STF estabelece limites à retroatividade da Nova Lei de Improbidade Administrativa
No dia 18 deste mês de agosto, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Tema 1.199 de Repercussão Geral (ARE 843.989), em que se tratava da (im)possibilidade de aplicação retroativa da Lei nº 14.230/2021, que promoveu alterações substanciais na Lei nº 8.429/1992, a Lei de Improbidade Administrativa.
Em linhas gerais, a questão posta era se os agentes acusados e/ou condenados pela prática de atos ímprobos anteriores à promulgação da Lei nº 14.230/2021 poderiam ser beneficiados pelo novo regime legal, especialmente pelas disposições sobre (i) a necessidade do elemento subjetivo – dolo – para configuração de todas as espécies de improbidade administrativa, inclusive aquela descrita no artigo 10 da Lei; e (ii) os novos prazos de prescrição geral e intercorrente?
Por maioria e seguindo o voto do Relator, Ministro Alexandre de Moraes, o STF adotou uma postura intermediária, estabelecendo limites à retroatividade da Nova Lei de Improbidade. Nessa linha, fixou-se a seguinte tese:
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.
Em síntese, definiu-se que a Lei 14.230/2021 (i) retroage para beneficiar agentes acusados pela prática de ato ímprobo culposo, isto é, sem a presença do elemento subjetivo – dolo –, desde que a respectiva ação de improbidade não tenha transitado em julgado; (ii) não retroage para beneficiar agentes acusados pela prática de ato ímprobo com os novos prazos prescricionais. Assim, delimitou-se a retroatividade às ações em curso que tratem de ato de improbidade praticado sem dolo.
A Nova Lei de Improbidade Administrativa e o contexto da discussão enfrentada pelo STF
O leading case do Tema 1.119 do STF foi o Agravo em Recurso Extraordinário 843.979/PR, que versava sobre uma ação proposta pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) contra uma servidora contratada e acusada pela prática de ato de improbidade administrativa na modalidade culposa, mais especificamente por ter atuado de modo negligente em processos judiciais envolvendo o INSS.
No caso, a ação havia sido proposta antes de 2021 e, portanto, antes da Lei nº 14.230/2021, circunstância que ensejou a apreciação da (ir)retroatividade desta Lei pelo Supremo Tribunal Federal, tema este que já vinha sendo pauta de inúmeros debates no cenário jurídico nacional.
Promulgada em 25 de outubro de 2021, a Lei nº 14.230 alterou substancialmente a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, a Lei de Improbidade Administrativa. Dentre as alterações legislativas, alguns dispositivos tornaram-se mais benéficos aos agentes acusados ou condenados pela prática de atos ímprobos em relação à antiga redação legislativa, dos quais vale destacar os parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 1º da Nova Lei de Improbidade Administrativa, que tratam da necessidade da comprovação do elemento subjetivo dolo, e o caput e § 4º do artigo 23, que versam sobre o novo regime de prescrição nas modalidades geral e intercorrente.
No que diz respeito ao dolo, vale registrar que, antes da reforma legislativa, tinha-se a possibilidade de que determinadas condutas fossem enquadradas como improbidade administrativa mesmo sem que o agente não tivesse a vontade de praticar ato ilícito ou a consciência de que sua conduta poderia ser enquadrada como tal. Nesses casos, bastaria que ele agisse com culpa, ou seja, de modo negligente, imperito ou imprudente, modalidade que se convencionou chamar de improbidade administrativa culposa – expressamente prevista no artigo 10 da antiga redação legislativa.
Diante disso, o que fez a Nova Lei de Improbidade Administrativa foi extinguir a modalidade de improbidade culposa, da forma foi taxativamente estabelecido no § 1º do art. 1º, e no caput dos artigos 9º, 10 e 11 da Lei. Indo além, a nova redação determinou o conceito de dolo como “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente” (§ 1º do art. 1º), e afastou a possibilidade de responsabilização por improbidade nos casos em que a conduta se consubstancia em “mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem a comprovação de ato doloso com fim ilícito” (§ 2º do art. 1º).
Quanto ao novo regime de prescrição geral e intercorrente, as modificações promovidas pela Nova Lei de Improbidade Administrativa foram no sentido de aumentar o prazo prescricional – geral – para propositura da ação, que antes de 5 (cinco) anos e agora passou a ser de 8 (oito) anos, e de criar uma modalidade de prescrição intercorrente, cujo prazo é de 4 (quatro) anos.
Em linhas gerais, a lógica para contagem do prazo prescricional funciona da seguinte forma: tem-se um prazo geral de 8 anos contados da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia que cessou a permanência (caput do art. 23); contudo, no caso de ocorrer alguma das hipóteses de interrupção previstas no § 4º do art. 23, este prazo se reinicia na modalidade intercorrente, que é de 4 anos (§ 5º do art. 23). São hipóteses de interrupção do prazo previstas no § 4º do art. 23: o ajuizamento da ação de improbidade, a publicação de sentença ou de acórdão de cunho condenatório.
Diante dessas modificações legislativas, surgiu o debate sobre a possibilidade de extensão dos efeitos da Nova Lei para fatos anteriores a sua promulgação, notadamente para beneficiar agentes acusados ou condenados por improbidade administrativa. O principal fundamento jurídico nesse sentido decorre diretamente da Constituição Federal, nomeadamente do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5º, inciso XL).
A saber, muito embora o microssistema punitivo das improbidades administrativas não se enquadre no campo do Direito Penal, mas do Direito Administrativo Sancionador, e que, portanto, a Lei nº 14.230/2021 não possa ser considerada lei penal mais benéfica em uma interpretação exclusivamente literal do texto constitucional, é consenso doutrinário que esses espectros do poder punitivo estatal – penal e administrativo sancionador – se equiparam para fins de efetividade das garantias constitucionais reservadas aos acusados pela prática de condutas ilícitas.
Assim, sustentava-se a necessidade de extensão dos efeitos da Lei nº 14.230/2021 para todos os atos de improbidade anteriores à sua promulgação. Por outro lado, com base sobretudo na previsão constitucional de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, inciso XXXVI), formatou-se posição adversa, que defendia a irretroatividade da lei sancionador mais benéfica em matéria de improbidade administrativa.
Ao final, após quatro dias de sessão, a maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal acompanhou o voto do Relator, Ministro Alexandre de Moraes, que apresentou uma posição intermediária, que delimita a retroatividade do novo regime legal às ações em curso e que versem sobre ato de improbidade praticado sem o elemento subjetivo dolo. Assim, para ações transitadas em julgado ou para aquelas que poderiam ser beneficiadas com o novo regime de prescrição geral e intercorrente, os efeitos da Lei nº 14.230/2021 não retroagem.
