
Obrigatoriedade de diligência prévia na desclassificação de propostas inexequíveis, conforme a Lei 14.133/2021
Introdução
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) trouxe importantes inovações, dentre elas um critério objetivo para identificar propostas possivelmente inexequíveis (ou seja, de valor tão baixo que seriam inexequíveis na prática).
No entanto, longe de permitir a desclassificação automática dessas propostas, a lei e a jurisprudência exigem que a Administração Pública realize uma diligência prévia antes de inabilitar (desclassificar) uma proposta por inexequibilidade. Em recente decisão (Acórdão 803/2024 do Tribunal de Contas da União – TCU), essa obrigatoriedade foi reforçada, consolidando o entendimento de que o órgão licitante deve oportunizar ao licitante a chance de comprovar a viabilidade de sua oferta.
Neste artigo, será explorado o contexto legal e jurisprudencial desse tema, as implicações práticas para as empresas licitantes e exemplos de como a atuação jurídica especializada pode proteger os interesses do licitante. Veremos a definição de proposta inexequível, a análise do §4º do art. 59 da Lei 14.133/21, o papel da diligência prévia, os riscos da desclassificação automática e boas práticas para licitantes.
Proposta inexequível: conceito e critério legal na Lei 14.133/2021
Em licitações públicas, considera-se inexequível a proposta cujo preço é tão baixo que não permitiria a execução satisfatória do objeto licitado. Em outras palavras, é uma oferta antieconômica ou inviável, que levanta suspeitas de que o licitante não conseguirá cumprir o contrato por aquele valor.
A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 59, traz parâmetros objetivos para identificar possíveis propostas inexequíveis, especialmente em contratos de obras e serviços de engenharia. O §4º do art. 59 estabelece que, “No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”. Ou seja, a nova lei fixa um limite percentual (75% do orçamento estimado) abaixo do qual a proposta deve ser tratada com suspeita de inexequibilidade.
Exemplo prático: Suponha que a Administração estime que determinada obra de engenharia custe R$ 1.000.000,00. Se um licitante apresentar proposta de valor inferior a R$ 750.000,00 (75% do orçamento), essa oferta se enquadrará como potencialmente inexequível segundo o critério legal. Nessa situação, a proposta não pode ser simplesmente descartada de imediato, mas sim avaliada com maior cuidado mediante diligências.
Importante destacar que esse critério objetivo não significa que qualquer proposta abaixo de 75% do orçamento seja inexequível em termos absolutos, mas apenas que presume-se sua inexequibilidade até prova em contrário. A experiência prática demonstra que podem existir justificativas legítimas para um preço significativamente inferior, como tecnologias inovadoras que reduzem custos, condições comerciais vantajosas, estoque de materiais a preços baixos, estratégia empresarial de menor margem de lucro para entrar no mercado, entre outros. Por isso, é necessário analisar caso a caso se aquela oferta pode, de fato, ser executada pelo proponente.
Essa compreensão de que o parâmetro numérico gera apenas uma presunção relativa não é nova. A antiga Lei nº 8.666/1993 (agora revogada) já previa critério semelhante (70% em obras de engenharia, conforme seu art. 48, §1º, alínea a e b) e, naquela época, o TCU firmou entendimento de que esse era um indicador relativo, não uma regra absoluta.
Esse entendimento foi consolidado na Súmula 262 do TCU, a qual enuncia que “o critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta”. Em suma, já na vigência da lei antiga ficou assente que a Administração deve permitir que o proponente com preço suspeito demonstre que, apesar de baixo, seu preço é viável.
A Lei 14.133/2021 seguiu filosofia semelhante: embora tenha fixado um critério objetivo (75% do orçamento) para alertar sobre possível inexequibilidade, ela contém dispositivos que asseguram a possibilidade de o licitante provar a exequibilidade da sua proposta. Esses dispositivos impõem, como veremos a seguir, um verdadeiro dever de diligência prévia por parte do órgão público antes de efetivar a desclassificação.
Aplicação da IN nº 73/2022 na Inexequibilidade de Propostas para Bens e Serviços Comuns
A Instrução Normativa SEGES/MGI nº 73/2022 trouxe, no âmbito das licitações de bens e serviços comuns, um critério objetivo para identificar propostas presumivelmente inexequíveis. De acordo com o art. 34 dessa IN, considera-se indício de inexequibilidade qualquer proposta cujo valor seja inferior a 50% do valor estimado (orçado) pela Administração.
Em outras palavras, uma oferta abaixo de metade do preço de referência do edital é automaticamente sinalizada como possivelmente inviável.
Importa destacar que a IN 73/2022 adota o termo indício, indicando que esse critério de 50% serve como uma presunção relativa – um alerta inicial, não uma desclassificação automática. Tanto é que a própria norma exige, no parágrafo único do art. 34, a realização de diligência antes de confirmar a inexequibilidade, a fim de verificar objetivamente a capacidade de execução daquela proposta de baixo valor.
Nesse procedimento, o agente de contratação (pregoeiro) deverá averiguar se os custos do licitante ultrapassam o valor ofertado e se inexistem ganhos ou fatores compensatórios (custos de oportunidade) que justifiquem o preço tão reduzido. Somente se a diligência comprovar que o licitante não teria como cumprir o contrato sem incorrer em prejuízo (ou sem um motivo econômico válido para ofertar tão abaixo do mercado) é que a proposta será formalmente declarada inexequível e desclassificada.
É importante comparar esse critério dos 50% da IN 73/2022 com o parâmetro estabelecido na Lei nº 14.133/2021, especificamente no §4º do art. 59, que trata da inexequibilidade em obras e serviços de engenharia.
A Lei 14.133/21 determina que, no caso de contratos de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas com valores inferiores a 75% do valor orçado pelo órgão público. Ou seja, para obras e serviços de engenharia, a própria lei fixou um limite de 75% do orçamento como piso de viabilidade – qualquer proposta abaixo disso é presumida inexequível de acordo com a legislação.
Trata-se de um parâmetro mais rigoroso do que o aplicado a bens e serviços comuns (75% contra 50%), refletindo a natureza distinta desses objetos.
Bens e serviços comuns geralmente permitem margens de desconto maiores devido à padronização e competitividade de mercado, de modo que preços muito baixos (até certa medida) podem ainda ser exequíveis.
Já obras e serviços de engenharia envolvem custos fixos significativos, riscos e complexidades que tornam impraticáveis descontos tão expressivos – daí o limite mais elevado de 75%.
Em síntese, conforme o tipo de objeto licitado, aplica-se um critério distinto de inexequibilidade: nas licitações de itens comuns vale a regra dos 50% do estimado (conforme a IN 73/2022), ao passo que nas contratações de obras/engenharia vigora a regra dos 75% do estimado (conforme a Lei 14.133).
Vale lembrar ainda que a Lei 14.133/2021 não estipulou um percentual fixo para bens e serviços em geral, lacuna essa preenchida, no âmbito federal, pela IN 73/2022. Assim, cada modalidade de objeto possui sua faixa de alerta: abaixo de 50% para itens comuns, abaixo de 75% para engenharia – sempre exigindo a análise adequada da viabilidade antes de qualquer decisão definitiva.
Exemplo prático: Considere uma licitação para fornecimento de 100 unidades de determinado equipamento, com valor estimado oficial de R$ 100.000,00. Suponha que o Licitante A apresente uma proposta de R$ 48.000,00, equivalente a 48% do valor orçado. Segundo o critério da IN 73/2022, essa oferta está abaixo do limite de 50%, configurando um forte indício de inexequibilidade. Nessa situação, o pregoeiro (agente de contratação) deve instaurar diligência para que o Licitante A comprove como será possível executar o objeto por esse preço extraordinariamente baixo. O licitante poderá, por exemplo, apresentar uma planilha detalhada de custos, demonstrando que obteve preços excepcionais de insumos ou que dispõe de estoque e logística eficiente, de forma que seus custos totais fiquem dentro do valor proposto. Poderá ainda alegar alguma estratégia comercial específica – como vender sem margem de lucro imediata visando benefícios futuros (ganhar mercado, publicidade, etc.) – o que se enquadraria em “custos de oportunidade” justificadores da oferta atípica. Caso o Licitante A comprove satisfatoriamente a exequibilidade (viabilidade) da proposta nesse procedimento de diligência, sua oferta deverá ser mantida na disputa. Por outro lado, se não conseguir demonstrar de forma convincente que executará o contrato por R$ 48 mil sem prejuízo ou quebra da qualidade, a administração desclassificará a proposta por inexequibilidade. Note que, sem esse rito de verificação, a proposta poderia ser sumariamente excluída por estar abaixo de 50%, mas a IN 73/2022 garante ao licitante essa oportunidade de esclarecimento antes da desclassificação.
O dever de diligência prévia no art. 59 da Lei 14.133/2021
A nova Lei de Licitações também deixou claro nos seus próprios termos que a Administração Pública tem o dever de verificar a exequibilidade das propostas suspeitas, em vez de simplesmente desclassificá-las de plano. Duas previsões do art. 59 são centrais aqui:
- Art. 59, inciso IV: determina a desclassificação das propostas que “não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração”. Ou seja, a Administração pode exigir que o licitante demonstre a viabilidade de sua oferta; se ele não conseguir demonstrar quando exigido, aí sim sua proposta será desclassificada como inexequível.
- Art. 59, §2º: dispõe que “a Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo”. Em outras palavras, a lei faculta (e implicitamente obriga, diante do interesse público) que a equipe de licitação realize todas as verificações necessárias junto ao licitante para confirmar se a proposta é exequível.
Essas regras deixam claro que o critério de 75% do §4º não implica uma desclassificação imediata. Trata-se de uma presunção relativa de inexequibilidade que aciona o dever de verificação.
Portanto, cabe à Administração promover diligências quando se deparar com uma proposta abaixo do patamar indicativo. Na prática, essa diligência prévia envolve medidas como:
- Solicitação formal de esclarecimentos e documentos ao licitante, referentes à formação de seu preço. Por exemplo, pedir planilhas de composição de custos, notas fiscais de insumos, comprovantes de que o licitante possui condições especiais (descontos de fornecedores, estrutura própria, menor carga tributária etc.) que justifiquem o preço ofertado.
- Análise técnica detalhada dos elementos apresentados. A comissão de licitação deve verificar se os custos alegados são compatíveis com os de mercado, se as quantidades e produtividade estimadas pelo licitante são razoáveis, e se a margem de lucro (se houver) está dentro de um patamar realista.
- Comparação com parâmetros externos, quando possível. A Administração pode confrontar os dados do licitante com referências de preços em bancos de dados públicos, contratos similares já executados, tabelas oficiais (por exemplo, SINAPI para construção civil, em se tratando de obras) etc., para aferir a coerência da proposta.
- Decisão fundamentada: Após a análise, se ficar demonstrado que, apesar de estar abaixo de 75% do orçamento, a proposta é exequível, a empresa não poderá ser desclassificada por preço inexequível. Por outro lado, se o licitante não conseguir comprovar de forma satisfatória a viabilidade ou se ficar claro que os números não fecham (por exemplo, o custo dos insumos básicos já supera o valor proposto), aí sim a desclassificação por inexequibilidade estará amparada, devendo ser formalizada com a devida justificativa.
Resumidamente, a diligência prévia é a etapa em que se verifica, de maneira transparente e técnica, se a oferta aparentemente muito baixa pode ser sustentada na execução do contrato. Essa exigência não é apenas uma opção da Administração, mas configura um verdadeiro dever, visto que decorre do princípio do procedimento formal correto, do estímulo à competitividade e, até mesmo, dos direitos ao contraditório e ampla defesa do licitante.
Afinal, desclassificar um concorrente sem lhe dar chance de explicar seu preço equivaleria a uma sanção prematura e poderia eliminar indevidamente a proposta possivelmente mais vantajosa para a Administração.
Jurisprudência do TCU
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem se mostrado alinhada com essa leitura da lei, reforçando que o limite de 75% é uma presunção relativa e que a diligência prévia é obrigatória.
Como mencionado, a Súmula 262/TCU (editada em 2010 sob a égide da Lei 8.666) já estabelecia expressamente que a Administração deve oportunizar ao licitante a prova da exequibilidade da proposta suspeita. Com a vigência da Lei 14.133/2021, o TCU passou a enfrentar casos práticos envolvendo o novo critério de 75%, e suas decisões reafirmaram essa compreensão.
