Se a Administração Pública deixar de pagar por mais de 90 dias, a empresa contratada não precisa de autorização judicial para suspender a execução das suas obrigações contratuais.
Enunciado 6 – O atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional.
As licitações e contratos administrativos firmados pela Administração Pública direta e por parcela[1] da Administração indireta são regidos, regra geral, pela Lei Federal nº 8.666/1993, que estabelece normas gerais pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Esta Lei prevê, em seu artigo 78, diversas hipóteses que constituem motivo para a rescisão do contrato administrativo celebrado com a Administração Pública. Para o que interessa ao assunto que se está abordando, vale transcrever in verbis o inciso XV do artigo 78:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
[…]
XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;
A regra é clara: se o Poder Público não cumprir com a contraprestação financeira acordada em contrato, por mais de 90 dias, a empresa contratada está autorizada a rescindir o contrato, o que só pode ser realizado por decisão judicial, ou a suspender o cumprimento das suas obrigações, ou seja, autoriza-se a suspensão do contrato até o cumprimento por parte da Administração. Este dispositivo trata de ferramenta extremamente valiosa para as empresas contratadas, as quais estão situadas em uma posição de fragilidade jurídica em comparação às prerrogativas da Administração em matéria de contrato administrativo.
A bem da verdade, o artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993 positiva e atrai ao campo das licitações e contratos administrativos a oponibilidade da exceção do contrato não cumprido, também conhecida como exceptio non adimpleti contractus.
Em matéria de direito privado, esta hipótese está prevista nos artigos 476 e 477 do Código Civil[2], os quais vedam a possibilidade de que algum dos contratantes exija, antes de cumprida a sua obrigação, o implemento da do outro. Já no que toca ao campo dos contratos administrativos, MARÇAL JUSTEN FILHO entende que “A exceptio non adimpleti contractus adquire configuração específica no campo dos contratos administrativos”, sendo admitida a recusa do contratado em desempenhar as suas obrigações “quando a Administração incorrer em atraso superior a noventa dias do pagamento de obras, serviços ou fornecimento já realizados (art. 78, XV)”[3].
Por óbvio, a hipótese de rescisão/suspensão contratual ventilada não é aplicada sem que haja controvérsia sobre os seus efeitos e, especialmente, sobre a possibilidade de que a empresa contratada simplesmente decida, proativamente, suspender a execução das suas obrigações contratuais.
Com o objetivo de trazer mais clareza a esse instituto, tão importante para fortalecer a segurança jurídica no âmbito dos contratos administrativos e evitar que os contratados sejam obrigados a manter execução contratual em franco prejuízo, este tema foi objeto de discussão na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, tendo sido aprovado o Enunciado 6 com o seguinte teor:
Enunciado 6
O atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional.
De acordo com o texto do enunciado aprovado, que repete em boa parte o conteúdo do dispositivo legal, um detalhe, que já foi objeto de controvérsia, torna-o importante ferramenta para tornar mais clara e efetiva a incidência da hipótese do inciso XV do artigo 78 da Lei nos casos concretos: a prescindibilidade de que a empresa contratada obtenha autorização judicial para suspender o cumprimento das suas obrigações contratuais.
Ao que parece, o Enunciado 6 busca consolidar ainda mais o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no paradigmático julgamento do REsp nº 910.802/RJ, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, segundo o qual a Lei nº 8.666/1993 não exige a obtenção de provimento jurisdicional para que o contrato esteja autorizado a optar pela suspensão da execução contratual. Confira-se:
[…] 4. Com o advento da Lei 8.666/93, não tem mais sentido a discussão doutrinária sobre o cabimento ou não da inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a Administração, ante o teor do art. 78, XV, do referido diploma legal. Por isso, despicienda a análise da questão sob o prisma do princípio da continuidade do serviço público.
5.Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito.
6.Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido.
