É possível que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais, de modo que os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.

A confidencialidade de informações da empresa estatal não pode acarretar prejuízo à ampla defesa do particular
Não é segredo que a Administração Pública brasileira está vinculada e deve ter a sua atuação alinhada com o ordenamento jurídico, em especial com o que dispõe o artigo 37 da Constituição Federal. Este dispositivo, ao prever o princípio da publicidade, impõe o caráter público dos atos e documentos administrativos como regra, e o sigilo como exceção.
Por este motivo, inclusive, o princípio da publicidade permeia todas as fases dos processos de contratação pública conduzidos pelos órgãos e entidades da Administração Pública brasileira, inclusive pelas empresas estatais.
Mas há uma peculiaridade relevante. No caso das empresas estatais, especialmente quando atuam em regime de livre mercado, ou seja, em concorrência com outros players do mercado, produzem informações cuja divulgação ao público pode afetar a sua governança corporativa, oferecer vantagens competitivas a outros agentes econômicos, ou ainda, impactar a competitividade de futuras licitações ou os interesses de acionistas minoritários. A legislação é sensível a esta questão e admite, em algumas hipóteses, a classificação de confidencialidade a informações de empresas estatais, vide, por exemplo, o artigo 22 da Lei de Acesso à Informação (Lei Federal nº 12.527/2011).
Especificamente no âmbito das contratações públicas, o regramento jurídico aplicável às empresas estatais também é mais permissivo em relação à sigilosidade de informações. Por exemplo, o artigo 34 da Lei Federal nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) estabelece, em caráter excepcional, o sigilo aos orçamentos estimados das licitações conduzidas pelas empresas estatais. Ou seja, nessa hipótese, a própria lei impõe o sigilo como regra, condicionando a publicidade do valor estimado do objeto da licitação à exigência de justificativa na fase de preparação. Inverte-se, portanto, a lógica tradicional de publicidade como regra nos processos de contratações públicas – e, em verdade, de toda a atividade administrativa.
A rigor, o principal motivo teórico que justificou a opção legislativa pela não divulgação do orçamento nas licitações empreendidas pelas empresas estatais refere-se a uma tentativa de evitar que os licitantes precifiquem as suas propostas de forma a orbitar o orçamento estipulado pela Administração, mitigando-se, assim, o risco de contratação por preços superiores ao valor de mercado. Mas questões relacionadas à governança corporativa da empresa e o impacto à competitividade de futuros certames também justificaram a criação desta regra.
Acontece que a possibilidade de que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais traz à tona um importante ponto que merece reflexão: os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
Isto é, o sigilo de informações produzidas pela empresa estatal nos processos de contratação pública empreendidos pode obstaculizar, de alguma forma, a defesa plena do licitante. Imagine-se, por exemplo, que a empresa estatal suspeita que determinado produto ou serviço foi oferecido com sobrepreço pelo licitante ou pela empresa já contratada, mas ao mesmo tempo se nega a revelar os documentos que embasam esta sua suspeita, que, se confirmada, poderá trazer obrigações de ressarcimento, ou mesmo penalidades, ao particular.
Nesses casos, o que deve prevalecer?
O Tribunal de Contas da União (TCU) abordou o tema e trouxe luzes à questão, esclarecendo que, apesar de existir respaldo legal para o sigilo de documentos de empresa estatal, as leis que admitem esta operação são normas infraconstitucionais e, portanto, não podem ferir os princípios dispostos na Constituição Federal de 1988. Confira-se o que julgou o TCU no Acórdão nº 423/2019, do Plenário:
Relatório
49. Embora a referida Sociedade de Economia Mista tenha declarado que alguns documentos acostados a estes autos sejam confidenciais, verifica-se a plena possibilidade de extensão da guarda do sigilo às partes do processo para que estas possam exercer, de forma completa, o seu direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, sem, contudo, retirar desses documentos o atributo de sigilo perante terceiros, impondo aos que tiverem acesso às informações sigilosas o cuidado necessário à sua guarda, sob pena de responsabilização por negligência no tratamento dessas informações.
50. A Carta Magna, em seu art. 5º, inciso LV, garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
51. De fato, nos processos em geral, a restrição de acesso ao conteúdo dos autos pode embaraçar o exercício do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa em sua plenitude, uma vez que cria assimetrias de informação entre os interessados e prejudica a bilateralidade do processo, dificultando, em última análise, a aclaração das questões apontadas nos autos. […]
64. […] Por sua vez, as empresas estatais devem se submeter aos princípios estabelecidos na Carta Magna, dentre os quais, o da transparência, que exsurge de diversos dispositivos da Constituição Federal, a exemplo do princípio da publicidade, grafado no art. 37, caput, ou o direito de obter informações de seu interesse junto a órgãos públicos, conforme preconiza o art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988.
A própria Carta da República prevê as hipóteses em que o direito à informação é relativizado, como quando o sigilo é imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5°, inciso XXXIII parte final), ou a fim de preservar o direito à intimidade (art. 5°, inciso LX).
Por óbvio, eventual classificação de sigilo de informações conferidas por legislação infraconstitucional, a exemplo do sigilo comercial, não pode obstaculizar o exercício de garantias asseguradas pelo manto constitucional.
Na espécie, a estatal manifesta preocupação com o fato de o Consórcio ter acesso a determinadas informações, especialmente, as do seu orçamento sigiloso.
Em situações análogas à que ora aqui se examina, esta Corte de Contas tem decidido que o sigilo imposto ao orçamento da estatal, em sua fase interna, não pode ser oposto ao exercício do contraditório e da ampla-defesa, a exemplo do que foi decidido nos Acórdãos 1.854/2015 e 2.254/2016, ambos do Plenário. (…)
VOTO
10. Além da devida observância ao princípio da publicidade (artigo 37, caput, da Constituição de 1988), há interesse público de que a apreciação de matérias como essa não seja afastada do escrutínio social, e este Tribunal não tem mais acatado o procedimento antes costumeiro de a Petrobras apontar, indiscriminadamente, sigilo das informações prestadas com a simples justificativa de que “os dados apresentados podem representar vantagem competitiva a outros agentes econômicos”, sem indicação específica de quais informações conteriam tal sensibilidade, ou de quais vantagens poderiam ser auferidas por terceiros que tomassem ciência desses dados (Acórdão 3.343/2015 – Plenário, da relatoria do ministro Vital do Rêgo). […]
14. Vale dizer que a interpretação de que o sigilo conferido a documentos constantes de procedimentos licitatórios, como o orçamento da estatal, não pode ser usado para impedir o exercício do contraditório e da ampla defesa não configura precedente isolado, mas refletiu evolução da jurisprudência sobre o tema, como se vê, por exemplo, nos Acórdãos 248/2016, 2.005 e 2.014/2017 – Plenário (relatores os ministros Vital do Rêgo, Benjamin Zymler e Bruno Dantas, respectivamente). […]
(TCU, Acórdão 423/2019, Plenário. Relatora Ministra Ana Arraes, julgado em 27/2/2019)
Nesse sentido, embora entenda que o ordenamento jurídico brasileiro admite o sigilo de documentos inseridos nos processos administrativos dedicados às contratações públicas de empresas estatais, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que, se houver conflito, deve prevalecer o direito à ampla defesa e ao contraditório das empresas particulares. Inclusive, previu-se a possibilidade de que o sigilo seja mantido em relação a terceiros, facultando-se, todavia, o pleno acesso pela empresa juridicamente interessada.