Destaca-se, em especial, o Acórdão 803/2024 – Plenário do TCU (relatado pelo Min. Benjamin Zymler, julgado em 24/04/2024), que abordou diretamente a interpretação do art. 59, §4º da Lei 14.133/21. Nesse caso, discutia-se uma possível contradição entre a lei e uma norma infralegal (Instrução Normativa Seges/MGI 2/2023) que autorizava a realização de diligências quando houvesse proposta inferior a 75% do orçamento. Alegava-se que a lei teria criado um critério absoluto (ou seja, abaixo de 75% seria inexequível sem discussão), de modo que a previsão de diligência na IN seria ilegal.
O TCU, contudo, afastou essa interpretação literal rígida do §4º. O plenário do Tribunal fez observações importantes: uma leitura inflexível do limite de 75% poderia, na verdade, prejudicar a competição e até contrariar princípios constitucionais. Isso porque, se todos soubessem que ofertas abaixo de 75% seriam desclassificadas automaticamente, os licitantes tenderiam a não ofertar descontos além desse patamar – na prática, congelando o desconto máximo em 25%. Isso eliminaria a disputa por preços melhores, pois nenhum concorrente iria abaixo disso com medo de ser eliminado. Como resultado, muitos certames poderiam acabar empatados justamente nesse limite, forçando o uso de critérios de desempate. Segundo o TCU, tal cenário frustraria o objetivo da licitação de obter a proposta mais vantajosa e poderia até afrontar o princípio da economicidade e o dever de licitar previstos na Constituição.
Além disso, o Acórdão 803/2024 salientou que não cabe ao Estado uma tutela excessiva dos licitantes a ponto de fixar um corte absoluto para preços. Cada empresa conhece sua estrutura de custos e suas estratégias. Um critério legal fixo não consegue abarcar todas as nuances da atividade econômica. Citou-se, por exemplo, a situação de uma empresa que deliberadamente faz uma proposta muito barata visando obter experiência ou um atestado técnico, mesmo arcando com pouco ou nenhum lucro – uma decisão empresarial válida em certos contextos. Se a Administração impuser um paternalismo exagerado, poderia estar interferindo indevidamente na liberdade do setor privado assumir riscos calculados.
Por outro lado, o TCU reconheceu que propostas excessivamente baixas podem ocultar intenções prejudiciais, aludindo ao chamado “risco moral”. Esse risco ocorre quando o licitante assume postura irresponsável por saber que, se não conseguir cumprir o contrato, as consequências podem recair em parte sobre a Administração (por exemplo, ele abandona a obra após executar a parte mais lucrativa, deixando o restante para ser contratado de emergência, ou então ganha a licitação barato já contando em pedir aditivos ilegais posteriormente para aumentar o valor). Porém, conforme frisou o Acórdão 803/2024, a solução para coibir esse risco moral não é fixar um critério inflexível de preço, mas sim aprimorar os procedimentos de análise e fiscalização. Ou seja, cabe à Administração, no momento da licitação e da execução contratual, ser rigorosa na avaliação das propostas (incluindo exigência de demonstração de exequibilidade) e no acompanhamento do contrato, de modo a evitar comportamentos oportunistas.
Em conclusão, o TCU julgou improcedente a representação que alegava a ilegalidade das diligências e afirmou, em caráter pedagógico, que o §4º do art. 59 da Lei 14.133 deve ser interpretado à luz do §2º do mesmo artigo. Não se trata de uma presunção absoluta de inexequibilidade, mas relativa. O resultado prático desse entendimento é: sempre que uma proposta estiver abaixo do referencial de 75%, a Administração deve acionar o mecanismo da diligência, dando oportunidade ao licitante de comprovar a exequibilidade da sua oferta, em atenção ao que determinam o inciso IV e o §2º do art. 59.
Somente após essa apuração, e caso o proponente não consiga dissipar as dúvidas sobre sua capacidade de executar pelo preço proposto, é que a desclassificação por inexequibilidade estará juridicamente respaldada.
Vale mencionar que esse posicionamento do Acórdão 803/2024 não é isolado. Outros precedentes do TCU, também já sob a vigência da Lei 14.133, seguem na mesma linha. Por exemplo, o Acórdão 465/2024-Plenário igualmente registrou que a regra do art. 59, §4º gera presunção relativa e impõe o dever de dar ao licitante a chance de demonstrar a viabilidade de sua proposta.
Para as empresas licitantes, essa jurisprudência é uma garantia de que seus direitos serão respeitados: se oferecerem um preço agressivo (baixo), não poderão ser eliminadas sumariamente sem chance de se defender. Contudo, também traz responsabilidades, pois caberá a elas reunir e apresentar elementos técnicos convincentes quando forem chamadas a justificar seus preços.
Jurisprudência do TCU: reforço à presunção relativa e à obrigatoriedade de diligência
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem se consolidado no sentido de que o limite de 75% do valor estimado, previsto no §4º do art. 59 da Lei nº 14.133/2021, bem como o de 50% previsto no art. 34 da Instrução Normativa SEGES/MGI nº 73/2022, configuram apenas uma presunção relativa de inexequibilidade, e não uma presunção absoluta. Assim, impõe-se à Administração Pública o dever de realizar diligência prévia, sempre que a proposta apresentar indícios de inexequibilidade com base nesse parâmetro.
Essa orientação encontra respaldo desde a Súmula 262/TCU, editada sob a égide da antiga Lei nº 8.666/1993, que já reconhecia a necessidade de oportunizar ao licitante a demonstração da exequibilidade da proposta suspeita. Com a vigência da nova lei, o TCU reafirmou esse entendimento em diversas decisões relevantes.
Dentre elas, merece destaque o Acórdão nº 803/2024 – Plenário do TCU (rel. Min. Benjamin Zymler), que enfrentou diretamente o tema da interpretação do §4º do art. 59. Na ocasião, afastou-se a tese de que a norma teria criado um critério absoluto de desclassificação automática, ao reconhecer que a realização de diligência para apuração da viabilidade econômica da proposta é obrigatória, mesmo quando esta se encontrar abaixo do limite de 75%.
O Tribunal ressaltou que uma leitura inflexível do dispositivo legal poderia restringir indevidamente a competitividade, ao desencorajar propostas com descontos mais agressivos. Além disso, apontou que o papel do Estado não é exercer tutela paternalista sobre os licitantes, mas sim assegurar que propostas exequíveis e vantajosas tenham a oportunidade de prevalecer — desde que o proponente consiga comprovar tecnicamente sua capacidade de execução.
Mais recentemente, essa jurisprudência foi reforçada com ainda mais clareza pelo Acórdão nº 214/2025 – Plenário do TCU, que deve ser considerado como o precedente mais atual e contundente sobre o tema. Nesse julgamento, o Tribunal reiterou que a Administração não pode desclassificar proposta com fundamento exclusivo no §4º do art. 59 da Lei 14.133/2021, sem antes oportunizar ao licitante a demonstração da exequibilidade por meio de diligência, sob pena de violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da busca pela proposta mais vantajosa.
O acórdão foi categórico ao afirmar que a interpretação sistemática dos §§2º e 4º do art. 59 conduz à obrigatoriedade de diligência sempre que houver dúvida quanto à exequibilidade da proposta. Ressaltou-se, inclusive, que essa etapa é condição de validade da própria desclassificação, sob pena de nulidade do ato.
Para as empresas licitantes, essa jurisprudência representa uma dupla garantia: o direito de defender propostas competitivas e o dever de estar preparadas para justificar, com base técnica, a viabilidade econômica da sua oferta.
Riscos da desclassificação automática sem diligência
Desconsiderar esse dever de diligência prévia e partir para a desclassificação automática de uma proposta suspeita de inexequível representa um grave risco jurídico e prático tanto para a Administração quanto para os licitantes envolvidos. Dentre os principais problemas de uma inabilitação sumária sem observância do procedimento adequado, destacam-se:
- Nulidade do ato e do certame: Uma desclassificação feita em desacordo com a Lei 14.133/21 e a jurisprudência do TCU pode ser declarada inválida. O licitante prejudicado tem o direito de apresentar recurso administrativo no próprio processo licitatório, alegando a irregularidade (violação do art. 59, §2º e inc. IV). Caso a comissão de licitação mantenha a decisão ilegal, é possível buscar a anulação do ato via representação aos órgãos de controle (como o TCU ou os Tribunais de Contas estaduais/municipais) ou mesmo por ação judicial.
- Violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa: A Constituição Federal (art. 5º, LV) assegura o direito ao contraditório e à ampla defesa nos processos administrativos. Embora um julgamento de propostas não seja um “processo sancionador” típico, a exclusão de uma proposta legítima sem chance de defesa fere o senso de justiça procedimental. Os órgãos de controle e o Poder Judiciário têm reconhecido que o licitante deve ser ouvido quanto à viabilidade de sua proposta antes de ser afastado, sob pena de ofensa a princípios basilares do Direito Administrativo.
- Prejuízo à competitividade e à economicidade: Como apontado pelo TCU, eliminar automaticamente propostas abaixo de certo patamar pode distorcer o jogo competitivo. Em vez de incentivar descontos maiores (beneficiando a Administração com preços mais baixos), um critério rígido desestimula propostas ousadas. Isso significa que a Administração pode acabar pagando mais caro por contratar uma proposta “segura” (acima de 75%) quando poderia ter obtido uma oferta válida de menor valor. Ou seja, a falta de diligência pode levar à contratação de uma proposta menos vantajosa economicamente, contrariando o princípio da busca da proposta mais vantajosa.
- Risco de responsabilização do agente público: Os agentes da comissão de licitação ou o pregoeiro que deixarem de realizar diligência e efetuarem uma desclassificação indevida podem ser responsabilizados. O TCU já qualificou a desclassificação sem diligência como irregularidade passível de apontamento em auditorias. Em casos graves, isso pode levar a sanções aos responsáveis, como multas ou determinações de correção do procedimento.
- Imagem e confiança no processo licitatório: Para os licitantes, ver propostas descartadas sem análise gera desconfiança na lisura do certame. Empresas idôneas podem se sentir desestimuladas a participar de futuras licitações daquele órgão, receosas de arbitrariedades. A longo prazo, isso reduz a competição nos certames, o que também prejudica a Administração.
Em face desses riscos, fica evidente que não compensa “queimar etapas”. O procedimento correto – isto é, investigar a exequibilidade por meio de diligência – não é burocracia excessiva, mas sim uma garantia de segurança jurídica e de decisão acertada. Inclusive, a diligência bem conduzida não tende a alongar demasiadamente o certame; pelo contrário, pode evitar impugnações e atrasos futuros. Muitas vezes, basta conceder ao licitante um prazo curto (24 ou 48 horas) para apresentar esclarecimentos/documentos, analisar rapidamente em seguida, e então tomar a decisão fundamentada. Esse pequeno investimento de tempo previne uma série de problemas maiores adiante.
Do ponto de vista do licitante, caso ele seja vítima de uma inabilitação por inexequibilidade sem ter havido diligência, é crucial que saiba que pode e deve reagir. Os caminhos incluem interpor recurso administrativo contra a desclassificação, juntando toda a documentação que comprove a exequibilidade e citando a legislação e precedentes do TCU favoráveis. Se mesmo assim não for revertido, buscar a via judicial ou representação ao TCU são alternativas. Nessas horas, contar com assessoria jurídica especializada, como a do Schiefler Advocacia, faz a diferença para reverter o quadro com rapidez e efetividade.
Boas práticas para licitantes: preparando-se para comprovar a exequibilidade
Para as empresas que participam de licitações, especialmente em setores de obras e engenharia (onde o critério de 75% se aplica), seguem algumas boas práticas a adotar visando prevenir problemas com alegações de inexequibilidade e se proteger caso elas surjam:
- Elaboração cuidadosa da proposta: Antes de tudo, o licitante deve montar sua proposta de preço com base em uma planilha de custos realista. Identifique todos os custos diretos (materiais, mão de obra, equipamentos, logística) e indiretos, tributos incidentes, margens etc. Se o preço final ofertado for muito baixo em relação ao orçamento público, certifique-se de que internamente você consegue justificar cada cifra. Isso já serve de preparação para uma eventual diligência.
- Documentação de suporte pronta: Tenha à mão documentos que possam comprovar condições vantajosas da sua empresa. Por exemplo: cotações de fornecedores com valores menores que os usuais, demonstrações de eficiência produtiva, comprovantes de estoque próprio de material, contratos anteriores em que executou serviço similar por preço equivalente, enfim, qualquer evidência de que você consegue realizar pelo valor proposto. Essa documentação poderá ser apresentada rapidamente se a comissão solicitar esclarecimentos.
- Atenção ao edital e comunicações da licitação: O edital pode prever expressamente como será avaliada a exequibilidade e quais documentos podem ser exigidos. Siga essas regras. Além disso, fique atento durante a sessão ou fase de julgamento: se o pregoeiro/comissão mencionar suspeita de inexequibilidade, esteja pronto para requerer a oportunidade de demonstrar sua exequibilidade (caso não seja automaticamente concedida). Faça constar em ata, se possível, seu compromisso de apresentar justificativas.