A importância deste julgamento se verifica na existência de 1.147 ações suspensas que estavam aguardando a posição do STF. No atual contexto, considerando a tese fixada, para definir se os agentes acusados pela prática de ato de improbidade poderão ser afetados com o novo regime legislativo, cumpre verificar, caso a caso, se é o caso de incidência da hipótese de retroatividade, é dizer, se a respectiva ação versa sobre ato de improbidade praticado sem o elemento subjetivo solo e se ainda não houve o trânsito em julgado da decisão condenatória.
As posições adotadas por cada ministro no julgamento
Como se pôde antever, o Tema 1.199 levado ao plenário do STF diz respeito à retroatividade das disposições sobre o elemento subjetivo dolo; e o novo regime de prescrição geral e intercorrente. Além disso, no exame da matéria, os ministros traçaram uma distinção na modulação dos efeitos da (ir)retroatividade para ações em curso e ações transitadas em julgado.
Em nenhuma das abordagens, a votação do plenário da Corte Superior foi unânime. Nos quadros abaixo, ilustra-se a posição adotada por cada ministro:
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA SEM DOLO COM CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO | |
A Nova Lei não retroage | Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Luiz Fux (6 votos). |
A Nova Lei retroage | Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, André Mendonça, Ricardo Lewandowski (3 votos). |
A Nova Lei retroage mediante de ação rescisória | André Mendonça, Ricardo Lewandowski (2 votos). |
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA SEM DOLO em ações sem trânsito em julgado | |
A Nova Lei não retroage | Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia (4 votos). |
A Nova Lei retroage | Alexandre de Moraes, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux (7 votos). |
PRESCRIÇÃO GERAL | |
A Nova Lei não retroage | Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Luiz Fux (6 votos). |
A Nova Lei retroage | Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes (4 votos). |
Posição intermediária[1]Nas palavras do Ministro André Mendonça, “o novo prazo de prescrição geral tem aplicação imediata, inclusive aos processos em curso e aos fatos ainda não processados, devendo ser computado, … Continue reading | André Mendonça (1 voto). |
PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE | |
A Nova Lei não retroage | Alexandre de Moraes, André Mendonça, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux (9 votos). |
A Nova Lei retroage | Nunes Marques, Dias Toffoli (2 votos). |
Referências[+]
↑1 | Nas palavras do Ministro André Mendonça, “o novo prazo de prescrição geral tem aplicação imediata, inclusive aos processos em curso e aos fatos ainda não processados, devendo ser computado, contudo, o decurso do tempo já transcorrido durante a vigência da norma anterior, estando o novo prazo limitado ao tempo restante do lustro pretérito, quando mais reduzido em relação ao novo regramento.” |
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O ANPC consolida uma nova perspectiva no Direito Público brasileiro, superando-se o entendimento de que a resolução de conflitos por meio de soluções negociais seria contrária ao interesse público, e estabelecendo a consensualidade como uma diretriz válida também no âmbito do Direito Sancionador.
Eduardo Martins Pereira[1]
A resolução de conflitos pela via consensual não é um fenômeno recente no contexto jurídico brasileiro. Trata-se, em verdade, de realidade concreta, que, na medida em que é eleita por instrumentos normativos e incorporada na prática forense, apresenta resultados que reforçam as razões para o seu emprego.[2]
Neste contexto, por iniciativa do Governo Federal, e com participação ativa do Congresso Nacional, foi promulgada a Lei nº 13.964/2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”, que, entre outras mudanças com o intuito de fortalecer o viés negocial no Direito Sancionador, institucionaliza a possibilidade de realização do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC) nas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa.
No caso, a referida alteração atingiu de forma específica o § 1º do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), não apenas retirando a antiga vedação à realização de transação, acordo ou conciliação nas ações que versem sobre atos de improbidade administrativa, mas também prevendo expressamente tal possibilidade, mediante a “celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei”.
Contudo, na proposta legislativa enviada para a sanção presidencial, além da mudança no § 1º do artigo 17, constava a inclusão do artigo 17-A, o qual regulamentava a competência e o procedimento a ser adotado para a sua firmatura. Essa inclusão, no entanto, foi integralmente vetada pelo Presidente da República[3], de modo que o Acordo de Não Persecução Cível foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro sem a devida delimitação normativa, circunstância que naturalmente implica dúvidas sobre a sua amplitude, funcionalidade e consequências, algumas das quais se pretende aqui abordar.
Questões sobre a competência para celebração do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
É interessante notar que o artigo vetado previa a competência exclusiva ao Ministério Público para a celebração do Acordo de Não Persecução Cível, de modo que a pessoa jurídica interessada, que também possui legitimidade para propositura de ação por ato de improbidade administrativa, nos termos do caput do artigo 17 da LIA[4], não poderia se valer deste instituto.
No entanto, a própria justificativa apresentada para o veto do artigo 17-A argumenta que tal distinção entre Ministério Público e pessoa jurídica interessada seria contrária ao interesse público e provocaria insegurança jurídica. Dessa forma, nos moldes atuais da Lei de Improbidade Administrativa, é possível inferir que a pessoa jurídica interessada pode também firmar Acordo de Não Persecução Cível, além de ter legitimidade ativa para a propositura de ação civil pública.
Em razão disso, a sistemática do ANPC deve ser compreendida a partir da dupla competência dos entes legitimados para a propositura de ação por ato de improbidade, em procedimento que harmonize a atuação do Ministério Público e da pessoa jurídica interessada, e que proteja a segurança jurídica do agente público ou particular com o qual se firme o Acordo de Não Persecução Cível.
Para ilustrar essa necessidade, imagine-se uma situação em que o Ministério Público celebre Acordo de Não Persecução Cível com determinado agente público ou particular, investigado ou acusado pela prática de ato ímprobo, sem comunicar a pessoa jurídica interessada – e, portanto, sem a anuência desta aos termos convencionados. Nesse caso, por óbvio, não se pode admitir que a pessoa jurídica interessada, posteriormente, proponha ação em face deste agente pelo mesmo ato ímprobo que já fora objeto do ANPC, mesmo que ela não tenha consentido com este e venha a discordar do seu teor.
Questões sobre a necessidade de homologação do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Deste mesmo contexto de (in)segurança jurídica no procedimento de formalização do ANPC surge a controvérsia sobre a necessidade de homologação judicial. Aliás, vale mencionar que o referendo do ANPC pelo Poder Judiciário constava na gênese deste instituto, pois era prevista no § 5º do artigo 17-A, que foi vetado.