(STJ, REsp 910.802/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/06/2008)
Como era de se esperar, tendo em vista a função do STJ de uniformizar as interpretações dos Tribunais brasileiros atinentes à legislação federal, este acórdão balizou o entendimento de que o provimento jurisdicional é desnecessário nessas hipóteses. Cita-se como exemplo mais um julgado do STJ, que faz referência expressa ao REsp nº 910.802/RJ:
[…] 10. O Superior Tribunal de Justiça consagra entendimento no sentido de que a regra de não-aplicação da exceptio non adimpleti contractus, em sede de contrato administrativo, não é absoluta, tendo em vista que, após o advento da Lei 8.666/93, passou-se a permitir sua incidência, em certas circunstâncias, mormente na hipótese de atraso no pagamento, pela Administração Pública, por mais de noventa dias (art. 78, XV). A propósito: AgRg no REsp 326.871/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 20.2.2008; RMS 15.154/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 2.12.2002. Além disso, não merece prosperar o fundamento do acórdão recorrido de que as empresas necessitariam pleitear judicialmente a suspensão do contrato, por inadimplemento da Administração Pública. Isso, porque, conforme bem delineado pela Ministra Eliana Calmon no julgamento do REsp 910.802/RJ (2ª Turma, DJe de 6.8.2008), “condicionar a suspensão da execução do contrato ao provimento judicial, é fazer da lei letra morta”. […]
11.Recurso especial parcialmente provido, apenas para afastar a multa aplicada em sede de embargos declaratórios.
(STJ, REsp 879.046/DF, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/05/2009, DJe 18/06/2009)
A jurisprudência dos demais Tribunais brasileiros está consoante o entendimento do STJ, como se verifica, exemplificativamente, da seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), que afastou multa imposta à empresa contratada pela Administração por ter interrompido a execução das suas obrigações:
[…] 3. O art. 78, inciso XV, da Lei 8.666/93 é claro ao consignar que é motivo de rescisão do contrato o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração, assegurando ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação.
4.Restando demonstrado que houve a entrega dos materiais médico-hospitalares pela apelada, conforme contratado, e que o atraso no pagamento, em período superior a 90 dias, se deu por responsabilidade exclusiva da Administração Pública, impõe-se o afastamento da multa aplicada, devendo ser restituída a glosa da fatura de pagamento pela medicação fornecida.
5.Não há necessidade de pronunciamento jurisdicional para suspensão de fornecimento de insumos à Administração Pública. No caso em análise, no mesmo dia em que foi recebida a nota de emprenho, a fornecedora notificou extrajudicialmente o Distrito Federal quanto à impossibilidade de cumprir com o prazo devido ao inadimplemento do ente estatal.
6.Recurso conhecido e desprovido. Sentença mantida.
(TJ-DF 07058804220198070018 DF 0705880-42.2019.8.07.0018, Relator: ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO, Data de Julgamento: 27/05/2020, 5ª Turma Cível)
Os demais Tribunais brasileiros caminham no mesmo sentido, como se vê dos julgados dos Tribunais de Justiça dos Estados de Santa Catarina (TJSC), no qual se reconheceu que “Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito” (MS 4006820-94.2018.8.24.0000, julgado em 21/05/2013), e do Rio de Janeiro (TJRJ), que reconheceu que “PODE O CONTRATADO, LICITAMENTE, SUSPENDER A EXECUÇÃO DO CONTRATO, SENDO DESNECESSÁRIA, NESSA HIPÓTESE, A TUTELA JURISDICIONAL PORQUE O ART. 78, XV, DA LEI 8.666/93 LHE GARANTE TAL DIREITO” (AI: 00508620920198190000, , Data de Julgamento: 11/02/2020).
Sobre o tema, são esclarecedores os ensinamentos de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, a qual reconhece a licitude da suspensão contratual na hipótese em que a Administração não proceda ao pagamento em prazo superior a 90 dias:
A Lei nº 8.666/93 previu uma hipótese em que é possível, com critério objetivo, saber se é dado ou não ao particular suspender a execução do contrato. Trata-se da norma do artigo 78, inciso XV, segundo a qual constitui motivo para rescisão do contrato “o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimentos, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação”.
Isto significa que, ultrapassados os 90 dias sem que a Administração efetue os pagamentos em atraso, é dado ao contratado, licitamente, suspender a execução do contrato.[4]
Assim, é de se observar que a doutrina caminha no sentido de que a obtenção de provimento jurisdicional não é requisito indispensável para que o contratado oponha a exceção de contrato não cumprido.
Nesse sentido, a tese fixada no Enunciado 6 aprovado na Jornada pacifica o entendimento de que, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro (legislação, jurisprudência e doutrina), a empresa contratada está autorizada a suspender a execução das suas obrigações contratuais quando a Administração Pública deixar de realizar o pagamento devido por mais de 90 dias, sem que, para tanto, precise obter provimento jurisdicional.
[1] As licitações e contratos pertinentes às empresas públicas e às sociedades de economia mista são reguladas pela Lei Federal nº 13.303/2016, o que, todavia, não impede a aplicação do Enunciado 6 aos contratos regidos por esta norma.
[2] Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 559.