- Responda prontamente às diligências: Se a Administração abrir diligência para comprovação de exequibilidade, observe rigorosamente o prazo concedido e responda de forma completa. Entregue todos os documentos solicitados e, se cabível, acrescente uma explicação por escrito, clara e objetiva, indicando como chegou àquele preço e porque ele é exequível. Essa resposta bem fundamentada frequentemente é suficiente para convencer a comissão e evitar a desclassificação.
- Recurso bem fundamentado em caso de desclassificação indevida: Caso, apesar de tudo, sua proposta seja desclassificada sem chance de esclarecimento (ou você julgue que a avaliação foi equivocada), interponha recurso administrativo. Demonstrar conhecimento técnico-jurídico firme pode fazer a própria Administração reconsiderar a decisão, evitando escalonar o conflito.
- Assessoria jurídica especializada: Conte com apoio de advogados experientes em licitações antes, durante e depois do certame. Essa parceria preventiva pode evitar que o problema de inexequibilidade sequer aconteça, ou tratar rapidamente dele se surgir, protegendo sua posição no certame.
Adotando essas boas práticas, o licitante minimiza consideravelmente o risco de ser surpreendido por uma inabilitação por inexequibilidade. E mesmo que seus preços agressivos despertem questionamentos, estará bem aparelhado para demonstrar a viabilidade e assegurar sua vitória legítima na licitação.
A participação em licitações públicas envolve desafios técnicos e jurídicos significativos, sobretudo diante da possibilidade de desclassificação por inexequibilidade. Nesse contexto, contar com uma assessoria jurídica especializada, como a oferecida pelo Schiefler Advocacia, é fundamental para proteger os interesses das empresas licitantes. Atuamos desde a análise preventiva dos editais e elaboração estratégica das propostas, passando pelo acompanhamento criterioso do certame e intervenções técnicas imediatas, até a apresentação robusta de justificativas técnicas e recursos administrativos contra decisões indevidas.
Além disso, nossa equipe está preparada para representar empresas perante Tribunais de Contas e Poder Judiciário, sempre embasada em sólida argumentação jurídica e técnica, amparada pela mais recente jurisprudência do TCU. Nossa atuação continua na fase contratual, garantindo apoio jurídico em situações que demandem reequilíbrio econômico-financeiro e renegociações, assegurando, assim, a execução sustentável e vantajosa dos contratos administrativos.
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Contratação de Empresa com CNAE Divergente do Objeto Licitado: Análise Jurídica sob a Lei 14.133/2021
Introdução
A contratação pública de empresas cuja inscrição no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) não apresenta atividade econômica (CNAE) correspondente ao objeto licitado levanta importantes questões jurídicas. Com a entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), é fundamental analisar como ficam os requisitos de habilitação das licitantes nesse contexto.
Este artigo aprofunda o tema à luz da nova legislação, em especial no que tange à habilitação jurídica e à qualificação técnica dos licitantes, e examina entendimentos jurisprudenciais relevantes do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a matéria. O objetivo é esclarecer se a ausência de determinado CNAE no cadastro da empresa pode, por si só, impedi-la de contratar com a Administração Pública, mesmo quando esteja tecnicamente apta a executar o objeto licitado.
CNAE e Objeto Licitado: Conceitos e Implicações
A Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) é o código oficial que identifica as atividades econômicas exercidas por uma empresa. No cadastro do CNPJ, cada pessoa jurídica informa um ou vários CNAEs correspondentes aos ramos de atuação aos quais se dedica.
Em licitações públicas, muitas vezes se menciona o CNAE da empresa como indicativo de sua aptidão para realizar o objeto contratual. Entretanto, o CNAE em si não define de forma absoluta a capacidade de uma empresa executar determinado serviço ou obra.
Ele é uma referência administrativa e fiscal das atividades empresariais, mas não um limitador legal das atividades que a empresa pode exercer – desde que estas estejam abrangidas, ainda que genericamente, em seu objeto social (a descrição das atividades permitidas em seu contrato ou estatuto social).
É relativamente comum que editais de licitação contenham cláusulas exigindo que a empresa licitante tenha finalidade ou ramo de atuação ligado ao objeto licitado. Essa prática busca garantir que apenas concorram empresas “do ramo” do objeto da contratação. Contudo, surge o questionamento: se a empresa não tem em seu cadastro um CNAE específico para aquela atividade, mas comprova que já a executou com qualidade, poderia ser inabilitada?
A Nova Lei de Licitações e Contratos e a jurisprudência moderna apontam para um tratamento mais flexível e focado na capacidade real da empresa, conforme veremos a seguir.
Habilitação Jurídica na Lei 14.133/2021
A habilitação jurídica diz respeito à capacidade da empresa de exercer direitos e assumir obrigações perante a Administração. Na Lei nº 14.133/2021, diferentemente da legislação anterior, simplificou-se a exigência de habilitação jurídica.
Segundo o art. 66 da nova lei, a documentação se limita à comprovação da existência jurídica da pessoa e, quando cabível, de autorização específica para o exercício da atividade a ser contratada. Em outras palavras, basta demonstrar que a empresa existe formalmente (por meio do contrato social registrado, CNPJ ativo etc.) e que não há impedimentos legais para que atue naquele ramo – se a lei exigir alguma autorização especial (por exemplo, licenças ou registro em conselho profissional para atividades regulamentadas).
Importante destacar que a lei não menciona nenhuma obrigação de que o objeto social ou o CNAE da empresa coincida exatamente com o objeto licitado. A ênfase está na regularidade formal da empresa e na autorização legal quando a atividade exigir condição especial (por exemplo, registro na Anvisa para certas atividades de saúde, ou no CREA/CAU para serviços de engenharia/arquitetura, etc.).
Fora dessas hipóteses de exigência legal específica, não há base legal para desclassificar licitantes unicamente porque seu cadastro empresarial não listava determinada atividade. Tal entendimento é coerente com o princípio da ampla concorrência (ou competitividade) previsto na própria Lei 14.133/2021 e na Constituição Federal (art. 37, XXI), que proíbe a Administração de restringir injustificadamente a participação de interessados na licitação.
Qualificação Técnica: Comprovação de Capacidade x CNAE
Enquanto a habilitação jurídica cuida dos aspectos formais de existência e capacidade legal da empresa, a qualificação técnica verifica se o licitante possui aptidão técnica para executar o contrato. A Lei 14.133/2021 disciplina a qualificação técnica principalmente em seu art. 67, que trata da documentação técnico-profissional e técnico-operacional exigível.
Dentre os meios de comprovação de qualificação técnica permitidos, destacam-se: apresentação de atestados de capacidade técnica (fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado que atestem que a empresa realizou serviços ou forneceu bens semelhantes ao objeto da licitação), indicações de equipe técnica e aparelhamento adequados, e registro em conselho profissional, quando aplicável.
Em suma, a lei prioriza a comprovação concreta da experiência e capacidade técnica da empresa, por meio de atestados e certificações, em vez de se ater a classificações formais. Não há no art. 67 ou em qualquer dispositivo da Lei 14.133/2021 previsão de exigência do código CNAE como condição de qualificação. A Administração deve exigir prova da capacidade técnica pertinente ao objeto (por exemplo, atestados de serviços similares já executados), o que é muito mais eficaz para avaliar a aptidão do que verificar se determinada atividade consta ou não do cadastro fiscal da empresa.
Assim, do ponto de vista estritamente legal, nada impede que uma empresa sem o CNAE exato do objeto licitado participe e seja habilitada, desde que comprove, por outras vias, que tem condições técnicas de executar o contrato. Essa comprovação ocorre mediante os documentos de qualificação técnica elencados na lei – e não pela simples classificação fiscal.
Em última análise, o que se busca é a garantia de que a contratada entregue o objeto com qualidade, e isso se verifica pelos seus antecedentes de desempenho (experiência pretérita) e estrutura atual, e não por códigos de inscrição econômica.
Jurisprudência do TCU sobre CNAE e Objeto Social do Licitante
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União tem reiteradamente firmado entendimento de que o CNAE ou a descrição específica do objeto social da empresa não constituem, por si sós, elementos essenciais para habilitação, se a capacidade técnica restar devidamente demonstrada.
Em casos concretos, o TCU vem decidindo que a inabilitação fundada exclusivamente na ausência de determinado CNAE configura formalismo excessivo e viola o caráter competitivo da licitação. Desde meados dos anos 2000, o TCU assinala que a Administração não deve restringir a competição exigindo correspondência exata entre o ramo de atividade registrado da empresa e o objeto licitado.
No Acórdão nº 571/2006 – TCU (2ª Câmara), por exemplo, discutiu-se a situação de um licitante cujo contrato social não continha, de forma expressa, a atividade específica objeto da licitação (transporte de pessoas). Naquela oportunidade, o Tribunal ponderou que a empresa havia apresentado três atestados de capacidade técnica por entes públicos distintos, comprovando experiência na execução do serviço pretendido. Concluiu, então, ser irrazoável exigir que o objeto social preveja minuciosamente cada subatividade ligada à atividade principal desempenhada: “Se uma empresa apresenta experiência adequada e suficiente para o desempenho de certa atividade, não seria razoável exigir que ela tenha detalhado o seu objeto social a ponto de prever expressamente todas as subatividades complementares à atividade principal”. Nesse caso, o TCU entendeu que a desclassificação da empresa com base unicamente nessa lacuna do contrato social feriu o interesse público, pois impediu a seleção da melhor proposta possível – entendimento inteiramente alinhado ao princípio da competitividade.
Essa linha de raciocínio foi posteriormente reafirmada em diversos outros precedentes do TCU.
No Acórdão nº 1203/2011 – Plenário, citando um exemplo, o Tribunal julgou indevida a inabilitação de empresa que não possuía CNAE específico para transporte de cargas leves, pois a licitante demonstrara já ter executado serviços semelhantes para a própria Administração contratante em contrato anterior – evidência de capacidade técnica que se sobrepôs a meras formalidades cadastrais.
De forma semelhante, no Acórdão nº 9365/2015 – 2ª Câmara, uma licitante de serviços de alimentação foi mantida na disputa apesar de não ter o CNAE exato de “distribuição de refeições”, porque apresentou atestados comprovando larga experiência no fornecimento de refeições em eventos de grande porte.
Mais recentemente, em pleno vigorar da nova lei, o Acórdão nº 444/2021 – Plenário reforçou esse entendimento ao considerar ilegal a desclassificação de uma empresa por divergência de CNAE em um pregão para recuperação de estradas vicinais – o TCU ressaltou que o essencial era a comprovação da experiência da empresa em atividades análogas, tratando a exigência rígida de CNAE como indevida por comprometer a seleção da proposta mais vantajosa.
Em síntese, a posição consolidada do TCU é de que a ausência de determinada atividade no objeto social ou no CNAE da licitante não é motivo suficiente para inabilitá-la, desde que fique demonstrada sua aptidão técnica para executar o objeto contratual. Cláusulas editalícias que exijam estritamente a correspondência do CNAE como critério eliminatório tendem a ser consideradas restritivas em demasia. O foco deve recair sobre a comprovação efetiva da capacidade de desempenho – por meio de atestados, registros profissionais, qualificação de equipe, etc. – em observância aos arts. 67 e 69 da Lei 14.133/2021 e ao princípio da competitividade.
Consequências Práticas e Recomendações
Diante do arcabouço legal e jurisprudencial exposto, uma empresa pode, em tese, ser contratada pelo Poder Público mesmo que não possua, em seu CNPJ, CNAE correspondente ao objeto da licitação.
Não havendo vedação legal expressa, a ausência do código específico não impede a contratação se a licitante cumprir os demais requisitos de habilitação. Isso traz alívio para muitas empresas, especialmente as que diversificam seus serviços ao longo do tempo e nem sempre atualizam imediatamente seus CNAEs junto aos órgãos de registro.
Entretanto, é recomendável adotar boas práticas preventivas. Do ponto de vista prático, incluir no objeto social da empresa descrições amplas ou abrangentes das atividades que ela desenvolve (ou pretende desenvolver) pode evitar questionamentos nas fases de habilitação. Manter o cadastro CNAE atualizado com as principais atividades também é salutar – não por imposição legal, mas para reduzir resistências e necessidade de esclarecimentos perante comissões de licitação menos experientes.