Sobre isso, apesar da ausência de previsão normativa vigente, entende-se que, quando a ação civil pública por ato de improbidade administrativa já foi proposta, faz-se necessária a submissão do Acordo de Não Persecução Cível ao crivo do juízo competente, o qual deverá intimar o outro ente legitimado, seja ele o Ministério Público ou a pessoa jurídica interessada, para que tome ciência dos termos avençados e possa se manifestar. Dessa forma, mitiga-se o risco de uma dupla persecução pelos entes legitimados, outorgando-se maior segurança jurídica às partes.
Para mais, ressalta-se que, conforme disposto no caput do artigo 20 da LIA, as espécies sancionatórias de perda de função pública e suspensão de direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado de sentença condenatória. Assim sendo, no caso de ANPC que disponha sobre tais espécies de sanções, eventual ausência do crivo judicial poderia representar uma problemática no que diz respeito à sua legalidade.
De outro lado, se o Acordo de Não Persecução Cível foi celebrado durante o curso do inquérito civil público, antes da propositura da ação por ato de improbidade administrativa e, portanto, extrajudicialmente, a sua eficácia prescinde de homologação judicial. Nesse sentido, as orientações internas do Ministério Público têm sustentado apenas a necessidade de homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público.[5]
Questões sobre o momento processual em que pode ser celebrado o Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Dito isso, merece atenção também a questão sobre a delimitação do momento processual em que pode ser celebrado o Acordo de Não Persecução Cível. Nesse ponto, embora a redação original do Pacote Anticrime assegurasse a possibilidade de que o acordo fosse firmado também no curso da ação de improbidade, tal dispositivo foi vetado, ao argumento de que seria contrário ao interesse público, uma vez que o agente acusado de ato ímprobo estaria sendo incentivado a continuar no trâmite da ação judicial, visando à possível transação.
Em contrapartida, o Pacote Anticrime traz a inclusão do § 10-A ao artigo 17 da LIA, o qual permite que as partes solicitem ao juízo a interrupção do prazo para a apresentação de contestação em até 90 dias a fim de buscarem uma solução consensual. No entanto, entende-se que a possibilidade incluída no § 10-A não implica qualquer forma de preclusão da solução consensual, até mesmo porque a evidente finalidade do dispositivo é promover a resolução de conflitos pela via negocial, e não restringi-la.
Assim sendo, em que pese o veto do dispositivo que regulava esta matéria na Lei Federal nº 13.964/2019, e mesmo que não haja previsão legal assertiva sobre tal possibilidade, entende-se admissível a celebração de ANPC em qualquer momento processual, desde que anterior ao trânsito em julgado da ação que versa sobre o referido ato de improbidade. Em outras palavras, o ANPC pode ser firmado tanto na fase pré-processual, antes mesmo de finalizada a investigação, contanto que presentes os elementos que compõem a justa causa, quanto na fase processual e recursal, inclusive após a condenação em 2ª instância. Inclusive, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já abordou a controvérsia, reconhecendo expressamente essa possibilidade em decisão paradigmática prolatada no Agravo em Recurso Especial nº 1.314.581.
Haveria um direito à celebração do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC)?
Como bem lecionam Gustavo Justino e Wilson Accioli Filho, a partir dos dogmas da eficiência e da racionalidade, é possível afirmar que a análise a ser realizada na fase pré-processual, em sede de Inquérito Civil Público, já não se restringe à existência de justa causa para a persecução sancionatória, limitando-se à demonstração de indícios de autoria e provas de materialidade do ato ímprobo, mas passa a abranger desde já a análise da possibilidade de resolução da demanda pela via consensual.[6] Essa possibilidade se evidencia, por exemplo, pelo fato de ser possível até mesmo o trancamento judicial do Inquérito Civil Público, ao argumento de que não foi oportunizado o diálogo entre as partes para a obtenção de uma solução negociada.
Nesse ponto, cumpre distinguir, o que se afirma não é a existência de um direito subjetivo à proposta de acordo por parte do agente público ou beneficiário do ato ímprobo, como poderia se entender no caso do instituto da transação penal, vigente no âmbito do direito criminal, mas, pelo menos, a garantia de um canal de diálogo com o ente legitimado para a propositura da ação por improbidade administrativa, de modo que este não poderia dispensar arbitrária e unilateralmente a solução negocial.
Sigilo das negociações.
Convém dizer que, independentemente do resultado das tratativas para a celebração do ANPC, as informações e documentos compartilhados entre as partes devem ser mantidos em sigilo até a sua homologação judicial, em respeito aos deveres éticos da negociação. Dessa forma, e traçando-se o paralelo com o caput do artigo 35 do Decreto Federal nº 8.420/2015 (que dispõe sobre os Acordos de Leniência), caso o ANPC não se concretize, os dados compartilhados devem ser devolvidos aos proprietários, sendo vedado o seu uso para fins de responsabilização, exceto quando o ente legitimado já tenha conhecimento de tais dados independentemente da negociação.
Conteúdo do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Doutro norte, é oportuno destacar que o Acordo de Não Persecução Cível pode assumir tanto natureza de pura reprimenda, de modo semelhante aos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, em que se negocia a aplicação imediata de determinada sanção sem a necessidade de que o agente ofereça algo em troca; quanto natureza colaborativa, com a troca de informações úteis ao interesse público visando a redução da sanção a ser aplicada, como ocorre nos Acordos de Leniência, instituídos pela Lei nº 12.846/2013.
Por tais características, o Acordo de Não Persecução Cível apresenta-se como um instrumento processual flexível, capaz de adaptar-se, caso a caso, às necessidades das partes e do interesse público.
Em outra perspectiva, tem-se a controvérsia sobre a necessidade de confissão formal da prática do ato ímprobo pelo agente investigado ou já acusado como pressuposto para a celebração do Acordo de Não Persecução Cível. Nessa questão, costuma-se traçar um paralelo com o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), do qual se originou o instituto ora abordado, e também com o Acordo de Leniência, para sustentar tal necessidade. Inclusive, essa é a posição que vem sendo adotada nas orientações internas do Ministério Público.[7]
Todavia, nesse ponto, observa-se que a legislação não traz essa exigência de forma expressa como condicionante da celebração do Acordo de Não Persecução Cível – diversamente das disposições normativas sobre o ANPP e o Acordo de Leniência. Diante disso, impor a condição de confissão ao investigado ou acusado é incorrer em interpretação extensiva em seu desfavor, ou em analogia in malam partem, devendo ser, portanto, interpretação vedada em decorrência do princípio da reserva legal vigente no sistema jurídico-penal, o qual deve também ser observado no âmbito do Direito Sancionador lato sensu.[8]
Outrossim, sob um viés pragmático, pode-se questionar a utilidade, para o interesse público, de uma confissão formal pelo agente ímprobo, e acrescentar que tal exigência tem o condão de repercutir numa série de distorções, na medida em que o agente pode simplesmente confessar a prática do ato para se livrar de uma investigação ou condenação com efeitos mais graves. Não por outro motivo, a exigência de confissão formal vem sendo questionada no âmbito do ANPP.[9]
Dessa forma, em privilégio ao livre arbítrio das partes para manejar o ANPC, entende-se que cabe a elas dispor sobre a questão da confissão no plano negocial, inexistindo óbice à celebração de acordo sem confissão formal pelo agente investigado ou acusado de improbidade – com a ressalva de que tal posicionamento não corresponde ao entendimento dominante desta matéria.