Em outras palavras, o que se reconheceu neste caso é que o sigilo das informações impediria o exercício do contraditório e da ampla defesa da empresa contratada, de modo que a confidencialidade das informações não poderia prevalecer.
O eventual sigilo de documentos das empresas estatais, portanto, não é absoluto. Aliás, como exemplifica o § 3º do artigo 34 da Lei das Estatais, ainda que a informação relativa ao valor estimado do objeto da licitação tenha caráter sigiloso, ela “será disponibilizada a órgãos de controle externo e interno, devendo a empresa pública ou a sociedade de economia mista registrar em documento formal sua disponibilização aos órgãos de controle, sempre que solicitado”. Além disso, especificamente no caso do orçamento estimado, a recomendação é que tal informação seja revelada ao público após a etapa de julgamento das propostas dos licitantes, exercendo apenas uma função temporária de promover propositalmente esta assimetria informacional durante a licitação.
Portanto, diante de uma situação concreta de confrontamento entre o direito de defesa e o sigilo de informações mantidas pela empresa estatal, é preciso analisar as peculiaridades do caso e o objetivo da norma legal, a fim de verificar se a manutenção do sigilo impediria ou não a defesa do particular. A depender da conclusão a ser tomada nessa análise, o sigilo pode ser levantado para que o contraditório e a ampla defesa sejam desempenhadas em sua plenitude.
Read MoreA legislação que rege o ingresso e a carreira militar é a Lei Federal nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares), sendo que, neste diploma normativo, não há qualquer disposição de que deve ser utilizado o índice de massa corpórea (IMC) como parâmetro para aferir a aptidão médica dos aspirantes a militar.
Candidatos de concurso militar não podem ser eliminados em razão do Índice de Massa Corporal (IMC), decide STJ
É sabido que, em razão de regra constitucional, o ingresso em cargo público depende de aprovação em concurso público, ocasião em que o candidato será avaliado por critérios objetivos, previstos em lei e no edital do certame. No caso de concurso público militar, para ingresso nas Forças Armadas constituídas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, a Constituição Federal conferiu especial atenção ao processo de escolha dos candidatos, tendo em vista a função altamente sensível para salvaguarda da soberania nacional e na garantia da democracia.
Especificamente, o inciso X do artigo 142 da Constituição[1] confere à lei a função de dispor sobre o ingresso nas Forças Armadas, em especial quanto aos critérios de seleção. Ou seja, as regras aplicáveis aos concursos militares para preenchimento de cargos devem ser estabelecidas por norma com estatura hierárquica de lei – sendo inaplicável, nesse sentido, qualquer inovação por meio de normas infralegais ou editalícias.
Hoje, a legislação que rege o ingresso e a carreira militar é a Lei Federal nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares), sendo que, neste diploma normativo, não há qualquer disposição de que deve ser utilizado o índice de massa corpórea (IMC) como parâmetro para aferir a aptidão médica dos aspirantes a militar. Assim sendo, é ilegal a eliminação de candidato que, aprovado nas demais fases do concurso público, possua IMC superior ao mínimo estabelecido em edital.
Como a lei não autoriza a utilização desse critério, a exclusão de candidatos com base nele é uma prática ilícita passível de controle pelo Poder Judiciário.
Em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou este entendimento e afastou a possibilidade de eliminar candidatos em concurso militar em razão do IMC, uma vez que inexiste na lei de regência autorização específica, não sendo suficiente a mera inclusão do requisito no edital. Leia-se:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. INGRESSO NA CARREIRA MILITAR. APTIDÃO FÍSICA. ÍNDICE DE MASSA CORPORAL. PREVISÃO LEGAL ESPECÍFICA. INEXISTÊNCIA. […]
A lei de regência das forças armadas (Estatuto dos Militares – Lei nº 6.880/80) não elenca nenhuma exigência quanto ao limite de altura, peso ou IMC para o ingresso na carreira, de modo que a previsão de algum desses requisitos, em concursos públicos, somente seria permitida mediante respaldo legal específico, compatível com as atribuições do cargo, sendo insuficiente a mera inclusão como cláusula do edital.
3.Agravo interno desprovido.[2]
Esta decisão não foi tomada de modo isolado, mas representa o entendimento jurisprudencial pacífico do Poder Judiciário. Confiram-se outras decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é o órgão responsável por uniformizar o entendimento das decisões judiciais em território brasileiro:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO. CURSO DE FORMAÇÃO DE TAIFEIROS. LIMITAÇÃO DE PESO PREVISTO NO EDITAL. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. […]
III – No caso, por mais que se possa compreender a razoabilidade da eventual fixação de limite de altura e peso para ingresso em determinadas carreira, é forçoso reconhecer que a lei (Estatuto dos Militares – Lei nº 6.880/80) não elenca qualquer exigência quanto ao limite de altura e peso ou IMC para o ingresso nas Forças Armadas, mormente para a matrícula no Curso de Formação de Taifeiros.
IV – Agravo interno improvido.[3]
[…] CONCURSO PÚBLICO. INGRESSO NA CARREIRA MILITAR. APTIDÃO FÍSICA. ÍNDICE DE MASSA CORPORAL. CRITÉRIO. EXIGÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL ESPECÍFICA. AUSÊNCIA. RECURSO IMPROVIDO. […] III – A exigência de limites máximo e mínimo de Índice de Massa Corporal (IMC), em concursos públicos, somente é permitida mediante previsão legal específica, compatível com as atribuições do cargo. Precedente.
IV – Recurso improvido.[4]
O posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) é compartilhado pelos demais Tribunais pátrios. É o caso do Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF-4), que também decidiu no sentido de que “A Lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares), de forma alguma estabelece especificamente os requisitos para exames de saúde em concursos às fileiras militares. Portanto, evidente que não existe a fixação do Índice de Massa Corpórea – IMC como fator à aptidão ou não para ingresso na carreira militar, sendo defeso fazê-lo através de portaria ou Edital de concurso, à míngua de Lei que o autorize” (AC nº 5003370-91.2017.4.04.7101/RS, Relator Desembargador Rogério Favreto).
