STF ESTABELECE LIMITES À RETROATIVIDADE DA NOVA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
No dia 18 deste mês de agosto, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Tema 1.199 de Repercussão Geral (ARE 843.989), em que se tratava da (im)possibilidade de aplicação retroativa da Lei nº 14.230/2021, que promoveu alterações substanciais na Lei nº 8.429/1992, a Lei de Improbidade Administrativa.
Em linhas gerais, a questão posta era se os agentes acusados e/ou condenados pela prática de atos ímprobos anteriores à promulgação da Lei nº 14.230/2021 poderiam ser beneficiados pelo novo regime legal, especialmente pelas disposições sobre (i) a necessidade do elemento subjetivo – dolo – para configuração de todas as espécies de improbidade administrativa, inclusive aquela descrita no artigo 10 da Lei; e (ii) os novos prazos de prescrição geral e intercorrente?
Por maioria e seguindo o voto do Relator, Ministro Alexandre de Moraes, o STF adotou uma postura intermediária, estabelecendo limites à retroatividade da Nova Lei de Improbidade. Nessa linha, fixou-se a seguinte tese:
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.
Em síntese, definiu-se que a Lei 14.230/2021 (i) retroage para beneficiar agentes acusados pela prática de ato ímprobo culposo, isto é, sem a presença do elemento subjetivo – dolo –, desde que a respectiva ação de improbidade não tenha transitado em julgado; (ii) não retroage para beneficiar agentes acusados pela prática de ato ímprobo com os novos prazos prescricionais. Assim, delimitou-se a retroatividade às ações em curso que tratem de ato de improbidade praticado sem dolo.
A Nova Lei de Improbidade Administrativa e o contexto da discussão enfrentada pelo STF
O leading case do Tema 1.119 do STF foi o Agravo em Recurso Extraordinário 843.979/PR, que versava sobre uma ação proposta pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) contra uma servidora contratada e acusada pela prática de ato de improbidade administrativa na modalidade culposa, mais especificamente por ter atuado de modo negligente em processos judiciais envolvendo o INSS.
No caso, a ação havia sido proposta antes de 2021 e, portanto, antes da Lei nº 14.230/2021, circunstância que ensejou a apreciação da (ir)retroatividade desta Lei pelo Supremo Tribunal Federal, tema este que já vinha sendo pauta de inúmeros debates no cenário jurídico nacional.
Promulgada em 25 de outubro de 2021, a Lei nº 14.230 alterou substancialmente a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, a Lei de Improbidade Administrativa. Dentre as alterações legislativas, alguns dispositivos tornaram-se mais benéficos aos agentes acusados ou condenados pela prática de atos ímprobos em relação à antiga redação legislativa, dos quais vale destacar os parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 1º da Nova Lei de Improbidade Administrativa, que tratam da necessidade da comprovação do elemento subjetivo dolo, e o caput e § 4º do artigo 23, que versam sobre o novo regime de prescrição nas modalidades geral e intercorrente.
No que diz respeito ao dolo, vale registrar que, antes da reforma legislativa, tinha-se a possibilidade de que determinadas condutas fossem enquadradas como improbidade administrativa mesmo sem que o agente não tivesse a vontade de praticar ato ilícito ou a consciência de que sua conduta poderia ser enquadrada como tal. Nesses casos, bastaria que ele agisse com culpa, ou seja, de modo negligente, imperito ou imprudente, modalidade que se convencionou chamar de improbidade administrativa culposa – expressamente prevista no artigo 10 da antiga redação legislativa.
Diante disso, o que fez a Nova Lei de Improbidade Administrativa foi extinguir a modalidade de improbidade culposa, da forma foi taxativamente estabelecido no § 1º do art. 1º, e no caput dos artigos 9º, 10 e 11 da Lei. Indo além, a nova redação determinou o conceito de dolo como “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente” (§ 1º do art. 1º), e afastou a possibilidade de responsabilização por improbidade nos casos em que a conduta se consubstancia em “mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem a comprovação de ato doloso com fim ilícito” (§ 2º do art. 1º).
Quanto ao novo regime de prescrição geral e intercorrente, as modificações promovidas pela Nova Lei de Improbidade Administrativa foram no sentido de aumentar o prazo prescricional – geral – para propositura da ação, que antes de 5 (cinco) anos e agora passou a ser de 8 (oito) anos, e de criar uma modalidade de prescrição intercorrente, cujo prazo é de 4 (quatro) anos.