[4] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
Read MoreA consolidação do entendimento por meio de enunciado foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
Enunciado 5 – O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A Lei nº 13.019/2014, também conhecida como o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, é a norma legal que dispõe sobre as relações de parceria entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil – OSC e que estabelece os parâmetros que devem ser observados pelos entes públicos e privados, em prol de atribuir às parcerias uma maior transparência, eficiência e controle.
Como se vê do seu artigo 1º, esta Lei se presta a instituir “normas gerais para as parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação.”.
Do artigo 2º da norma, é possível observar uma série de conceitos atinentes à matéria, buscando delimitar com acurácia as definições e institutos que são legalmente regulados. Por exemplo, o conceito de organização da sociedade civil: que é fundamental para a compreensão deste texto e que está previsto no inciso I do artigo 2º, in verbis:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
I – organização da sociedade civil: (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999 ; as integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à pobreza e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social. (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
Acontece que, como é comum no Direito brasileiro, muitos conceitos constantes de dispositivos normativos, pela amplitude semântica de sua redação, são responsáveis por causar debates jurisprudenciais e acadêmicos sobre a forma considerada correta de interpretá-los.
Não é diferente com a definição trazida pelo artigo 2º, inciso IV, sobre quem deve ser considerado “dirigente” de uma OSC:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
IV – dirigente: pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil, habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
Veja-se que o atual conceito trazido pela Lei nº 13.019/2014 é aquele definido pela alteração imposta pela Lei nº 13.204/2015. Anteriormente, quando da edição do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, o inciso IV do artigo 2º era simplório, prevendo apenas que é considerado dirigente a “pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil”.
Ou seja, com a adição textual da alteração normativa, detalhou-se o conceito para evidenciar que dirigente é a pessoa que, tendo poderes de administração, gestão ou controle, está “habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros”.
Contudo, a controvérsia conceitual ainda persistiu, residindo principalmente na possibilidade de se considerar membros de alguns órgãos específicos das organizações da sociedade civil (como os Conselhos Consultivo, Fiscal ou Curador) como “dirigentes” para fins da Lei nº 13.019/2014. Esta tese, inclusive, tornava-se ainda mais forte nas hipóteses em que o próprio estatuto social da OSC define como “dirigentes” os membros desses conselhos.
Em razão da importância do assunto, este tema foi proposto para discussão no âmbito da 1ª Jornada de Direito Administrativo do Conselho de Justiça Federal, tendo sido aprovado e publicado como o Enunciado 5:
Enunciado 5
O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
O texto enunciativo foi aprovado após intensos debates por especialistas em Direito Administrativo provenientes de todo o Brasil, de forma que entrou-se em consenso de que a definição de “dirigentes de organização da sociedade civil, estabelecido pelo artigo 2º, inciso IV, da Lei nº 13.019/2014, diz respeito àqueles profissionais com atuação efetiva na gestão executiva da entidade, não abarcando profissionais que exerçam funções meramente fiscalizadoras ou consultivas, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A consolidação do entendimento por meio de enunciado aprovado na 1ª Jornada de Direito Administrativo foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
A importância da segurança jurídica, especificamente quanto ao que versa o Enunciado 5, pode ser aferida dos ensinamentos de Marçal Justen Filho, segundo o qual a atuação das OSC deve ser regulada pelas regras do Direito Administrativo:
As atividades administrativas desenvolvidas fora dos limites da estrutura estatal devem ser disciplinadas pelo direito. A generosidade inerente à atuação não estatal de interesse coletivo não dispensa controle jurídico. A relevância da função não produz imunidade ao direito.
Existindo organizações estruturadas de modo estável e permanente para promover a satisfação de interesses coletivos e os direitos fundamentais, haverá a aplicação de princípios do direito administrativo.
Lembre-se, ademais, que as organizações da sociedade civil desenvolvem atuação que, muitas vezes, é onerosa – mas não na acepção de refletir uma organização empresarial privada. Trata-se da percepção de vantagens provenientes de cofres públicos, de recebimento de doações e assim por diante. Ainda que essas entidades não visem ao lucro, sua atuação é custeada por recursos públicos e privados. A gestão desses recursos se sujeita aos mesmos instrumentos de controle aplicáveis à atuação estatal.