Constata-se, assim, que predomina o entendimento dos tribunais pátrios de que é juridicamente imprópria a eliminação de qualquer candidato em concurso público para ingresso em cargo das Forças Armadas em razão do índice de massa corpórea (IMC), ainda que este requisito conste de portaria ou do edital do certame, uma vez que a legislação de regência (Estatuto dos Militares – Lei Federal nº 6.880/80) não possui disposição que autorize o estabelecimento desta restrição.
Assim, candidatos a estes cargos que, em concursos públicos, forem eliminados em fase de avaliação médica por causa do seu índice de índice de massa corpórea podem, por meio da propositura de ação judicial, buscar o reconhecimento da nulidade desta decisão. Uma vez reconhecida esta ilegalidade, como a vasta jurisprudência vem fazendo, o candidato deverá ser mantido para participar das demais fases e, a depender da sua aprovação, ser nomeado e empossado no respectivo cargo.
[1] Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
[…]
X – a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.
[2] STJ, AgInt no REsp 1761455/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/12/2019.
[3] STJ, AgInt no REsp 1570361/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/03/2018.
[4] STJ, REsp 1610667/RS, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/12/2017.
Read MorePor inúmeras potenciais razões, há casos em que o contratado não é capaz de manter ou de comprovar a manutenção de sua regularidade fiscal durante a execução do contrato. E aí surge a questão: qual a consequência jurídica?
O Poder Público pode se recusar a pagar por serviços já prestados em razão de irregularidade fiscal posterior à celebração ou execução do contrato?
A prestação de serviços para a Administração Pública, de maneira geral, pode ser uma estratégia atrativa para empresas privadas que visam a firmar contratos de larga escala e/ou de longo prazo, em busca de lucros ou, ao menos, de fluxo financeiro, em benefício de sua saúde financeira, posicionamento no mercado ou até mesmo de expansão de atividades.
Entretanto, esta oportunidade é acompanhada de uma série de obrigações típicas, que não são comuns às contratações privadas. Ou seja, o processo de contratação pública é permeado de fases burocráticas, as quais demandam a apresentação, pelo particular, de uma grande quantidade de documentos a fim de comprovar, dentre outras coisas, as exigências contidas no inciso IV do artigo 27 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal nº 8.666/93), que estabelece a regularidade fiscal como condicionante para a habilitação da empresa na licitação.
Sobre o tema, é necessário observar as determinações feitas pelo artigo 29 da referida Lei, que consistem, especificamente, na prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei. E essa demonstração de regularidade fiscal deve ocorrer na fase de habilitação da empresa licitante, que se dá, invariavelmente, em momento anterior ao início da execução dos serviços contratados.
Ocorre que, de acordo com o inciso XIII do artigo 55 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o contratado tem a obrigação de “manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. Aplicando-se ao tema em análise, isto significa que o contratado precisa manter, durante a execução do contrato, a sua regularidade fiscal perante a Fazenda Pública.
Por inúmeras potenciais razões, há casos em que o contratado não é capaz de manter ou de comprovar a manutenção de sua regularidade fiscal durante a execução do contrato. E aí surge a questão: qual a consequência jurídica? A Administração Pública pode reter o pagamento por prestações já executadas? Deve-se rescindir o contrato?
Conforme se comprova a partir de inúmeros casos levados à análise do Poder Judiciário, há casos em que a Administração Pública retém repasses financeiros a empresas contratadas, após o início da execução dos serviços, em razão de irregularidades fiscais surgidas posteriormente à celebração ou execução do contrato.
No entanto, como não existe previsão legal que possibilite a imposição desta prática, tampouco isto se caracteriza como uma possibilidade de penalidade administrativa, os Tribunais possuem decisões reconhecendo a ilegalidade desta conduta administrativa.
Este entendimento é evidenciado em decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de maio de 2019, proferida pela Segunda Turma de Direito Público, segundo a qual, “apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência” (STJ, AgInt no REsp 1742457/CE).
De acordo com o voto do Relator Ministro Francisco Falcão, acolhido por unanimidade, a imposição de regularidade fiscal como condição para pagamento de serviços já prestados implicaria em afronta aos princípios norteadores da atividade administrativa, uma vez que não se revela razoável “que a comprovação de regularidade fiscal seja imposta como condição para a liberação do pagamento pelos serviços prestados”.
Ressalta-se que não se trata de um entendimento isolado da Segunda Turma. Conforme se depreende do acórdão RMS 53.467/SE, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, que seguiu exatamente na mesma linha de que é “vedada a retenção do pagamento pelos serviços prestados”.
Inclusive, o Tribunal de Contas da União (TCU) compartilha do entendimento do STJ, como se verifica do Acórdão 964/2012, do Plenário, cujo relator foi o Ministro Walton Alencar Rodrigues. O posicionamento do TCU nesse caso gerou o seguinte enunciado:
Enunciado
A perda da regularidade fiscal, inclusive quanto à seguridade social, no curso de contratos de execução continuada ou parcelada justifica a imposição de sanções à contratada, mas não autoriza a retenção de pagamentos por serviços prestados. (TCU, Acórdão 964/2012, Plenário. Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues. Julgado em 25/04/2012)
Abaixo estão as ementas dos acórdãos da Segunda Turma do STJ mencionados:
AGRAVO INTERNO. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE. CONTRATAÇÃO COM A MUNICIPALIDADE. SERVIÇOS JÁ REALIZADOS. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. RETENÇÃO DO PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
I – Na origem, a Associação Beneficente Cearense de Reabilitação – ABCR impetrou mandado de segurança contra ato do Secretario de Saúde do Município de Fortaleza, pretendendo receber o repasse financeiro relativo a serviços por ela prestados, decorrente de contrato entabulado entre as partes, sem a necessidade de apresentação de certidão negativa expedida pela Fazenda Pública Nacional.
II – O Tribunal a quo manteve a decisão concessiva da ordem.
III – Ao recurso especial interposto pela municipalidade foi negado provimento, com base na Súmula 568/STJ, em razão da jurisprudência da Corte encontrar-se pacificada no mesmo sentido da decisão recorrida: apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência. Precedentes: REsp n. 1.173.735/RN, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 9/5/2014, RMS n. 53.467/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 27/06/2017, dentre outros.
IV – Os argumentos trazidos pelo agravante não são suficientes para alterar o entendimento prestigiado pela decisão atacada.
V – Agravo interno improvido. [grifo acrescido]
(STJ, AgInt no REsp 1742457/CE, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 23/05/2019, DJe 07/06/2019).
