O principal questionamento veio por intermédio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas no STF, nas quais se argumentou que a MP poderia significar uma espécie de salvo-conduto aos agentes públicos.
STF encerra polêmica sobre a MP nº 966/2020
Fernando Coelho[1]
A recente Medida Provisória nº 966/2020, editada no último dia 13 de maio, suscitou muita discussão ao tratar do tema da responsabilização dos agentes públicos no contexto das medidas de combate aos efeitos da pandemia da Covid-19. Um dos primeiros questionamentos suscitados pela MP é como ela se relaciona com as normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro que tratam do tema, bem como a sua necessidade e constitucionalidade.
A MP nº 966/2020 estabelece que a responsabilização civil e administrativa dos agentes públicos é possível somente se a sua ação ou omissão, no enfrentamento às emergências sanitárias e no combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da Covid-19, se derem por dolo ou erro grosseiro (art. 1º), eximindo da responsabilidade o agente público que tiver agido (ou deixado de agir) com base em opinião técnica alheia se não estiverem presentes elementos suficientes para que ele pudesse aferir o dolo ou o erro grosseiro dessa opinião técnica, ou se houve conluio entre os agentes (art. 1º, § 1º, I-II). Além disso, no § 2º, dispõe-se que a responsabilidade civil em caso de resultado danoso não recai sobre o agente público.
Finalmente, a MP define erro grosseiro como “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” (art. 2º), que deve ser aferido considerando-se: i) os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; ii) a complexidade da matéria e das atribuições do agente; iii) a incompletude das informações; iv) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e v) o contexto da incerteza das medidas mais adequadas no contexto e suas consequências inclusive econômicas (art. 3º).
Entretanto, se comparada aos artigos 22 e 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (os artigos 20 a 30 foram inseridos pela Lei nº 13.655/2018) e ao artigo 12 do Decreto nº 9.830/2019, que tratam do tema da responsabilização dos agentes públicos, a MP nº 966/2020, apesar de ter sido concebida no contexto do enfrentamento dos efeitos da pandemia da Covid-19, parece ter trazido bem pouca novidade. Para uma melhor comparação, apresentamos no quadro abaixo os dispositivos da MP ao lado dos artigos análogos da LINDB e do Decreto nº 9.830/2019:
Após cotejamento, verifica-se que as novidades dispositivas se resumem às seguintes:
a) O caput do art. 1º da MP é mais explícito e mais genérico. Refere-se aos agentes públicos nas suas ações ou omissões, e não às suas decisões ou opiniões técnicas, além de mencionar que a responsabilização se dará nas esferas civil e administrativa. Além disso, dispõe que a responsabilização é devida somente se se configurar erro grosseiro ou dolo na prática de atos no contexto da pandemia da Covid-19;
b) O art. 3º elenca mais fatores, além dos já existentes, a serem considerados para a aferição do erro grosseiro: i) os obstáculos e as dificuldades reais do agente público, as circunstâncias de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; ii) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; iii) e o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.
Contudo, no que diz respeito àqueles dispositivos da MP e do Decreto nº 9.830/2019 que são análogos, a sua positivação em forma de lei, que se verificará caso o Congresso aprove o texto da MP, trará maior segurança jurídica aos agentes públicos interessados. Afora a maior legitimidade de um texto aprovado pelo Poder Legislativo e a sua capacidade de inovar o ordenamento, criando direitos antes inexistentes, a consagração desses elementos em lei nacional abrange expressamente os demais entes federados, não se restringindo à União Federal. Além disso, na esteira do que já escreveu Gustavo Schiefler, “novas leis que estabelecem novos institutos são seguidas frequentemente de um sem número de obras doutrinárias e da ampla divulgação pelos meios de comunicação”[2].
Embora a Medida Provisória nº 966/2020 não tenha uma carga significativa de inovação normativa, pois, como visto, se caracteriza como um detalhamento maior de regras preexistentes, a sua publicação em um período sensível como o pandêmico trouxe questionamentos por parte da sociedade.
O principal questionamento veio por intermédio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade[3] ajuizadas no STF por partidos políticos e pela Associação Brasileira de Imprensa, nas quais se argumentou que a MP poderia significar uma espécie de salvo-conduto, anistiando os agentes públicos por quaisquer ações ou omissões relacionadas direta ou indiretamente com a pandemia de Covid-19 que não fossem caracterizadas por dolo ou erro grosseiro.
No julgamento das ADIs, o plenário do STF decidiu no dia 21/05/2020 que a MP nº 966/2020 é constitucional, salvaguardando assim as disposições análogas da LINDB e do Decreto nº 9.830/2019, e firmou as duas seguintes teses.
Em primeiro lugar, o erro grosseiro no âmbito da MP consiste na violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou nos impactos adversos à economia, quando resultarem da inobservância de normas e critérios técnicos ou dos princípios constitucionais da precaução ou da prevenção. Em segundo lugar, a autoridade incumbida de decidir, sob pena de se tornar corresponsável por eventuais violações a direitos, deve exigir que as opiniões técnicas que utilizará como base para a sua decisão tratem expressamente “(i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.”
[1] Doutor em Estudos da Tradução (PPGET/UFSC/2018) com tese sobre a tradução do direito romano (Digesto de Justiniano). Estágio de pós-doutorado na Universidade Sorbonne (Paris, 2019). Mestre em Estudos da Tradução. Bacharel e licenciado em Filosofia (UFSC/2005). Licenciado em Letras/Francês (UFSC/2008). Bacharel em Letras/Italiano (UFSC/2014). Atualmente graduando matriculado na 6ª fase de Direito (UFSC, 2017-), tendo realizado intercâmbio no Universidade Nanterre (Paris X) no segundo semestre de 2019.
[2] SCHIEFLER, Gustavo H. C. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): Solicitação e Apresentação de Estudos e Projetos para a Estruturação de Concessões Comuns e Parcerias Público-Privadas. Tese de Doutorado. UFSC, Florianópolis, 2013.
[3] São sete ações: ADIs: 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431.
Read MoreA medida busca promover a transparência e a eficiência dos processos administrativos de contratação pública, com incidência direta sobre a fase de planejamento da contratação pública.
O Ministério da Economia publicou, no dia 22 de maio de 2020, a Instrução Normativa n° 40 (IN 40)[1], que dispõe sobre a obrigatoriedade de que a contratação de bens, de obras e de serviços no âmbito da Administração Pública Federal seja precedida pela elaboração de Estudo Técnico Preliminar (ETP), com aporte tecnológico da plataforma virtual governamental denominada Sistema ETP Digital.
O ETP é documento incumbido de reunir, de registrar e de padronizar o processo de planejamento da contratação pública, bem como de apresentar os critérios e os motivos que ensejam a decisão administrativa pela contratação de bem, de obra ou de serviço. Para isso, exige-se a constância, no documento, da descrição da necessidade administrativa identificada, da descrição dos requisitos constitutivos do objeto apto a sanar a necessidade identificada, do registro do levantamento de mercado realizado pela Administração e de outros elementos, indicados expressamente no texto da IN 40/2020. Ademais, o ETP servirá de base ao Anteprojeto, ao Projeto Básico, ao Termo de Referência ou a documento similar, desde que se conclua pela contratação pública.
Por conseguinte, o Sistema ETP Digital performará como plataforma de registros e de consultas a ETPs, o que intenta possibilitar interoperatividade e comunicabilidade entre órgãos da Administração Pública no âmbito da contratação pública. À administração estadual e municipal será facultado o uso da plataforma. Para Cristiano Rocha Heckert, Secretário de Gestão do Ministério da Economia, “pela primeira vez teremos uma base de dados de estudos preliminares no país. Assim, um órgão poderá consultar no sistema o trabalho de outro órgão em alguma necessidade de aquisição que seja comum aos dois”[2].
A medida ministerial, que entrará em vigor a partir de 1° de julho de 2020, objetiva, em complemento ao regime jurídico de contratações públicas, aprimorar o processo de contratação por órgãos da Administração Pública direta, autárquica e fundacional, mediante a promoção da transparência e da eficiência procedimental-administrativas, por vias de padronização e de regramento da fase interna de planejamento da contratação pública.