Até é possível que, no futuro, a atividade administrativa não estatal seja disciplinada por um ramo especial do direito. Até que tal se configure, é necessário estender o direito administrativo para esse relevante segmento de atividades de interesse coletivo.[1]
A exata delimitação dos indivíduos que pertencem ao quadro das organizações da sociedade civil é relevante, também, porque a própria Lei nº 13.019/2014 prevê impedimentos de celebração de parceria entre Administração e OSC nos casos em que a entidade possuir, como dirigente, pessoa que ocupa determinados cargos ou que foi condenada pela prática de determinados atos. É o que dispõe o artigo 39:
Art. 39. Ficará impedida de celebrar qualquer modalidade de parceria prevista nesta Lei a organização da sociedade civil que: […]
III – tenha como dirigente membro de Poder ou do Ministério Público, ou dirigente de órgão ou entidade da administração pública da mesma esfera governamental na qual será celebrado o termo de colaboração ou de fomento, estendendo-se a vedação aos respectivos cônjuges ou companheiros, bem como parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o segundo grau; […]
VII – tenha entre seus dirigentes pessoa:
a) cujas contas relativas a parcerias tenham sido julgadas irregulares ou rejeitadas por Tribunal ou Conselho de Contas de qualquer esfera da Federação, em decisão irrecorrível, nos últimos 8 (oito) anos;
b) julgada responsável por falta grave e inabilitada para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, enquanto durar a inabilitação;
c) considerada responsável por ato de improbidade, enquanto durarem os prazos estabelecidos nos incisos I, II e III do art. 12 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.
§ 1º Nas hipóteses deste artigo, é igualmente vedada a transferência de novos recursos no âmbito de parcerias em execução, excetuando-se os casos de serviços essenciais que não podem ser adiados sob pena de prejuízo ao erário ou à população, desde que precedida de expressa e fundamentada autorização do dirigente máximo do órgão ou entidade da administração pública, sob pena de responsabilidade solidária.
§ 2º Em qualquer das hipóteses previstas no caput, persiste o impedimento para celebrar parceria enquanto não houver o ressarcimento do dano ao erário, pelo qual seja responsável a organização da sociedade civil ou seu dirigente. […]
§ 5º A vedação prevista no inciso III não se aplica à celebração de parcerias com entidades que, pela sua própria natureza, sejam constituídas pelas autoridades referidas naquele inciso, sendo vedado que a mesma pessoa figure no termo de colaboração, no termo de fomento ou no acordo de cooperação simultaneamente como dirigente e administrador público
O tema se torna ainda mais essencial quando se verifica que o Tribunal de Contas da União (TCU) possui entendimento consolidado de que é plenamente válida a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. É o que se verifica do Acórdão nº 1908/2019 do Plenário:
2. A tomada de contas especial foi instaurada em razão da omissão no dever de prestar contas da aplicação dos recursos que lhe foram repassados pelo Incra por força do Convênio CRT/RN/40.000/2006, que teve por objeto a prestação de assessoria social, técnica e jurídica a famílias acampadas, com vistas ao alcance das metas propostas no Plano Regional de Reforma Agrária para o Rio Grande do Norte.
3. Em sua peça recursal, o recorrente alega, em suma, a prescrição da pretensão de ressarcimento, questiona a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil e apresenta elementos novos com o objetivo de prestar contas e comprovar a execução das despesas (peças 62/73). […]
14. Da mesma forma, não merece prosperar o argumento de que é inconstitucional a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. Esta Corte de Contas já firmou entendimento contrário por meio da Súmula TCU 286, que assim se pronuncia: “A pessoa jurídica de direito privado destinatária de transferências voluntárias de recursos federais feitas com vistas à consecução de uma finalidade pública responde solidariamente com seus administradores pelos danos causados o erário na aplicação desses recursos”.[2]
Voltando-se ao conteúdo Enunciado 5, é de se notar que a sua redação repete como elemento caracterizador da figura do “dirigente” o exercício de atividades de administração, gestão e controle da organização, além dos poderes de representação da pessoa jurídica perante terceiros, exigindo que o profissional possua esses poderes para que lhe seja atribuído a roupagem da referida figura legal.
Nesse sentido, é ínsito apontar que a Lei decidiu por caracterizar o dirigente a partir do escopo das funções executivas a que esse se dedica, esclarecendo que o dirigente da OSC, nos termos da Lei, corresponde àquele profissional que é responsável pela administração, gestão e controle executivo da entidade, não abrangendo outros cargos que exerçam funções substancialmente distintas.
Essa definição, inclusive, está em conformidade com o entendimento da Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP e com o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), que definem, respectivamente, o dirigente como “pessoa física que detenha poderes de administração, gestão e controle da organização da sociedade civil”[3] e “pessoas que serão responsáveis pela direção da associação”[4].
Logo, conclui-se que quaisquer cargos de órgãos das organizações de sociedades civis que não exerçam atividades de gestão executiva estão fora do espectro conceitual de “dirigentes”, ainda que essa seja a designação atribuída pelo estatuto dessas entidades.