Em caso de cláusulas restritivas no edital, a empresa deve considerar impugná-las administrativamente antes da licitação ou, se necessário, recorrer judicialmente ou aos órgãos de controle. A própria nova lei reforça a possibilidade de saneamento de falhas e flexibilização de exigências excessivas para ampliar a disputa (fundamento que embasa, por exemplo, o art. 9º, I, “b” e o art. 12, III, da Lei 14.133/2021, que vedam cláusulas ou práticas que frustrem o caráter competitivo injustificadamente).
Em suma, prevalece o meritório sobre o meramente formal: uma empresa tecnicamente qualificada não deve ser afastada apenas por não constar determinado código de atividade em seu CNPJ. A Administração Pública, ao conduzir suas licitações, deve buscar a proposta mais vantajosa e selecionar fornecedores capazes, evitando formalismos exagerados que não guardem relação direta com a futura execução contratual.
Esse entendimento, lastreado na lei e na jurisprudência do TCU, promove a competitividade e a eficiência nas contratações públicas, beneficiando tanto o setor público (que passa a contar com um leque maior de propostas qualificadas) quanto as empresas que, por sua expertise, podem participar de certames além das definições estritas de seus cadastros.
Conclusão
A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) consolida uma visão moderna da fase de habilitação: privilegia-se a efetiva capacidade jurídica e técnica do licitante em detrimento de formalidades cadastrais rígidas. Nesse cenário, exigir que o CNAE ou o objeto social do licitante seja idêntico ao objeto licitado não encontra amparo expresso na lei e vem sendo refutado pelos órgãos de controle. Desde que a empresa demonstre, com documentação hábil, estar legalmente constituída e tecnicamente apta a executar o contrato, não deverá ser inabilitada pela mera ausência de um código CNAE específico ligado ao objeto da licitação. Tal prática, além de juridicamente questionável, pode privar a Administração da melhor proposta, contrariando o interesse público.
Por todo o exposto, a resposta à indagação inicial é clara: é possível a contratação pública de empresa cujo CNPJ não apresente atividade econômica correspondente ao objeto licitado, desde que atendidos os requisitos legais de habilitação (existência jurídica regular e qualificação técnica comprovada por outros meios idôneos).
A atenção deve recair sobre a essência (capacidade de executar) e não sobre a forma (registro burocrático da atividade). Esse entendimento, respaldado pela jurisprudência do TCU, fortalece os princípios da isonomia e da competitividade nas licitações, ao mesmo tempo em que impõe às empresas o ônus de demonstrar sua qualificação de maneira robusta.
Diante das nuances legais e dos riscos envolvidos nas contratações públicas, é imprescindível contar com orientação jurídica especializada.
O escritório Schiefler Advocacia coloca à disposição das empresas sua consolidada experiência em Direito Administrativo e Contratações Públicas, oferecendo consultoria completa desde a fase de habilitação até a execução contratual. Reconhecido nos anuários Análise Advocacia por sua excelência na área e detentor do selo DNA USP de qualidade acadêmica, o Schiefler Advocacia está preparado para auxiliar sua empresa a navegar com segurança pelo regime da Lei 14.133/2021, maximizando oportunidades e prevenindo eventuais impedimentos em licitações. Entre em contato e conte com uma equipe altamente qualificada para defender os interesses da sua organização no âmbito das contratações governamentais.
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Obrigatoriedade de Apresentação do Balanço Patrimonial por MEIs em Licitações Públicas
Fundamentos Legais: da Lei nº 8.666/1993 à Nova Lei nº 14.133/2021
A exigência de demonstrações contábeis (balanço patrimonial, DRE etc.) em licitações públicas tem base nas leis de licitações, tanto na antiga Lei nº 8.666/1993 quanto na nova Lei nº 14.133/2021. Essas normas visam garantir que os licitantes possuam saúde financeira mínima para cumprir um futuro contrato público.
Pela Lei nº 8.666/1993, a habilitação econômico-financeira restringia-se à apresentação de: (i) balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e na forma da lei, comprovando a boa situação financeira da empresa (não se admitindo balancetes ou balanços provisórios); (ii) certidão negativa de falência ou concordata (no caso de pessoa jurídica) ou de execução patrimonial (para pessoa física); e (iii) eventualmente, garantia limitada a 1% do valor do contrato. Em suma, a antiga lei exigia o balanço patrimonial do último ano como comprovação da capacidade econômico-financeira.
Com a Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), em vigor integral desde 2023, a regra foi mantida e até ampliada. O artigo 69 dessa lei estabelece que a habilitação econômico-financeira será demonstrada, de forma objetiva, pela apresentação de balanço patrimonial, demonstração do resultado do exercício (DRE) e demais demonstrações contábeis dos 2 (dois) últimos exercícios sociais, além da certidão negativa de falência/insolvência.
Ou seja, agora podem ser exigidos os balanços dos dois últimos anos, aumentando o escopo de análise das finanças do licitante. Há, contudo, uma salvaguarda para empresas novas: se o licitante tiver menos de 2 anos de constituição, os documentos contábeis se limitam ao último exercício encerrado. Essa evolução normativa demonstra que o legislador reforçou a necessidade de transparência financeira, sem dispensar micro ou pequenos empreendedores dessa obrigação.
Importante notar que essa obrigação legal vale para qualquer participante da licitação, incluindo microempresas, empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais (MEIs). A legislação especial das licitações, por sua natureza, impõe essas exigências a todos os concorrentes, visando resguardar o interesse público na contratação. No âmbito das leis de licitação, não há exceção expressa que dispense MEIs ou microempresas de apresentar balanço patrimonial – as únicas flexibilizações são aquelas gerais, como a possibilidade de exigir apenas o último balanço para empresas constituídas há menos de dois anos (no caso da Lei 14.133) e os benefícios da Lei Complementar nº 123/2006 que não incluem isenção de demonstrações contábeis, como veremos adiante.
Jurisprudência do TCU: MEI Deve Apresentar Balanço Patrimonial
Diante da dúvida se um Microempreendedor Individual, por ter obrigações contábeis simplificadas, precisaria mesmo entregar balanço patrimonial em licitações, o Tribunal de Contas da União (TCU) firmou entendimento claro: sim, deve apresentar. Em diversas decisões recentes, o TCU consolidou que as exigências das leis de licitação prevalecem sobre eventuais dispensas previstas em legislação civil ou comercial.
Um marco nesse entendimento foi o Acórdão nº 133/2022 do TCU – Plenário, de relatoria do Ministro Walton Alencar Rodrigues. Nessa decisão, o TCU examinou a participação de um MEI em licitação regida pela Lei 8.666/93 e concluiu que, mesmo que o Código Civil dispense o pequeno empresário de manter balanço, o MEI deve apresentá-lo se o edital exigir para fins de qualificação econômico-financeira. Conforme consta do voto, “ainda que o MEI esteja dispensado da elaboração do balanço patrimonial pelo Código Civil, para participação em licitação pública regida pela Lei 8.666/1993, deverá apresentar o balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e na forma da lei, conforme previsto no art. 31, inciso I, da Lei 8.666/1993”. Em outras palavras, a obrigação de demonstrar a boa situação financeira prevalece no âmbito da licitação, independentemente do regime simplificado do empresário.
Mais recentemente, já na vigência da nova lei, o TCU reafirmou esse entendimento no Acórdão nº 2586/2024 – Plenário. Nesse julgado, ao apreciar um recurso, o Tribunal adaptou a redação da orientação anterior para o contexto da Lei 14.133/2021. Ficou consignado que, em licitações sob a égide da Lei 14.133, o MEI – mesmo dispensado de escrituração contábil pelo Código Civil – deverá apresentar, quando exigido para comprovação de sua boa situação financeira, o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis do último exercício social, salvo nas hipóteses de dispensa de documentação previstas no art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021.
A referência ao art. 70, III, diz respeito a casos excepcionais em que a própria lei de licitações permite a dispensa de documentos de habilitação (por exemplo, contratações de menor valor com entrega imediata e pagamento único, conforme limites legais). Fora dessas situações excepcionais, o entendimento do TCU é peremptório: MEIs estão obrigados a apresentar suas demonstrações contábeis nas licitações, assim como qualquer outra empresa.
Essa posição não surgiu do nada – o TCU já vinha sinalizando em decisões anteriores que não poderia o edital isentar MEIs ou microempresas da apresentação de balanço. Por exemplo, em 2016 e 2017, o Tribunal censurou editais que desobrigavam balanço patrimonial, por violarem a Lei 8.666 e os princípios da isonomia. No Acórdão 1.857/2022, também do Plenário, reiterou-se que a desobrigação de balanço para ME/EPP é irregular, devendo os benefícios às microempresas limitar-se àqueles previstos na Lei Complementar 123/2006.
Ou seja, a jurisprudência do TCU tem sido consistente em não admitir tratamento favorecido além do previsto em lei, reforçando que a exigência de balanço patrimonial é regra geral para todos os licitantes.
O Conflito com o Código Civil e a Prevalência da Lei Especial de Licitações
A resistência de alguns microempreendedores em apresentar balanço patrimonial deriva do aparente conflito de normas. De um lado, o Código Civil (Lei nº 10.406/2002) estabelece, em seu art. 1.179, que todo empresário e sociedade empresária devem seguir um sistema de contabilidade e levantar anualmente balanço patrimonial e de resultado. Por outro lado, o próprio art. 1.179 do Código Civil, em seu §2º, dispensa dessas exigências “o pequeno empresário a que se refere o art. 970”. Na prática, este “pequeno empresário” abrange as microempresas e, por extensão, o microempreendedor individual (que é uma categoria criada posteriormente pela LC 123/2006, gozando de tratamento semelhante ao da microempresa). Além disso, a Lei Complementar nº 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte) permite que microempresas optantes pelo Simples Nacional adotem uma contabilidade simplificada, a critério do empreendedor. Em suma, a legislação civil e comercial não obriga o MEI a ter balanço patrimonial e escrituração completa, diferentemente de empresas maiores.
Diante disso, seria lógico questionar: por que exigir balanço do MEI na licitação, se a lei dispensa sua elaboração? A resposta está na hierarquia e especialidade das normas.
As regras de habilitação em licitações integram uma legislação especial (leis de licitação) voltada especificamente à contratação pública, com objetivos próprios de proteção ao interesse público (garantia da execução contratual, seleção de propostas vantajosas, isonomia entre licitantes, etc.). Já as disposições do Código Civil e da LC 123/2006 são normas gerais de direito empresarial e econômico, visando desburocratização e incentivo aos pequenos negócios de forma ampla.
Prevalece, nesse caso, o princípio de que a lei especial prevalece sobre a lei geral (lex specialis derrogat legi generali). O TCU explicitou exatamente isso: a licitação pública é regida por lei específica e, em razão dessa especialidade, afasta a aplicação da lei geral naquilo que for incompatível. Portanto, a dispensa contábil do art. 1.179 do Código Civil não isenta o MEI das exigências da Lei de Licitações, pois esta representa um microssistema próprio. Ademais, a Constituição Federal, ao tratar de licitações (art. 37, XXI), exige igualdade de condições e cumprimento estrito dos termos do edital e da lei. Isentar um licitante de apresentar documentos exigidos dos demais violaria a isonomia e a competitividade do certame.
Assim, a interpretação que se consolidou é de que o MEI pode, para efeitos do direito privado, não ter obrigação de escrituração mercantil completa, mas se ele optar por participar de licitação pública, deve atender às exigências documentais dessa legislação especial, inclusive no tocante ao balanço patrimonial.
Ressalte-se que a LC 123/2006, ao estabelecer tratamento favorecido às micro e pequenas empresas nas contratações públicas, não prevê a dispensa da documentação de qualificação econômico-financeira. Os benefícios ali elencados referem-se a outras medidas, como preferência em caso de empate, prazos para regularizar certidões fiscais, subdivisão de lotes, etc. Não há na LC 123/06 qualquer artigo isentando microempresas ou MEIs de apresentar balanços ou demonstrativos em licitações. Portanto, permitir que um MEI concorra sem comprovar sua situação financeira seria criar um benefício não previsto em lei, algo que os órgãos de controle rechaçam.
Em síntese, o entendimento dominante é que a obrigação de balanço patrimonial prevalece, e a dispensa do Código Civil não pode ser invocada para frustrar as exigências de habilitação fixadas nas leis de licitação.
Consequências da Não Apresentação do Balanço Patrimonial
A não apresentação do balanço patrimonial pelo MEI em um processo licitatório pode acarretar sérias consequências práticas, em especial a sua inabilitação imediata. Nos processos regidos tanto pela antiga Lei 8.666 quanto pela nova Lei 14.133, a fase de habilitação é eliminatória: o licitante que não entregar toda a documentação exigida no edital (observados os limites da lei) será desclassificado da licitação (inabilitado), não podendo prosseguir na disputa. Assim, um MEI que deixa de incluir suas demonstrações contábeis (quando o edital as exige) muito provavelmente será excluído do certame por não atender à qualificação econômico-financeira.