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. ILEGALIDADE NÃO CONFIGURADA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO DEMONSTRADO.
[…] 2. O Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe concedeu parcialmente a ordem, para determinar à autoridade impetrada, exclusivamente, que se abstenha de condicionar o pagamento relativo às faturas das notas fiscais referentes aos serviços executados, decorrentes do contrato administrativo 55/2013, à apresentação de certidões negativas de débitos e/ou de regularidade fiscal (fls. 121-129, e-STJ).
- A decisão impugnada não merece reforma, pois cabe à recorrente cumprir com sua obrigação de apresentar a comprovação de sua regularidade fiscal, sob pena de ver rescindido o contrato com o Município pelo descumprimento de cláusula contratual, em que pese ser vedada a retenção do pagamento pelos serviços prestados, como ocorreu na espécie, no que tange às notas fiscais apresentadas na petição inicial. […]
- A recorrente não trouxe argumento capaz de infirmar os fundamentos da decisão recorrida e demonstrar a ofensa ao direito líquido e certo.
- Recurso Ordinário não provido. [grifo acrescido]
(STJ, RMS 53.467/SE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 30/06/2017)
Portanto, o entendimento que prevalece na Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Tribunal de Contas da União (TCU) é de que, embora seja dever da empresa contratada comprovar a sua regularidade fiscal, inclusive durante a execução do contrato, o Poder Público não pode se recusar a pagar pelos serviços já prestados, sob pena de cometer um ato administrativo ilegal e passível de reforma pelos órgãos de controle. As exceções existentes a este entendimento são bastante pontuais e estão relacionadas a casos em que a Administração Pública corre o risco de ser responsabilizada pelo débito fiscal pendente e inadimplido por parte do contratado.
Read MoreExiste o entendimento de que a suspensão do direito de licitar não se aplica a todas os processos licitatórios, ou seja, de que essa suspensão é válida apenas para as licitações lançadas pelo órgão ou entidade que aplicou a penalidade. Foi o que decidiu o Tribunal de Contas da União (TCU).

A penalidade de suspensão temporária do direito de licitar é válida apenas para o órgão/entidade que aplicou a sanção?
O descumprimento de contratos decorrentes de processos licitatórios pode trazer graves prejuízos para a Administração Pública, colocando em risco a segurança e a efetividade desta forma de contratação. Por este motivo, a Lei Federal nº 8.666/1993[1]Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm estabelece diversas penalidades a serem aplicadas às empresas contratadas que descumprirem com a execução dos contratos administrativos firmados.
Exemplo disso é a suspensão temporária do direito de licitar, sanção prevista no artigo 87, inciso III, da Lei Federal nº 8.666/1993[2]Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: […] III – suspensão … Continue reading. Esta medida impede que determinada empresa volte a participar de processo licitatório e firme contratos com a Administração por até dois anos, em decorrência de descumprimento do objeto contratual anteriormente pactuado.
Entretanto, existe divergência a respeito da amplitude desta penalidade. Por um lado, há o entendimento de que a suspensão do direito de licitar não se aplica a todas os processos licitatórios, ou seja, de que essa suspensão é válida apenas para as licitações lançadas pelo órgão ou entidade que aplicou a penalidade.
Foi o que decidiu o Tribunal de Contas da União (TCU), em decisão de fevereiro de 2019, que acolheu a manifestação da unidade técnica. Confira-se:
3. Por outro lado, o Diretor da unidade técnica especializada manifestou concordância parcial com a proposta de mérito, divergindo apenas quanto ao juízo sobre o procedimento da DPU ao inabilitar a representante em face de sanção pretérita de suspensão do direito de participar de licitações e de impedimento de contratar com a Administração (art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993), aplicada por outro órgão promotor, em afronta ao entendimento do TCU de que a abrangência dessa penalidade se restringe ao órgão/entidade sancionadora.[3]TCU, Acórdão nº 266/2019, TC 042.073/2018-9, Plenário, Relator Aroldo Cedraz, julgado em 13/02/2019.
Este entendimento adota o entendimento de que a mesma Lei que estabelece esta penalidade também conceitua importante diferença semântica entre as expressões “Administração Pública” e “Administração”. Por Administração Pública, tem-se o conjunto de órgãos e entidades do poder público através dos quais se exerce a administração direta e indireta da União. Já a Administração diz respeito a uma unidade administrativa isolada, através da qual a Administração Pública opera.
Note-se que, para o Tribunal de Contas da União (TCU), o conceito de Administração faz parte do conjunto da Administração Pública, mas não se confunde com ela. Apesar de, à primeira vista, se tratar de uma diferença conceitual sutil, na prática estes dois conceitos fazem toda a diferença. A penalidade disposta no artigo 87, inciso III da Lei de Licitações expressa claramente que haverá “suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração”, ou seja, que a parte penalizada não poderá firmar contrato com o órgão individual que aplicou a penalidade citada.
Por outro lado, existe o entendimento sustentado, ao menos até o momento, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Veja-se um exemplo:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE PARTICIPAR DE LICITAÇÃO E IMPEDIMENTO DE CONTRATAR. ALCANCE DA PENALIDADE. TODA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. […] 2. De acordo com a jurisprudência do STJ, a penalidade prevista no art. 87, III, da Lei n. 8.666/1993 não produz efeitos apenas em relação ao ente federativo sancionador, mas alcança toda a Administração Pública […][4]STJ, AIRESP 201301345226, GURGEL DE FARIA, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:31/03/2017.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) adota um conceito ampliado de Administração, que enfatiza o princípio da unidade administrativa, assumindo que os efeitos da conduta que inabilita o sujeito para a contratação devem se estender a qualquer órgão ou entidade da Administração Pública.
Por fim, registre-se que a Lei Federal nº 13.979/2020 permitiu, excepcionalmente, a contratação de particular que esteja com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, desde que, comprovadamente, seja o único fornecedor do bem ou serviço necessário ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da COVID-19 (art. 4º, § 3º).
Referências[+]
| ↑1 | Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm |
|---|---|
| ↑2 | Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: […]
III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos. |
| ↑3 | TCU, Acórdão nº 266/2019, TC 042.073/2018-9, Plenário, Relator Aroldo Cedraz, julgado em 13/02/2019. |
| ↑4 | STJ, AIRESP 201301345226, GURGEL DE FARIA, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:31/03/2017. |
A advogada abordou tópicos referentes à Inteligência Artificial e ao Projeto VICTOR STF/UnB, do qual participa como pesquisadora.
A advogada Roberta Zumblick compôs painel sobre Processo e Tecnologia no II Congresso Brasileiro de Processo Civil, que ocorreu em Florianópolis nos dias 24, 25 e 26 de julho.