[1] BRASIL. Instrução Normativa n° 40, de 22 de maio de 2020. Dispõe sobre a elaboração dos Estudos Técnicos Preliminares – ETP – para a aquisição de bens e a contratação de serviços e obras, no âmbito da administração Pública federal, direta, autárquica e sobre o Sistema ETP Digital. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-40-de-22-de-maio-de-2020-258465807. Acesso em: 27. mai. 2020.
[2] Economia moderniza planejamento para aquisição de bens, de serviços e obras. Governo Federal. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/maio/economia-moderniza-planejamento-para-a-aquisicao-de-bens-servicos-e-obras. Acesso em: 27. mai. 2020.
Read MoreA emergência nacional é mais urgente do que a local?
Nesta sexta-feira (22 de maio de 2020), a advogada Giovanna Gamba publicou, juntamente com o Prof. Dr. Guilherme Jardim Jurksaitis, o artigo “Contratações públicas em tempos de pandemia” no Portal Jurídico JOTA, o qual pode ser visualizado neste link. Em razão da relevância do tema, vamos republicá-lo na íntegra, com a autorização da autora:
Contratações públicas em tempos de pandemia: A emergência nacional é mais urgente do que a local?
Por Giovanna Gamba e Guilherme Jardim Jurksaitis
A lei federal nº 13.979/2020 foi editada para viabilizar medidas de resposta e contenção à pandemia do covid-19. Seus dispositivos sobre contratações públicas são indicativos claros da insuficiência do regime habitual de licitações para atender às necessidades reais da administração pública, sobretudo em período de crise.
Todos conhecemos as críticas à lei de licitações. Para ficar nas mais frequentes: excesso de burocracia, que torna o procedimento lento e custoso; apego ao menor preço, com baixa preocupação com a qualidade do que se quer adquirir; complexidade de regras, que cria ambiente propício à concentração de mercado e à corrupção[1].
Essas críticas valem tanto para aquisições corriqueiras de itens de escritório como para a construção de um hospital de referência. A lei de licitações não parece distinguir prioridades e se preocupa demais com minúcias pouco relevantes para qualificar o contratante e o objeto contratado.
Em situações de emergência, a inadequação desse regime é bem maior. Não há como aguardar o prazo mínimo entre a publicação do edital e a sessão de abertura dos envelopes. E há ainda o risco de uma decisão judicial ou administrativa paralisar o certame. É preciso agir rápido e com precisão.
Para esses casos, a lei de licitações prevê a contratação direta por emergência ou calamidade pública (art. 24, IV). Essa medida está na legislação desde o decreto-lei 200, de 1967 (art. 126, § 2º, h). Apesar disso, contratações sem licitação para atender emergências são alvo de intensa desconfiança. Se, de um lado, há desvios no uso desse instrumento, de outro, parece haver predisposição para considerá-lo irregular. A literatura oferece exemplos a respeito desse debate[2] e há jurisprudência dos órgãos de controle sobre o tema[3].
A impressão é que os órgãos de controle tendem a minimizar as situações de emergência, que, em tese, poderiam ensejar a dispensa de licitação. É comum atribuir comportamento desidioso ao gestor público por não ter adotado medidas preventivas à situação excepcional; ou questionar a própria ocorrência da situação emergencial. Em ambos os casos, o que se verifica é uma tendência à idealização, distante do mundo real e das dificuldades da administração pública.
Não surpreende que a lei federal nº 13.979/2020 tenha se preocupado em criar regime especial para as contratações emergenciais durante a crise do covid-19. Ela estabeleceu a presunção de emergência para todas as contratações destinadas “ao enfrentamento da emergência de saúde pública” (art. 4º-B), diminuindo o ônus do gestor ao motivar contratações sem licitação.
Precisou-se de uma pandemia global para que se buscasse diminuir a desconfiança contra as contratações diretas por emergência. E os fatos não foram suficientes: sem a edição de uma nova lei nacional os gestores não teriam segurança.
A ampla aceitação da dispensa presumida da lei 13.979/2020 sugere que a emergência nacional é mais real do que a vivenciada cotidianamente pelas administrações subnacionais, com escassos recursos humanos e financeiros. No entanto, a emergência que mata cidadãos da pequena cidade do interior de Sergipe, o menor da Federação, também é importante e grave. E, portanto, igualmente impossível de ser enfrentada pelos procedimentos da lei 8.666/93. A reforçar este ponto, o Congresso Nacional promulgou recentemente a emenda constitucional número 106, que autoriza o poder executivo federal a adotar procedimento simplificados de contratações públicas, sem mencionar os demais poderes e as entidades subnacionais.
A emergência presumida da lei 13.979/2020 é uma resposta à sacralidade do regime atual de licitações e à visão utópica de que é possível planejar tudo. Os deveres da licitação e de planejamento não podem, nas situações de emergência, serem usados como armas apontadas para o gestor público. Licitações são importantes, claro. E planejar também. Mas é preciso ter olhos para a realidade. É difícil, da perspectiva do ambiente controlado dos gabinetes e escritórios, levar a sério a emergência que está longe.
No contexto de desigualdade federativa, em que a imensa maioria dos municípios sequer tem receitas próprias para suas estruturas administrativas, é injusto e ingênuo impor a todos os gestores o mesmo dever de bem planejar. Na escassez, o gestor público tem de escolher entre prover a merenda escolar, única fonte de alimentação para muitas crianças, ou construir o muro de arrimo para suportar chuvas torrenciais futuras. Ou decidir entre o abastecimento de remédios para o posto de saúde e a campanha de prevenção contra a dengue. É claro que tanto as chuvas de verão quanto as doenças sazonais são previsíveis. Mas ambas disputam lugar com demandas presentes e, por vezes, mais urgentes.
Importantes líderes mundiais, como Barack Obama[4] e Bill Gates[5], alertaram para uma pandemia global e ninguém fez nada no Brasil. Essa falha de planejamento não impede que se faça agora a dispensa das licitações. A lei 13.979/2020 reconhece que, se a emergência chegou, é preciso enfrentá-la com eficiência e rapidez, sem exageros formais e sem questionar o passado.
A experiência pela qual estamos passando oferece a oportunidade para refletir seriamente sobre o sistema brasileiro de contratações públicas. Que ele possa oferecer soluções céleres e efetivas, para atender às necessidades diárias e às excepcionais da administração e da coletividade, em âmbito nacional e local. Menos idealização e preconceitos – e mais resultado. O dever de reformar o regime habitual de contratações públicas é premente. Passada a pandemia, que se retome a tarefa.
Até lá, fique em casa.
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[1] Sobre o tema, conferir André Rosilho, Licitação no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013.
[2] Por todos, conferir Carlos Ari Sundfeld, “Dispensa de licitação por emergência. Condições de validade e o problema da responsabilidade do contratado” in Pareceres, Vol. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, pp.: 21-34.
[3] Como mostra Juliana Bonacorsi de Palma, em coluna neste Jota, disponível em [https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/o-controle-em-tempos-de-coronavirus-25032020], acesso em 1/5/2020.
[4] Now This News, “Obama warned the U.S. to prepare for a pandemic back in 2014”, Youtube, 9/4/2020. Disponível em [https://www.youtube.com/watch?v=pBVAnaHxHbM], acesso em 1/5/2020.
[5] Bill Gates, “A better response to the next pandemic”, Gates Notes, 18/1/2010. Disponível em [https://www.gatesnotes.com/Health/A-Better-Response-to-the-Next-Pandemic], acesso em 1/5/2020.
Read MoreExceto nos casos em que houver alguma regulamentação específica e própria, a Administração terá liberdade para empreender uma pesquisa de mercado com os potenciais particulares a serem contratados, estabelecendo diálogos público-privados com esses potenciais fornecedores, devidamente registrados no processo administrativo. A partir de uma análise discricionária e motivada das diferentes opções, elegerá o particular a ser contratado diretamente, justificando tal seleção.
Como deve ser selecionado o particular no processo de contratação direta por dispensa de licitação regida pela Lei nº 8.666/1993?