Mesmo que o microempreendedor individual argumente que não possui balanço formal por não ser obrigado a elaborá-lo no dia a dia, a comissão de licitação ou pregoeiro não tem amparo legal para relevá-lo, salvo nas hipóteses excepcionalíssimas de dispensa de documentação previstas na lei (como contratações diretas ou licitações dispensáveis de baixo valor, conforme art. 70 da Lei 14.133, mencionadas). Na prática comum das licitações, a ausência do balanço no envelope de habilitação leva à inabilitação do MEI – ou de qualquer outra empresa nas mesmas condições.
Do ponto de vista do órgão público condutor da licitação, há também consequências caso ele tente flexibilizar indevidamente essa exigência. Se um edital dispensar o MEI de apresentar balanço patrimonial (tentando favorecer sua participação), tal cláusula será considerada ilegal e inconstitucional pelos órgãos de controle. O TCU já determinou ciência a entes públicos alertando que isentar MEIs da exigência do balanço contraria o art. 37, XXI, da CF/88 (princípio da isonomia e seleção da proposta mais vantajosa), bem como a Lei 8.666/93 e a jurisprudência consolidada. Isso significa que o procedimento licitatório pode ser impugnado por outros licitantes ou questionado pelos Tribunais de Contas, levando à anulação do edital ou à necessidade de correção das regras. Em suma, a Administração não pode criar exceções não previstas em lei sob pena de invalidar o certame.
Portanto, a não apresentação do balanço patrimonial resulta, para o MEI, na perda da oportunidade de contratar (desclassificação), e para o processo licitatório em si, no risco de nulidade caso a exigência tenha sido indevidamente dispensada.
Recomendações Práticas para MEIs e Pequenas Empresas em Licitações
Diante desse cenário, é fundamental que microempreendedores individuais e pequenas empresas tomem algumas precauções e adotem boas práticas ao se prepararem para participar de licitações públicas. Seguem algumas recomendações úteis:
- Mantenha a contabilidade em dia: Mesmo que a lei civil não o obrigue, o MEI deve preparar anualmente um balanço patrimonial e demonstrações de resultado. Busque auxílio de um contador para elaborar esses documentos conforme os princípios contábeis. Assim, quando surgir uma oportunidade de licitação, a empresa já terá em mãos as demonstrações do último exercício (ou dos dois últimos, se aplicável) prontas para apresentação.
- Verifique o edital com atenção: Ao se interessar por um certame, leia cuidadosamente a seção de habilitação econômico-financeira do edital. Identifique se é exigido balanço patrimonial e de quais exercícios. Verifique também se há menção a índices financeiros mínimos (ex.: liquidez corrente, solvência) a serem calculados a partir do balanço. Esteja preparado para apresentar os documentos e cálculos requeridos ou questione formalmente caso alguma exigência extrapole o permitido em lei.
- Utilize os mecanismos da lei a seu favor: Se o edital trouxer exigências muito rígidas ou em desconformidade com a legislação (por exemplo, pedir balanço de mais anos do que a lei exige, ou índices indevidos), protocolize um pedido de esclarecimento ou impugnação ao edital dentro do prazo cabível. A nova Lei de Licitações enfatiza a objetividade e a justificativa das exigências; portanto, o MEI pode e deve buscar a correção de clausulados excessivos para evitar ser barrado indevidamente. Garantir regras equilibradas faz parte do direito dos licitantes, especialmente dos pequenos negócios.
- Conheça os benefícios legais, mas não conte com perdão para documentação: Esteja ciente dos benefícios do Estatuto da Microempresa (LC 123/06) nas licitações, como empate ficto e preferência de contratação local. Porém, não interprete esses benefícios como perdão para faltas documentais. Diferentemente de algumas certidões fiscais que podem ser regularizadas em 5 dias úteis se a microempresa sair vencedora, o balanço patrimonial é um documento de qualificação cuja ausência pode não ser passível de correção posterior. Portanto, encare a preparação do balanço como parte indispensável do planejamento para licitar.
- Planejamento e investimento: Participar do mercado de compras governamentais exige profissionalização. Considere investir em assessoria contábil e jurídica especializadas em licitações. Isso ajuda a estruturar a empresa para atender aos editais (do ponto de vista documental, fiscal e trabalhista) e também a navegar nos procedimentos licitatórios sem incorrer em erros formais. O custo de manter contabilidade regular é compensado pelas oportunidades de negócios com o poder público que se abrem ao estar habilitado corretamente.
Seguindo essas orientações, o MEI e as pequenas empresas aumentam significativamente suas chances de sucesso nas licitações. Em resumo, a chave é antecipar-se às exigências, tratar a elaboração de balanço patrimonial como parte do negócio e não apenas uma burocracia, e valer-se dos instrumentos legais para competir em condições justas.
Considerações Finais
Em conclusão, a obrigatoriedade de apresentação do balanço patrimonial por MEIs em licitações públicas é hoje uma realidade incontornável do ordenamento jurídico brasileiro. A evolução normativa – da Lei 8.666/1993 para a Lei 14.133/2021 – reforçou a importância da qualificação econômico-financeira dos licitantes, e a jurisprudência do TCU consolidou o entendimento de que nem mesmo o regime simplificado dos microempreendedores individuais os exime desse dever legal.
Para evitar inabilitações e garantir a competitividade, os MEIs devem se preparar adequadamente, mantendo suas demonstrações contábeis em ordem e atendendo rigorosamente aos editais, valendo-se dos mecanismos de flexibilidade apenas nos estritos termos da lei.
A Atuação do Escritório Schiefler Advocacia
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Entenda o processo de desapropriação do imóvel de “Ainda Estou Aqui”: aspectos jurídicos e alternativas
No dia 03/10/2025, o prefeito do Rio de Janeiro publicou o Decreto nº 55729/2025[1], declarando de utilidade pública o imóvel na Urca onde foi filmado “Ainda Estou Aqui”, filme vencedor do Oscar. O objetivo anunciado foi o de transformar a casa em um espaço cultural aberto ao público. O valor do imóvel – que encontrava-se à venda – teria saltado de R$ 13,9 milhões para R$ 25 milhões após a vitória no Oscar.
Antes de adentrar aos aspectos legais da desapropriação, é necessário partir da seguinte premissa: a desapropriação constitui uma venda, embora forçada.
O Decreto-Lei nº 3.365/1941, que dispõe sobre desapropriações por utilidade pública, elenca diversos motivos – desde segurança nacional e salubridade pública até preservação de patrimônio histórico e cultural. No caso do imóvel da Urca, o fundamento para a desapropriação se deu com base na alínea “h” do art. 5º do Decreto-Lei nº 3.365/1941, que considera caso de utilidade pública a “exploração ou a conservação dos serviços públicos”.
A peculiaridade do caso “Ainda Estou Aqui” é que o imóvel não possui propriamente um patrimônio histórico tradicional – visto que foi locado pela produção do filme para as gravações. Isso explica, em parte, o motivo pelo qual o decreto não invocou diretamente a justificativa de “preservação de monumento histórico” (alínea “k”, do art. 5º), optando por enquadrar a hipótese no interesse de instalação de serviço público (alínea “h” do art. 5º).
Vale dizer que o conceito de patrimônio cultural abrange qualquer bem portador de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (CF, art. 216), o que confere respaldo ao Poder Público para agir na proteção de um local que se tornou simbolicamente relevante para a sociedade.
Por outro lado, o decreto levanta o questionamento se a transformação de um imóvel utilizado como cenário cinematográfico em centro cultural se enquadraria adequadamente na motivação pública. Se o objetivo é preservar a memória cultural e a premiação do filme, por que não utilizar o instituto do tombamento, que visa precisamente resguardar a identidade e a memória de bens culturais?
Em suma, do ponto de vista jurídico, a validade do decreto depende de demonstrar um interesse público concreto e legítimo, o que, no caso ora analisado, convida a um exame sobre a fundamentação legal mais adequada para o atingimento da finalidade pública pretendida.
O que ocorre após a publicação do decreto de utilidade pública?
A partir da declaração de utilidade pública, formalizada pelo decreto publicado, o poder público tem prazo legal de até cinco anos para efetivar a desapropriação (art. 10 do DL 3.365/1941) – o que não necessariamente pressupõe a intervenção do judiciário, conforme decurso apresentado a seguir.
Após a publicação do decreto, o próximo passo é a elaboração de um laudo de avaliação para determinar o valor da indenização a ser oferecida ao proprietário. Essa oferta inicial deve corresponder a um valor justo, atendendo ao mandamento constitucional de prévia e justa indenização em dinheiro (CF, art. 5º, XXIV). Na prática, esse valor tende a se situar entre o valor venal do IPTU (geralmente inferior) e o valor de mercado do imóvel. Notificado o proprietário e apresentada a proposta, busca-se uma composição amigável, de modo que, se o proprietário aceitar o montante, a transferência ocorre administrativamente, evitando-se litigiosidade.
Vale ressaltar que a partir de 2019, tornou-se possível a opção pela mediação ou pela via arbitral para a definição de valores de indenização, hipótese em que o particular indicará um dos órgãos ou instituições especializados previamente cadastrados pelo órgão responsável pela desapropriação (Art. 10-B do DL. 3.365/41).
Caso não haja acordo, o ente público deverá propor uma ação judicial de desapropriação. Nessa fase judicial, o Município normalmente deposita em juízo o valor ofertado (ou o valor venal) e pode requerer a imissão provisória na posse (art. 15 do DL 3.365/41) – para tomar posse do bem antes da conclusão do processo, quando a urgência ou interesse público o justifique.
O proprietário desapropriando é então citado e tem oportunidade de contestação, que só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço (art. 20 do DL 3.365/41). O processo segue sob rito ordinário, com a designação de perícia judicial para apurar o justo preço do imóvel. Neste ínterim, o bem já pode estar em posse do poder público, mas a discussão sobre o quantum indenizatório pode se arrastar por anos até trânsito em julgado.
O proprietário do bem poderá, então, aceitar, em juízo, a oferta feita pelo expropriante, realizando um acordo judicial; ou aguardar a sentença, que fixará a indenização definitiva, considerando fatores como localização, estado do imóvel, potencial de uso e valorização.
Desapropriação vs. Tombamento: diferenças e possibilidades
Diante do propósito declarado pelo decreto de preservar a memória cultural ligada ao imóvel, cabe a diferenciação entre dois institutos do direito administrativo que giram em torno da intervenção do Estado na propriedade: a desapropriação e o tombamento.
O tombamento é um ato administrativo em que o Poder Público reconhece o valor histórico, cultural, arquitetônico ou paisagístico de um bem, inscrevendo-o nos livros do tombo e impondo restrições à sua utilização para assegurar sua preservação.
Diferentemente da desapropriação, o tombamento não transfere a titularidade do bem – no entanto, o proprietário passa a ter o dever legal de conservar o bem e fica proibido de demolir, alterar ou dar destinação que comprometa o valor cultural protegido.
Em regra, o tombamento não gera direito a indenização, por ser considerado uma limitação administrativa ao uso da propriedade, e não uma perda da propriedade em si.
No caso do imóvel da Urca, se o objetivo predominante fosse a preservação da identidade e memória do local, o tombamento seria um caminho juridicamente pertinente, e não a desapropriação. A casa estaria legalmente protegida contra destruição ou descaracterização, sem que o Município tivesse que adquirir sua propriedade.
Por outro lado, o tombamento, isoladamente, não garantiria o acesso público ao imóvel nem a implementação imediata de um centro cultural, dependendo sempre da anuência ou parceria do proprietário para que o local possa receber visitantes ou abrigar atividades.
Já a desapropriação proporciona à administração controle pleno sobre o bem, viabilizando a instalação de um equipamento público e o acesso da população. Em contrapartida, exige recursos financeiros elevados para indenizar o particular e representa a medida mais drástica de intervenção na propriedade, só se justificando quando o interesse público assim o exigir.
No espectro das alternativas, entre o tombamento (mera restrição preservacionista) e a desapropriação (aquisição compulsória), há ainda saídas intermediárias que poderiam ter sido consideradas. Por exemplo, a Lei de Licitações prevê, enquanto hipótese de inexigibilidade de licitação, a “aquisição ou locação de imóvel cujas características de instalações e de localização tornem necessária sua escolha” (art. 74, V, da Lei 14.133/2021). Mas, para que tal alternativa fosse efetivamente considerada, o proprietário deveria necessariamente anuir com a venda, o que não ocorre na hipótese da desapropriação .