Por fim, no tocante às sanções a serem convencionadas entre as partes no âmbito do ANPC, novamente em privilégio à liberdade de transigência no campo negocial, entende-se possível a inclusão de outras medidas não previstas no rol de sanções trazido no artigo 12 da LIA[11], desde que adequadas à proteção da probidade administrativa, proporcionais à gravidade do ato ímprobo e, por óbvio, não defesas por lei.
Não obstante, convém mencionar que, havendo dano ao erário e/ou enriquecimento ilícito pelo agente ímprobo, impõe-se necessariamente a reparação integral do dano e/ou o ressarcimento dos valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio do agente acusado como desdobramentos inevitáveis do Acordo de Não Persecução Cível.
Considerações finais.
Isto posto, verifica-se que a ausência de disciplina legal para o procedimento a ser adotado na formalização do Acordo de Não Persecução Cível pode ser positiva, na medida em que a flexibilidade privilegia o livre arbítrio das partes em manejar o instituto processual, e eventualmente negativa, haja vista os questionamentos que surgem sobre a sua segurança jurídica e a sua legalidade.
Em conclusão, pode-se dizer que o Acordo de Não Persecução Cível consolida uma nova perspectiva no Direito Público brasileiro, superando-se o entendimento de que a resolução dos conflitos por meio de soluções negociais seria contrária ao interesse público, e estabelecendo a consensualidade como uma diretriz válida também no âmbito do Direito Sancionador.
[1] Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estagiário em Direito em Schiefler Advocacia. Membro do Laboratório de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Eleitoral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Contato: eduardomartins@schiefler.adv.br.
[2] O mais recente relatório do CNJ intitulado “Justiça em Números”, publicado em 2020, relativo aos dados colhidos no ano de 2019, indica a ocorrência de 3,9 milhões de acordos firmados por conciliação e homologados judicialmente no Brasil, número que representa 12,5% do total de processos daquele ano e que, apesar de expressivo, se considerado em conjunto com os custos financeiros e logísticos, tem potencial para crescer ainda mais. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf>. Acesso em 21 de maio de 2021.
[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-726.htm. Acesso em 21 de maio de 2021.
[4] Lei nº 8.349/1992. Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.
[5] Resolução nº 1.193/2020 do Colégio dos Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Artigo 5º, inciso V: Art. 5º – O instrumento que formalizar o acordo deverá conter obrigatoriamente os seguintes itens, inseridos separadamente: (…)
XII – Advertência de que a eficácia do acordo extrajudicial estará condicionada a sua homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público.
[6] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-06/opiniao-trancamento-judicial-inquerito-civil-publico>. Acesso em 17/05/2021.
[7] Resolução nº 1.193/2020 do Colégio dos Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Artigo 5º, inciso V: Art. 5º – O instrumento que formalizar o acordo deverá conter obrigatoriamente os seguintes itens, inseridos separadamente: (…)
V – Assunção por parte do pactuante da responsabilidade pelo ato ilícito praticado;
[8] Nesse sentido, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) estabelece, no paradigmático caso Oztürk, um conceito amplo de direito penal, que reconhece o direito administrativo sancionador como um “autêntico subsistema” da ordem jurídico-penal. A partir disso, determinados princípios jurídico-penais se estenderiam para o âmbito do direito administrativo sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato. (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. p. 128)
[9] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-23/cnmp-analisar-exigencia-confissao-acordo-nao-persecucao>. Acesso em 20/05/2021.
Read MoreComo vetor de interpretação das normas infraconstitucionais a respeito de improbidade administrativa, o Enunciado pretende fazer indistintos os atos legislativos produzidos mediante exercício típico da função legislativa e os atos legislativos produzidos com amparo em exercício atípico da função administrativa.
Matheus Lopes Dezan[1]
Enunciado 7 – Configura ato de improbidade administrativa a conduta do agente público que, em atuação legislativa lato sensu, recebe vantagem econômica indevida.
Aos agentes públicos é devido preservar a moralidade, a probidade. É o que está prescrito no caput do artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)[2], por força do qual há, para a Administração Pública, o dever de se ater ao princípio da moralidade, bem como lhe é devido observar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da publicidade e da eficiência. Isso porque agentes públicos desempenham encargos administrativos, forma de manifestação do interesse público, que não se desvincula da moralidade e das prescrições que provêm da ordem jurídica[3].
Com efeito, a moralidade, ou probidade, é pressuposto de validade dos atos administrativos, de modo que se fazem inválidos os atos administrativos com vício de moralidade, de probidade[4]. Urge, contudo, notar que o que se denomina moral jurídica, moral pública ou, ainda, moral administrativa, distingue-se daquilo que se denomina moral comum, pois aquela repousa, necessariamente, sobre regras e sobre princípios do Direito que se impõem sobre os agentes públicos e sobre os terceiros que se relacionam com a Administração Pública[5].
Dessa forma, em caso de conduta de agente público lesar a moralidade, será viciado o ato administrativo e incorrerá o agente público em improbidade administrativa, infração legal sancionada com a suspensão de direitos políticos, com a perda da função pública, com a indisponibilidade de bens e/ou com a obrigatoriedade de ressarcimento ao erário, por determinação do § 4º do artigo 37 da CRFB/1988[6].
A Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, ou Lei de Improbidade Administrativa (LIA), que dispõe acerca das sanções aplicáveis aos agentes públicos autores de atos ímprobos, concebe quatro hipóteses em acordo com as quais condutas de agentes públicos figuram como afrontosas à moralidade. Por força da Lei, é vedado a agente público i) auferir, em função de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade em entidades administrativas, vantagens patrimoniais indevidas, o que figura como enriquecimento ilícito (art. 9º); ii) lesar o erário, isto é, provocar dano patrimonial à Administração Pública (art. 10); iii) conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário de modo indevido (art. 10-A); e iv) atentar contra os princípio da Administração Pública, registrados explícita ou implicitamente no ordenamento jurídico pátrio (art. 11).[7]
Nesse sentido, posto como vetor de interpretação do inciso I do artigo 9º da Lei de Improbidade Administrativa, o Enunciado nº 7 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal dispõe no sentido de que é vedado aos agentes públicos receber, em atuação legislativa lato sensu, vantagem econômica indevida, o que faz ímprobo o ato do agente público. Veja-se, a seguir, transcrição integral do Enunciado:
“Configura ato de improbidade administrativa a conduta do agente público que, em atuação legislativa lato sensu, recebe vantagem econômica indevida.”
Decerto, pode-se afirmar que a locução “atuação legislativa lato sensu”, empregada para compor o Enunciado nº 7, é desprovida de unívoco significado assentado por doutrina ou por jurisprudência, de modo que ao operador do Direito compete inquirir acerca da natureza jurídica do que sejam atos legislativos em sentido amplo e, pois, com amparo em recursos sintáticos e semânticos, conferir à locução sentido.
Paulo de Barros Carvalho distingue, como veículos introdutores de normas jurídicas à ordem jurídica, instrumentos primários e instrumentos secundários. Significa que, para que normas jurídicas integrem a ordem jurídica, é preciso que veículos, quais sejam os instrumentos primários e os instrumentos secundários, as introduzam[8]. Por essa razão, diferenciam-se os instrumentos primários de introdução de normas jurídicas à ordem jurídica e os instrumentos secundários de introdução de normas jurídicas à ordem jurídica. Estes, tais quais os decretos regulamentares, as instruções ministeriais, as circulares, as portarias, as ordens de serviço e outros atos administrativos normativos, subordinam-se àqueles, tais quais a lei constitucional, a lei complementar, a lei ordinária, a lei delegada, as medidas provisórias e o decreto-legislativo.[9]
Pode-se, com amparo nessa diferenciação, identificar que atos administrativos normativos fazem as vezes de veículos introdutores de normas jurídicas à ordem jurídica na condição de instrumentos secundários, e atos legislativos fazem as vezes de veículos introdutores de normas jurídicas à ordem jurídica na condição de instrumentos primários[10]/[11]. Delineia-se, dessa forma, esboço do que são, para o Enunciado nº 7, atos legislativos em sentido amplo e atos legislativos em sentido estrito.
Distinguem-se, em acordo com o Enunciado nº 7, atos legislativos em sentido amplo e atos legislativos em sentido estrito. A categoria atos legislativos em sentido amplo compreende tanto atos normativos que derivam do exercício típico da função legislativa, quanto atos normativos que derivam do exercício atípico da função legislativa, ao passo que a categoria atos legislativos em sentido estrito compreende atos normativos que derivam do exercício típico da função legislativa, somente. Importa salientar que se entende por exercício típico da função legislativa o exercício da função legislativa por agentes públicos que integram o Poder Legislativo, enquanto se entende por exercício atípico da função legislativa o exercício da função legislativa por agentes públicos que não integram o Poder Legislativo[12].
Para fins de inteligência do Enunciado nº 7, fala-se em atos legislativos em sentido amplo como veículos introdutores de normas jurídicas à ordem jurídica, sejam instrumentos primários, por exercício típico da função legislativa, sejam instrumentos secundários, por exercício atípico da função legislativa, e fala-se em atos legislativos em sentido estrito como veículos introdutores de norma jurídica à ordem jurídica na condição de instrumentos primários, somente, por exercício típico da função legislativa.
Por corolário, em razão do Enunciado nº 7, tanto o agente público que percebe vantagem econômica indevida para exercer de forma típica a função legislativa, quanto o público que percebe vantagem econômica indevida para exercer de forma atípica a função legislativa incorrem em improbidade administrativa.
Cumpre ressaltar que, a despeito da redação do Enunciado nº 7, concebe-se a possibilidade de que agentes públicos membros do Poder Legislativo incorram em improbidade administrativa, desde que os atos administrativos viciosos figurem como leis de efeitos concretos, assim compreendidos os atos normativos formalmente legislativos, mas materialmente administrativos. José dos Santos Carvalho Filho, ao discorrer sobre o exercício atípico da função administrativa por membros do Poder Legislativo por intermédio de leis de efeitos concretos, salienta que
[…] constituem função materialmente administrativas atividades desenvolvidas […] no Poder Legislativo, como as denominadas “leis de efeitos concretos”, atos legislativos que, ao invés de traçarem normas gerais e abstratas, interferem na órbita jurídica de pessoas determinadas, como, por exemplo, a lei que concede pensão vitalícia à viúva de ex-presidente.[13]
Trata-se, portanto, de exercício atípico da função administrativa cominado com exercício típico da função legislativa, o que fez possível, pois, antes mesmo de consolidar-se o entendimento expresso pelo Enunciado nº 7, a responsabilização de membros do Poder Legislativo por improbidade administrativa, pois que agentes públicos integram, na qualidade de agentes políticos[14], o Poder Legislativo. Fala-se, em suma, nesses restritos casos, em improbidade legislativa[15], ou seja, em improbidade administrativa por ato legislativo em sentido amplo.
Exemplo de lei de efeitos concretos é aquela que aumenta subsídios dos membros do Poder Legislativo. A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, com amparo em doutrina de Pedro Roberto Decomain, que esses atos normativos ostentam aspecto formalmente legislativo, mas materialmente administrativo, de modo que se faz possível responsabilizar por improbidade administrativa esses agentes públicos:
Oportuno colacionar o seguinte excerto da obra: A ação por improbidade administrativa não é meio processual adequado para impugnar ato legislativo propriamente dito. Isso não significa, todavia, que todos os atos a que se denomina formalmente de “lei” estejam infensos ao controle jurisdicional por seu intermédio. Leis que usualmente passaram a receber a denominação de “leis de efeitos concretos”, e que são antes atos administrativos que legislativos, embora emanados do Poder Legislativos, podem ter sua eventual lesividade submetida a controle pela via da ação por improbidade administrativa. […] (Improbidade Administrativa. São Paulo: Dialética. 2007, p. 64 e 66).[16]
No mesmo sentido, há entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que nega seguimento a Recurso Extraordinário interposto contra decisão que condenou os réus por improbidade administrativa configurada por ato legislativo de efeitos concretos:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONDENAÇÃO POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VEREADORES. MAJORAÇÃO DOS SUBSÍDIOS PARA A MESMA LEGISLATURA. PRECEDENTES. RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.[17]
Contudo, se se distinguem atos legislativos em sentido amplo e atos legislativos em sentido estrito como sendo, respectivamente, quaisquer atos normativos, e atos normativos que derivam do exercício típico da função legislativa, então, em acordo com o Enunciado nº 7, i) reitera-se a regra do inciso I do artigo 9º da Lei de Improbidade Administrativa e, ainda, ii) amplia-se, para além de hipóteses que tratam de improbidade administrativa por leis de efeitos concretos, a possibilidade de membros do Poder Legislativo serem responsabilizados por improbidade administrativa.
