informa que, no começo, o entendimento predominante era que esse dever de publicidade devia recair unicamente sobre o Poder Público, em razão de a câmara arbitral configurar-se como uma mera prestadora de serviços. No entanto, a partir das normativas mais recentes, como a da Lei nº 13.129/15, houve alteração desse cenário[4]. Atualmente, o entendimento é de que o Poder Público, árbitros e câmaras arbitrais devem trabalhar em conjunto para dar efetividade a essa transparência que é exigida em processos arbitrais que envolvam o Poder Público[5].
Atualmente também já se vislumbra o surgimento de previsões em decretos e regulamentos de câmaras que determinam como essas entidades devem se comportar em relação ao dever de publicidade. Em pesquisa realizada pelos já citados autores Gustavo Justino de Oliveira e Felipe Faiwichow Estefam, os pesquisadores levantaram que o Decreto nº 46.245/2018 do estado do Rio de Janeiro, no § 3º do seu artigo 13, estabelece que são públicas “as petições, os laudos periciais e as decisões dos árbitros de qualquer natureza”. Por sua vez, a Lei nº 19.477/2011 do estado de Minas Gerais, que dispõe sobre a adoção do juízo arbitral para a solução de litígio em que o Estado seja parte, determina em seu artigo 6º que a arbitragem deverá ser “instaurada mediante processo público”. Tem-se ainda a previsão do Decreto nº 10.025/2019, que prescreve, no inciso IV do seu artigo 3º, que “as informações sobre o processo de arbitragem serão públicas, ressalvadas aquelas necessárias à preservação de segredo industrial ou comercial e aquelas consideradas sigilosas pela legislação brasileira”.[6] [7] [8]
Perfilhando os mesmos entendimentos acima, vários regulamentos de câmaras arbitrais brasileiras já trazem previsão para a publicidade efetivar-se na prática. A título de exemplo, citam-se os artigos 12.1, 12.2 e 12.3 da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial – CAMARB; a Resolução nº 3/2018 da Fiesp/Ciesp; e a Resolução Administrativa nº 15/2016 da Câmara de Comércio Brasil-Canadá – CCBC[9].
Como se pode observar, a forma como a publicidade deve se dar nos procedimentos arbitrais envolvendo a Administração Pública ainda exige inúmeras regulamentações. É por essa razão que se destaca que a Lei nº 14.133/2021 falhou ao apresentar previsão tão superficial, e sem especificar a forma pela qual se deve perfectibilizar a publicidade na prática.
Igualmente, nada disse a Lei nº 14.133/21 sobre as Convenções Arbitrais. Temas como a escolha dos árbitros e das Câmaras arbitrais foram ignorados pela nova Lei. Embora todos esses assuntos sejam questões que estão intimamente ligadas à autonomia das partes, em um contexto de arbitragem com entes públicos, e muito em razão do dever de motivação dos atos administrativos, a nova Lei de Licitações perdeu a chance de apresentar, pelo menos, orientações sobre a forma como se deve dar a escolha dos árbitros e das câmaras arbitrais, o que inclusive traria maior segurança jurídica às partes.
Veja que também nesse caso não se trata de temas inéditos. O já citado Decreto Federal nº 10.025/2019 dedica todo o seu capítulo VII a abordar os critérios que devem ser levados em conta pela Administração ao definir a escolha da câmara arbitral[10], e já no capítulo seguinte (capítulo VIII) faz o mesmo quanto à escolha dos árbitros.[11]
A Doutrina também já enfrentou os assuntos acima.