Considerações finais: do Oscar à desapropriação
Os “considerandos” do decreto delineiam a motivação contida na pretensão de desapropriar: fala-se da relevância cultural da casa construída em 1938 utilizada enquanto locação principal do filme (Considerando 2º); da indicação do filme “Ainda Estou Aqui” ao Oscar e a sua vitória em uma das categorias (Considerandos 3º e 4º); do dever do Estado de preservar a memória democrática e a superação do autoritarismo (Considerando 8º); e da a necessidade de criar um espaço de memória do cinema brasileiro (Considerando 10º).
Nesse cenário, diversas alternativas jurídicas poderiam ter sido adotadas para atender o interesse público concreto e legítimo: o tombamento garantiria a preservação do bem sem a transferência de propriedade e o acesso ao público; a aquisição mediante inexigibilidade de licitação permitiria uma venda consensual entre o poder público e o proprietário. Em suma, a adoção da alternativa jurídica mais adequada envolve ponderar custos, grau de intervenção e efetividade do resultado almejado: no caso de “Ainda Estou Aqui”, a Prefeitura optou pelo caminho da desapropriação, que assegura a criação do museu e a prestação de um serviço público, em que pese tratar-se de uma intervenção supressiva e mais onerosa.
Do ponto de vista do direito dos proprietários, diante da publicação do decreto de utilidade e a iminente abertura da fase executória da desapropriação, o auxílio de uma assessoria jurídica é essencial para construir alternativas que culminem em uma indenização justa pelo Poder Público.
[1] Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/rj/r/rio-de-janeiro/decreto/2025/5573/55729/decreto-n-55729-2025-declara-de-utilidade-publica-para-fins-de-desapropriacao-o-imovel-que-menciona. Acesso em: 14/03/2025.
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Contrata+Brasil: Oportunidades para Microempreendedores e Compradores Públicos
O que é o Contrata+Brasil?
O Contrata+Brasil é uma plataforma lançada pelo Governo Federal para conectar microempreendedores individuais (MEIs) a compradores públicos, como prefeituras, governos estaduais e órgãos federais. O objetivo é facilitar a participação de pequenos negócios em processos de contratação pública, promovendo inclusão, transparência e eficiência nas aquisições governamentais.
A iniciativa foi instituída pela Instrução Normativa SEGES/MGI nº 52, de 10 de fevereiro de 2025, e faz parte de um movimento maior para digitalizar e simplificar o acesso dos pequenos empreendedores ao mercado público, fomentando o desenvolvimento local e reduzindo barreiras burocráticas.
Como Funciona o Contrata+Brasil?
A plataforma funciona como um hub digital de oportunidades, onde os microempreendedores podem se cadastrar, visualizar demandas de órgãos públicos e oferecer seus serviços ou produtos. O processo é simples e envolve as seguintes etapas:
- Cadastro na plataforma – O microempreendedor cria um perfil e fornece as informações necessárias.
- Busca por oportunidades – A ferramenta exibe licitações e demandas de compras públicas compatíveis com o perfil do usuário.
- Proposta de fornecimento – O MEI pode enviar sua proposta diretamente pela plataforma.
- Contratação e fornecimento – Caso selecionado, o empreendedor recebe as instruções para fornecer o serviço ou produto contratado.
Essa estrutura reduz a burocracia tradicional dos processos de compras públicas e estimula a participação de pequenos negócios.
A plataforma é um módulo integrado ao Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (Siasg), o que garante maior integração e facilidade de uso por parte dos órgãos públicos.
Além disso, vale mencionar que, embora a iniciativa seja do Governo Federal, o programa também permite a adesão de estados, municípios, empresas públicas, sociedades de economia mista, serviços sociais autônomos e entidades privadas sem fins lucrativos que recebam recursos públicos.
Todas as operações na plataforma são monitoradas e os fornecedores devem estar inscritos no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (SICAF) para participarem.
De acordo com a IN nº 52/2025, os pagamentos devem ocorrer preferencialmente por meio do PIX ou cartão de pagamento, reduzindo prazos e facilitando a gestão financeira dos MEIs.
Benefícios do Contrata+Brasil para os Microempreendedores
A plataforma traz diversas vantagens para os microempreendedores individuais que desejam expandir seus negócios e atender o setor público:
- Acesso facilitado a contratos públicos – Antes restrito a grandes empresas, o mercado público agora está mais acessível para MEIs.
- Menos burocracia – O ambiente digital simplifica a participação dos empreendedores nas licitações.
- Maior previsibilidade financeira – Trabalhar com contratos governamentais pode proporcionar mais segurança e estabilidade financeira.
- Fomento ao crescimento dos pequenos negócios – Oportunidade de ampliação de clientela e fortalecimento da atuação no mercado.
De acordo com o art. 13 da IN nº 52/2025, as contratações cujos valores sejam de até R$ 80.000,00 podem ser realizadas exclusivamente com MEIs, microempresas e empresas de pequeno porte (EPPs), garantindo maior competitividade para os pequenos negócios.
Também vale destacar que o processo de cadastramento e participação no Contrata+Brasil foi simplificado pela IN nº 52/2025, eliminando etapas burocráticas comuns em outras modalidades de contratação pública, como a elaboração de Estudo Técnico Preliminar (ETP), Análise de Riscos, elaboração de Termo de Referência (TR) e de Edital.
Impacto do Contrata+Brasil para o Setor Público
Além dos benefícios para os empreendedores, o Contrata+Brasil também é vantajoso para os órgãos públicos, pois:
- Aumenta a concorrência e, consequentemente, melhora os preços e a qualidade dos serviços.
- Promove o desenvolvimento local, estimulando a economia regional.
- Reduz custos administrativos, tornando o processo de aquisição mais ágil e eficiente.
Em relação à promoção do desenvolvimento local, vale mencionar a regra prevista no art. 18 da IN nº 52/2025, que estabelece a preferência na contratação de microempresas, empresas de pequeno porte e equiparadas sediadas no local ou região do órgão ou entidade contratante, que deverão privilegiadas mesmo quando a sua proposta for superior em até 10% da proposta de empresas não locais ou regionais.
Como se Cadastrar no Contrata+Brasil?
O cadastro na plataforma é gratuito e pode ser feito por meio do site oficial do Contrata+Brasil. Os passos incluem:
- Acessar o portal oficial e clicar na opção de cadastro.
- Informar os dados básicos do microempreendedor.
- Indicar os produtos ou serviços que pretende oferecer.
- Aguardar a validação e começar a visualizar oportunidades.
Sanções e Penalidades para Fornecedores
Caso desejem participar do Contrata+Brasil, os fornecedores também deverão se manter atentos para evitar o risco de aplicação de sanções e penalidades. Isso porque a IN nº 52/2025 estabeleceu regras para garantir a integridade do processo de contratação, sujeitando os fornecedores à inativação temporária ou à aplicação de sanções administrativas, caso:
- Não atualizem seus dados cadastrais.
- Descumpram prazos ou requisitos do contrato.
- Cometam infrações como fraude ou fornecimento de informações falsas.
Conclusão
O Contrata+Brasil representa um avanço significativo na inclusão de microempreendedores individuais no setor de contratações públicas. Com menos burocracia e mais acessibilidade, a plataforma abre novas oportunidades para pequenos negócios e fortalece a economia local. Para quem deseja expandir sua atuação e buscar novos clientes no setor público, essa é uma excelente alternativa.
Quer saber mais sobre como vender para o governo e aproveitar as vantagens do Contrata+Brasil? Fale com nossos especialistas em contratações públicas e receba assessoria jurídica personalizada para garantir sua participação nesse mercado!
Read MoreTanto a remoção como a licença possuem requisitos próprios para serem concedidos por meio de requerimento administrativo ou de ação judicial.
É comum que cônjuges ou companheiros de servidores públicos sejam deslocados para trabalhar em outra localidade, muitas vezes de ofício (ex officio) e no interesse da administração.
Independentemente de se tratar de um professor universitário, um técnico administrativo ou qualquer outro cargo da carreira federal, um servidor público federal possui o direito de acompanhar o seu marido, a sua esposa ou o seu companheiro(a) no caso de este(a) ser deslocado para outro ponto do território nacional brasileiro.
Este direito está previsto na Lei nº 8.112/1990, também conhecida como Estatuto dos Servidores Públicos Federais, e normalmente consiste nos institutos da remoção para acompanhar cônjuge (artigo 36 da lei) [1]Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede. Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se … Continue reading e da licença por motivo de afastamento de cônjuge, com exercício provisório (artigo 84 da lei)[2]Art. 84. Poderá ser concedida licença ao servidor para acompanhar cônjuge ou companheiro que foi deslocado para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o exercício de … Continue reading.
Cada um destes institutos, seja a remoção, seja a licença, possuem requisitos próprios para serem concedidos por meio de requerimento administrativo ou de ação judicial, normalmente por meio de Mandado de Segurança, com pedido liminar.
Nesse sentido, é muito comum surgirem dúvidas como:
(1) Se o servidor deslocado possuir um cônjuge/companheiro também servidor público, ele possui direito de ser removido para fins de acompanhamento, independentemente do interesse da administração?
(2) É possível remover professores ou técnicos administrativos entre diferentes universidades federais ou institutos federais distintos?
(3) A coabitação prévia é um requisito para o acompanhamento de cônjuge por remoção ou por licença com exercício provisório (remunerada)?
(4) A licença com exercício provisório é remunerada e por tempo indeterminado?
(5) O Ministério da Educação pode indeferir o pedido de remoção ou de licença?
(6) Eu preciso de um advogado para pedir a minha remoção ou licença para acompanhamento de cônjuge?
Para conhecer as respostas a estas e outras dúvidas, acesse os artigos escritos pelo advogado do escritório especialista no assunto:
Artigo 1 – A remoção de Professor entre Universidades Federais distintas
Artigo 2 – Servidor Público cujo cônjuge foi deslocado possui direito à licença
Entre em CONTATO com o advogado especialista em acompanhamento de cônjuge caso queira uma avaliação sobre um caso particular.
Texto escrito por: Eduardo Schiefler
Referências[+]
↑1 | Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.
Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se por modalidades de remoção: I – de ofício, no interesse da Administração; II – a pedido, a critério da Administração; III – a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração: a) para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que foi deslocado no interesse da Administração; b) por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente que viva às suas expensas e conste do seu assentamento funcional, condicionada à comprovação por junta médica oficial; c) em virtude de processo seletivo promovido, na hipótese em que o número de interessados for superior ao número de vagas, de acordo com normas preestabelecidas pelo órgão ou entidade em que aqueles estejam lotados. |
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↑2 | Art. 84. Poderá ser concedida licença ao servidor para acompanhar cônjuge ou companheiro que foi deslocado para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o exercício de mandato eletivo dos Poderes Executivo e Legislativo.
§ 1º A licença será por prazo indeterminado e sem remuneração. § 2º No deslocamento de servidor cujo cônjuge ou companheiro também seja servidor público, civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, poderá haver exercício provisório em órgão ou entidade da Administração Federal direta, autárquica ou fundacional, desde que para o exercício de atividade compatível com o seu cargo. |
A URP, abreviação para Unidade de Referência de Preços (URP), é um indexador econômico que, até fevereiro de 1989, orientou reajustes, em relação à taxa de inflação, de preços e de salários. Instituída no âmbito do Plano Bresser, a URP tem impacto significativo na remuneração de servidores, tendo sido objeto de muitas discussões jurídicas até os dias atuais.
Eduardo Schiefler[1]Eduardo Schiefler – Advogado no escritório Schiefler Advocacia. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). … Continue reading
Matheus Dezan[2]Matheus Dezan – Estagiário de Direito no escritório Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD|UnB). Editor Assistente da Editoria … Continue reading
O objetivo deste artigo é analisar o pagamento da URP (Unidade de Referência de Preço) de fevereiro de 1989, mais conhecida como URP/1989, que foi instituída, no âmbito do Plano Bresser[3]CPDOC. Verbete “Plano Bresser” do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Disponível em: … Continue reading, pelo Decreto-Lei n.º 2.335/1987[4]BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.335, 12 de junho de 1987. Dispõe sobre o congelamento de preços e aluguéis, reajustes mensais de salários e vencimentos, institui a Unidade de Referência de Preços … Continue reading, revogado pela Lei n.º 7.730/1989[5]BRASIL. Lei n.º 7.730, de 31 de janeiro de 1989. Institui o cruzado novo, determina congelamento de preços, estabelece regras de desindexação da economia e dá outras providências. Divisão de … Continue reading. Resumidamente, a URP/1989 é um indexador econômico que até fevereiro de 1989 orientou reajustes, em relação à taxa de inflação, de preços e de salários.