Apesar das diversas modalidades de licitação que visam à seleção, pela Administração, do particular mais qualificado para a execução de um contrato público, a Lei Federal nº 8.666/1993 também permite, em alguns casos excepcionais, a contratação direta por dispensa de licitação. Estas hipóteses estão previstas no rol taxativo dos incisos do artigo 24.
Nessa categoria de contratação que não depende de licitação, encontram-se as situações em que o legislador optou que, embora fosse tecnicamente possível, a realização do certame seria indesejada. Nesse cenário, em vez de proceder à licitação pública, o legislador entendeu que seria mais adequado contratar diretamente a empresa contratada.
Antes de tudo, é preciso salientar que a opção pela contratação direta, seja por dispensa ou inexigibilidade de licitação, deve ser feita em razão da necessidade administrativa observada pela Administração quando do planejamento da contratação pública. É dizer: durante a fase interna do processo de contratação, a Administração identifica a sua necessidade e elege a solução que mais bem atende a essa necessidade. Se essa solução estiver enquadrada na hipótese de dispensa, ela será válida.
Seguindo a análise, tem-se que o rol de hipóteses, contido no artigo 24 da Lei Federal nº 8.666/1993, é taxativo. Isto é, as hipóteses de dispensa de licitação estão dispostas nos incisos do artigo 24 e o administrador está permitido a contratar diretamente, por dispensa, apenas quando o caso se enquadrar na descrição da hipótese.
Alguns exemplos comumente vistos na prática administrativa são as situações que, em razão de um caso de emergência, possuem urgência na resolução de uma demanda administrativa, de modo que a realização de licitação pública seria imprópria pela demora na obtenção do contrato (inciso IV do artigo 24 da Lei Federal nº 8.666/1993), e as hipóteses de contratação de pequeno valor (incisos I e II do artigo 24), em que a realização do procedimento licitatório produziria um custo desproporcional ao valor do contrato administrativo pretendido.
A título de informação, menciona-se que a Lei Federal nº 13.979/2020, editada para auxiliar no enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, previu uma nova hipótese de dispensa de licitação: nas situações em que a Administração pretende contratar bens, serviços (inclusive de engenharia) e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia de COVID-19 (artigo 4º da Lei Federal nº 13.979/2020[1]).
Sobre o procedimento a ser empreendido para a contratação direta por dispensa de licitação, é importante salientar o que dispõe o artigo 26 da Lei nº 8.666/1993[2]. Este dispositivo determina que as dispensas previstas nos §§ 2º e 4º do artigo 17 e, para o que interessa a este texto, no inciso III e seguintes do artigo 24 devem ser comunicadas, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos.
Vale ressaltar, ainda, o parágrafo único do mesmo artigo 26, segundo o qual:
Parágrafo único. O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I – caracterização da situação emergencial, calamitosa ou de grave e iminente risco à segurança pública que justifique a dispensa, quando for o caso;
II – razão da escolha do fornecedor ou executante;
III – justificativa do preço.
IV – documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados;
Mas, afinal, como devem ser interpretados tais regramentos?
Pois bem. Em relação à dúvida sobre a necessidade de que a Administração estabeleça regras objetivas no que toca à quantidade de empresas chamadas a apresentarem propostas e no que toca à forma de seleção da contratada, antecipa-se que não há qualquer previsão legal que determine, de forma objetiva, o número mínimo de empresas a serem chamadas para apresentação de proposta, tampouco há regramento para com os critérios a serem utilizados pela Administração para selecionar a empresa contratada.
Em outras palavras, não há qualquer impedimento legal, ou regulamentação em nível de lei, sobre o número de empresas que devem apresentar proposta e nem sobre os critérios que a Administração precisaria avaliar para selecionar o contratado. Estas questões dizem respeito às licitações, não à dispensa. Ou seja, a Lei Federal nº 8.666/1993 permite o ato de dispensar a licitação, mas não o delimita.
A regulamentação do procedimento para seleção do particular a ser contratado diretamente pode, eventualmente, ocorrer no âmbito infralegal de cada ente federado – tal como no âmbito federal, em que se prevê a dispensa eletrônica (artigo 51 do Decreto Federal nº 10.024/2019), ainda não regulamentada, que deverá substituir a cotação eletrônica (Portaria MPOG nº 306/01), ambos mecanismos destinados à seleção simplificada de fornecedor que apresente o menor preço para contratações de bens de pequeno valor.
Agora, esta ausência de critérios legais objetivos para a seleção da licitante não significa que se está em ambiente de plena liberalidade do agente público. Não. A escolha é discricionária, sim, porém devidamente – e tecnicamente – motivada. E afirma-se isto com tamanha categoria porquanto o próprio artigo 26 da Lei de Licitações e Contratos, em seu parágrafo único, supracitado, impõe que as seleções feitas pela Administração, ainda que em caso de dispensa de licitação, sejam devidamente justificadas.
Obrigatoriamente, o agente público deve apresentar a razão da escolha do fornecedor ou executante (artigo 26, parágrafo único, inciso II) e, também, a justificativa do preço (artigo, parágrafo único, inciso III). Sendo tais requisitos preteridos, impõe-se a anulação do ato administrativo que selecionar a empresa, ou mesmo do contrato.
A propósito, o Tribunal de Conta da União (TCU) possui jurisprudência pacífica a qual caminha na mesma direção: é preciso justificar a escolha da empresa contratada. Tanto o é, que o ministro Marcos Bemquerer Costa, relator do Acórdão nº 2186/2019, postulou que “a legislação, no caso de dispensa de licitação, não impõe regras objetivas quanto à quantidade e à forma de seleção do contratado, mas determina que essa escolha seja justificada”[3].
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) trilha o mesmo rumo. Em sede de Agravo em Recurso Especial[4], afirmou o relator, ministro João Otávio de Noronha, ser “incontroverso que a falta de justificativa (pautada no interesse público) levada a efeito no caso em exame, impõe a nulidade do ato. Ademais, não houve sequer procedimento prévio acerca da dispensa da licitação com suas justificativas, como exige o artigo 26 da Lei 8666/93 […]”.
Exceto nos casos em que houver alguma regulamentação específica e própria, a Administração terá liberdade para empreender uma pesquisa de mercado com os potenciais particulares a serem contratados, estabelecendo diálogos público-privados com esses potenciais fornecedores, devidamente registrados no processo administrativo. A partir de uma análise discricionária e motivada das diferentes opções, elegerá o particular a ser contratado diretamente, justificando tal seleção.
Portanto, conclui-se que, embora não haja regras concretas e objetivas no atinente à quantidade e à forma de seleção do contratado, deve a Administração, necessariamente, e em atenção ao parágrafo único do artigo 26 da Lei Federal nº 8.666/93, apresentar a razão da escolha do contratado e a justificativa do preço, sob pena de nulidade do ato.
[1] Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
[2] Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2o e 4o do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8o desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos
[3] TCU – RP: 00174720185, Relator: MARCOS BEMQUERER, Data de Julgamento: 11/09/2019, Plenário.
[4] STJ – AREsp: 1610192 MS 2019/0323149-7, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Publicação: DJ 03/02/2020.
Read MoreSe houver previsão em lei e no edital, se o edital prevê critérios objetivos para avaliação e se houver possibilidade de revisão/recurso da conclusão a ser obtida no teste, a submissão dos candidatos ao teste psicotécnico pode ser exigida, desde que respeitados os princípios que regem a atividade administrativa.
Quais os critérios para aplicação de exame psicotécnico em concursos públicos?
As carreiras públicas são, frequentemente, objeto de interesse de uma parcela considerável da população brasileira. Além da boa remuneração, a estabilidade e as boas condições de aposentadoria podem ser ativos bastante atrativos para as mais diversas profissões.
Por questões constitucionais, o ingresso em cargos públicos está condicionado à aprovação em uma série de provas e avaliações – os famosos concursos públicos. Dentre as diversas etapas que podem compor estes certames, encontram-se, tradicionalmente, a prova objetiva ou discursiva, a avaliação de títulos e o teste psicotécnico.