Em linhas gerais, a lógica para contagem do prazo prescricional funciona da seguinte forma: tem-se um prazo geral de 8 anos contados da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia que cessou a permanência (caput do art. 23); contudo, no caso de ocorrer alguma das hipóteses de interrupção previstas no § 4º do art. 23, este prazo se reinicia na modalidade intercorrente, que é de 4 anos (§ 5º do art. 23). São hipóteses de interrupção do prazo previstas no § 4º do art. 23: o ajuizamento da ação de improbidade, a publicação de sentença ou de acórdão de cunho condenatório.
Diante dessas modificações legislativas, surgiu o debate sobre a possibilidade de extensão dos efeitos da Nova Lei para fatos anteriores a sua promulgação, notadamente para beneficiar agentes acusados ou condenados por improbidade administrativa. O principal fundamento jurídico nesse sentido decorre diretamente da Constituição Federal, nomeadamente do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5º, inciso XL).
A saber, muito embora o microssistema punitivo das improbidades administrativas não se enquadre no campo do Direito Penal, mas do Direito Administrativo Sancionador, e que, portanto, a Lei nº 14.230/2021 não possa ser considerada lei penal mais benéfica em uma interpretação exclusivamente literal do texto constitucional, é consenso doutrinário que esses espectros do poder punitivo estatal – penal e administrativo sancionador – se equiparam para fins de efetividade das garantias constitucionais reservadas aos acusados pela prática de condutas ilícitas.
Assim, sustentava-se a necessidade de extensão dos efeitos da Lei nº 14.230/2021 para todos os atos de improbidade anteriores à sua promulgação. Por outro lado, com base sobretudo na previsão constitucional de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, inciso XXXVI), formatou-se posição adversa, que defendia a irretroatividade da lei sancionador mais benéfica em matéria de improbidade administrativa.
Ao final, após quatro dias de sessão, a maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal acompanhou o voto do Relator, Ministro Alexandre de Moraes, que apresentou uma posição intermediária, que delimita a retroatividade do novo regime legal às ações em curso e que versem sobre ato de improbidade praticado sem o elemento subjetivo dolo. Assim, para ações transitadas em julgado ou para aquelas que poderiam ser beneficiadas com o novo regime de prescrição geral e intercorrente, os efeitos da Lei nº 14.230/2021 não retroagem.
A importância deste julgamento se verifica na existência de 1.147 ações suspensas que estavam aguardando a posição do STF. No atual contexto, considerando a tese fixada, para definir se os agentes acusados pela prática de ato de improbidade poderão ser afetados com o novo regime legislativo, cumpre verificar, caso a caso, se é o caso de incidência da hipótese de retroatividade, é dizer, se a respectiva ação versa sobre ato de improbidade praticado sem o elemento subjetivo solo e se ainda não houve o trânsito em julgado da decisão condenatória.
As posições adotadas por cada ministro no julgamento
Como se pôde antever, o Tema 1.199 levado ao plenário do STF diz respeito à retroatividade das disposições sobre o elemento subjetivo dolo; e o novo regime de prescrição geral e intercorrente. Além disso, no exame da matéria, os ministros traçaram uma distinção na modulação dos efeitos da (ir)retroatividade para ações em curso e ações transitadas em julgado.
Em nenhuma das abordagens, a votação do plenário da Corte Superior foi unânime. Nos quadros abaixo, ilustra-se a posição adotada por cada ministro:
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA SEM DOLO COM CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO | |
A Nova Lei não retroage | Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Luiz Fux (6 votos). |
A Nova Lei retroage | Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, André Mendonça, Ricardo Lewandowski (3 votos). |
A Nova Lei retroage mediante de ação rescisória | André Mendonça, Ricardo Lewandowski (2 votos). |
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA SEM DOLO em ações sem trânsito em julgado | |
A Nova Lei não retroage | Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia (4 votos). |
A Nova Lei retroage | Alexandre de Moraes, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux (7 votos). |
PRESCRIÇÃO GERAL | |
A Nova Lei não retroage | Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Luiz Fux (6 votos). |
A Nova Lei retroage | Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes (4 votos). |
Posição intermediária[1]Nas palavras do Ministro André Mendonça, “o novo prazo de prescrição geral tem aplicação imediata, inclusive aos processos em curso e aos fatos ainda não processados, devendo ser computado, … Continue reading | André Mendonça (1 voto). |
PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE | |
A Nova Lei não retroage | Alexandre de Moraes, André Mendonça, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux (9 votos). |
A Nova Lei retroage | Nunes Marques, Dias Toffoli (2 votos). |
Referências[+]
↑1 | Nas palavras do Ministro André Mendonça, “o novo prazo de prescrição geral tem aplicação imediata, inclusive aos processos em curso e aos fatos ainda não processados, devendo ser computado, contudo, o decurso do tempo já transcorrido durante a vigência da norma anterior, estando o novo prazo limitado ao tempo restante do lustro pretérito, quando mais reduzido em relação ao novo regramento.” |
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