A exegese da Justiça Eleitoral gaúcha sobre o art. 73, § 10, da Lei das Eleições.
Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
Em 20 de maio de 2020, foi publicada, no Município de Porto Alegre/RS, a Lei Complementar nº 882/2020, que “Estabelece a isenção, para as competências de abril, maio e junho de 2020, das tarifas de água e esgoto aos consumidores beneficiados pela tarifa social que se enquadrem no disposto pelos incs. I e II do art. 37 da Lei Complementar nº 170, de 31 de dezembro de 1987, e alterações posteriores”. De acordo com o Prefeito Nelson Marchezan Júnior, “A medida foi adotada para auxiliar as pessoas de baixa renda, possibilitando que elas tenham mais recursos para enfrentar a crise provocada pela pandemia da Covid-19”.[2]
A oportuna medida de atenuação dos efeitos da pandemia sobre a população mais carente do Município de Porto Alegre vem na mesma linha do auxílio emergencial, no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais), concedido pelo Governo Federal aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais, trabalhadores autônomos e desempregados. Porém, ao contrário do Governo Federal, que está no segundo ano da atual Administração, a Prefeitura de Porto Alegre, por vivenciar o último ano do mandato do Chefe do Executivo Municipal, teve de lidar com a vedação constante no art. 73, § 10, da Lei Federal nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), que proíbe a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública em ano eleitoral, excetuados os casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.
Em que pese a existência do Decreto Municipal nº 20.534, de 31 de março de 2020, que “Decreta o estado de calamidade pública e consolida as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus (COVID-19), no Município de Porto Alegre”, o Prefeito entendeu por bem formalizar consulta ao Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE/RS), questionando sobre a possibilidade de o Município conceder as isenções tarifárias pretendidas, uma vez que 2020 é ano de eleições municipais.
A resposta do TRE/RS, formalizada mediante manifestação de seu Tribunal Pleno, veio no sentido de reconhecer a pandemia da Covid-19 enquanto ensejadora de estado de “calamidade pública”, tal como previsto no art. 73, § 10, da Lei das Eleições, a autorizar o administrador público a distribuir gratuitamente bens e serviços em ano eleitoral. Contudo, o órgão julgador advertiu que “é necessário observar que o administrador público, mesmo em face de situação de calamidade, está adstrito aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, nos termos do comando do art. 37 da Constituição Federal, sem que possa fazer uso da distribuição gratuita de bens e valores com caráter eleitoreiro ou como forma de promoção pessoal”.[3]
Em síntese, resta clara a mensagem passada pela Justiça Eleitoral do Estado do Rio Grande do Sul: medidas financeiras de apoio aos mais necessitados em meio à pandemia da Covid-19 são bem-vindas, desde que a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios seja realizada mediante a adoção de critérios objetivos para estabelecer os beneficiários e, ademais, que não venha acompanhada de promoção pessoal de agente público. Tal exegese, aliás, está em consonância com os princípios constitucionais previstos no caput do art. 37 da Constituição Federal, que devem sempre ser levados em consideração na análise das exceções às condutas vedadas previstas na Lei das Eleições.
Eduardo de Carvalho Rêgo – Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[1] Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[2] Disponível em: https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/prefeitura-isenta-consumidores-carentes-do-pagamento-da-tarifa-de-agua-e-esgoto. Acesso em 01/06/2020.
[3] TRE/RS. Consulta nº 0600098-44.2020.6.21.0000, de Porto Alegre. Relator: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Data: 11/05/2020.
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Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
Nos últimos dias, o futuro Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Ministro Luís Roberto Barroso, admitiu em entrevistas o “risco real” de adiamento das eleições municipais de 2020, tendo em vista o aumento exponencial de casos de contaminação pelo novo coronavírus (Covid-19) nos mais diversos Estados brasileiros. Segundo o Ministro, a decisão de adiar as eleições de 2020 precisaria ser tomada, no mais tardar, no mês de junho.