Gustavo da Rocha Schmidt, tendo por base as previsões do Decreto nº 8.546/2015 e da Lei Mineira de Arbitragem, no que se refere à escolha de câmaras arbitrais pelos entes públicos, aborda a possibilidade de indicar parâmetros mínimos que devem ser observados nessa escolha. Lista o autor como critérios mínimos: (i) comprovação de prévia e efetiva experiência na gestão de procedimentos arbitrais; (ii) que a instituição arbitral possua a infraestrutura necessária para a gestão de procedimentos arbitrais, como sala de audiência com tecnologia e salas de apoio para testemunhas e peritos[12]. Por fim, relata como muito bem equilibrada a disciplina contida no artigo 14 do Decreto Estadual nº 46.245/2018 do estado do Rio de Janeiro:
DO CADASTRAMENTO DO ÓRGÃO ARBITRAL INSTITUCIONAL
Art. 14 – O órgão arbitral institucional, nacional ou estrangeiro, deverá ser previamente cadastrado junto ao Estado do Rio de Janeiro e atender aos seguintes requisitos:
I – disponibilidade de representação no Estado do Rio de Janeiro;
II – estar regularmente constituído há, pelo menos, cinco anos;
III – estar em regular funcionamento como instituição arbitral;
IV – ter reconhecida idoneidade, competência e experiência na administração de procedimentos arbitrais, com a comprovação na condução de, no mínimo, quinze arbitragens no ano calendário anterior ao cadastramento.
1º – Caberá à Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro cadastrar os órgãos arbitrais institucionais, observados os requisitos previstos neste artigo.
2º – O cadastramento a que se refere o caput não se sujeita a prazo certo e determinado, podendo qualquer órgão arbitral institucional, a qualquer tempo, postular o seu cadastramento perante o Estado do Rio de Janeiro.
3º – Considera-se representação a existência de local apropriado, que funcione como protocolo para recebimento de peças e documentos da arbitragem.
4º – A disponibilidade da representação compreende o oferecimento, sem custo adicional para as partes, dos serviços operacionais necessários para o regular desenvolvimento da arbitragem, tais como local para realização de audiências, e secretariado.
Já Bruno Lopes Mega, ao abordar o assunto da escolha dos árbitros, inclusive comentando as leis existentes sobre o tema, destaca que:
alguns critérios objetivos podem orientar essa escolha, como fazem expressamente, por exemplo, os Estados de Minas Gerais e de Pernambuco, ao exigirem que o árbitro deve ‘deter conhecimento técnico compatível com a natureza do contrato’ (art. 5º, II, da Lei nº 12.477/2011 de Minas Gerais e art. 4º, II da Lei nº 15.627/2015 de Pernambuco) e o Estado de São Paulo, ao exigir que, nas parcerias público-privadas, ‘os árbitros deverão ser escolhidos dentre os vinculados a instituições especializadas na matéria e de reconhecida idoneidade’ (art. 11, parágrafo único, da Lei nº 11.688/2004 do Estado de São Paulo)[13].
Prossegue o autor que, além dos critérios objetivos, deveriam ser incorporados critérios subjetivos, como o da imparcialidade e o da ausência de impedimentos, bem como o dispositivo para limitar a indicação a grupos de árbitros com certas características, como, segundo o exemplo do autor, o de ser professor universitário[14] ou profissional com alguma especialização naquele assunto que será arbitrado.
Como se pode ver, também no que tange à escolha das câmaras arbitrais e dos árbitros, havia muito a ser dito pela nova Lei de Licitações. Esta, contudo, ficou em silêncio.
Existe um ditado popular que diz que “o peixe morre pela boca”. Uma das interpretações desse ditado é que devemos ter cuidado com aquilo que falamos porque podemos acabar engolindo um anzol que nos lançaram. A nova Lei de Licitações, no que tange ao tema da arbitragem, não corre esse risco. Como pouco fala, é muito improvável que acabe engolindo qualquer anzol. O problema é que o silêncio foi tanto, que existe o risco de ela nem mesmo chegar a ser lançada no mar. Aguardemos os próximos capítulos!
[1] PREVE, Murillo. Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias. In: Joel de Menezes Niebuhr (org). (Org.). Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 1ª ed. Curitiba: Zênite, 2020, p. 130.
[2] OLIVEIRA, G. J. de; ESTEFAM, F. F. Curso prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 61.
[3] ROCHA SCHMIDT, Gustavo. Arbitragem na Administração Pública. Curitiba, Juruá, 2018, p. 59.
[4] Idem, ibidem, p. 59-60.
[5] Trecho retirado de capítulo escrito por este mesmo autor na obra PREVE, Murillo. Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias. In: Joel de Menezes Niebuhr (org). Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 1ª ed. Curitiba: Zênite, 2020, p. 126-139.