Entretanto, existe um importante fato sobre o teste psicotécnico que é desconhecido para muitos: o psicotécnico só pode ser exigido se houver previsão em lei condicionando o cargo pretendido à realização desse teste. Ou seja, o psicotécnico só pode ser exigido para cargos em que a lei determina a sua necessidade, de forma que não é aplicável a todos os cargos.
Além disso, a validade desta etapa, quando o teste psicotécnico é exigido, está condicionada ao estabelecimento de critérios objetivos, claros e racionais previstos no edital do certame. Não basta que a lei preveja a submissão dos candidatos ao teste psicotécnico. É preciso que o edital, com base na legislação, preveja critérios objetivos e pertinentes para a realização do teste, a fim de evitar que candidatos sejam eliminados do concurso público de forma arbitrária e desmotivada.
E mais: além da necessidade de haver (i) previsão legal e (ii) critérios objetivos, para que a avaliação psicotécnica seja válida, também é necessário (iii) prover ao candidato a oportunidade de recorrer de eventual conclusão obtida no teste.
Este é o entendimento recorrente nos Tribunais brasileiros. Confira-se julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que entendeu pela necessidade de previsão legal e de critérios objetivos para que a submissão de candidato a exame psicotécnico seja válida:
ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CIVEL. CONCURSO PÚBLICO. DELEGADO DA POLÍCIA FEDERAL. EXAME PSICOTÉCNICO. AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA. EXIGÊNCIA DE PERFIL PROFISSIOGRÁFICO PARA O CARGO. NECESSIDADE DE PREVISÃO LEGAL E DE CRITÉRIOS OBJETIVOS. LAUDO PERICIAL REALIZADO EM JUÍZO. APTIDÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. REPERCUSSÃO GERAL. INCABÍVEL. MANUTENÇÃO DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA AFASTADA.
1. Nos termos da atualizada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a legalidade do exame psicotécnico em provas de concurso público está submetida (a) à previsão legal, (b) à objetividade dos critérios adotados e (c) à possibilidade de revisão do resultado obtido pelo candidato. Portanto, além de ter previsão legal e possibilidade de revisão, o exame deverá ser pautado em critérios objetivos, e não critérios genéricos e subjetivos, como no caso.
2. Não é possível a realização de psicotécnico com a finalidade de verificar a adequação do candidato a ‘perfil profissiográfico’ considerado ideal pela Administração, mas não previsto em lei e expresso no edital de abertura, por violação ao princípio da publicidade. Precedentes. […]
(TRF-4 – AC: 50013400320144047000 PR 5001340-03.2014.4.04.7000, Relator: MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, Data de Julgamento: 14/02/2019, VICE-PRESIDÊNCIA)
Ademais, é oportuno salientar que, considerando não ser a psicologia uma ciência exata, a subjetividade é componente essencial e indissociável dela. No entanto, isso não significa que a Administração possui liberdade para, a seu bel prazer, eliminar candidatos de forma subjetiva durante a fase de exame psicotécnico.
Se é verdade que a subjetividade não macula a validade dos testes psicotécnicos, o entendimento majoritário é de que, desde que respeitados os princípios da publicidade e da igualdade – ou seja, se houver previsão na lei e no edital, além de definição de metodologia predefinida que garanta a isonomia – não há ilegalidade. Confira-se mais um precedente:
DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. CONCURSO PÚBLICO. EXAME PSICOLÓGICO. PREVISÃO NO EDITAL DO CERTAME E NA LEI. REPROVAÇÃO. POSSIBILIDADE. Ação proposta por participante de concurso para provimento de cargo de soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro eliminado no teste psicológico. Sentença de improcedência. Apelo da autora.
1. Nada inquina teste psicológico o fato de ser subjetivo, já que a psicologia, voltando-se para a psique do indivíduo e da pessoa, não é ciência exata, sendo, aliás, por natureza a do subjetivismo.
2. O ordenamento jurídico autoriza a realização do exame psicotécnico como condição de ingresso em determinados concursos públicos, desde que previsto no edital e em lei, atendendo, ainda, a realização do aludido exame a critérios metodológicos objetivos e previamente determinados.
3. Ademais, não havendo indícios de que a Administração Pública feriu os princípios da igualdade, da moralidade administrativa e da razoabilidade, prover o pleito implicaria intolerável interferência judicial na discricionariedade administrativa.
4. Recurso de apelação ao qual se nega seguimento, na forma do art. 557, caput, do CPC.
(TJRJ, Apelação Cível nº 0334274-60.2010.8.19.0001, Des(a). FERNANDO FOCH DE LEMOS ARIGONY DA SILVA – Julgamento: 30/06/2015 – TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)
Da leitura das decisões judiciais transcritas acima, é de se observar que o Poder Judiciário evita interferir na discricionariedade administrativa, se verificar que a avaliação psicotécnica dos candidatos respeitou os ditames legais, mais especificamente os princípios da igualdade, da moralidade administrativa, da razoabilidade e da publicidade.
Portanto, depreende-se da jurisprudência que, se houver previsão em lei e no edital, se o edital prevê critérios objetivos para avaliação e se houver possibilidade de revisão/recurso da conclusão a ser obtida no teste, a submissão dos candidatos ao teste psicotécnico pode ser exigida, desde que respeitados os princípios que regem a atividade administrativa.
Em caso de violação de violação desses princípios ou regras jurídicas, o Poder Judiciário possui legitimidade para anular a eliminação de candidato indevidamente prejudicado nesta fase do concurso.
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Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
Nos últimos dias, o futuro Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Ministro Luís Roberto Barroso, admitiu em entrevistas o “risco real” de adiamento das eleições municipais de 2020, tendo em vista o aumento exponencial de casos de contaminação pelo novo coronavírus (Covid-19) nos mais diversos Estados brasileiros. Segundo o Ministro, a decisão de adiar as eleições de 2020 precisaria ser tomada, no mais tardar, no mês de junho.
A providência não seria simples, pois a data das eleições municipais está categoricamente prevista nos incisos I e II do art. 29 da Constituição Federal:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
I – eleição do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores, para mandato de quatro anos, mediante pleito direto e simultâneo realizado em todo o País;
II – eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores; […].
A regra é muito clara e não está sujeita a distorções: o primeiro turno das eleições municipais para Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores deve acontecer, de quatro em quatro anos, sempre no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder. Caso haja necessidade de um segundo turno para o preenchimento das vagas do Poder Executivo, este deverá ocorrer no último domingo de outubro do ano eleitoral, nos Municípios que contarem com mais de duzentos mil eleitores
Muitos defendem que, diante do texto peremptório acima mencionado, não haveria margem para adiamento das eleições em nenhuma hipótese, sendo imperativa a sua realização, independentemente da pandemia da Covid-19. Em outros termos: há quem entenda que, por não haver exceção prevista constitucionalmente, as eleições de 2020 devem ocorrer de qualquer maneira, mesmo que isso provoque um agravamento da pandemia.
Vale lembrar que, em sentido amplo, o termo “eleição” não se refere apenas ao dia da votação, isto é, ao primeiro e ao último domingo de outubro do ano eleitoral – neste último caso, na hipótese de necessidade de realização de segundo turno nos Municípios com mais de duzentos mil habitantes. Com efeito, o ano eleitoral possui um calendário complexo, que envolve, entre outras atividades, a realização das convenções partidárias com a escolha dos candidatos, o registro das candidaturas propriamente ditas, a exibição de propaganda eleitoral gratuita e a apresentação da prestação parcial das contas de campanha. Isso sem contar o período reservado para testes das urnas eletrônicas e de treinamento dos mesários que irão colaborar com a Justiça Eleitoral no dia do pleito.
Ou seja: quando se fala em adiamento das eleições, não se está a considerar apenas os riscos de aglomeração no dia do pleito, mas também as relações interpessoais que precisam ser travadas nos meses que antecedem o dia de votação. Nesse sentido, não é forçoso dizer que as eleições já estão sofrendo as consequências da pandemia neste exato momento.
Qual seria, então, a solução para o problema descrito?