A providência não seria simples, pois a data das eleições municipais está categoricamente prevista nos incisos I e II do art. 29 da Constituição Federal:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
I – eleição do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores, para mandato de quatro anos, mediante pleito direto e simultâneo realizado em todo o País;
II – eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores; […].
A regra é muito clara e não está sujeita a distorções: o primeiro turno das eleições municipais para Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores deve acontecer, de quatro em quatro anos, sempre no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder. Caso haja necessidade de um segundo turno para o preenchimento das vagas do Poder Executivo, este deverá ocorrer no último domingo de outubro do ano eleitoral, nos Municípios que contarem com mais de duzentos mil eleitores
Muitos defendem que, diante do texto peremptório acima mencionado, não haveria margem para adiamento das eleições em nenhuma hipótese, sendo imperativa a sua realização, independentemente da pandemia da Covid-19. Em outros termos: há quem entenda que, por não haver exceção prevista constitucionalmente, as eleições de 2020 devem ocorrer de qualquer maneira, mesmo que isso provoque um agravamento da pandemia.
Vale lembrar que, em sentido amplo, o termo “eleição” não se refere apenas ao dia da votação, isto é, ao primeiro e ao último domingo de outubro do ano eleitoral – neste último caso, na hipótese de necessidade de realização de segundo turno nos Municípios com mais de duzentos mil habitantes. Com efeito, o ano eleitoral possui um calendário complexo, que envolve, entre outras atividades, a realização das convenções partidárias com a escolha dos candidatos, o registro das candidaturas propriamente ditas, a exibição de propaganda eleitoral gratuita e a apresentação da prestação parcial das contas de campanha. Isso sem contar o período reservado para testes das urnas eletrônicas e de treinamento dos mesários que irão colaborar com a Justiça Eleitoral no dia do pleito.
Ou seja: quando se fala em adiamento das eleições, não se está a considerar apenas os riscos de aglomeração no dia do pleito, mas também as relações interpessoais que precisam ser travadas nos meses que antecedem o dia de votação. Nesse sentido, não é forçoso dizer que as eleições já estão sofrendo as consequências da pandemia neste exato momento.
Qual seria, então, a solução para o problema descrito?
Em primeiro lugar, é preciso que os juristas entendam que o Direito não pode pretender se sobrepor aos fatos da vida ou, numa expressão mais coloquial, à vida real. Ora, diante de uma pandemia que está a ceifar a vida de um número expressivo de cidadãos brasileiros, o cumprimento de um prazo legal, mesmo aquele previsto na norma de maior hierarquia do país (Constituição Federal), não pode ser levado a ferro e fogo. Realizar as eleições em outubro de 2020 não é um caso de vida ou morte; o combate à pandemia da Covid-19 é. Em síntese: se o contágio do novo coronavírus não for sensivelmente contido no próximo mês, então obviamente as eleições não poderão se realizar.
É mais ou menos isso que indicou o Ministro Luís Roberto Barroso quando se referiu à necessidade de se tomar uma decisão até o mês de junho, pois é nesse mês que são realizados os testes das urnas eletrônicas, que garantem a lisura do pleito, além das convenções partidárias, que acabam por definir o nome dos candidatos que concorrerão no pleito, e a formação de coligação para as disputas majoritárias.
Ao que tudo indica, caso a pandemia não arrefeça, no mês de junho, quando já terá assumido a Presidência da Corte Eleitoral, Barroso tomará a iniciativa de intermediar um movimento político pelo adiamento das eleições, que deverá vir, necessariamente, por meio de uma Emenda Constitucional.
A solução menos traumática seria incluir no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) regra específica e limitada apenas para as eleições de 2020, que poderiam ocorrer em novembro ou dezembro, considerando os impactos produzidos pela pandemia do novo coronavírus. Em assim procedendo, eleições futuras não seriam abarcadas por tal Emenda.