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Em sua mesa, que contou com a participação da Dra. Marina Polli e dos Drs. Erik Navarro e Bruno Bodart, Roberta Zumblick abordou tópicos referentes à Inteligência Artificial e ao Projeto VICTOR STF/UnB, do qual participa como pesquisadora.
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Coordenado pelo Prof. Pedro Miranda de Oliveira, o evento contou com mais de 120 renomados juristas e mais de 70 mesas, que discutiram temas relevantes e atuais do ponto de vista do direito processual civil e suas nuances. O número de inscrições superou 2.000 congressistas, alcançando o patamar de maior evento jurídico de 2019.
Hoje em dia, a intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental já está consolidada. Entretanto, há uma barreira ainda não transposta, de forma definitiva, pelo Supremo Tribunal Federal: a abertura da ADPF para a intervenção de particulares.
Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
1. Introdução
Desde que o Supremo Tribunal Federal consagrou a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) como uma ação residual do controle concentrado de constitucionalidade, admitindo-a, por exemplo, nas hipóteses de descabimento de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade, operou-se uma verdadeira popularização do instituto, convertido atualmente em relevante instrumento de impugnação de atos públicos conflitantes com a Constituição Federal.
Tal popularização, como era de se esperar, provocou o interesse de diversos atores políticos que, embora não arrolados no rol de legitimados para a propositura da ação (art. 103, CF), viram-se instigados a participar de tais processos, apresentando petições e realizando sustentações orais, na condição de amicus curiae (no plural, amici curiae) – figura jurídica costumeiramente tratada como uma verdadeira amiga da corte, na medida em que atua visando não apenas resguardar os seus interesses próprios, mas, também, visando fornecer subsídios que contribuam para o julgamento final das relevantes causas decididas pelo Supremo Tribunal Federal.
Foi assim, v.g., na ADPF 54, uma das mais relevantes ações do controle concentrado já julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, cujo objeto era a discussão sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, tendo em vista os direitos fundamentais conferidos à mulher pela Constituição Federal de 1988, na qual órgãos dos mais diversos matizes (científicos, acadêmicos, religiosos, etc.) pleitearam o ingresso na ação na condição de amicus curiae.
Diante desse cenário, é possível afirmar que, hoje em dia, a intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental já está consolidada. Entretanto, há uma barreira ainda não transposta, de forma definitiva, pelo Supremo Tribunal Federal: a abertura da ADPF para a intervenção de particulares.
Conforme se verá ao longo deste breve texto, embora não haja qualquer empecilho na Lei da ADPF (Lei Federal nº 9.882/1999) no sentido de se admitir a manifestação de particulares no processo, o STF vem aplicando, por analogia, o art. 7º, § 2º, da Lei da ADIn (Lei Federal nº 9.868/1999), somente admitindo a participação de “órgãos ou entidades” nas ações do controle concentrado.
O que se pretende argumentar, no presente artigo, é que, com a edição do Novo Código de Processo Civil (Lei Federal nº 13.105/2015), não há mais razão para que o Supremo aplique subsidiariamente a Lei da ADIn em matéria de intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental. Havendo norma processual mais recente e menos restritiva, é ela que deve ser doravante aplicada. Até porque, como se sabe, o Novo Código de Processo Civil foi editado com o objetivo de ser aplicado em todos os processos judiciais em trâmite no Brasil, ainda que de forma subsidiária.
2. Tratamento legal e jurisprudencial da matéria
A Lei Federal nº 9.882/1999, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1º do art. 102 da Constituição Federal”, não contemplou expressamente a possibilidade de intervenção de terceiros no processamento das ações por ela regidas.
Não obstante, diante do caráter objetivo desse tipo de ação, o Supremo Tribunal Federal jamais negou a possibilidade de admissão de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental. Veja-se o comentário do Ministro Gilmar Mendes em obra acadêmica sobre o tema:
Independentemente das cautelas que hão de ser tomadas para não inviabilizar o processo, deve-se anotar que tudo recomenda que, tal como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental assuma, igualmente, uma feição pluralista, com ampla participação de amicus curiae.[2]
De fato, uma vez que pertence ao rol de ações do chamado controle concentrado de constitucionalidade, tal como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, não há nenhuma justificativa para que não se aceite, também na arguição de descumprimento de preceito fundamental, a participação de amicus curiae. Mais ainda: por ser a mais abrangente de todas as ações dessa natureza, tudo recomendaria que a intervenção de amicus curiae nas ADPF’s fosse, inclusive, mais intensa do que nas demais ações do controle concentrado de constitucionalidade.
Assim é que, tendo em vista as premissas acima mencionadas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se consolidou no sentido de aplicar às arguições de descumprimento de preceito fundamental, por analogia, o art. 7º, § 2º, da Lei Federal nº 9.868/1999, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”. In verbis:
Art. 7º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.
[…]
§ 2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
Em recentes decisões monocráticas, membros do Supremo Tribunal Federal admitiram a intervenção de amicus curiae na ADPF 529 (Ministro Gilmar Mendes), na ADPF 548 (Ministra Cármen Lúcia) e nas ADPF’s 514 e 530 (Ministro Edson Fachin).
Anteriormente, na ADPF 187, a importância da intervenção de amicus curiae foi reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em voto da lavra do Ministro Relator Celso de Mello:
‘AMICUS CURIAE’ – (…) – PLURALIZAÇÃO DO DEBATE CONSTITUCIONAL E A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL – DOUTRINA – PRECEDENTES – (…) – DISCUSSÃO SOBRE A (DESEJÁVEL) AMPLIAÇÃO DOS PODERES PROCESSUAIS DO ‘AMICUS CURIAE’ – NECESSIDADE DE VALORIZAR-SE, SOB PERSPECTIVA EMINENTEMENTE PLURALÍSTICA, O SENTIDO DEMOCRÁTICO E LEGITIMADOR DA PARTICIPAÇÃO FORMAL DO ‘AMICUS CURIAE’ NOS PROCESSOS DE FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA.[3]
Como já mencionado anteriormente, nas arguições de descumprimento de preceito fundamental, a intervenção de amicus curiae é ainda mais recomendável e necessária do que nas outras ações do controle concentrado, como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade. Veja-se o magistério de Isabel da Cunha Bisch:
Observe-se, contudo, que o STF aponta ser necessária a distinção do instituto, quando se tratar de ADIN e de ADC, e quando se tratar de ADPF. Nas primeiras ações, há a previsão de participação de órgãos ou entidades. Por conseguinte, não poderão intervir voluntariamente pessoas físicas (cientistas, experts, advogados, professores, etc.) a não ser que haja requisição do juiz para sua manifestação. E, já que a lei da ADPF admite a manifestação de todos aqueles interessados no processo, os legitimados a atuarem como amicus curiae formariam rol mais extenso [grifo acrescido].[4]
O próprio STF, em decisão monocrática da lavra do Ministro Menezes Direito, indicou no ano de 2007 que “a Lei nº 9.882/99, que disciplina as argüições de descumprimento de preceito fundamental, é mais flexível a respeito da possibilidade de terceiros poderem se manifestar nos autos”, pois “não exige que o postulante tenha alguma representatividade, bastando que demonstre interesse no processo”.[5]
Embora tenha sido desenvolvido na década anterior, o argumento utilizado pelo Ministro Menezes Direito se coaduna com a orientação constante no art. 138 do Novo Código de Processo Civil, que entrou em vigor no mês de março de 2016:
Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.