Como a Lei escolheu definir o dirigente pelo escopo das funções que este realiza, pouco importa o nome atribuído pelo estatuto a algum cargo de um órgão meramente fiscalizador ou consultivo, sendo determinante, para fins legais, apenas a capacidade de poder executivo e de representação que determinado cargo atribui, na prática, a um profissional dentro da estrutura da organização da sociedade civil.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 129-130.
[2] TCU, Acórdão nº 1908/2019, Plenário. Relator: ANA ARRAES, Data de Julgamento: 14/08/2019.
[3] OAB/SP, Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor. Guia Prático da Lei de Parcerias: Lei nº 13.019/2014. Outubro de 2017. p. 13.
[4] TCE/SP. Manual Básico de Repasses Públicos ao Terceiro Setor. Ano 2016. p. 20. Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/publicacoes/repasses_publicos_terceiro_setor.pdf. Acesso em 23 out. 2020.
Read MoreAinda que exista norma infraconstitucional limitando a jornada semanal para a acumulação de cargos públicos, a regularidade da acumulação depende apenas da compatibilidade de horários.
É de conhecimento comum que, em regra, os cargos públicos são inacumuláveis. Trata-se de restrição imposta pelo inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal, segundo o qual só é possível uma mesma pessoa ocupar um único cargo, sendo que, para ocupar outro, faz-se necessário a sua exoneração do anterior.
Leia-se o referido inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[…]
XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;
A leitura do dispositivo, portanto, não deixa dúvidas sobre a impossibilidade de acumulação de cargos públicos, assim como estabelece uma exceção que, a princípio, também seria de interpretação fácil. No entanto, a exceção permitida pela Constituição recebe contornos não tão simples na prática administrativa.
Como se depreende dos grifos conscientemente inseridos, o inciso XVI do artigo 37 estabelece somente dois critérios gerais que devem ser respeitados: (i) estar entre as profissões dispostas no rol de alíneas do inciso XVI e, ao mesmo tempo, (ii) comprovar a compatibilidade de horários.
Ou seja, uma primeira interpretação – e que é a mais correta, como se verá – leva a crer que é irrelevante o fato de que a jornada semanal do indivíduo que ocupa dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, quando somadas, perfaz mais de 60 horas: basta que seja demonstrada a compatibilidade de horários.
Acontece que, como dito, a aplicação prática da exceção trazida pelo texto constitucional não é tão simples como aparenta ser na teoria. E é por essa razão que, há muito tempo, o Poder Judiciário se debruça sobre o tema.
É o caso, por exemplo, do Recurso Especial nº 1767955/RJ, julgado em abril de 2019, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Pautado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), prevaleceu na Corte o entendimento de que o único requisito para a acumulação de “cargos acumuláveis” (de acordo com a Constituição, com o perdão da repetição) depende apenas da compatibilidade de horários. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS REMUNERADOS. ÁREA DA SAÚDE. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. REQUISITO ÚNICO. AFERIÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES DO STF. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. A Primeira Seção desta Corte Superior tem reconhecido a impossibilidade de acumulação remunerada de cargos ou empregos públicos privativos de profissionais da área de saúde quando a jornada de trabalho for superior a 60 (sessenta) horas semanais.
2. Contudo, ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, posicionam-se “[…] no sentido de que a acumulação de cargos públicos de profissionais da área de saúde, prevista no art. 37, XVI, da CF/88, não se sujeita ao limite de 60 horas semanais previsto em norma infraconstitucional, pois inexiste tal requisito na Constituição Federal” (RE 1.094.802 AgR, Relator Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 11/5/2018, DJe 24/5/2018).
3. Segundo a orientação da Corte Maior, o único requisito estabelecido para a acumulação é a compatibilidade de horários no exercício das funções, cujo cumprimento deverá ser aferido pela administração pública. Precedentes do STF.
4. Adequação do entendimento da Primeira Seção desta Corte ao posicionamento consolidado no Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
5. Recurso especial a que se nega provimento.[1]
O Tribunal de Contas da União (TCU) também segue o mesmo entendimento. Assim o foi ao decidir, em fevereiro de 2019, que “a questão da incompatibilidade de horários entre os cargos acumuláveis deve ser estudada caso a caso, sem a limitação objetiva de 60 horas semanais”:
9. De início, insta destacar que, com base na denominação dos cargos exercidos pelos interessados, a acumulação dessas ocupações é permitida. Tal situação encontra amparo na redação atual da alínea ‘c’, inciso XVI, do art. 37 da Constituição Federal de 1988, resguardada no período anterior à EC 19/98 pelo Art. 17, § 2º, do ADCT, uma vez que, tanto os cargos que os interessados exercem na União, quanto nas outras esferas, são privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.