Sabe-se que já existem propostas tramitando no Congresso Nacional, no sentido de prorrogar os mandatos dos atuais Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores até 2022, ocasião em que as eleições gerais (para Presidente, Vice-Presidente, Senadores, Governadores, Deputados Federais e Estaduais) e as eleições municipais (Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores) seriam doravante unificadas.
Entretanto, tais propostas não agradam ao próximo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que vê com bons olhos as eleições de dois em dois anos, por serem um “rito vital para a democracia”.
De fato, na atual conjuntura política brasileira, o pleito eleitoral parece ser o momento em que o princípio democrático mais se conecta com os cidadãos. Nesse sentido, diminuir a frequência dos pleitos, de dois para quatro anos, poderia provocar um resultado deletério, aumentando o desinteresse do brasileiro pela política. De qualquer modo, parece inadequado e, em certo sentido, oportunista propor uma discussão dessa envergadura em meio a uma situação de extrema excepcionalidade, tal como a que ora se apresenta a todos os brasileiros.
Com a definição do adiamento em junho, certamente um novo calendário eleitoral será proposto e, a partir dele, poderemos compreender melhor o impacto da Covid-19 nas eleições de 2020.
[1] Eduardo de Carvalho Rêgo – Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
Read Moreo art. 109 da CF, ao mesmo tempo em que confere uma série de competências aos juízes federais (inclusive competências penais), também ressalva expressamente, em seu inciso IV, que as competências da Justiça Eleitoral devem a elas se sobrepor, tal como previsto no Código Eleitoral e no Código de Processo Penal.
Recentemente, nos dias 13 e 14 de março de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal se debruçou sobre a extensão da competência criminal da Justiça Eleitoral. Sob forte pressão popular liderada pelo Ministério Público Federal, que clamava pelo desmembramento de denúncias contendo, ao mesmo tempo, crimes eleitorais e crimes federais, o STF foi pressionado e, em alguns casos, previamente acusado de enfraquecer a “Operação Lava Jato”, na hipótese de indeferimento do pleito do Parquet.
Ocorre que, como se verá ao longo do presente texto, a tese arguida pela Procuradoria-Geral da República nunca teve guarida na jurisprudência dos Tribunais Superiores pátrios. Inclusive, o próprio Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência sedimentada há décadas sobre o tema. Nesse sentido é que este breve artigo pretende responder à seguinte questão: o que, de fato, mudou após a decisão do STF no Inquérito nº 4435 AgR/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello?
Vejamos.
O artigo 121 da Constituição Federal delegou ao legislador infraconstitucional a competência para dispor “sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”. Mais ainda: no artigo 109, IV, o constituinte originário fez questão de ressalvar expressamente, dentre as competências da Justiça Federal, a competência criminal reservada à Justiça Eleitoral. In verbis:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[…]
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral [grifos acrescidos];
Significa dizer que, tal como previsto na Constituição Federal, a Justiça Eleitoral deve possuir necessariamente competência para processar e julgar crimes de natureza eleitoral, nos termos previstos em lei.
Recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio no ano de 1988 com status de Lei Complementar, a Lei Federal nº 4.737/1965, denominada corriqueiramente de Código Eleitoral, assim tratou do tema:
Art. 35. Compete aos juízes:
[…]
II – processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos tribunais regionais [grifos acrescidos].
Como se percebe, na delimitação da competência da Justiça Eleitoral, o legislador infraconstitucional pátrio optou por afetar aos juízes eleitorais o processamento e o julgamento de todos os crimes eleitorais, além dos crimes comuns que lhes forem conexos, numa nítida prevalência da Justiça especializada sobre a Justiça comum, conforme, aliás, preconiza o Código de Processo Penal: “Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: […] IV – no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta” [grifos acrescidos].