§ 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º.
§ 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.
§ 3º O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em nítido movimento de evolução, e certamente buscando inspiração na sistemática processual das ações do controle concentrado de constitucionalidade, o art. 138 do recente Código de Processo Civil veio a lume com a previsão de abertura democrática dos processos judiciais em trâmite no Brasil.
Por mais que a ação direta de inconstitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental possuam trâmite processual próprio, previsto em leis específicas, a aplicação subsidiária e complementar do Código de Processo Civil jamais foi questionada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.[6]
E mais: considerando que a Lei da ADPF é silente no que diz respeito à participação de amicus curiae, e que a Lei da ADIn, nesse aspecto, é mais restritiva do que o novo CPC, tudo recomenda que, ao menos no contexto das ADPF’s, seja aplicado o diploma mais recente. Ou seja, em vez de empreender analogia com a Lei da ADIn, o que se defende aqui é uma analogia, ou melhor, uma aplicação subsidiária do Novo CPC à espécie.
Não se deve nunca esquecer que “o amicus curiae é um terceiro que intervém em um processo, do qual ele não é parte, para oferecer à corte sua perspectiva acerca da questão constitucional controvertida, informações técnicas acerca de questões complexas cujo domínio ultrapasse o campo legal ou, ainda, defender os interesses dos grupos por ele representados, no caso de serem, direta ou indiretamente, afetados pela decisão a ser tomada”[7].
3. Possíveis e devidos temperamentos
Evidente que uma abertura irrestrita da ADPF para a manifestação de todo e qualquer interessado poderia, a médio e longo prazo, inviabilizar o próprio trabalho da Corte, mais prejudicando do que favorecendo o trâmite das arguições de descumprimento de preceito fundamental. Por isso é que é importante ressaltar que o que se defende aqui não é o deferimento automático de todo e qualquer pedido de ingresso de particulares na condição de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental.
Nesse sentido, parece natural que o Supremo Tribunal Federal continue a analisar, caso a caso, a pertinência ou a impertinência da participação dos interessados nesse tipo de processo – independentemente do fato de serem particulares, órgãos ou entidades –, inclusive de forma monocrática e irrecorrível, nos termos da jurisprudência atualmente em vigor. Além disso, poder-se-ia exigir desses interessados alguns requisitos básicos para o ingresso na ADPF, como a demonstração de pertinência temática ou de representatividade, considerando a matéria em discussão na causa.
O que parece ultrapassado, com a edição do novo Código de Processo Civil, é uma jurisprudência que barra o ingresso de um potencial amicus curiae na arguição de descumprimento de preceito fundamental apenas e tão somente pelo fato de este não constituir formalmente “órgão ou entidade”, como se os particulares, individualmente ou em grupo, não pudessem, de forma satisfatória e eficaz, contribuir para a resolução da arguição de descumprimento de preceito fundamental, na condição de amigos da corte.
[1] Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[2] MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 126.
[3] STF, ADPF 187. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 15/06/2011.
[4] BISCH, Isabel da Cunha. O Amicus Curiae, as Tradições Jurídicas e o Controle de Constitucionalidade: um estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 109.
[5] STF, ADC 18. Relator: Ministro Menezes Direito. Julgamento em 14/11/2007.
[6] A propósito, vale a pena transcrever trechos do decisum cautelar proferido nos autos da ADI 5316: “MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 88/2015. CUMULAÇÃO DE AÇÕES EM PROCESSO OBJETIVO. POSSIBILIDADE. ART. 292 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA […]. A cumulação simples de pedidos típicos de ADI e de ADC é processualmente cabível em uma única demanda de controle concentrado de constitucionalidade, desde que satisfeitos os requisitos previstos na legislação processual civil (CPC, art. 292)” (STF, ADI 5316 MC/DF. Relator: Min. Luiz Fux. Julgamento: 21/05/2018).
[7] MEDINA, Damares. Amicus Curiae: Amigo da Corte ou Amigo da Parte? São Paulo: Saraiva, 2010, p. 17.
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Registro da advogada Roberta Zumblick, em sua participação no EXPOJUD, Congresso de Inovação, Tecnologia e Direito para Ecossistema de Justiça, que aconteceu em Brasília (DF) nos dias 12 e 13 de junho.
O evento é o primeiro encontro sobre a revolução exponencial desse segmento, possuindo como objetivo a promoção de debates sobre inovação, tecnologia e empreendedorismo no âmbito do sistema judicial. Temas importantes da atualidade, como inteligência artificial, tecnologia blockchain e Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foram abordadas durante os dois dias de evento.
Em seu painel, cujo moderador foi o Dr. Caio Moyses de Lima, Juiz Federal do TRF-1, a advogada analisou alguns aspectos que foram abordados em seu livro “Inteligência Artificial e Direito”, escrito em coautoria com o seu orientador de Mestrado, Prof. Fabiano Hartmann.
Read Moreo art. 109 da CF, ao mesmo tempo em que confere uma série de competências aos juízes federais (inclusive competências penais), também ressalva expressamente, em seu inciso IV, que as competências da Justiça Eleitoral devem a elas se sobrepor, tal como previsto no Código Eleitoral e no Código de Processo Penal.

Recentemente, nos dias 13 e 14 de março de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal se debruçou sobre a extensão da competência criminal da Justiça Eleitoral. Sob forte pressão popular liderada pelo Ministério Público Federal, que clamava pelo desmembramento de denúncias contendo, ao mesmo tempo, crimes eleitorais e crimes federais, o STF foi pressionado e, em alguns casos, previamente acusado de enfraquecer a “Operação Lava Jato”, na hipótese de indeferimento do pleito do Parquet.
Ocorre que, como se verá ao longo do presente texto, a tese arguida pela Procuradoria-Geral da República nunca teve guarida na jurisprudência dos Tribunais Superiores pátrios. Inclusive, o próprio Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência sedimentada há décadas sobre o tema. Nesse sentido é que este breve artigo pretende responder à seguinte questão: o que, de fato, mudou após a decisão do STF no Inquérito nº 4435 AgR/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello?