10. No que concerne às respostas encaminhadas pela Unidade Jurisdicionada, verificou-se que as escalas de horários dos vínculos são compatíveis.
[…]
23. Desse modo, com base nos Acórdãos 1.338/2011-TCU-Plenário, de relatoria do Ministro Augusto Nardes, e 1.168/2012-TCU-Plenário, de relatoria do Ministro José Jorge, nos quais se firmou o entendimento de que a questão da incompatibilidade de horários entre os cargos acumuláveis deve ser estudada caso a caso, sem a limitação objetiva de 60 horas semanais, conclui-se que inexiste irregularidade nas admissões das interessadas.
24. Nota-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a exemplo dos julgamentos do MS 24.540/DF e do MS 26.085/DF, está alinhada às referidas decisões deste Tribunal, ou seja, a acumulação de cargos, para as situações permitidas constitucionalmente, está condicionada à compatibilidade de horários.
25. Portanto, com base no conjunto de verificações a que os atos foram submetidos não foi possível constatar qualquer óbice a apreciação pela legalidade, cabendo proposta para que sejam considerados legais.[2]
Ademais, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) pela inexistência de limitação de carga horária superior a 60 horas semanais, que já vinha sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Contas da União, foi reafirmado recentemente pela Suprema Corte, ocasião em que foi julgado o Tema 1081 de repercussão geral, referente à “Possibilidade de acumulação remunerada de cargos públicos, na forma do art. 37, inciso XVI, da Constituição Federal, quando há compatibilidade de horários”.
Do julgamento, fixou-se a tese de que “As hipóteses excepcionais autorizadoras de acumulação de cargos públicos previstas na Constituição Federal sujeitam-se, unicamente, a existência de compatibilidade de horários, verificada no caso concreto, ainda que haja norma infraconstitucional que limite a jornada semanal.”.
Ou seja, ainda que exista norma infraconstitucional (lei, decreto, resolução, portaria, etc.) limitando a jornada semanal para a acumulação de cargos públicos, a regularidade da acumulação depende apenas da compatibilidade de horários.
Depreende-se do exposto, portanto, que a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ), e também do TCU, permitem a acumulação de cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde nas hipóteses previstas no inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal, sem limitação de jornada semanal, bastando que o servidor demonstre a compatibilidade de horários.
[1] STJ, REsp 1767955/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/03/2019.
[2] TCU, Acórdão nº 1315/2019, Segunda Câmara, Relator Ministro André de Carvalho, julgado em 26/02/2019.
Read MoreÉ possível que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais, de modo que os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
A confidencialidade de informações da empresa estatal não pode acarretar prejuízo à ampla defesa do particular
Não é segredo que a Administração Pública brasileira está vinculada e deve ter a sua atuação alinhada com o ordenamento jurídico, em especial com o que dispõe o artigo 37 da Constituição Federal. Este dispositivo, ao prever o princípio da publicidade, impõe o caráter público dos atos e documentos administrativos como regra, e o sigilo como exceção.
Por este motivo, inclusive, o princípio da publicidade permeia todas as fases dos processos de contratação pública conduzidos pelos órgãos e entidades da Administração Pública brasileira, inclusive pelas empresas estatais.
Mas há uma peculiaridade relevante. No caso das empresas estatais, especialmente quando atuam em regime de livre mercado, ou seja, em concorrência com outros players do mercado, produzem informações cuja divulgação ao público pode afetar a sua governança corporativa, oferecer vantagens competitivas a outros agentes econômicos, ou ainda, impactar a competitividade de futuras licitações ou os interesses de acionistas minoritários. A legislação é sensível a esta questão e admite, em algumas hipóteses, a classificação de confidencialidade a informações de empresas estatais, vide, por exemplo, o artigo 22 da Lei de Acesso à Informação (Lei Federal nº 12.527/2011).
Especificamente no âmbito das contratações públicas, o regramento jurídico aplicável às empresas estatais também é mais permissivo em relação à sigilosidade de informações. Por exemplo, o artigo 34 da Lei Federal nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) estabelece, em caráter excepcional, o sigilo aos orçamentos estimados das licitações conduzidas pelas empresas estatais. Ou seja, nessa hipótese, a própria lei impõe o sigilo como regra, condicionando a publicidade do valor estimado do objeto da licitação à exigência de justificativa na fase de preparação. Inverte-se, portanto, a lógica tradicional de publicidade como regra nos processos de contratações públicas – e, em verdade, de toda a atividade administrativa.