Em sua clássica lição, constante no primeiro volume de seus Elementos de Direito Processual Penal, José Frederico Marques pontuou:
[…] a justiça eleitoral é exercida, de modo geral, por órgãos da justiça comum, visto que os juízos e tribunais são compostos por membros recrutados, na sua quase totalidade, entre pessoas da magistratura ordinária. Por esse motivo, admite a Constituição a prorrogação de competência dessa justiça especial, quando haja crime comum conexo a crime eleitoral. Essa providência é de todo justificável, dado que o processo penal eleitoral oferece as mesmas garantias que o processo penal comum, e os juízes que funcionam na justiça eleitoral quase sempre são os mesmos da justiça comum (MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal – Volume I. Campinas: Bookseler, 1998, p. 202-203) [grifos acrescidos].
Como não poderia deixar de ser, ao longo das últimas décadas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se consolidou no sentido de reconhecer a competência da Justiça Eleitoral para o julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, tal como se extrai do seguinte decisum:
DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. JURISDIÇÃO. COMPETÊNCIA. CONFLITO. JUSTIÇA ELEITORAL. JUSTIÇA FEDERAL. CRIME ELEITORAL E CRIMES CONEXOS. ILÍCITOS ELEITORAIS: APURAÇÃO PARA DECLARAÇÃO DE INELEGIBILIDADE (ART. 22, INC. XIV, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64, de 18.05.1990). CONFLITO INEXISTENTE. “HABEAS CORPUS” DE OFÍCIO.
1. Não há conflito de jurisdição ou de competência entre o Tribunal Superior Eleitoral, de um lado, e o Tribunal Regional Federal, de outro, se, no primeiro, está em andamento Recurso Especial contra acórdão de Tribunal Regional Eleitoral, que determinou investigação judicial para apuração de ilícitos eleitorais previstos no art. 22 da Lei de Inelegibilidades; e, no segundo, isto é, no T.R.F., foi proferido acórdão denegatório de “Habeas Corpus” e confirmatório da competência da Justiça Federal, para processar ação penal por crimes eleitorais e conexos. […]
2. Em se verificando, porém, que há processo penal, em andamento na Justiça Federal, por crimes eleitorais e crimes comuns conexos, é de se conceder “Habeas Corpus”, de ofício, para sua anulação, a partir da denúncia oferecida pelo Ministério Público federal, e encaminhamento dos autos respectivos à Justiça Eleitoral de 1ª instância, a fim de que o Ministério Público, oficiando perante esta, requeira o que lhe parecer de direito. […] (STF, CC 7033/SP. Relator: Min. Sydney Sanches. Data: 02/10/1996) [grifos acrescidos].
Recentemente, ao longo do ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal seguiu essa mesma orientação na Pet nº 6820 AgR-ED/DF, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski[1], e na Pet nº 6986 AgR-ED/DF, de relatoria do Ministro Dias Toffoli[2].
Em novembro de 2018, na Ação Penal nº 865, que tramitou no Superior Tribunal de Justiça sob a relatoria do Ministro Herman Benjamin, o Ministério Público Federal arguiu a tese de que a conexão entre crime eleitoral e crime comum não teria como efeito a necessária junção dos processos e que, nesse sentido, o art. 35, II, do Código Eleitoral, e o art. 78, IV, do Código de Processo Penal, não teriam sido recepcionados pela Constituição Federal de 1988, isto é, que esses dois dispositivos seriam incompatíveis com o estabelecido pela atual ordem constitucional pátria.