Vejamos.
O artigo 121 da Constituição Federal delegou ao legislador infraconstitucional a competência para dispor “sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”. Mais ainda: no artigo 109, IV, o constituinte originário fez questão de ressalvar expressamente, dentre as competências da Justiça Federal, a competência criminal reservada à Justiça Eleitoral. In verbis:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[…]
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral [grifos acrescidos];
Significa dizer que, tal como previsto na Constituição Federal, a Justiça Eleitoral deve possuir necessariamente competência para processar e julgar crimes de natureza eleitoral, nos termos previstos em lei.
Recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio no ano de 1988 com status de Lei Complementar, a Lei Federal nº 4.737/1965, denominada corriqueiramente de Código Eleitoral, assim tratou do tema:
Art. 35. Compete aos juízes:
[…]
II – processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos tribunais regionais [grifos acrescidos].
Como se percebe, na delimitação da competência da Justiça Eleitoral, o legislador infraconstitucional pátrio optou por afetar aos juízes eleitorais o processamento e o julgamento de todos os crimes eleitorais, além dos crimes comuns que lhes forem conexos, numa nítida prevalência da Justiça especializada sobre a Justiça comum, conforme, aliás, preconiza o Código de Processo Penal: “Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: […] IV – no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta” [grifos acrescidos].
Em sua clássica lição, constante no primeiro volume de seus Elementos de Direito Processual Penal, José Frederico Marques pontuou:
[…] a justiça eleitoral é exercida, de modo geral, por órgãos da justiça comum, visto que os juízos e tribunais são compostos por membros recrutados, na sua quase totalidade, entre pessoas da magistratura ordinária. Por esse motivo, admite a Constituição a prorrogação de competência dessa justiça especial, quando haja crime comum conexo a crime eleitoral. Essa providência é de todo justificável, dado que o processo penal eleitoral oferece as mesmas garantias que o processo penal comum, e os juízes que funcionam na justiça eleitoral quase sempre são os mesmos da justiça comum (MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal – Volume I. Campinas: Bookseler, 1998, p. 202-203) [grifos acrescidos].
Como não poderia deixar de ser, ao longo das últimas décadas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se consolidou no sentido de reconhecer a competência da Justiça Eleitoral para o julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, tal como se extrai do seguinte decisum:
DIREITO CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. JURISDIÇÃO. COMPETÊNCIA. CONFLITO. JUSTIÇA ELEITORAL. JUSTIÇA FEDERAL. CRIME ELEITORAL E CRIMES CONEXOS. ILÍCITOS ELEITORAIS: APURAÇÃO PARA DECLARAÇÃO DE INELEGIBILIDADE (ART. 22, INC. XIV, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64, de 18.05.1990). CONFLITO INEXISTENTE. “HABEAS CORPUS” DE OFÍCIO.
1. Não há conflito de jurisdição ou de competência entre o Tribunal Superior Eleitoral, de um lado, e o Tribunal Regional Federal, de outro, se, no primeiro, está em andamento Recurso Especial contra acórdão de Tribunal Regional Eleitoral, que determinou investigação judicial para apuração de ilícitos eleitorais previstos no art. 22 da Lei de Inelegibilidades; e, no segundo, isto é, no T.R.F., foi proferido acórdão denegatório de “Habeas Corpus” e confirmatório da competência da Justiça Federal, para processar ação penal por crimes eleitorais e conexos. […]
2. Em se verificando, porém, que há processo penal, em andamento na Justiça Federal, por crimes eleitorais e crimes comuns conexos, é de se conceder “Habeas Corpus”, de ofício, para sua anulação, a partir da denúncia oferecida pelo Ministério Público federal, e encaminhamento dos autos respectivos à Justiça Eleitoral de 1ª instância, a fim de que o Ministério Público, oficiando perante esta, requeira o que lhe parecer de direito. […] (STF, CC 7033/SP. Relator: Min. Sydney Sanches. Data: 02/10/1996) [grifos acrescidos].
Recentemente, ao longo do ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal seguiu essa mesma orientação na Pet nº 6820 AgR-ED/DF, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski[1], e na Pet nº 6986 AgR-ED/DF, de relatoria do Ministro Dias Toffoli[2].
Em novembro de 2018, na Ação Penal nº 865, que tramitou no Superior Tribunal de Justiça sob a relatoria do Ministro Herman Benjamin, o Ministério Público Federal arguiu a tese de que a conexão entre crime eleitoral e crime comum não teria como efeito a necessária junção dos processos e que, nesse sentido, o art. 35, II, do Código Eleitoral, e o art. 78, IV, do Código de Processo Penal, não teriam sido recepcionados pela Constituição Federal de 1988, isto é, que esses dois dispositivos seriam incompatíveis com o estabelecido pela atual ordem constitucional pátria.
A tese do Parquet veio escorada na ideia de que crimes eleitorais, como o chamado “caixa 2”, previsto no art. 350, caput, do Código Eleitoral, são geralmente menos gravosos do que os crimes comuns a eles conexos, tais como o tráfico de influência e a lavagem de dinheiro. Por isso, o Ministério Público Federal pugnou, na hipótese, pelo desmembramento e envio do processo à Justiça comum.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça optou por seguir e manter o clássico entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme segue:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA. CRIME ELEITORAL CONEXO A CRIME COMUM. INCIDÊNCIA DOS ARTIGOS 35, INCISO II, DO CÓDIGO ELEITORAL, E 78, INCISO IV, DO CPP. RECEPÇÃO DESTES DOIS DISPOSITIVOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PREVALÊNCIA DA JUSTIÇA ESPECIAL ELEITORAL. […]
11. O Supremo Tribunal Federal, intérprete maior da Constituição Federal, já teve oportunidade de se debruçar sobre o tema por diversas vezes, firmando entendimento de que a Justiça Eleitoral é competente para o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhe sejam conexos, na exata dicção dos artigos 35, inciso II, do Código Eleitoral, e 78, inciso IV, do Código de Processo Penal. […]
13. Não cabe afastar a incidência dos dois dispositivos atrás colacionados, sob argumento de não receptação pela Constituição Federal, quando reiteradamente o STF vem reconhecendo a sua validade e conferindo-lhes aplicação (STJ, AP nº 865 AgRg/DF. Relator: Ministro Herman Benjamin. Data: 07/11/2018) [grifos acrescidos].