Em primeiro lugar, é preciso que os juristas entendam que o Direito não pode pretender se sobrepor aos fatos da vida ou, numa expressão mais coloquial, à vida real. Ora, diante de uma pandemia que está a ceifar a vida de um número expressivo de cidadãos brasileiros, o cumprimento de um prazo legal, mesmo aquele previsto na norma de maior hierarquia do país (Constituição Federal), não pode ser levado a ferro e fogo. Realizar as eleições em outubro de 2020 não é um caso de vida ou morte; o combate à pandemia da Covid-19 é. Em síntese: se o contágio do novo coronavírus não for sensivelmente contido no próximo mês, então obviamente as eleições não poderão se realizar.
É mais ou menos isso que indicou o Ministro Luís Roberto Barroso quando se referiu à necessidade de se tomar uma decisão até o mês de junho, pois é nesse mês que são realizados os testes das urnas eletrônicas, que garantem a lisura do pleito, além das convenções partidárias, que acabam por definir o nome dos candidatos que concorrerão no pleito, e a formação de coligação para as disputas majoritárias.
Ao que tudo indica, caso a pandemia não arrefeça, no mês de junho, quando já terá assumido a Presidência da Corte Eleitoral, Barroso tomará a iniciativa de intermediar um movimento político pelo adiamento das eleições, que deverá vir, necessariamente, por meio de uma Emenda Constitucional.
A solução menos traumática seria incluir no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) regra específica e limitada apenas para as eleições de 2020, que poderiam ocorrer em novembro ou dezembro, considerando os impactos produzidos pela pandemia do novo coronavírus. Em assim procedendo, eleições futuras não seriam abarcadas por tal Emenda.
Sabe-se que já existem propostas tramitando no Congresso Nacional, no sentido de prorrogar os mandatos dos atuais Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores até 2022, ocasião em que as eleições gerais (para Presidente, Vice-Presidente, Senadores, Governadores, Deputados Federais e Estaduais) e as eleições municipais (Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores) seriam doravante unificadas.
Entretanto, tais propostas não agradam ao próximo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que vê com bons olhos as eleições de dois em dois anos, por serem um “rito vital para a democracia”.
De fato, na atual conjuntura política brasileira, o pleito eleitoral parece ser o momento em que o princípio democrático mais se conecta com os cidadãos. Nesse sentido, diminuir a frequência dos pleitos, de dois para quatro anos, poderia provocar um resultado deletério, aumentando o desinteresse do brasileiro pela política. De qualquer modo, parece inadequado e, em certo sentido, oportunista propor uma discussão dessa envergadura em meio a uma situação de extrema excepcionalidade, tal como a que ora se apresenta a todos os brasileiros.
Com a definição do adiamento em junho, certamente um novo calendário eleitoral será proposto e, a partir dele, poderemos compreender melhor o impacto da Covid-19 nas eleições de 2020.
[1] Eduardo de Carvalho Rêgo – Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
Read MoreÉ possível que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais, de modo que os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
A confidencialidade de informações da empresa estatal não pode acarretar prejuízo à ampla defesa do particular
Não é segredo que a Administração Pública brasileira está vinculada e deve ter a sua atuação alinhada com o ordenamento jurídico, em especial com o que dispõe o artigo 37 da Constituição Federal. Este dispositivo, ao prever o princípio da publicidade, impõe o caráter público dos atos e documentos administrativos como regra, e o sigilo como exceção.
Por este motivo, inclusive, o princípio da publicidade permeia todas as fases dos processos de contratação pública conduzidos pelos órgãos e entidades da Administração Pública brasileira, inclusive pelas empresas estatais.
Mas há uma peculiaridade relevante. No caso das empresas estatais, especialmente quando atuam em regime de livre mercado, ou seja, em concorrência com outros players do mercado, produzem informações cuja divulgação ao público pode afetar a sua governança corporativa, oferecer vantagens competitivas a outros agentes econômicos, ou ainda, impactar a competitividade de futuras licitações ou os interesses de acionistas minoritários. A legislação é sensível a esta questão e admite, em algumas hipóteses, a classificação de confidencialidade a informações de empresas estatais, vide, por exemplo, o artigo 22 da Lei de Acesso à Informação (Lei Federal nº 12.527/2011).
Especificamente no âmbito das contratações públicas, o regramento jurídico aplicável às empresas estatais também é mais permissivo em relação à sigilosidade de informações. Por exemplo, o artigo 34 da Lei Federal nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) estabelece, em caráter excepcional, o sigilo aos orçamentos estimados das licitações conduzidas pelas empresas estatais. Ou seja, nessa hipótese, a própria lei impõe o sigilo como regra, condicionando a publicidade do valor estimado do objeto da licitação à exigência de justificativa na fase de preparação. Inverte-se, portanto, a lógica tradicional de publicidade como regra nos processos de contratações públicas – e, em verdade, de toda a atividade administrativa.
A rigor, o principal motivo teórico que justificou a opção legislativa pela não divulgação do orçamento nas licitações empreendidas pelas empresas estatais refere-se a uma tentativa de evitar que os licitantes precifiquem as suas propostas de forma a orbitar o orçamento estipulado pela Administração, mitigando-se, assim, o risco de contratação por preços superiores ao valor de mercado. Mas questões relacionadas à governança corporativa da empresa e o impacto à competitividade de futuros certames também justificaram a criação desta regra.
Acontece que a possibilidade de que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais traz à tona um importante ponto que merece reflexão: os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
Isto é, o sigilo de informações produzidas pela empresa estatal nos processos de contratação pública empreendidos pode obstaculizar, de alguma forma, a defesa plena do licitante. Imagine-se, por exemplo, que a empresa estatal suspeita que determinado produto ou serviço foi oferecido com sobrepreço pelo licitante ou pela empresa já contratada, mas ao mesmo tempo se nega a revelar os documentos que embasam esta sua suspeita, que, se confirmada, poderá trazer obrigações de ressarcimento, ou mesmo penalidades, ao particular.
Nesses casos, o que deve prevalecer?
O Tribunal de Contas da União (TCU) abordou o tema e trouxe luzes à questão, esclarecendo que, apesar de existir respaldo legal para o sigilo de documentos de empresa estatal, as leis que admitem esta operação são normas infraconstitucionais e, portanto, não podem ferir os princípios dispostos na Constituição Federal de 1988. Confira-se o que julgou o TCU no Acórdão nº 423/2019, do Plenário:
Relatório
49. Embora a referida Sociedade de Economia Mista tenha declarado que alguns documentos acostados a estes autos sejam confidenciais, verifica-se a plena possibilidade de extensão da guarda do sigilo às partes do processo para que estas possam exercer, de forma completa, o seu direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, sem, contudo, retirar desses documentos o atributo de sigilo perante terceiros, impondo aos que tiverem acesso às informações sigilosas o cuidado necessário à sua guarda, sob pena de responsabilização por negligência no tratamento dessas informações.
50. A Carta Magna, em seu art. 5º, inciso LV, garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
51. De fato, nos processos em geral, a restrição de acesso ao conteúdo dos autos pode embaraçar o exercício do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa em sua plenitude, uma vez que cria assimetrias de informação entre os interessados e prejudica a bilateralidade do processo, dificultando, em última análise, a aclaração das questões apontadas nos autos. […]
64. […] Por sua vez, as empresas estatais devem se submeter aos princípios estabelecidos na Carta Magna, dentre os quais, o da transparência, que exsurge de diversos dispositivos da Constituição Federal, a exemplo do princípio da publicidade, grafado no art. 37, caput, ou o direito de obter informações de seu interesse junto a órgãos públicos, conforme preconiza o art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988.
A própria Carta da República prevê as hipóteses em que o direito à informação é relativizado, como quando o sigilo é imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5°, inciso XXXIII parte final), ou a fim de preservar o direito à intimidade (art. 5°, inciso LX).
Por óbvio, eventual classificação de sigilo de informações conferidas por legislação infraconstitucional, a exemplo do sigilo comercial, não pode obstaculizar o exercício de garantias asseguradas pelo manto constitucional.