A tese do Parquet veio escorada na ideia de que crimes eleitorais, como o chamado “caixa 2”, previsto no art. 350, caput, do Código Eleitoral, são geralmente menos gravosos do que os crimes comuns a eles conexos, tais como o tráfico de influência e a lavagem de dinheiro. Por isso, o Ministério Público Federal pugnou, na hipótese, pelo desmembramento e envio do processo à Justiça comum.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça optou por seguir e manter o clássico entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme segue:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA. CRIME ELEITORAL CONEXO A CRIME COMUM. INCIDÊNCIA DOS ARTIGOS 35, INCISO II, DO CÓDIGO ELEITORAL, E 78, INCISO IV, DO CPP. RECEPÇÃO DESTES DOIS DISPOSITIVOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PREVALÊNCIA DA JUSTIÇA ESPECIAL ELEITORAL. […]
11. O Supremo Tribunal Federal, intérprete maior da Constituição Federal, já teve oportunidade de se debruçar sobre o tema por diversas vezes, firmando entendimento de que a Justiça Eleitoral é competente para o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhe sejam conexos, na exata dicção dos artigos 35, inciso II, do Código Eleitoral, e 78, inciso IV, do Código de Processo Penal. […]
13. Não cabe afastar a incidência dos dois dispositivos atrás colacionados, sob argumento de não receptação pela Constituição Federal, quando reiteradamente o STF vem reconhecendo a sua validade e conferindo-lhes aplicação (STJ, AP nº 865 AgRg/DF. Relator: Ministro Herman Benjamin. Data: 07/11/2018) [grifos acrescidos].
De fato, não há como falar em não-recepção do art. 35, II, do Código Eleitoral, e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal, uma vez que ambos estão em consonância com a Constituição Federal de 1988.[3] Vale lembrar, uma vez mais, que o art. 109 da CF, ao mesmo tempo em que confere uma série de competências aos juízes federais (inclusive competências penais), também ressalva expressamente, em seu inciso IV, que as competências da Justiça Eleitoral devem a elas se sobrepor, tal como previsto no Código Eleitoral e no Código de Processo Penal.
Além disso, não se pode esquecer que, no momento em que a Constituição Federal foi editada, os dois dispositivos infraconstitucionais acima mencionados já estavam em vigor há muitos anos, ou seja, a Justiça Eleitoral já era, naquele momento, competente para julgar os crimes eleitorais e os crimes comuns a eles conexos. Fosse a intenção do constituinte alterar tal regra, a ressalva constante na parte final do art. 109, IV, certamente não teria sido incluída na Constituição Federal.
De toda sorte, não obstante a pacificada jurisprudência do STJ e do STF sobre o tema em questão, os mesmos argumentos foram utilizados pelo Ministério Público Federal no Inquérito nº 4435 AgR/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, o Plenário do STF negou provimento ao recurso do Parquet, reafirmando a validade do art. 35, II, do Código Eleitoral, do art. 78, IV, do Código de Processo Penal, e da jurisprudência consolidada da Suprema Corte.
Sobre esse julgamento, que ocorreu em 13 e 14 de março de 2019, consta o seguinte no Informativo nº 933 do Supremo Tribunal Federal:
Em face da alegada prática de crime eleitoral e delitos comuns conexos, asseverou ter-se caracterizada a competência da Justiça Eleitoral, considerado o princípio da especialidade. A Justiça especializada, nos termos do art. 35, II, do Código Eleitoral e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal (CPP), por prevalecer sobre as demais, alcança os delitos de competência da Justiça comum.
Ato contínuo, o relator observou que a Constituição Federal (CF), no art. 109, IV, ao estipular a competência criminal da Justiça Federal, ressalva, expressamente, os casos da competência da Justiça Eleitoral e, consoante o caput do art. 121, a definição da competência daquela Justiça especializada foi submetida à legislação complementar. A ressalva do art. 109, IV, e a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais afastam a competência da Justiça comum, federal ou estadual, e, ante a conexão, implicam a configuração da competência da Justiça Eleitoral em relação a todos os delitos.
O ministro ponderou ser inviável a solução proposta pela PGR de desmembrar as investigações dos delitos comuns e eleitorais, porquanto a competência da Justiça comum, estadual ou federal, é residual quanto à Justiça especializada – seja eleitoral ou militar –, estabelecida em razão da matéria, e não se revela passível de sobrepor-se à última.
Ademais, salientou que a questão veiculada não se mostra controvertida e que essa óptica, reafirmada pela expressiva maioria dos ministros da Segunda Turma, está em consonância com a jurisprudência firmada pelo Pleno do STF em outras ocasiões (CC 7.033, CJ 6.070) [grifos acrescidos].