Notadamente, o que pretende o Enunciado nº 7 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, como vetor de interpretação das normas infraconstitucionais a respeito de improbidade administrativa por percepção de vantagem econômica indevida (art. 9, I, LIA), é fazer indistintos os atos legislativos produzidos mediante exercício típico da função legislativa e os atos legislativos produzidos com amparo em exercício atípico da função administrativa, porque expande, para além das previsões doutrinárias e jurisprudenciais (improbidade administrativa por leis de efeitos concretos), as hipóteses de responsabilização dos agentes políticos por improbidade administrativa.
[1] Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Grupo de Pesquisas Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (HDAPP/UniCeub), certificado pelo CNPq. Membro do Grupo de Pesquisas Direito Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB), certificado pelo CNPq. Membro do Grupo de Estudos Direito e Economia (GEDE/UnB/IDP), certificado pelo CNPq. Membro do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN). Estagiário em Schiefler Advocacia. E-mail: matheus.ldezan@gmail.com.
[2] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 80.
[4] Ato jurídico válido é ato jurídico adequado à ordem jurídica. Assim, atos administrativos ímprobos, porquanto contrários à ordem jurídica que lhes prescreve o dever de moralidade, são inválidos. Acerca da tese da correção, ou pretensão à correção, cf. ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fones, 2009, p. 92-97;149-155.
[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 83;93.
[6] Art. 37. […] § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
[7] BRASIL. Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em: 23. nov. 2020.
[8] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 45-46.
[9] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 56-76.
[10] DEZAN, Sandro Lúcio. Fundamentos de direito administrativo disciplinar. 4. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2019, p .130.
[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 161.
[12] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 2-3.
[13] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 5.
[14] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 71-73.
[15] MOÇA, Ricardo Benetti Fernandes. A Improbidade Administrativa por Atos Legislativos – Panorama atual e breves reflexões. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/ricardo-benetti-fernandes-moca/a-improbidade-administrativa-por-atos-legislativos-panorama-atual-e-breves-reflexoes. Acesso em: 23. out. 2020.
[16] STJ, REsp 1.101.359/CE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 9/11/2009.
[17] STF, RE 597.725, Relatora Min. Cármen Lúcia, publicado em 25/09/2012.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fones, 2009, p. 92-97;149-155.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23. nov. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em: 23. nov. 2020.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 5.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 45-46.
DEZAN, Sandro Lúcio. Fundamentos de direito administrativo disciplinar. 4. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2019, p .130.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 80.
MOÇA, Ricardo Benetti Fernandes. A Improbidade Administrativa por Atos Legislativos – Panorama atual e breves reflexões. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/ricardo-benetti-fernandes-moca/a-improbidade-administrativa-por-atos-legislativos-panorama-atual-e-breves-reflexoes. Acesso em: 23. out. 2020.
STF, RE 597.725, Relatora Min. Cármen Lúcia, publicado em 25/09/2012.
STJ, REsp 1.101.359/CE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 9/11/2009.
Read MoreA consolidação do entendimento por meio de enunciado foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
Enunciado 5 – O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A Lei nº 13.019/2014, também conhecida como o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, é a norma legal que dispõe sobre as relações de parceria entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil – OSC e que estabelece os parâmetros que devem ser observados pelos entes públicos e privados, em prol de atribuir às parcerias uma maior transparência, eficiência e controle.
Como se vê do seu artigo 1º, esta Lei se presta a instituir “normas gerais para as parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação.”.
Do artigo 2º da norma, é possível observar uma série de conceitos atinentes à matéria, buscando delimitar com acurácia as definições e institutos que são legalmente regulados. Por exemplo, o conceito de organização da sociedade civil: que é fundamental para a compreensão deste texto e que está previsto no inciso I do artigo 2º, in verbis:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
I – organização da sociedade civil: (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999 ; as integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à pobreza e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social. (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
Acontece que, como é comum no Direito brasileiro, muitos conceitos constantes de dispositivos normativos, pela amplitude semântica de sua redação, são responsáveis por causar debates jurisprudenciais e acadêmicos sobre a forma considerada correta de interpretá-los.
Não é diferente com a definição trazida pelo artigo 2º, inciso IV, sobre quem deve ser considerado “dirigente” de uma OSC:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
IV – dirigente: pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil, habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
Veja-se que o atual conceito trazido pela Lei nº 13.019/2014 é aquele definido pela alteração imposta pela Lei nº 13.204/2015. Anteriormente, quando da edição do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, o inciso IV do artigo 2º era simplório, prevendo apenas que é considerado dirigente a “pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil”.
Ou seja, com a adição textual da alteração normativa, detalhou-se o conceito para evidenciar que dirigente é a pessoa que, tendo poderes de administração, gestão ou controle, está “habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros”.
Contudo, a controvérsia conceitual ainda persistiu, residindo principalmente na possibilidade de se considerar membros de alguns órgãos específicos das organizações da sociedade civil (como os Conselhos Consultivo, Fiscal ou Curador) como “dirigentes” para fins da Lei nº 13.019/2014. Esta tese, inclusive, tornava-se ainda mais forte nas hipóteses em que o próprio estatuto social da OSC define como “dirigentes” os membros desses conselhos.
Em razão da importância do assunto, este tema foi proposto para discussão no âmbito da 1ª Jornada de Direito Administrativo do Conselho de Justiça Federal, tendo sido aprovado e publicado como o Enunciado 5:
Enunciado 5
O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
O texto enunciativo foi aprovado após intensos debates por especialistas em Direito Administrativo provenientes de todo o Brasil, de forma que entrou-se em consenso de que a definição de “dirigentes de organização da sociedade civil, estabelecido pelo artigo 2º, inciso IV, da Lei nº 13.019/2014, diz respeito àqueles profissionais com atuação efetiva na gestão executiva da entidade, não abarcando profissionais que exerçam funções meramente fiscalizadoras ou consultivas, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A consolidação do entendimento por meio de enunciado aprovado na 1ª Jornada de Direito Administrativo foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
A importância da segurança jurídica, especificamente quanto ao que versa o Enunciado 5, pode ser aferida dos ensinamentos de Marçal Justen Filho, segundo o qual a atuação das OSC deve ser regulada pelas regras do Direito Administrativo:
As atividades administrativas desenvolvidas fora dos limites da estrutura estatal devem ser disciplinadas pelo direito. A generosidade inerente à atuação não estatal de interesse coletivo não dispensa controle jurídico. A relevância da função não produz imunidade ao direito.