A importância da análise desta verba se dá em razão de que, por força de decisão liminar da Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia, primeira relatora do Mandado de Segurança n.º 28.819/DF, impetrado pelo Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Universidade de Brasília (SINTFUB/DF), os servidores públicos da Universidade de Brasília (UnB), instituição federal de ensino superior, recebem, mensalmente, desde o ano de 2010, o pagamento da URP/1989.
Ainda vigente, esta decisão teve por objetivo, “considerando a natureza alimentar da parcela da URP/89, paga aos substituídos durante alguns anos, suspender os efeitos dos atos […] dos quais resulte diminuição, suspensão e/ou retirada daquela parcela da remuneração dos servidores substituídos, e/ou que impliquem a devolução dos valores recebidos àquele título, até a decisão final da presente ação, com a consequente devolução das parcelas eventualmente retidas desde o ajuizamento desta”. Além disso, a então Ministra relatora também consignou em sua decisão que, “ao apreciar alegação de desrespeito à liminar que concedi no Mandado de Segurança n. 26.156, asseverei que a observância do que decidido importava no pagamento da parcela discutida na forma como vinha sendo realizada antes da prolação dos atos impugnados, ou seja, incluídos todos os substituídos (sem distinção quanto à época de ingresso na Fundação Universidade de Brasília) e sem sua absorção por reajustes salariais posteriores.”.
Nesse cenário, uma questão que vem ganhando espaço em julgamentos recentes do STF diz respeito ao fato de que os servidores públicos (técnicos administrativos ou docentes) da Universidade de Brasília (UnB) que, quando redistribuídos para outras instituições federais de ensino superior públicas em razão da Lei n.º 8.112/1990[6]BRASIL. Lei n.º 8.112/1990, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Diário Oficial … Continue reading, deixam de receber o pagamento mensal da URP de fevereiro de 1989.
Isso porque, no entendimento de algumas instituições de ensino superior para as quais os servidores públicos da Universidade de Brasília (UnB) são redistribuídos, este deslocamento acarretaria a interrupção do vínculo entre esses servidores públicos e a Universidade de Brasília (UnB), de modo que a decisão liminar da Ministra Cármen Lúcia no âmbito do Mandado de Segurança n.º 28.819/DF deixaria de abarcá-los.
Isto é, para essas instituições, os servidores transferidos deixariam, em razão da redistribuição, de ser beneficiários do Mandado de Segurança n.º 28.819/DF. Assim, uma vez redistribuídos, os servidores públicos não mais perceberiam o pagamento mensal da URP de fevereiro de 1989.
Notadamente, é preciso notar que os atos administrativos das instituições federais de ensino superior que suprimem o pagamento mensal da URP/1989 dos servidores públicos redistribuídos da Universidade de Brasília (UnB) ignoram que, por força do artigo 37, XV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)[7]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 05 out. 1988, p. 1. e do artigo 37, I e II, da Lei n.º 8.112/1990 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União – Servidores Federais), a redistribuição ocorre, sempre, em razão do interesse da Administração, e não dos servidores públicos, motivo pelo qual se assegura a equivalência dos vencimentos e dos subsídios.
Por essa razão, não é lícito que a Administração Pública, isto é, as instituições federais de ensino superior, suprima o pagamento mensal da URP de fevereiro de 1989 dos servidores públicos redistribuídos, originariamente, da Universidade de Brasília (UnB). Confiram-se os dispositivos:
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)
Art. 37. […]: XV – o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I;
Lei n.º 8.112/1990
Art. 37. Redistribuição é o deslocamento de cargo de provimento efetivo, ocupado ou vago no âmbito do quadro geral de pessoal, para outro órgão ou entidade do mesmo Poder, com prévia apreciação do órgão central do SIPEC, observados os seguintes preceitos:
I – interesse da administração;
II – equivalência de vencimentos;
[…]
Isso faz com que a referida supressão viole a garantia de irredutibilidade de subsídios e de vencimentos dos servidores públicos, bem como ignore que a redistribuição não ocorre no interesse exclusivo dos servidores públicos — mesmo que eles tenham demandado a redistribuição —, mas de acordo com o interesse da Administração, que deve, por essa razão, arcar com o ônus econômico-financeiro dessa redistribuição.
É dizer: a Administração jamais procederá à redistribuição de um servidor público se não for do interesse administrativo, não podendo — e a jurisprudência pátria é pacífica nesse sentido — ser compelida a redistribuir um servidor (para tanto, existem outros institutos aplicáveis e oponíveis à Administração, como a remoção para acompanhar cônjuge e a licença por motivo de afastamento de cônjuge, com exercício provisório, por exemplo).
Naturalmente, existem situações em que o interesse da Administração e o do servidor estão alinhados no sentido da redistribuição (o que é até desejável, já que torna o deslocamento legítimo e mitiga o risco de desgaste interno no serviço público). Entretanto, este alinhamento não é requisito para a redistribuição, bastando, entre eles, apenas o interesse da Administração, de sorte que a redistribuição promovida após a solicitação do próprio servidor não tem o potencial de descaracterizá-la como uma medida administrativa efetivamente adotada no interesse da Administração — e, como tal, portadora de consequências que impactam a esfera jurídica dos servidores.
Assim, a supressão do pagamento mensal da URP de fevereiro de 1989 dos servidores públicos redistribuídos da Universidade de Brasília (UnB) viola, a um só tempo, os princípios da confiança, da legítima expectativa, da boa-fé e da segurança jurídica — uma vez que esses servidores públicos, munidos de boa-fé, supuseram, desde o princípio, que a redistribuição a que se submetiam corresponderia àquela positivada pelo artigo 37 da Lei n.º 8.112/1990, que estabelece requisitos e garantias em favor dos servidores públicos, a exemplo da equivalência de seus vencimentos.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski apreciou, ao menos em cinco ocasiões, no âmbito das Reclamações n.º 36.499/RN[8]STF. Ag. Reg. Emb. Decl. Recl. n.º 36.499/RN. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgado em: 08 mar. 2021., n.º 41.780/GO[9]STF. Ag. Reg. Recl. n.º 41.780/GO. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgado em: 15 mar. 2021., n.º 45.760/CE, n.º 45.828/GO[10]STF. Recl. n.º 45.760/CE. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgado em: 12 mar. 2021., n.º 46.478/MG [11]STF, Recl n.º 46.478 / MG, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, 5 de maio de 2021.e n.º 47.652/RJ[12]STF. Recl. n.º 47.652/RJ. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgado em: 30 jun. 2021., a questão da manutenção ou da supressão do pagamento da URP/1989 aos servidores públicos redistribuídos da Universidade de Brasília (UnB) para outras instituições de ensino superior públicas.
Nesses processos, decidiu-se que a supressão em questão afronta a autoridade da decisão liminar da Ministra Cármen Lúcia no âmbito do Mandado de Segurança n.º 28.819/DF, do mesmo modo que viola a garantia à irredutibilidade dos subsídios e dos vencimentos dos servidores públicos redistribuídos, positivada pelo artigo 37, XV, da Constituição de 1988 e pelo artigo 37, II, da Lei n.º 8.112/1990. Do mesmo modo, o ato administrativo que suprime o pagamento da verba vai de encontro aos princípios da confiança, da legítima expectativa, da boa-fé e da segurança jurídica, uma vez que é preciso que a redistribuição observe, sempre, o artigo 37, II, da Lei n.º 8.112/1990.
Destarte, assenta-se o entendimento de que os servidores públicos transferidos da Universidade de Brasília (UnB) para outras instituições federais de ensino têm o direito de continuar recebendo, após a sua redistribuição, o pagamento da URP de fevereiro de 1989, sem que esse pagamento seja, de qualquer forma, suprimido, suspenso ou interrompido, ao menos até o julgamento do mérito do Mandado de Segurança n.º 28.819/DF.
Referências[+]
↑1 | Eduardo Schiefler – Advogado no escritório Schiefler Advocacia. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019) e de artigos acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia. |
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↑2 | Matheus Dezan – Estagiário de Direito no escritório Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD|UnB). Editor Assistente da Editoria Executiva da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB). Membro do Grupo de Pesquisa certificado pelo CNPq Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA|UnB). Membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia (GEDE|UnB|IDP). Membro do Grupo de Pesquisa em Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (HDAPP|UniCeub). Monitor da disciplina “Direito Processual Civil 1”, ministrada pelo docente Marcus Flávio Horta Caldeira na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD|UnB). Monitor da disciplina “Direito Comercial 1”, ministrada pela docente Amanda Athayde na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD|UnB). |
↑3 | CPDOC. Verbete “Plano Bresser” do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/plano-bresser. Acesso em: 02 jul. 2021. |
↑4 | BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.335, 12 de junho de 1987. Dispõe sobre o congelamento de preços e aluguéis, reajustes mensais de salários e vencimentos, institui a Unidade de Referência de Preços (URP), e dá outras providências. Divisão de Orçamento, Finanças e Contabilidade (DOFC), Poder Executivo, Brasília, DF, 009214, 13 jun. 1987, p. 2. |
↑5 | BRASIL. Lei n.º 7.730, de 31 de janeiro de 1989. Institui o cruzado novo, determina congelamento de preços, estabelece regras de desindexação da economia e dá outras providências. Divisão de Orçamento, Finanças e Contabilidade (DOFC), Poder Executivo, Brasília, DF, 01 fev. 1989, p. 1745. |
↑6 | BRASIL. Lei n.º 8.112/1990, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 19 abr. 1991, p. 1. |
↑7 | BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 05 out. 1988, p. 1. |
↑8 | STF. Ag. Reg. Emb. Decl. Recl. n.º 36.499/RN. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgado em: 08 mar. 2021. |
↑9 | STF. Ag. Reg. Recl. n.º 41.780/GO. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgado em: 15 mar. 2021. |
↑10 | STF. Recl. n.º 45.760/CE. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgado em: 12 mar. 2021. |
↑11 | STF, Recl n.º 46.478 / MG, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, 5 de maio de 2021. |
↑12 | STF. Recl. n.º 47.652/RJ. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgado em: 30 jun. 2021. |
Se o campo geral das licitações e contratações públicas pode(e deve) se modificar com as interpretações sobre a Lei nº 14.133/2021, é possível que o microssistema especial das estatais também possa sofrer uma influência reflexa - abrindo-se aqui, possivelmente, o espaço para a aplicação subsidiária ou para analogia nos casos de lacunas a serem preenchidas na aplicação.
Com a publicação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, promulgada no dia 1º de abril de 2021 sob o número 14.133, significativas mudanças são realizadas neste campo do direito administrativo brasileiro, em todos os âmbitos das Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, positivando entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, mas também trazendo inovações práticas que deverão ser levadas em consideração pelos gestores públicos e pelos particulares interessados em contratar com o Poder Público (confira aqui as três novidades que você precisa conhecer sobre a Lei nº 14.133/2021).
Dada a sua vasta abrangência, é legítimo que surja a dúvida se o novo diploma se aplica às estatais e, em caso afirmativo, de que modo afetaria suas licitações e seus contratos administrativos.
Antes de se buscar a resposta, é preciso entender o que são as chamadas estatais e a que regime jurídico estão submetidas no direito administrativo pátrio. Atualmente, a expressão [empresas] estatais é utilizada na doutrina para se referir de modo geral a qualquer das entidades empresariais regidas pela Lei nº 13.303/2016. Conforme o caput do seu art. 1º, estas entidades são as empresas públicas e as sociedade de economia mista e suas subsidiárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos. Não é por outra razão que a Lei nº 13.303/2016 é a chamada de Lei das Estatais e, desde a sua promulgação, tem regido, na condição de estatuto especial, as licitações e os contratos administrativos realizados por essas entidades.
Assim, considerando a preexistência do regime jurídico específico da Lei nº 13.303/2016, a Lei nº 14.133/2021 oferece à questão que serve de título a este artigo uma resposta preliminar já no seu art. 1º, § 1º, o qual determina que “Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.”
O fato de a nova Lei de Licitações ter distinguido o regime jurídico das estatais encontra, de certo modo, explicação no caráter da Lei nº 13.303/2016. Como se percebe, a Lei das Estatais é especial, isto é, prescreve regime próprio de licitações e contratos para estas entidades, que já se sobrepunha ao regime tradicional de licitações, anteriormente baseado na Lei nº 8.666/93 (normas para licitações e contratos administrativos), na Lei nº 10.520/02 (modalidade pregão) e na Lei nº 12.462/12 (Regime Diferenciado de Contratações – RDC). A nova Lei de Licitações, neste sentido, respeitou a especialidade da Lei nº 13.303/2016.