[6] Informações retiradas de pesquisa realizada por: OLIVEIRA, G. J. de; ESTEFAM, F. F. Curso prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 61.
[7] Sobre esse tema, ainda apresentam Gustavo Justino de Oliveira e Felipe Faiwichow Estefam que “Para evitar controvérsias acerca do grau de publicidade, é prudente que no início do processo arbitral seja determinado o que será publicado pela Administração, à luz do regime jurídico aplicável. Surgindo conflitos entre as partes quanto a tal tema, ante o princípio da competência-competência (art. 8º, parágrafo único, da LA) e o art. 13 da LA, a controvérsia deve ser resolvida pelo árbitro”. (OLIVEIRA, G. J. de; ESTEFAM, F. F. Curso prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 61).
[8] Trecho extraído de capítulo escrito por este autor na obra PREVE, Murillo. Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias. In: Joel de Menezes Niebuhr (org). (Org.). Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 1ª ed. Curitiba: Zênite, 2020, p. 126-139.
[9] Idem.
[10] CAPÍTULO VII
DO CREDENCIAMENTO E DA ESCOLHA DA CÂMARA ARBITRAL
Art. 10. O credenciamento da câmara arbitral será realizado pela Advocacia-Geral da União e dependerá do atendimento aos seguintes requisitos mínimos:
I – estar em funcionamento regular como câmara arbitral há, no mínimo, três anos;
II – ter reconhecidas idoneidade, competência e experiência na condução de procedimentos arbitrais; e
III – possuir regulamento próprio, disponível em língua portuguesa.
- 1º O credenciamento de que trata o caput consiste em cadastro das câmaras arbitrais para eventual indicação futura em convenções de arbitragem e não caracteriza vínculo contratual entre o Poder Público e as câmaras arbitrais credenciadas.
- 2º A Advocacia-Geral da União disciplinará a forma de comprovação dos requisitos estabelecidos no caput e poderá estabelecer outros para o credenciamento das câmaras arbitrais.
Art. 11. A convenção de arbitragem poderá estipular que a indicação da câmara arbitral que administrará o procedimento arbitral será feita pelo contratado, dentre as câmaras credenciadas na forma prevista no art. 10.
- 1º A administração pública federal poderá, no prazo de quinze dias, manifestar objeção à câmara escolhida, hipótese em que a parte que solicitou a instauração da arbitragem indicará outra câmara credenciada, no prazo de quinze dias, contado da data da comunicação da objeção.
- 2º A indicação da câmara arbitral escolhida e a sua eventual objeção serão feitas por correspondência dirigida à outra parte, ainda que a cláusula compromissória estabeleça que esta escolha será promovida logo após a celebração do contrato de parceria.
- 3º A câmara arbitral indicada poderá ser substituída antes do início da arbitragem, desde que com a anuência de ambas as partes, independentemente da celebração de termo aditivo ao contrato de parceria.
[11] CAPÍTULO VIII
DA ESCOLHA DOS ÁRBITROS
Art. 12. Os árbitros serão escolhidos nos termos estabelecidos na convenção de arbitragem, observados os seguintes requisitos mínimos:
I – estar no gozo de plena capacidade civil;
II – deter conhecimento compatível com a natureza do litígio; e
III – não ter, com as partes ou com o litígio que lhe for submetido, relações que caracterizem as hipóteses de impedimento ou suspeição de juízes, conforme previsto na Lei nº 13.105, de 2015 – Código de Processo Civil, ou outras situações de conflito de interesses previstas em lei ou reconhecidas em diretrizes internacionalmente aceitas ou nas regras da instituição arbitral escolhida.
Parágrafo único. O ingresso no País de árbitros e equipes de apoio residentes no exterior, exclusivamente para participação em audiências de procedimentos arbitrais com sede no País, é hipótese de visita de negócios, nos termos do disposto no § 3º do art. 29 do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017, respeitados os prazos de estada e as demais condições da legislação de imigração aplicável.