Na espécie, a estatal manifesta preocupação com o fato de o Consórcio ter acesso a determinadas informações, especialmente, as do seu orçamento sigiloso.
Em situações análogas à que ora aqui se examina, esta Corte de Contas tem decidido que o sigilo imposto ao orçamento da estatal, em sua fase interna, não pode ser oposto ao exercício do contraditório e da ampla-defesa, a exemplo do que foi decidido nos Acórdãos 1.854/2015 e 2.254/2016, ambos do Plenário. (…)
VOTO
10. Além da devida observância ao princípio da publicidade (artigo 37, caput, da Constituição de 1988), há interesse público de que a apreciação de matérias como essa não seja afastada do escrutínio social, e este Tribunal não tem mais acatado o procedimento antes costumeiro de a Petrobras apontar, indiscriminadamente, sigilo das informações prestadas com a simples justificativa de que “os dados apresentados podem representar vantagem competitiva a outros agentes econômicos”, sem indicação específica de quais informações conteriam tal sensibilidade, ou de quais vantagens poderiam ser auferidas por terceiros que tomassem ciência desses dados (Acórdão 3.343/2015 – Plenário, da relatoria do ministro Vital do Rêgo). […]
14. Vale dizer que a interpretação de que o sigilo conferido a documentos constantes de procedimentos licitatórios, como o orçamento da estatal, não pode ser usado para impedir o exercício do contraditório e da ampla defesa não configura precedente isolado, mas refletiu evolução da jurisprudência sobre o tema, como se vê, por exemplo, nos Acórdãos 248/2016, 2.005 e 2.014/2017 – Plenário (relatores os ministros Vital do Rêgo, Benjamin Zymler e Bruno Dantas, respectivamente). […]
(TCU, Acórdão 423/2019, Plenário. Relatora Ministra Ana Arraes, julgado em 27/2/2019)
Nesse sentido, embora entenda que o ordenamento jurídico brasileiro admite o sigilo de documentos inseridos nos processos administrativos dedicados às contratações públicas de empresas estatais, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que, se houver conflito, deve prevalecer o direito à ampla defesa e ao contraditório das empresas particulares. Inclusive, previu-se a possibilidade de que o sigilo seja mantido em relação a terceiros, facultando-se, todavia, o pleno acesso pela empresa juridicamente interessada.
Em outras palavras, o que se reconheceu neste caso é que o sigilo das informações impediria o exercício do contraditório e da ampla defesa da empresa contratada, de modo que a confidencialidade das informações não poderia prevalecer.
O eventual sigilo de documentos das empresas estatais, portanto, não é absoluto. Aliás, como exemplifica o § 3º do artigo 34 da Lei das Estatais, ainda que a informação relativa ao valor estimado do objeto da licitação tenha caráter sigiloso, ela “será disponibilizada a órgãos de controle externo e interno, devendo a empresa pública ou a sociedade de economia mista registrar em documento formal sua disponibilização aos órgãos de controle, sempre que solicitado”. Além disso, especificamente no caso do orçamento estimado, a recomendação é que tal informação seja revelada ao público após a etapa de julgamento das propostas dos licitantes, exercendo apenas uma função temporária de promover propositalmente esta assimetria informacional durante a licitação.
Portanto, diante de uma situação concreta de confrontamento entre o direito de defesa e o sigilo de informações mantidas pela empresa estatal, é preciso analisar as peculiaridades do caso e o objetivo da norma legal, a fim de verificar se a manutenção do sigilo impediria ou não a defesa do particular. A depender da conclusão a ser tomada nessa análise, o sigilo pode ser levantado para que o contraditório e a ampla defesa sejam desempenhadas em sua plenitude.
Read MoreAo reconhecer a falta de razoabilidade e, por consequência, a ilegalidade de decisões administrativas que eliminam candidatos na fase de aptidão médica, em razão da entrega incompleta de exames médicos por culpa exclusiva dos laboratórios e das clínicas responsáveis pela sua realização, o Poder Judiciário vem atuando como um porto seguro do interesse público em contratar o candidato mais qualificado para exercer as funções do cargo.
Candidato de concurso público não pode ser eliminado em razão de exame médico incompleto por falha do laboratório.
O ingresso em cargo ou emprego público depende de aprovação em concurso público, ocasião em que o candidato será avaliado por critérios objetivos, previstos em lei e no edital do certame.
Nesse processo, além de comprovar a capacidade técnica para o exercício do cargo, é necessário que os postulantes ao cargo público federal comprovem a higidez de sua saúde, nos termos do parágrafo único do artigo 14 da Lei Federal nº 8.112/1990 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais), que estatui regra adotada de maneira geral por toda a Administração Pública Federal, e que, comumente, é replicada em normas estaduais e municipais:
Art. 14. A posse em cargo público dependerá de prévia inspeção médica oficial.
Parágrafo único. Só poderá ser empossado aquele que for julgado apto física e mentalmente para o exercício do cargo.
Nesse sentido, é comum que, nos próprios editais de concurso público, haja a previsão desta etapa de comprovação da aptidão médica. Inclusive, não são raras as vezes que os exames médicos necessários são pormenorizados no edital, os quais podem, em regra, ser realizados em laboratório a ser escolhido pelo candidato.
Eventualmente, laboratórios de exames médicos cometem falhas na entrega dos serviços contratos, omitindo ou atrasando a entrega de exames exigidos em concurso público. Por sua vez, os candidatos, que sequer tem expertise nesse assunto e que atuaram de forma diligente na realização dos exames dentro do prazo, acabam sendo indevidamente prejudicados por apresentar a documentação médica em desconformidade com o exigido em edital ou, ainda, fora do prazo.
Estes candidatos que, de alguma forma, foram prejudicados por falhas do laboratório ou da clínica médica responsável pela realização do exame, em razão da entrega incompleta ou atrasada de exame médico solicitado, devem informar o fato ao órgão realizador do concurso, a fim de possibilitar uma nova entrega posterior, inclusive em sede de recurso.
Este é o entendimento do Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1). Em decisão que prezou pela razoabilidade nas eliminações em concursos públicos, o TRF-1 reconheceu a ilegalidade de decisão administrativa que havia declarado a inaptidão de candidato aprovado pela apresentação incompleta de exame médico, ocasionada por falha do laboratório. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL. EXAME MÉDICO. APRESENTAÇÃO INCOMPLETA DO EXAME DE HEPATITE B. ERRO DO LABORATÓRIO. CORREÇÃO DA IRREGULARIDADE POR OCASIÃO DA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. NOMEAÇÃO E POSSE. CANDIDATO SUB JUDICE. […].
I – A orientação jurisprudencial já consolidada no âmbito de nossos tribunais é no sentido de que não cabe ao Poder Judiciário substituir-se aos membros de Banca Examinadora na formulação e na avaliação de mérito das questões de concurso público, podendo, contudo, pronunciar-se acerca da legalidade do certame, como no caso, em que se discute a legitimidade da eliminação de candidato, sob o fundamento de que este não teria apresentado todos os exames médicos solicitados pela impetrada.
II – Na hipótese dos autos, não se afigura razoável a eliminação de candidato em etapa específica de concurso público para avaliação de saúde, em virtude da apresentação incompleta do exame de Hepatite B, quando restou comprovado que decorreu de falha do laboratório, sendo que, ao interpor recurso administrativo, o impetrante juntou o exame laboratorial faltante, o qual demonstra, inclusive, sua higidez física. Ademais, consta do edital regente do certame a possibilidade de a junta médica solicitar exames complementares, o que não ocorreu, na espécie dos autos. Precedentes. […]
IV – Apelação desprovida. Sentença confirmada.[1]
O posicionamento adotado pelo julgado acima não está isolado do entendimento majoritário. Confiram-se outras decisões que também reconheceram a ilegalidade da eliminação de candidatos nessa mesma situação:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO ORDINÁRIA. CONCURSO PÚBLICO. EXAMES MÉDICOS. EXCLUSÃO DE CANDIDATO POR ALEGADA FALTA DE APRESENTAÇÃO DE DETERMINADO EXAME. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.