De fato, não há como falar em não-recepção do art. 35, II, do Código Eleitoral, e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal, uma vez que ambos estão em consonância com a Constituição Federal de 1988.[3] Vale lembrar, uma vez mais, que o art. 109 da CF, ao mesmo tempo em que confere uma série de competências aos juízes federais (inclusive competências penais), também ressalva expressamente, em seu inciso IV, que as competências da Justiça Eleitoral devem a elas se sobrepor, tal como previsto no Código Eleitoral e no Código de Processo Penal.
Além disso, não se pode esquecer que, no momento em que a Constituição Federal foi editada, os dois dispositivos infraconstitucionais acima mencionados já estavam em vigor há muitos anos, ou seja, a Justiça Eleitoral já era, naquele momento, competente para julgar os crimes eleitorais e os crimes comuns a eles conexos. Fosse a intenção do constituinte alterar tal regra, a ressalva constante na parte final do art. 109, IV, certamente não teria sido incluída na Constituição Federal.
De toda sorte, não obstante a pacificada jurisprudência do STJ e do STF sobre o tema em questão, os mesmos argumentos foram utilizados pelo Ministério Público Federal no Inquérito nº 4435 AgR/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, o Plenário do STF negou provimento ao recurso do Parquet, reafirmando a validade do art. 35, II, do Código Eleitoral, do art. 78, IV, do Código de Processo Penal, e da jurisprudência consolidada da Suprema Corte.
Sobre esse julgamento, que ocorreu em 13 e 14 de março de 2019, consta o seguinte no Informativo nº 933 do Supremo Tribunal Federal:
Em face da alegada prática de crime eleitoral e delitos comuns conexos, asseverou ter-se caracterizada a competência da Justiça Eleitoral, considerado o princípio da especialidade. A Justiça especializada, nos termos do art. 35, II, do Código Eleitoral e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal (CPP), por prevalecer sobre as demais, alcança os delitos de competência da Justiça comum.
Ato contínuo, o relator observou que a Constituição Federal (CF), no art. 109, IV, ao estipular a competência criminal da Justiça Federal, ressalva, expressamente, os casos da competência da Justiça Eleitoral e, consoante o caput do art. 121, a definição da competência daquela Justiça especializada foi submetida à legislação complementar. A ressalva do art. 109, IV, e a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais afastam a competência da Justiça comum, federal ou estadual, e, ante a conexão, implicam a configuração da competência da Justiça Eleitoral em relação a todos os delitos.
O ministro ponderou ser inviável a solução proposta pela PGR de desmembrar as investigações dos delitos comuns e eleitorais, porquanto a competência da Justiça comum, estadual ou federal, é residual quanto à Justiça especializada – seja eleitoral ou militar –, estabelecida em razão da matéria, e não se revela passível de sobrepor-se à última.
Ademais, salientou que a questão veiculada não se mostra controvertida e que essa óptica, reafirmada pela expressiva maioria dos ministros da Segunda Turma, está em consonância com a jurisprudência firmada pelo Pleno do STF em outras ocasiões (CC 7.033, CJ 6.070) [grifos acrescidos].
Como se vê, o tema – que causou grande celeuma nas últimas semanas – não é novo e já foi exaustivamente debatido e pacificado nas Cortes Superiores, não havendo como negar a competência da Justiça Eleitoral para o julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, nos termos do art. 35, II, do Código Eleitoral, e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal. E, nesse sentido, é possível afirmar que, juridicamente, nada mudou após a decisão do STF no Inquérito nº 4435 AgR/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello.
[1] Extrai-se da ementa: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NA PETIÇÃO. COLABORAÇÃO PREMIADA NO BOJO DA OPERAÇÃO ‘LAVA-JATO’. ODEBRECHT. ELEIÇÕES DE 2010. GOVERNO DE SP. PAGAMENTOS POR MEIO DE CAIXA DOIS. CRIMES DE FALSIDADE IDEOLÓGICA E CONEXOS. CRIME ELEITORAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA ENTRE JUSTIÇA COMUM E JUSTIÇA ELEITORAL. ENCAMINHAMENTO DOS AUTOS À JUSTIÇA ELEITORAL. PRECEDENTES. […] III – O Código Eleitoral, em seu título III, o qual detalha o âmbito de atuação dos juízes eleitorais, estabelece, no art. 35, que: ‘Compete aos juízes (…) II – processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais’. […] VI – Ainda que se cogite da hipótese aventada a posteriori pelo MPF, segundo a qual também teriam sido praticados delitos comuns, dúvida não há de que se estaria, em tese, diante de um crime conexo, nos exatos termos do art. 35, II, do referido Codex. VII – A orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, com o intuito de evitar possíveis nulidades, assenta que, (…) em se verificando (…) que há processo penal, em andamento na Justiça Federal, por crimes eleitorais e crimes comuns conexos, é de se conceder habeas corpus, de ofício, para anulação, a partir da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, e encaminhamento dos autos respectivos à Justiça Eleitoral de primeira instância’ (CC 7033/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, de 2/10/1996). VIII – A mesma orientação se vê em julgados mais recentes, a exemplo da Pet 5700/DF, rel. Min. Celso de Mello. IX – Remessa do feito à Justiça Eleitoral de São Paulo” (STF, Pet 6820 AgR-ED/DF. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Data: 06/02/2018).
[2] Destaca-se o seguinte trecho da ementa: “Agravo regimental. Petição. Doações eleitorais por meio de caixa dois. Fatos que poderiam constituir crime eleitoral de falsidade ideológica (art. 350 do Código Eleitoral). Competência da Justiça Eleitoral. Crimes conexos de competência da Justiça Comum. Irrelevância. Pretendido reconhecimento da competência da Seção Judiciária do Distrito Federal ou do Estado de São Paulo. Não cabimento. Prevalência da Justiça Especial (art. 35, II, do Código Eleitoral e art. 78, IV, do Código de Processo Penal). Precedentes” (STF, Pet 6986 AgR-ED/DF. Relator para Acórdão: Ministro Dias Toffoli. Data: 10/04/2018).
[3] Conforme salientado na obra A não-recepção das normas pré-constitucionais pela constituição superveniente, “Romper com a ordem jurídica [constitucional] anterior não significa necessariamente ignorar toda a legislação infraconstitucional produzida anteriormente ao advento da nova constituição e começar toda a atividade legislativa do zero. Na verdade, pelo princípio da continuidade da ordem jurídica, o novo ordenamento pode incorporar normas pré-constitucionais. Até por questão de economia legislativa, não seria razoável defender que todo ordenamento jurídico anterior à edição da nova constituição caísse com o advento dessa última. É preciso aproveitar o direito pré-constitucional, até mesmo para viabilizar o recém-criado Estado” (RÊGO, Eduardo de Carvalho. A não-recepção das normas pré-constitucionais pela constituição superveniente. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 57-58).
Escrito por Eduardo Rêgo
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