[12]ROCHA SCHMIDT, Gustavo. Arbitragem na Administração Pública. Curitiba, Juruá, 2018, p. 70-72.
[13] MEGAN, Bruno Lopes. Arbitragem e Administração Pública. Fundamentos Teóricos e Soluções Práticas. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 220.
[14] Idem.
Read MoreO texto versa sobre o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e os principais pontos que permeiam a dificuldade na sua aplicabilidade.
O advogado Gustavo Schiefler estreou, no último domingo (23/05/2021), na nova coluna do site Conjur: Público & Pragmático. O seu primeiro texto, intitulado “É recomendável aplicar a nova Lei de Licitações na pendência do PNCP?”, versa sobre o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e os principais pontos que permeiam a dificuldade na sua aplicabilidade, oferecendo diretrizes e soluções aos impasses. Acesse em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-23/publico-pragmatico-recomendavel-aplicar-lei-licitacoes-pendencia-pncp
A coluna Público & Pragmático recebe textos aos domingos e segue sob a curadoria do Prof. Gustavo Justino de Oliveira (USP e IDP).
Read MoreSaiba desde quando a Nova Lei de Licitações (Lei n.º 14.133/2021) está vigente e quando deixarão de ter vigência e vigor as normas substituídas
Em 1º de abril de 2021, foi sancionada e publicada, com vetos, a Lei n.º 14.133, usualmente denominada de a nova Lei de Licitações e de Contratos Administrativos. A nova Lei de Licitações e de Contratos Administrativos promove um sem-número de alterações sobre as normas jurídicas que concernem a licitações e a contratos públicos, instituindo um novo regime jurídico.
Para o propósito deste artigo, importa saber desde quando a Lei n.º 14.133/2021 está vigente, e quando deixarão de ter vigência e vigor as normas substituídas[1]. Assim prescreve a Lei:
Art. 190. O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada.
Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
[…]
Art. 193. Revogam-se:
I – os arts. 89 a 108 da Lei nº. 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;
II – a Lei nº. 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº. 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº. 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.
Art. 194. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Por força do seu artigo 194, a nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos vigora desde a data em que for publicada. A Lei, desse modo, vigora desde 1º de abril de 2021, data em que foi sancionada e publicada.
Em atenção à finalidade de substituição de regime jurídico que se depreende da nova Lei de Licitações e de Contratos Administrativos, que ocupará o espaço historicamente ocupado pelas Leis n.º 8.666 (antiga Lei de Licitações e de Contratos Administrativos), n.º 10.520 (Lei do Pregão) e n.º 12.462/2011 (Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas), o artigo 193 da Lei, com amparo dos artigos 190 e 191 do mesmo diploma, cuida de revogar as leis do regime em processo de substituição de forma expressa por derrogação (revogação parcial) e por ab-rogação (revogação total)[2].
Os artigos 89 a 108 da Lei n.º 8.666/1993, que versam sobre Direito Penal, foram revogados na data em que foi publicada a nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos, em razão do seu artigo 193, inciso I.
Diferentemente, os demais artigos da Lei n.º 8.666/1993, a Lei n.º 10.520/2002 e os artigos 1º a 47-A da Lei n.º 12.462/2011 serão revogados após o transcurso de dois anos contados a partir da data de publicação da nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos, em razão do seu artigo 193, inciso II.
Como corolário, à exceção dos artigos 89 a 108 da Lei n.º 8.666/1993, revogados em 1º de abril de 2021, os demais artigos da Lei n.º 8.666/1993, a Lei n.º 10.520/2002 e os artigos 1º a 47-A da Lei n.º 12.462/2011 serão revogados em 3 de abril de 2023.
A data correta de revogação é 3 de abril de 2023 porque i) os prazos a que se refere a nova Lei devem ser contados com a exclusão do dia do começo e inclusão do dia do vencimento, ii) os prazos expressos em anos serão computados de data a data e iii) considera-se a data de vencimento do prazo prorrogada até o primeiro dia útil seguinte em caso de não haver expediente, de o expediente ser encerrado antes da hora normal ou de haver indisponibilidade da comunicação eletrônica no dia do vencimento do prazo (artigo 183, II, § 2º, da nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos).