Como se vê, o tema – que causou grande celeuma nas últimas semanas – não é novo e já foi exaustivamente debatido e pacificado nas Cortes Superiores, não havendo como negar a competência da Justiça Eleitoral para o julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, nos termos do art. 35, II, do Código Eleitoral, e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal. E, nesse sentido, é possível afirmar que, juridicamente, nada mudou após a decisão do STF no Inquérito nº 4435 AgR/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello.
[1] Extrai-se da ementa: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NA PETIÇÃO. COLABORAÇÃO PREMIADA NO BOJO DA OPERAÇÃO ‘LAVA-JATO’. ODEBRECHT. ELEIÇÕES DE 2010. GOVERNO DE SP. PAGAMENTOS POR MEIO DE CAIXA DOIS. CRIMES DE FALSIDADE IDEOLÓGICA E CONEXOS. CRIME ELEITORAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA ENTRE JUSTIÇA COMUM E JUSTIÇA ELEITORAL. ENCAMINHAMENTO DOS AUTOS À JUSTIÇA ELEITORAL. PRECEDENTES. […] III – O Código Eleitoral, em seu título III, o qual detalha o âmbito de atuação dos juízes eleitorais, estabelece, no art. 35, que: ‘Compete aos juízes (…) II – processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais’. […] VI – Ainda que se cogite da hipótese aventada a posteriori pelo MPF, segundo a qual também teriam sido praticados delitos comuns, dúvida não há de que se estaria, em tese, diante de um crime conexo, nos exatos termos do art. 35, II, do referido Codex. VII – A orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, com o intuito de evitar possíveis nulidades, assenta que, (…) em se verificando (…) que há processo penal, em andamento na Justiça Federal, por crimes eleitorais e crimes comuns conexos, é de se conceder habeas corpus, de ofício, para anulação, a partir da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, e encaminhamento dos autos respectivos à Justiça Eleitoral de primeira instância’ (CC 7033/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, de 2/10/1996). VIII – A mesma orientação se vê em julgados mais recentes, a exemplo da Pet 5700/DF, rel. Min. Celso de Mello. IX – Remessa do feito à Justiça Eleitoral de São Paulo” (STF, Pet 6820 AgR-ED/DF. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Data: 06/02/2018).
[2] Destaca-se o seguinte trecho da ementa: “Agravo regimental. Petição. Doações eleitorais por meio de caixa dois. Fatos que poderiam constituir crime eleitoral de falsidade ideológica (art. 350 do Código Eleitoral). Competência da Justiça Eleitoral. Crimes conexos de competência da Justiça Comum. Irrelevância. Pretendido reconhecimento da competência da Seção Judiciária do Distrito Federal ou do Estado de São Paulo. Não cabimento. Prevalência da Justiça Especial (art. 35, II, do Código Eleitoral e art. 78, IV, do Código de Processo Penal). Precedentes” (STF, Pet 6986 AgR-ED/DF. Relator para Acórdão: Ministro Dias Toffoli. Data: 10/04/2018).
[3] Conforme salientado na obra A não-recepção das normas pré-constitucionais pela constituição superveniente, “Romper com a ordem jurídica [constitucional] anterior não significa necessariamente ignorar toda a legislação infraconstitucional produzida anteriormente ao advento da nova constituição e começar toda a atividade legislativa do zero. Na verdade, pelo princípio da continuidade da ordem jurídica, o novo ordenamento pode incorporar normas pré-constitucionais. Até por questão de economia legislativa, não seria razoável defender que todo ordenamento jurídico anterior à edição da nova constituição caísse com o advento dessa última. É preciso aproveitar o direito pré-constitucional, até mesmo para viabilizar o recém-criado Estado” (RÊGO, Eduardo de Carvalho. A não-recepção das normas pré-constitucionais pela constituição superveniente. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 57-58).
Escrito por Eduardo Rêgo
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