Existindo organizações estruturadas de modo estável e permanente para promover a satisfação de interesses coletivos e os direitos fundamentais, haverá a aplicação de princípios do direito administrativo.
Lembre-se, ademais, que as organizações da sociedade civil desenvolvem atuação que, muitas vezes, é onerosa – mas não na acepção de refletir uma organização empresarial privada. Trata-se da percepção de vantagens provenientes de cofres públicos, de recebimento de doações e assim por diante. Ainda que essas entidades não visem ao lucro, sua atuação é custeada por recursos públicos e privados. A gestão desses recursos se sujeita aos mesmos instrumentos de controle aplicáveis à atuação estatal.
Até é possível que, no futuro, a atividade administrativa não estatal seja disciplinada por um ramo especial do direito. Até que tal se configure, é necessário estender o direito administrativo para esse relevante segmento de atividades de interesse coletivo.[1]
A exata delimitação dos indivíduos que pertencem ao quadro das organizações da sociedade civil é relevante, também, porque a própria Lei nº 13.019/2014 prevê impedimentos de celebração de parceria entre Administração e OSC nos casos em que a entidade possuir, como dirigente, pessoa que ocupa determinados cargos ou que foi condenada pela prática de determinados atos. É o que dispõe o artigo 39:
Art. 39. Ficará impedida de celebrar qualquer modalidade de parceria prevista nesta Lei a organização da sociedade civil que: […]
III – tenha como dirigente membro de Poder ou do Ministério Público, ou dirigente de órgão ou entidade da administração pública da mesma esfera governamental na qual será celebrado o termo de colaboração ou de fomento, estendendo-se a vedação aos respectivos cônjuges ou companheiros, bem como parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o segundo grau; […]
VII – tenha entre seus dirigentes pessoa:
a) cujas contas relativas a parcerias tenham sido julgadas irregulares ou rejeitadas por Tribunal ou Conselho de Contas de qualquer esfera da Federação, em decisão irrecorrível, nos últimos 8 (oito) anos;
b) julgada responsável por falta grave e inabilitada para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, enquanto durar a inabilitação;
c) considerada responsável por ato de improbidade, enquanto durarem os prazos estabelecidos nos incisos I, II e III do art. 12 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.
§ 1º Nas hipóteses deste artigo, é igualmente vedada a transferência de novos recursos no âmbito de parcerias em execução, excetuando-se os casos de serviços essenciais que não podem ser adiados sob pena de prejuízo ao erário ou à população, desde que precedida de expressa e fundamentada autorização do dirigente máximo do órgão ou entidade da administração pública, sob pena de responsabilidade solidária.
§ 2º Em qualquer das hipóteses previstas no caput, persiste o impedimento para celebrar parceria enquanto não houver o ressarcimento do dano ao erário, pelo qual seja responsável a organização da sociedade civil ou seu dirigente. […]
§ 5º A vedação prevista no inciso III não se aplica à celebração de parcerias com entidades que, pela sua própria natureza, sejam constituídas pelas autoridades referidas naquele inciso, sendo vedado que a mesma pessoa figure no termo de colaboração, no termo de fomento ou no acordo de cooperação simultaneamente como dirigente e administrador público
O tema se torna ainda mais essencial quando se verifica que o Tribunal de Contas da União (TCU) possui entendimento consolidado de que é plenamente válida a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. É o que se verifica do Acórdão nº 1908/2019 do Plenário:
2. A tomada de contas especial foi instaurada em razão da omissão no dever de prestar contas da aplicação dos recursos que lhe foram repassados pelo Incra por força do Convênio CRT/RN/40.000/2006, que teve por objeto a prestação de assessoria social, técnica e jurídica a famílias acampadas, com vistas ao alcance das metas propostas no Plano Regional de Reforma Agrária para o Rio Grande do Norte.
3. Em sua peça recursal, o recorrente alega, em suma, a prescrição da pretensão de ressarcimento, questiona a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil e apresenta elementos novos com o objetivo de prestar contas e comprovar a execução das despesas (peças 62/73). […]
14. Da mesma forma, não merece prosperar o argumento de que é inconstitucional a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. Esta Corte de Contas já firmou entendimento contrário por meio da Súmula TCU 286, que assim se pronuncia: “A pessoa jurídica de direito privado destinatária de transferências voluntárias de recursos federais feitas com vistas à consecução de uma finalidade pública responde solidariamente com seus administradores pelos danos causados o erário na aplicação desses recursos”.[2]
Voltando-se ao conteúdo Enunciado 5, é de se notar que a sua redação repete como elemento caracterizador da figura do “dirigente” o exercício de atividades de administração, gestão e controle da organização, além dos poderes de representação da pessoa jurídica perante terceiros, exigindo que o profissional possua esses poderes para que lhe seja atribuído a roupagem da referida figura legal.
Nesse sentido, é ínsito apontar que a Lei decidiu por caracterizar o dirigente a partir do escopo das funções executivas a que esse se dedica, esclarecendo que o dirigente da OSC, nos termos da Lei, corresponde àquele profissional que é responsável pela administração, gestão e controle executivo da entidade, não abrangendo outros cargos que exerçam funções substancialmente distintas.
Essa definição, inclusive, está em conformidade com o entendimento da Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP e com o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), que definem, respectivamente, o dirigente como “pessoa física que detenha poderes de administração, gestão e controle da organização da sociedade civil”[3] e “pessoas que serão responsáveis pela direção da associação”[4].
Logo, conclui-se que quaisquer cargos de órgãos das organizações de sociedades civis que não exerçam atividades de gestão executiva estão fora do espectro conceitual de “dirigentes”, ainda que essa seja a designação atribuída pelo estatuto dessas entidades.
Como a Lei escolheu definir o dirigente pelo escopo das funções que este realiza, pouco importa o nome atribuído pelo estatuto a algum cargo de um órgão meramente fiscalizador ou consultivo, sendo determinante, para fins legais, apenas a capacidade de poder executivo e de representação que determinado cargo atribui, na prática, a um profissional dentro da estrutura da organização da sociedade civil.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 129-130.