Contudo, em que pese o seu caráter especial, a Lei das Estatais prevê, explicitamente, três casos de aplicação de dispositivos normativos que devem ser encontrados alhures. Com efeito, o art. 32, inciso IV, da Lei nº 13.303/2016 estabelece que:
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes:
[…]IV – adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.
Por meio do artigo e inciso supracitados, a Lei das Estatais determina que, para a aquisição de bens e serviços comuns, deve-se adotar preferencialmente o pregão como modalidade de licitação. Contudo, destaca-se o entendimento doutrinário predominante segundo o qual a adoção da modalidade pregão pelas estatais se limita aos aspectos procedimentais, não excluindo a observância da Lei nº 13.303/2016 no que diz respeito aos demais aspectos substanciais do rito licitatório e do contrato.
Ao revogar expressamente a Lei nº 10.520/2002 (após decorridos dois anos da sua publicação oficial), a nova Lei de Licitações substitui a Lei do Pregão na regência desta modalidade, determinando, pelo comando do seu art. 189, que a Lei nº 14.133/2021 seja aplicada às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002, e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011. Como consequência, sendo o caso da adoção do pregão como modalidade de licitação pelas estatais, o regime a ser aplicado será o da nova Lei de Licitações. Essa circunstância faz surgir a questão de saber qual será o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o alcance da sua aplicabilidade, isto é, permanecerá limitado ao procedimento? Tal questão, provavelmente, será objeto de debates nos tribunais.
O segundo caso em que se vê mitigada a especialidade da Lei das Estatais é o previsto no seu art. 55, inciso III, que determina a adoção de critérios de desempate estabelecidos na Lei nº 8.666/1993. Veja-se:
Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate:
[…]III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Como a Lei nº 8.666/1993 também será revogada pela nova Lei de Licitações após decorridos dois anos da sua publicação oficial, os seus critérios de desempate se tornarão inaplicáveis e serão tacitamente substituídos pelos que são estabelecidos no § 1º do art. 60 da Lei nº 14.133/2021. Esta substituição promoverá algumas mudanças, notadamente em razão dos incisos I e IV do referido parágrafo, a saber: dar-se-á preferência para empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante ou, no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no território do Estado em que este se localize (inciso I); e para empresas que comprovem a prática de mitigação relativa à Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC, nos termos da Lei nº 12.187/2009 (inciso IV). Além disso, o inciso V do § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993, que assegurava preferência aos bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação, não é reproduzido na nova Lei de Licitações como critério de desempate, mas como exigência da fase de habilitação (art. 63, inciso IV).
A terceira remissão da Lei das Estatais encontra-se em seu art. 41, segundo o qual “Aplicam-se às licitações e contratos regidos por esta Lei as normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”.
Resta averiguar, então, o efeito do disposto no art. 178 Lei nº 14.133/2021. Este artigo acrescenta ao Código Penal os artigos 337-E a 337-P, sob o Capítulo II-B – Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos, transferindo para o códex próprio os dispositivos penais que integravam a Lei nº 8.666/1993, porquanto revogou expressa e imediatamente os seus artigos 89 a 108. Como consequência, o regime disciplinar penal aplicável à Lei das Estatais se encontra doravante no Código Penal, perdendo efeito o art. 41 da Lei nº 13.303/2016, o qual determinava a aplicação às licitações e contratos regidos por esta lei das normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666/1993. A mudança, porém, não se limita a este aspecto formal, pois este regime disciplinar sofreu algumas alterações de natureza material.
Isto se evidencia pela comparação dos novos tipos penais criados no Código Penal pela Lei nº 14.133/2021 com os correspondentes dispositivos revogados na Lei nº 8.666/1993, que revela, à primeira vista, uma continuidade normativo-típica, porém, com alterações nos preceitos secundários, mediante cominações mais gravosas e a substituição do regime de detenção pelo de reclusão.
A mudança mais vistosa consiste, portanto, no aumento do rigor punitivo, que tem consequências relevantes. Vejamos, por exemplo, os novos artigos 337-E e 337-L do Código Penal. Eles correspondem respectivamente aos revogados artigos 89 e 96 da Lei nº 8.666/1993, e previam penas de detenção de 3 (três) a 5 (cinco) anos e multa, e de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa, respectivamente. Além de promoverem mudanças na tipificação para ampliar a sua abrangência, os novos artigos mudaram a sua cominação, não somente substituindo a detenção pela reclusão, mas também majorando em um ano o tempo mínimo da pena de privação de liberdade, que passou a ser, para ambos os tipos penais, 4 (quatro) anos.
As consequências são relevantes. Em primeiro lugar, verifica-se o recrudescimento da punição, pois a pena de reclusão é reservada para condenações mais severas, sendo geralmente cumprida em estabelecimentos de segurança média ou máxima, permitindo o início do seu cumprimento em regime fechado. Em segundo lugar, com o aumento da pena mínima para 4 (quatro) anos, os artigos 337-E e 337-L impedem a celebração de acordos de não persecução penal, uma vez que o art. 28-A do Código de Processo Penal autoriza o Ministério Público a propor tal medida despenalizadora apenas em casos de “prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”.
Outra alteração digna de atenção no regime disciplinar penal doravante aplicável automaticamente a todas as licitações e contratos administrativos afeta diretamente o sistema de cálculo das multas cominadas. De fato, revogou-se o art. 99 da Lei nº 8.666/1993, que determinava o pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base devia corresponder ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente. Estes índices, porém, estavam limitados pelo disposto no parágrafo 1º, não podendo ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. Já o novo art. 337-P do Código Penal estabelece que a multa cominada aos crimes em licitações e contratos administrativos seguirá a metodologia de cálculo prevista neste Código, mantendo-se o limiar de 2% (dois por cento) sobre o valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta, sem, contudo, estipular um teto próprio, aplicando-se, porém, o limite máximo previsto no art. 49 do Códex Criminal.
Nem tudo, porém, é releitura do sistema disciplinar penal precedente. Há um tipo penal completamente novo, introduzido pelo artigo 337-O, que visa coibir a frustração do caráter competitivo da licitação ou da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Atente-se para o dispositivo do § 2º, que determina que a pena prevista no caput do artigo se aplica em dobro se o crime for praticado com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem.
Estas considerações nos permitem afirmar, por fim, que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos afeta as estatais, pelo menos, de três modos. Em primeiro lugar, sendo o caso da adoção do pregão como modalidade de licitação pelas estatais, a lei de regência para este procedimento passa a ser a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Em segundo lugar, os critérios de desempate que devem ser observados nos procedimentos licitatórios das empresas estatais estabelecidos § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993 serão substituídos pelos do § 1º do art. 60 da Lei nº 14.133/2021, com inovações referentes ao local de estabelecimento das concorrentes e à observância da Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC. E em terceiro lugar, o sistema disciplinar penal aplicável às estatais, que antes da publicação da Lei nº 14.133/2021, se encontravam, com remissão expressa, na Lei nº 8.666/1993, a partir de 1º de abril de 2021 se integram ao Código Penal, aplicando-se indiscriminadamente às licitações e contratos administrativos, pouco importando o seu regime jurídico. Além dessa alteração de cunho formal, verifica-se que, do ponto de vista material, ao proceder à sua transferência para o Código Penal, a Lei nº 14.133/2021 promoveu, de modo geral, um endurecimento do regime disciplinar penal, buscando, ao que tudo indica, responder a um anseio social de combate à corrupção.
Embora essas sejam as três únicas remissões expressas da Lei das Estatais aos antigos diplomas gerais de licitações, há que se ponderar que sendo a Lei nº 14.133/2021 um novo diploma geral, todo o léxico de licitações e contratações públicas passa a encontrar um novo fundamento legal “de base” neste mais recente diploma. Assim, há que se cogitar que a interpretação da Lei das Estatais poderá sofrer influência das interpretações futuras da Lei nº 14.133/2021. Em outras palavras, se o campo geral das licitações e contratações públicas pode (e deve) se modificar com as interpretações sobre a Lei nº 14.133/2021, é possível que o microssistema especial das estatais também possa sofrer uma influência reflexa – abrindo-se aqui, possivelmente, o espaço para a aplicação subsidiária ou para analogia nos casos de lacunas a serem preenchidas na aplicação.
Afora essas três modificações que possuem previsão de eficácia ou imediata ou para daqui a dois anos, portanto, resta ainda saber se e como a nova Lei de Licitações influenciará o regime especial de licitações e contratações das estatais. Essas, no entanto, são questões que serão respondidas pela doutrina, pelos tribunais e pelos operadores do Direito em geral – todos no seu devido tempo.
Read MoreOs argumentos do escritório Schiefler Advocacia foram acolhidos pela decisão liminar em razão da preterição dos aprovados em concurso público por comissionados e terceirizados.
Na última sexta-feira (25/06/2021), a 14ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo (TJSP) determinou à Prefeitura de São Paulo a nomeação de 7 arquitetos aprovados no concurso de QEAG. A decisão foi proferida pelo Juiz Randolfo de Campos que, em sede liminar, acatou os argumentos apresentados pelo escritório Schiefler Advocacia e reconheceu a preterição arbitrária e imotivada dos candidatos aprovados em concurso público em decorrência de contratação sistemática de comissionados e terceirizados para desempenho das funções típicas do cargo de QEAG, na especialidade de arquitetura.
O concurso público foi lançado pela Prefeitura de São Paulo em outubro de 2018 e previa nomeação imediata de 58 arquitetos para o Quadro de Profissionais de Engenharia, Arquitetura, Agronomia e Geologia (QEAG). Ocorre que, mesmo com o andamento regular e homologação do certame em agosto de 2019 e a solicitação de mais de uma centena de nomeações pelas Secretarias Municipais, todas recusadas pela Prefeitura, os candidatos aprovados não foram convocados para assumir o cargo. Diante da evidente demanda por estes profissionais sem as devidas nomeações e de indícios da contratação reiterada de comissionados para desempenho destas funções, o caso tomou repercussão e foi, inclusive, noticiado pela imprensa em fevereiro desde ano.
Diante disto, os candidatos aprovados propuseram ação judicial para ter seu direito à nomeação devidamente reconhecido, uma vez que há provas do preenchimento dos cargos efetivos por comissionados e terceirizados, prática ilícita que configura a preterição dos concursados, nos termos do Tema nº 784 do STF.
A partir da análise da extensa documentação apresentada a fim de provar as irregularidades cometidas pela Prefeitura de São Paulo, a 14ª Vara da Fazenda Pública reconheceu o direito dos autores e determinou a nomeação de sete arquitetos em até 30 dias. Nas palavras do Juiz Randolfo de Campos, “tamanha é a preterição arbitrária e imotivada que vem sendo levada a efeito pelo Município que, numa análise perfunctória, é possível afirmar que a totalidade dos candidatos aprovados dentro do número de vagas para o cargo de arquiteto do QEAG no concurso regido pelo Edital n. 00/2018 têm direito à nomeação imediata.”
A decisão, que determinou a nomeação dos candidatos aprovados dentro do número de vagas, bem como vedou que a Prefeitura de São Paulo nomeie novos comissionados e firme novos contratos cujo objeto contemple as funções do cargo de QEAG, na especialidade de arquitetura, causou nova repercussão na imprensa.
Em notícia publicada no portal G1, foi divulgada a determinação de integração dos arquitetos aos quadros da prefeitura e as reconhecida irregularidades cometidas pela municipalidade. Nela, foi destacada a decisão de que “a ocupação precária, por comissão, terceirização, ou contratação temporária, de atribuições próprias do exercício de cargo efetivo vago, para o qual há candidatos aprovados em concurso público vigente, configura ato administrativo eivado de desvio de finalidade” e, por consequência, os candidatos devem ser imediatamente nomeados.
A decisão proferida no processo nº 1033732-58.2021.8.26.0053 representa uma vitória para os candidatos que, desde a aprovação no concurso, constatavam que terceirizados e comissionados atuavam como se arquitetos da Prefeitura fossem, mesmo sem aprovação no concurso. Enquanto isso, eles, que se submeterem a um acirrado certame com milhares de candidatos, tinham a nomeação solicitada pelas Secretarias e recusada pela Prefeitura com o argumento de que não havia recursos orçamentários – embora, como reconheceu o juízo, “a nomeação dos servidores concursados poderá reduzir os gastos que o Município atualmente realiza na contratação de empresas de engenharia e arquitetura”.
Agora se aguarda o cumprimento da decisão pela Prefeitura de São Paulo, que tem 30 dias para realizar a nomeação dos sete autores da ação beneficiados com a decisão liminar.
Em entrevista ao 'Brasil de Fato', a advogada falou sobre a ilegalidade nas contratações reiteradas de comissionados durante a vigência do concurso público.