O agravante inscreveu-se em concurso público para provimento de vagas para o cargo de Policial Rodoviário Federal, regido pelo Edital nº 01, de 11 de junho de 2013, tendo sido desclassificado na Avaliação de Saúde, sob o fundamento de ausência de entrega do exame médico “IMPEDANCIOMETRIA”.
A exclusão do candidato do certame no presente caso, pela negativa de recebimento de um exame médico com nomenclatura variada, pois relatórios médicos juntados aos autos declaram que os termos “IMPEDANCIOMETRIA” e “IMITANCIOMETRIA” referem-se ao mesmo exame, e a omissão da autoridade impetrada em conferir, no momento do recebimento, o rol dos exames entregues, não se coadunam com o princípio da razoabilidade.
Agravo de instrumento parcialmente provido para assegurar ao Agravante o direito de participar nas demais etapas do certame de Policial Rodoviário Federal.[2]
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL. EXAME MÉDICO FALTANTE. EXAMES COMPLEMENTARES. POSSIBILIDADE. RAZOABILIDADE. […]
II – Na hipótese dos autos, não se afigura razoável a eliminação de candidato em etapa específica de concurso público para apresentação de exames médicos, quando faltante apenas um dentre os inúmeros solicitados, mormente quando o próprio edital regulador do certame indica etapa específica para a entrega de possíveis exames complementares, pelo que não merece qualquer reparo o julgado monocrático que concedeu a segurança postulada na espécie. Ademais, constata-se que não há qualquer pendência editalícia por parte do impetrante, já tendo este participado com aproveitamento do regular curso de formação, sendo determinada, nos presentes autos, inclusive, a sua nomeação e posse desde 27/05/2014.
III – Apelação e remessa oficial, tida por interposta, desprovidas.[3]
Nesse sentido, ao reconhecer a falta de razoabilidade e, por consequência, a ilegalidade de decisões administrativas que eliminam candidatos na fase de aptidão médica, em razão da entrega incompleta de exames médicos por culpa exclusiva dos laboratórios e das clínicas responsáveis pela sua realização, o Poder Judiciário vem atuando como um porto seguro do interesse público em contratar o candidato mais qualificado para exercer as funções do cargo.
Desta forma, candidatos que enfrentam situações como esta podem, para evitar a eliminação definitiva de um concurso público, interpor recurso contra a eliminação ou ajuizar ação judicial com o objetivo de ter reconhecida a ilegalidade do seu caso concreto. Para isso, é importante que o pleito seja acompanhado de documentos que atestem o erro do laboratório, a fim de comprovar a culpa exclusiva do prestador de serviço.
Este entendimento evita que candidatos mais qualificados sejam injustamente eliminados pelo erro de terceiros. A finalidade do concurso público, afinal, é contratar os candidatos por seu mérito e aptidão a desempenhar bem as funções do cargo – e não eliminá-los por aspectos alheios à sua responsabilidade, fora do seu alcance e capazes de serem corrigidos em tempo.
[1] TRF-1, Apelação nº 0009308-21.2016.4.01.3400, DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, Quinta Turma, julgado em 26/06/2019.
[2] TRF-1, AG 0050256-88.2014.4.01.0000 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES, SEXTA TURMA.
[3] TRF-1, AMS 0073548-24.2013.4.01.3400 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, QUINTA TURMA.
Read MoreA legislação que rege o ingresso e a carreira militar é a Lei Federal nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares), sendo que, neste diploma normativo, não há qualquer disposição de que deve ser utilizado o índice de massa corpórea (IMC) como parâmetro para aferir a aptidão médica dos aspirantes a militar.
Candidatos de concurso militar não podem ser eliminados em razão do Índice de Massa Corporal (IMC), decide STJ
É sabido que, em razão de regra constitucional, o ingresso em cargo público depende de aprovação em concurso público, ocasião em que o candidato será avaliado por critérios objetivos, previstos em lei e no edital do certame. No caso de concurso público militar, para ingresso nas Forças Armadas constituídas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, a Constituição Federal conferiu especial atenção ao processo de escolha dos candidatos, tendo em vista a função altamente sensível para salvaguarda da soberania nacional e na garantia da democracia.
Especificamente, o inciso X do artigo 142 da Constituição[1] confere à lei a função de dispor sobre o ingresso nas Forças Armadas, em especial quanto aos critérios de seleção. Ou seja, as regras aplicáveis aos concursos militares para preenchimento de cargos devem ser estabelecidas por norma com estatura hierárquica de lei – sendo inaplicável, nesse sentido, qualquer inovação por meio de normas infralegais ou editalícias.
Hoje, a legislação que rege o ingresso e a carreira militar é a Lei Federal nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares), sendo que, neste diploma normativo, não há qualquer disposição de que deve ser utilizado o índice de massa corpórea (IMC) como parâmetro para aferir a aptidão médica dos aspirantes a militar. Assim sendo, é ilegal a eliminação de candidato que, aprovado nas demais fases do concurso público, possua IMC superior ao mínimo estabelecido em edital.
Como a lei não autoriza a utilização desse critério, a exclusão de candidatos com base nele é uma prática ilícita passível de controle pelo Poder Judiciário.
Em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou este entendimento e afastou a possibilidade de eliminar candidatos em concurso militar em razão do IMC, uma vez que inexiste na lei de regência autorização específica, não sendo suficiente a mera inclusão do requisito no edital. Leia-se:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. INGRESSO NA CARREIRA MILITAR. APTIDÃO FÍSICA. ÍNDICE DE MASSA CORPORAL. PREVISÃO LEGAL ESPECÍFICA. INEXISTÊNCIA. […]
A lei de regência das forças armadas (Estatuto dos Militares – Lei nº 6.880/80) não elenca nenhuma exigência quanto ao limite de altura, peso ou IMC para o ingresso na carreira, de modo que a previsão de algum desses requisitos, em concursos públicos, somente seria permitida mediante respaldo legal específico, compatível com as atribuições do cargo, sendo insuficiente a mera inclusão como cláusula do edital.
3.Agravo interno desprovido.[2]
Esta decisão não foi tomada de modo isolado, mas representa o entendimento jurisprudencial pacífico do Poder Judiciário. Confiram-se outras decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é o órgão responsável por uniformizar o entendimento das decisões judiciais em território brasileiro:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO. CURSO DE FORMAÇÃO DE TAIFEIROS. LIMITAÇÃO DE PESO PREVISTO NO EDITAL. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. […]
III – No caso, por mais que se possa compreender a razoabilidade da eventual fixação de limite de altura e peso para ingresso em determinadas carreira, é forçoso reconhecer que a lei (Estatuto dos Militares – Lei nº 6.880/80) não elenca qualquer exigência quanto ao limite de altura e peso ou IMC para o ingresso nas Forças Armadas, mormente para a matrícula no Curso de Formação de Taifeiros.
IV – Agravo interno improvido.[3]
[…] CONCURSO PÚBLICO. INGRESSO NA CARREIRA MILITAR. APTIDÃO FÍSICA. ÍNDICE DE MASSA CORPORAL. CRITÉRIO. EXIGÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL ESPECÍFICA. AUSÊNCIA. RECURSO IMPROVIDO. […] III – A exigência de limites máximo e mínimo de Índice de Massa Corporal (IMC), em concursos públicos, somente é permitida mediante previsão legal específica, compatível com as atribuições do cargo. Precedente.
IV – Recurso improvido.[4]
O posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) é compartilhado pelos demais Tribunais pátrios. É o caso do Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF-4), que também decidiu no sentido de que “A Lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares), de forma alguma estabelece especificamente os requisitos para exames de saúde em concursos às fileiras militares. Portanto, evidente que não existe a fixação do Índice de Massa Corpórea – IMC como fator à aptidão ou não para ingresso na carreira militar, sendo defeso fazê-lo através de portaria ou Edital de concurso, à míngua de Lei que o autorize” (AC nº 5003370-91.2017.4.04.7101/RS, Relator Desembargador Rogério Favreto).