A rigor, o principal motivo teórico que justificou a opção legislativa pela não divulgação do orçamento nas licitações empreendidas pelas empresas estatais refere-se a uma tentativa de evitar que os licitantes precifiquem as suas propostas de forma a orbitar o orçamento estipulado pela Administração, mitigando-se, assim, o risco de contratação por preços superiores ao valor de mercado. Mas questões relacionadas à governança corporativa da empresa e o impacto à competitividade de futuros certames também justificaram a criação desta regra.
Acontece que a possibilidade de que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais traz à tona um importante ponto que merece reflexão: os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
Isto é, o sigilo de informações produzidas pela empresa estatal nos processos de contratação pública empreendidos pode obstaculizar, de alguma forma, a defesa plena do licitante. Imagine-se, por exemplo, que a empresa estatal suspeita que determinado produto ou serviço foi oferecido com sobrepreço pelo licitante ou pela empresa já contratada, mas ao mesmo tempo se nega a revelar os documentos que embasam esta sua suspeita, que, se confirmada, poderá trazer obrigações de ressarcimento, ou mesmo penalidades, ao particular.
Nesses casos, o que deve prevalecer?
O Tribunal de Contas da União (TCU) abordou o tema e trouxe luzes à questão, esclarecendo que, apesar de existir respaldo legal para o sigilo de documentos de empresa estatal, as leis que admitem esta operação são normas infraconstitucionais e, portanto, não podem ferir os princípios dispostos na Constituição Federal de 1988. Confira-se o que julgou o TCU no Acórdão nº 423/2019, do Plenário:
Relatório
49. Embora a referida Sociedade de Economia Mista tenha declarado que alguns documentos acostados a estes autos sejam confidenciais, verifica-se a plena possibilidade de extensão da guarda do sigilo às partes do processo para que estas possam exercer, de forma completa, o seu direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, sem, contudo, retirar desses documentos o atributo de sigilo perante terceiros, impondo aos que tiverem acesso às informações sigilosas o cuidado necessário à sua guarda, sob pena de responsabilização por negligência no tratamento dessas informações.
50. A Carta Magna, em seu art. 5º, inciso LV, garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
51. De fato, nos processos em geral, a restrição de acesso ao conteúdo dos autos pode embaraçar o exercício do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa em sua plenitude, uma vez que cria assimetrias de informação entre os interessados e prejudica a bilateralidade do processo, dificultando, em última análise, a aclaração das questões apontadas nos autos. […]
64. […] Por sua vez, as empresas estatais devem se submeter aos princípios estabelecidos na Carta Magna, dentre os quais, o da transparência, que exsurge de diversos dispositivos da Constituição Federal, a exemplo do princípio da publicidade, grafado no art. 37, caput, ou o direito de obter informações de seu interesse junto a órgãos públicos, conforme preconiza o art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988.
A própria Carta da República prevê as hipóteses em que o direito à informação é relativizado, como quando o sigilo é imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5°, inciso XXXIII parte final), ou a fim de preservar o direito à intimidade (art. 5°, inciso LX).
Por óbvio, eventual classificação de sigilo de informações conferidas por legislação infraconstitucional, a exemplo do sigilo comercial, não pode obstaculizar o exercício de garantias asseguradas pelo manto constitucional.
Na espécie, a estatal manifesta preocupação com o fato de o Consórcio ter acesso a determinadas informações, especialmente, as do seu orçamento sigiloso.