Assim, a Lei n.º 14.133/2021, publicada em 1.º de abril de 2021, vige desde então, mas, derradeiramente, considerando que não há expediente no dia 2 de abril de 2023, dia de domingo, os artigos 89 a 108 da Lei n.º 8.666/1993, a Lei n.º 10.520/2002 e os artigos 1.º a 47-A da Lei n.º 12.462/2011 deixarão de viger em concomitância com a Lei n.º 14.133/2021 no dia no dia 3 de abril de 2023, segunda-feira, primeiro dia útil subsequente ao dia 2 de abril de 2023.
Durante esses dois anos, a Lei n.º 14.133/2021 vigorará em conjunto com a Lei n.º 8.666/1993, com a Lei n.º 10.520/2002 e com Lei n.º 12.462/2011, de modo que competirá à Administração Pública optar, discricionariamente, a cada licitação ou contratação direta, por aquela lei ou por estas, de acordo com o artigo 191 da nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos. Para tanto, a Administração Pública deve registrar, de forma expressa no instrumento convocatório ou de contratação direta, a opção pela Lei n.º 14.133/2021 ou pelas Leis n.º 8.666/1993, n.º 10.520/2002 e n.º 12.462/2011, sendo vedado combinar a aplicação daquela lei com estas.
De todo modo, os contratos administrativos disciplinados por lei diversa da Lei n.º 14.133/2021 serão regidos por essas leis durante toda a sua vigência, mesmo em caso de prorrogação contratual após 3 de abril de 2023, em acordo com os artigos 190 e 191, parágrafo único, da nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos. Manifesta-se, então, o fenômeno da ultratividade da lei revogada, de acordo com o qual a lei revogada produz efeitos, isto é, vigora, ainda que não vija.
Assim, tem-se que: i) a nova Lei de Licitações vige e vigora desde 1º de abril de 2021 (art. 194); ii) revogaram-se em 1º de abril de 2021 os artigos 89 a 108 da Lei n.º 8.666/1993 (art. 193, I); iii) as Leis n.º 8.666/1993, n.º 10.520/2002 e n.º 12.462/2011 (artigos 1º a 47-A) serão revogadas em 3 de abril de 2023 (artigos 193, II); iv) de 1º de abril de 2021 a 3 de abril de 2023, compete à Administração Pública optar expressamente, no instrumento convocatório, pela nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos ou pelas Leis n.º 8.666/1993, n.º 10.520/2002 e n.º 12.462/2011 (artigo 191); v) após a revogação das Leis n.º 8.666/1993, n.º 10.520/2002 e n.º 12.462/2011, em 3 de abril de 2023, os contratos que tenham sido assinados enquanto elas estavam vigentes permanecerão regidos por elas, em vigor póstumo à sua vigência, por incidência do fenômeno da ultratividade.
Veja-se, por fim, o seguinte quadro comparativo:
[1] O fenômeno da ultratividade de normas jurídicas é aquele em acordo com o qual a norma jurídica, ainda que revogada (não vigente, portanto), produz vigor, isto é, é aplicada. Assim, como se verá, se determinado contrato público é regido pela Lei n.º 8.666/1993, mesmo após 3 de abril de 2023, quando a Lei n.º 8.666/1993 será revogada, a esse contrato deve ser aplicada a Lei n.º 8.666/1993, que não mais vigerá, mas vigorará. Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018, p. 212.
[2] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018, p. 215.
[3] Matheus Lopes Dezan: Estagiário de Direito em Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD|UnB). Estagiário de Direito em Schiefler Advocacia. Membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia da Universidade de Brasília e do Instituto de Direito Público (GEDE/UnB/IDP). Membro do Grupo de Pesquisa em Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas do Centro Universitário de Brasília (HDAPP/UniCeub). Membro do Grupo de Pesquisa certificado pelo CNPq Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial da Universidade de Brasília (DRIA/UnB). Editor Executivo Assistente da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB). Contato: matheus@schiefler.adv.br.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, Seção 1, 01 abr. 2021, p. 1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 1 maio 2021.
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.
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