Constata-se, assim, que predomina o entendimento dos tribunais pátrios de que é juridicamente imprópria a eliminação de qualquer candidato em concurso público para ingresso em cargo das Forças Armadas em razão do índice de massa corpórea (IMC), ainda que este requisito conste de portaria ou do edital do certame, uma vez que a legislação de regência (Estatuto dos Militares – Lei Federal nº 6.880/80) não possui disposição que autorize o estabelecimento desta restrição.
Assim, candidatos a estes cargos que, em concursos públicos, forem eliminados em fase de avaliação médica por causa do seu índice de índice de massa corpórea podem, por meio da propositura de ação judicial, buscar o reconhecimento da nulidade desta decisão. Uma vez reconhecida esta ilegalidade, como a vasta jurisprudência vem fazendo, o candidato deverá ser mantido para participar das demais fases e, a depender da sua aprovação, ser nomeado e empossado no respectivo cargo.
[1] Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
[…]
X – a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.
[2] STJ, AgInt no REsp 1761455/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/12/2019.
[3] STJ, AgInt no REsp 1570361/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/03/2018.
[4] STJ, REsp 1610667/RS, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/12/2017.
Read MorePor inúmeras potenciais razões, há casos em que o contratado não é capaz de manter ou de comprovar a manutenção de sua regularidade fiscal durante a execução do contrato. E aí surge a questão: qual a consequência jurídica?
O Poder Público pode se recusar a pagar por serviços já prestados em razão de irregularidade fiscal posterior à celebração ou execução do contrato?
A prestação de serviços para a Administração Pública, de maneira geral, pode ser uma estratégia atrativa para empresas privadas que visam a firmar contratos de larga escala e/ou de longo prazo, em busca de lucros ou, ao menos, de fluxo financeiro, em benefício de sua saúde financeira, posicionamento no mercado ou até mesmo de expansão de atividades.
Entretanto, esta oportunidade é acompanhada de uma série de obrigações típicas, que não são comuns às contratações privadas. Ou seja, o processo de contratação pública é permeado de fases burocráticas, as quais demandam a apresentação, pelo particular, de uma grande quantidade de documentos a fim de comprovar, dentre outras coisas, as exigências contidas no inciso IV do artigo 27 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal nº 8.666/93), que estabelece a regularidade fiscal como condicionante para a habilitação da empresa na licitação.
Sobre o tema, é necessário observar as determinações feitas pelo artigo 29 da referida Lei, que consistem, especificamente, na prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei. E essa demonstração de regularidade fiscal deve ocorrer na fase de habilitação da empresa licitante, que se dá, invariavelmente, em momento anterior ao início da execução dos serviços contratados.
Ocorre que, de acordo com o inciso XIII do artigo 55 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o contratado tem a obrigação de “manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. Aplicando-se ao tema em análise, isto significa que o contratado precisa manter, durante a execução do contrato, a sua regularidade fiscal perante a Fazenda Pública.
Por inúmeras potenciais razões, há casos em que o contratado não é capaz de manter ou de comprovar a manutenção de sua regularidade fiscal durante a execução do contrato. E aí surge a questão: qual a consequência jurídica? A Administração Pública pode reter o pagamento por prestações já executadas? Deve-se rescindir o contrato?
Conforme se comprova a partir de inúmeros casos levados à análise do Poder Judiciário, há casos em que a Administração Pública retém repasses financeiros a empresas contratadas, após o início da execução dos serviços, em razão de irregularidades fiscais surgidas posteriormente à celebração ou execução do contrato.
No entanto, como não existe previsão legal que possibilite a imposição desta prática, tampouco isto se caracteriza como uma possibilidade de penalidade administrativa, os Tribunais possuem decisões reconhecendo a ilegalidade desta conduta administrativa.
Este entendimento é evidenciado em decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de maio de 2019, proferida pela Segunda Turma de Direito Público, segundo a qual, “apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência” (STJ, AgInt no REsp 1742457/CE).
De acordo com o voto do Relator Ministro Francisco Falcão, acolhido por unanimidade, a imposição de regularidade fiscal como condição para pagamento de serviços já prestados implicaria em afronta aos princípios norteadores da atividade administrativa, uma vez que não se revela razoável “que a comprovação de regularidade fiscal seja imposta como condição para a liberação do pagamento pelos serviços prestados”.
Ressalta-se que não se trata de um entendimento isolado da Segunda Turma. Conforme se depreende do acórdão RMS 53.467/SE, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, que seguiu exatamente na mesma linha de que é “vedada a retenção do pagamento pelos serviços prestados”.
Inclusive, o Tribunal de Contas da União (TCU) compartilha do entendimento do STJ, como se verifica do Acórdão 964/2012, do Plenário, cujo relator foi o Ministro Walton Alencar Rodrigues. O posicionamento do TCU nesse caso gerou o seguinte enunciado:
Enunciado
A perda da regularidade fiscal, inclusive quanto à seguridade social, no curso de contratos de execução continuada ou parcelada justifica a imposição de sanções à contratada, mas não autoriza a retenção de pagamentos por serviços prestados. (TCU, Acórdão 964/2012, Plenário. Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues. Julgado em 25/04/2012)
Abaixo estão as ementas dos acórdãos da Segunda Turma do STJ mencionados:
AGRAVO INTERNO. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE. CONTRATAÇÃO COM A MUNICIPALIDADE. SERVIÇOS JÁ REALIZADOS. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. RETENÇÃO DO PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
I – Na origem, a Associação Beneficente Cearense de Reabilitação – ABCR impetrou mandado de segurança contra ato do Secretario de Saúde do Município de Fortaleza, pretendendo receber o repasse financeiro relativo a serviços por ela prestados, decorrente de contrato entabulado entre as partes, sem a necessidade de apresentação de certidão negativa expedida pela Fazenda Pública Nacional.
II – O Tribunal a quo manteve a decisão concessiva da ordem.
III – Ao recurso especial interposto pela municipalidade foi negado provimento, com base na Súmula 568/STJ, em razão da jurisprudência da Corte encontrar-se pacificada no mesmo sentido da decisão recorrida: apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência. Precedentes: REsp n. 1.173.735/RN, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 9/5/2014, RMS n. 53.467/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 27/06/2017, dentre outros.
IV – Os argumentos trazidos pelo agravante não são suficientes para alterar o entendimento prestigiado pela decisão atacada.
V – Agravo interno improvido. [grifo acrescido]
(STJ, AgInt no REsp 1742457/CE, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 23/05/2019, DJe 07/06/2019).
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. ILEGALIDADE NÃO CONFIGURADA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO DEMONSTRADO.
[…] 2. O Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe concedeu parcialmente a ordem, para determinar à autoridade impetrada, exclusivamente, que se abstenha de condicionar o pagamento relativo às faturas das notas fiscais referentes aos serviços executados, decorrentes do contrato administrativo 55/2013, à apresentação de certidões negativas de débitos e/ou de regularidade fiscal (fls. 121-129, e-STJ).
- A decisão impugnada não merece reforma, pois cabe à recorrente cumprir com sua obrigação de apresentar a comprovação de sua regularidade fiscal, sob pena de ver rescindido o contrato com o Município pelo descumprimento de cláusula contratual, em que pese ser vedada a retenção do pagamento pelos serviços prestados, como ocorreu na espécie, no que tange às notas fiscais apresentadas na petição inicial. […]
- A recorrente não trouxe argumento capaz de infirmar os fundamentos da decisão recorrida e demonstrar a ofensa ao direito líquido e certo.
- Recurso Ordinário não provido. [grifo acrescido]
(STJ, RMS 53.467/SE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 30/06/2017)
Portanto, o entendimento que prevalece na Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Tribunal de Contas da União (TCU) é de que, embora seja dever da empresa contratada comprovar a sua regularidade fiscal, inclusive durante a execução do contrato, o Poder Público não pode se recusar a pagar pelos serviços já prestados, sob pena de cometer um ato administrativo ilegal e passível de reforma pelos órgãos de controle. As exceções existentes a este entendimento são bastante pontuais e estão relacionadas a casos em que a Administração Pública corre o risco de ser responsabilizada pelo débito fiscal pendente e inadimplido por parte do contratado.
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