Em situações análogas à que ora aqui se examina, esta Corte de Contas tem decidido que o sigilo imposto ao orçamento da estatal, em sua fase interna, não pode ser oposto ao exercício do contraditório e da ampla-defesa, a exemplo do que foi decidido nos Acórdãos 1.854/2015 e 2.254/2016, ambos do Plenário. (…)
VOTO
10. Além da devida observância ao princípio da publicidade (artigo 37, caput, da Constituição de 1988), há interesse público de que a apreciação de matérias como essa não seja afastada do escrutínio social, e este Tribunal não tem mais acatado o procedimento antes costumeiro de a Petrobras apontar, indiscriminadamente, sigilo das informações prestadas com a simples justificativa de que “os dados apresentados podem representar vantagem competitiva a outros agentes econômicos”, sem indicação específica de quais informações conteriam tal sensibilidade, ou de quais vantagens poderiam ser auferidas por terceiros que tomassem ciência desses dados (Acórdão 3.343/2015 – Plenário, da relatoria do ministro Vital do Rêgo). […]
14. Vale dizer que a interpretação de que o sigilo conferido a documentos constantes de procedimentos licitatórios, como o orçamento da estatal, não pode ser usado para impedir o exercício do contraditório e da ampla defesa não configura precedente isolado, mas refletiu evolução da jurisprudência sobre o tema, como se vê, por exemplo, nos Acórdãos 248/2016, 2.005 e 2.014/2017 – Plenário (relatores os ministros Vital do Rêgo, Benjamin Zymler e Bruno Dantas, respectivamente). […]
(TCU, Acórdão 423/2019, Plenário. Relatora Ministra Ana Arraes, julgado em 27/2/2019)
Nesse sentido, embora entenda que o ordenamento jurídico brasileiro admite o sigilo de documentos inseridos nos processos administrativos dedicados às contratações públicas de empresas estatais, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que, se houver conflito, deve prevalecer o direito à ampla defesa e ao contraditório das empresas particulares. Inclusive, previu-se a possibilidade de que o sigilo seja mantido em relação a terceiros, facultando-se, todavia, o pleno acesso pela empresa juridicamente interessada.
Em outras palavras, o que se reconheceu neste caso é que o sigilo das informações impediria o exercício do contraditório e da ampla defesa da empresa contratada, de modo que a confidencialidade das informações não poderia prevalecer.
O eventual sigilo de documentos das empresas estatais, portanto, não é absoluto. Aliás, como exemplifica o § 3º do artigo 34 da Lei das Estatais, ainda que a informação relativa ao valor estimado do objeto da licitação tenha caráter sigiloso, ela “será disponibilizada a órgãos de controle externo e interno, devendo a empresa pública ou a sociedade de economia mista registrar em documento formal sua disponibilização aos órgãos de controle, sempre que solicitado”. Além disso, especificamente no caso do orçamento estimado, a recomendação é que tal informação seja revelada ao público após a etapa de julgamento das propostas dos licitantes, exercendo apenas uma função temporária de promover propositalmente esta assimetria informacional durante a licitação.
Portanto, diante de uma situação concreta de confrontamento entre o direito de defesa e o sigilo de informações mantidas pela empresa estatal, é preciso analisar as peculiaridades do caso e o objetivo da norma legal, a fim de verificar se a manutenção do sigilo impediria ou não a defesa do particular. A depender da conclusão a ser tomada nessa análise, o sigilo pode ser levantado para que o contraditório e a ampla defesa sejam desempenhadas em sua plenitude.
Read MoreJustiça determina a transferência de idoso para Hospital que possua UTI com separação adequada para os pacientes com COVID-19.
A pandemia do novo coronavírus, causador da COVID-19, tem gerado tensão no sistema de saúde de todo o Brasil.
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Pacientes sem COVID-19 também precisam de UTI. Os efeitos do aumento da demanda também estão sendo sentidos por esses pacientes, que não raramente estão sendo obrigados a compartilhar alas hospitalares com pacientes suspeitos ou confirmados de COVID-19.
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O cenário é preocupante e tem exigido a atuação firme do Poder Judiciário. É o caso da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em causa patrocinada pelo escritório Schiefler Advocacia, na qual a magistrada determinou a transferência de paciente para Hospital que disponha de “UTI humanizada e com separação adequada de pacientes suspeitos ou confirmados de COVID-19, […] enquanto perdurar a pandemia ou até a melhora do estado de saúde do paciente“.
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Apesar das suspensões dos prazos processuais, as ações judiciais continuam sendo julgadas pelos magistrados de todo o Brasil, especialmente as demandas urgentes.
A decisão reconheceu a prescrição da pretensão punitiva do Tribunal de Contas da União e afirmou que o cidadão não pode ficar sujeito ao poder estatal por tempo indeterminado.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) manteve a suspensão de decisão do TCU proferida em Tomada de Contas Especial que apurava fatos ocorridos há 15 anos, lapso temporal que impactou negativamente o direito de defesa do particular.
Acolhendo os argumentos lançados pelo escritório Schiefler Advocacia, a Justiça Federal do Rio Grande do Sul, em decisão liminarmente proferida, reconheceu a prescrição da pretensão punitiva do Tribunal de Contas da União e afirmou que o cidadão não pode ficar sujeito ao poder estatal por tempo indeterminado.
A União Federal interpôs recurso contra a decisão, mas teve o pedido liminar indeferido pelo TRF-4, em razão de que, “praticada a suposta irregularidade em 2006 e instaurada a Tomada de Contas em 2014, tenho que, muito provável, tenha sido a atuação do TCU atingida pela prescrição“.