[2] TCU, Acórdão nº 1908/2019, Plenário. Relator: ANA ARRAES, Data de Julgamento: 14/08/2019.
[3] OAB/SP, Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor. Guia Prático da Lei de Parcerias: Lei nº 13.019/2014. Outubro de 2017. p. 13.
[4] TCE/SP. Manual Básico de Repasses Públicos ao Terceiro Setor. Ano 2016. p. 20. Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/publicacoes/repasses_publicos_terceiro_setor.pdf. Acesso em 23 out. 2020.
Read MoreA Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça uniformizou o entendimento da Corte sobre a polêmica extensão da penalidade de perda da função pública em virtude de ato de improbidade administrativa, prevista no artigo 12 da Lei nº 8.429/1992.
Recentemente, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) uniformizou o entendimento da Corte sobre a polêmica extensão da penalidade de perda da função pública em virtude de ato de improbidade administrativa, prevista no artigo 12 da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa).
Em Embargos de Divergência opostos em sede do Recurso Especial nº 1701967/RO[1], o Superior Tribunal de Justiça definiu que a penalidade em questão atinge não só o cargo ocupado pelo infrator no momento da prática da conduta ímproba, mas também se estende ao cargo público eventualmente ocupado por este no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória (artigo 20 da Lei de Improbidade Administrativa[2]).
A controvérsia foi julgada por maioria pelo colegiado dos órgãos especializados em Direito Público, tendo sido analisada em razão de divergência existente entre a Primeira e Segunda Turmas da Corte. No voto vencedor, o Ministro Francisco Falcão afirma que a sanção de perda do cargo tem por objetivo afastar dos quadros da Administração Pública o agente que apresentou conduta ímproba e carência ética para o exercício da função pública. Por essa lógica, defendeu que a penalidade em questão deve abranger toda e qualquer atividade que o agente esteja exercendo no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Considerando que o objetivo da perda do cargo é o de salvaguardar a Administração de agentes que demonstrem “pouco ou nenhum apreço pelos princípios regentes da atividade administrativa”[3], a penalidade deve atingir não só o cargo ocupado no momento da prática do ato ímprobo, como também eventual outra função pública que esteja sendo exercida, uma vez que a improbidade não está ligada ao cargo em si, mas à própria atuação desse agente na Administração Pública.
Portanto, prevaleceu o entendimento que vinha sendo adotado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, que pode ser representado pelo seguinte julgado:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. COBRANÇA DE PROPINA. […] PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. ART. 12 DA LEI 8.429/1992. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. SÚMULA 7/STJ. […]
5. A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e afastar da atividade pública todos os agentes que demonstraram pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida.
6. A sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível.
7. Não havendo violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, modificar o quantitativo da sanção aplicada pela instância de origem, no caso concreto, enseja reapreciação dos fatos e provas, obstado nesta instância especial (Súmula 7/STJ).
8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.[4]
No caso analisado e julgado, discute-se a extensão da sanção de perda da função pública à ex-policial federal que se encontrava exercendo o cargo de Defensor Público ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória.
De toda forma, embora se trate de uma uniformização da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível que, em algum momento, a questão seja levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para análise da constitucionalidade da extensão da penalidade.
Vale ressaltar, ainda, que a prática de ato de improbidade administrativa não acarreta, automaticamente, a necessidade de aplicação da penalidade de perda da função pública, uma vez que a própria Lei nº 8.429/1992 determina que o juiz deverá, na fixação das penas, levar em conta “a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”.
Nesse sentido, considerando que o acórdão prolatado pela Primeira Seção do STJ ainda não foi disponibilizado (em 16/9/2020), ainda não está claro se o entendimento que prevaleceu, além de confirmar a abrangência da perda de função pública atualmente ocupada, também veda a hipótese de que um juiz, com base nos elementos do caso concreto e em atenção à razoabilidade e proporcionalidade entre conduta e sanção, restrinja a condenação ao cargo que serviu como instrumento para a prática do ato de improbidade.
[1] Informações obtidas por meio de notícia veiculada no site do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Cf. http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16092020-Perda-de-funcao-publica-por-improbidade-atinge-qualquer-outro-cargo-ocupado-no-momento-da-condenacao-definitiva.aspx. Acesso em 16 set. 2020.
[2] Art. 20. A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Parágrafo único. A autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual.
[3] ANDRADE, Landolfo. Aplicabilidade da sanção de perda da função pública sobre qualquer função exercida pelo agente ímprobo ao tempo do trânsito em julgado da decisão condenatória. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/07/23/sancao-perda-da-funcao-publica/.
[4] STJ, REsp 1297021/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/11/2013.
Read MorePara além da participação do Gustavo como especialista, tanto ele como o advogado Eduardo Schiefler propuseram enunciados que foram selecionados para debate nas comissões de trabalho.
Está ocorrendo nesta semana a I Jornada de Direito Administrativo, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, que tem por objetivo a produção e discussão de enunciados que visam à delineação interpretativa sobre o Direito Administrativo, a fim de adequá-la às inovações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais. A Jornada está sendo coordenada pela Min. Assusete Magalhães (STJ), Min. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto (TSE), Prof. Cesar Augusto Guimarães Pereira e pelo Juiz Federal Daniel Marchionatti Barbosa.
Amanhã (quinta-feira), acontecerão os debates nas comissões temáticas e o advogado Gustavo Schiefler participará como especialista convidado da comissão “Licitações, Contratos Administrativos, Concessões e Parcerias Público-Privadas“, coordenada pelo Desembargador Federal João Batista Moreira e pelos Profs. Eduardo Jordão e Joel de Menezes Niebuhr.
Para além da participação do Gustavo como especialista, tanto ele como o advogado Eduardo Schiefler propuseram enunciados que foram selecionados para debate nas comissões de trabalho.
Por essa razão, o advogado Eduardo Schiefler participará da comissão “Regime jurídico administrativo, Poderes da administração, Ato administrativo, Discricionariedade, Agentes públicos e Bens públicos“, coordenada pelo Ministro Benedito Gonçalves (STJ) e pelos Profs. Fabricio Macedo Motta e Juliana Bonacorsi de Palma.
Os enunciados aprovados nas comissões temáticas serão levados à reunião plenária para aprovação, que acontecerá no dia 7 de agosto (sexta-feira).
Gustavo Schiefler – Advogado. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Educação Executiva pela Harvard Law School (Program on Negotiation). Pesquisador Visitante no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht, em Hamburgo (Alemanha).
Eduardo Schiefler – Advogado no escritório Schiefler Advocacia. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019) e de artigos acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia.
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