A exegese da Justiça Eleitoral gaúcha sobre o art. 73, § 10, da Lei das Eleições.
Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
Em 20 de maio de 2020, foi publicada, no Município de Porto Alegre/RS, a Lei Complementar nº 882/2020, que “Estabelece a isenção, para as competências de abril, maio e junho de 2020, das tarifas de água e esgoto aos consumidores beneficiados pela tarifa social que se enquadrem no disposto pelos incs. I e II do art. 37 da Lei Complementar nº 170, de 31 de dezembro de 1987, e alterações posteriores”. De acordo com o Prefeito Nelson Marchezan Júnior, “A medida foi adotada para auxiliar as pessoas de baixa renda, possibilitando que elas tenham mais recursos para enfrentar a crise provocada pela pandemia da Covid-19”.[2]
A oportuna medida de atenuação dos efeitos da pandemia sobre a população mais carente do Município de Porto Alegre vem na mesma linha do auxílio emergencial, no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais), concedido pelo Governo Federal aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais, trabalhadores autônomos e desempregados. Porém, ao contrário do Governo Federal, que está no segundo ano da atual Administração, a Prefeitura de Porto Alegre, por vivenciar o último ano do mandato do Chefe do Executivo Municipal, teve de lidar com a vedação constante no art. 73, § 10, da Lei Federal nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), que proíbe a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública em ano eleitoral, excetuados os casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.
Em que pese a existência do Decreto Municipal nº 20.534, de 31 de março de 2020, que “Decreta o estado de calamidade pública e consolida as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus (COVID-19), no Município de Porto Alegre”, o Prefeito entendeu por bem formalizar consulta ao Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE/RS), questionando sobre a possibilidade de o Município conceder as isenções tarifárias pretendidas, uma vez que 2020 é ano de eleições municipais.
A resposta do TRE/RS, formalizada mediante manifestação de seu Tribunal Pleno, veio no sentido de reconhecer a pandemia da Covid-19 enquanto ensejadora de estado de “calamidade pública”, tal como previsto no art. 73, § 10, da Lei das Eleições, a autorizar o administrador público a distribuir gratuitamente bens e serviços em ano eleitoral. Contudo, o órgão julgador advertiu que “é necessário observar que o administrador público, mesmo em face de situação de calamidade, está adstrito aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, nos termos do comando do art. 37 da Constituição Federal, sem que possa fazer uso da distribuição gratuita de bens e valores com caráter eleitoreiro ou como forma de promoção pessoal”.[3]
Em síntese, resta clara a mensagem passada pela Justiça Eleitoral do Estado do Rio Grande do Sul: medidas financeiras de apoio aos mais necessitados em meio à pandemia da Covid-19 são bem-vindas, desde que a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios seja realizada mediante a adoção de critérios objetivos para estabelecer os beneficiários e, ademais, que não venha acompanhada de promoção pessoal de agente público. Tal exegese, aliás, está em consonância com os princípios constitucionais previstos no caput do art. 37 da Constituição Federal, que devem sempre ser levados em consideração na análise das exceções às condutas vedadas previstas na Lei das Eleições.
Eduardo de Carvalho Rêgo – Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[1] Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[2] Disponível em: https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/prefeitura-isenta-consumidores-carentes-do-pagamento-da-tarifa-de-agua-e-esgoto. Acesso em 01/06/2020.
[3] TRE/RS. Consulta nº 0600098-44.2020.6.21.0000, de Porto Alegre. Relator: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Data: 11/05/2020.
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Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
Nos últimos dias, o futuro Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Ministro Luís Roberto Barroso, admitiu em entrevistas o “risco real” de adiamento das eleições municipais de 2020, tendo em vista o aumento exponencial de casos de contaminação pelo novo coronavírus (Covid-19) nos mais diversos Estados brasileiros. Segundo o Ministro, a decisão de adiar as eleições de 2020 precisaria ser tomada, no mais tardar, no mês de junho.
A providência não seria simples, pois a data das eleições municipais está categoricamente prevista nos incisos I e II do art. 29 da Constituição Federal:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
I – eleição do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores, para mandato de quatro anos, mediante pleito direto e simultâneo realizado em todo o País;
II – eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores; […].
A regra é muito clara e não está sujeita a distorções: o primeiro turno das eleições municipais para Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores deve acontecer, de quatro em quatro anos, sempre no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder. Caso haja necessidade de um segundo turno para o preenchimento das vagas do Poder Executivo, este deverá ocorrer no último domingo de outubro do ano eleitoral, nos Municípios que contarem com mais de duzentos mil eleitores
Muitos defendem que, diante do texto peremptório acima mencionado, não haveria margem para adiamento das eleições em nenhuma hipótese, sendo imperativa a sua realização, independentemente da pandemia da Covid-19. Em outros termos: há quem entenda que, por não haver exceção prevista constitucionalmente, as eleições de 2020 devem ocorrer de qualquer maneira, mesmo que isso provoque um agravamento da pandemia.
Vale lembrar que, em sentido amplo, o termo “eleição” não se refere apenas ao dia da votação, isto é, ao primeiro e ao último domingo de outubro do ano eleitoral – neste último caso, na hipótese de necessidade de realização de segundo turno nos Municípios com mais de duzentos mil habitantes. Com efeito, o ano eleitoral possui um calendário complexo, que envolve, entre outras atividades, a realização das convenções partidárias com a escolha dos candidatos, o registro das candidaturas propriamente ditas, a exibição de propaganda eleitoral gratuita e a apresentação da prestação parcial das contas de campanha. Isso sem contar o período reservado para testes das urnas eletrônicas e de treinamento dos mesários que irão colaborar com a Justiça Eleitoral no dia do pleito.
Ou seja: quando se fala em adiamento das eleições, não se está a considerar apenas os riscos de aglomeração no dia do pleito, mas também as relações interpessoais que precisam ser travadas nos meses que antecedem o dia de votação. Nesse sentido, não é forçoso dizer que as eleições já estão sofrendo as consequências da pandemia neste exato momento.
Qual seria, então, a solução para o problema descrito?
Em primeiro lugar, é preciso que os juristas entendam que o Direito não pode pretender se sobrepor aos fatos da vida ou, numa expressão mais coloquial, à vida real. Ora, diante de uma pandemia que está a ceifar a vida de um número expressivo de cidadãos brasileiros, o cumprimento de um prazo legal, mesmo aquele previsto na norma de maior hierarquia do país (Constituição Federal), não pode ser levado a ferro e fogo. Realizar as eleições em outubro de 2020 não é um caso de vida ou morte; o combate à pandemia da Covid-19 é. Em síntese: se o contágio do novo coronavírus não for sensivelmente contido no próximo mês, então obviamente as eleições não poderão se realizar.
É mais ou menos isso que indicou o Ministro Luís Roberto Barroso quando se referiu à necessidade de se tomar uma decisão até o mês de junho, pois é nesse mês que são realizados os testes das urnas eletrônicas, que garantem a lisura do pleito, além das convenções partidárias, que acabam por definir o nome dos candidatos que concorrerão no pleito, e a formação de coligação para as disputas majoritárias.
Ao que tudo indica, caso a pandemia não arrefeça, no mês de junho, quando já terá assumido a Presidência da Corte Eleitoral, Barroso tomará a iniciativa de intermediar um movimento político pelo adiamento das eleições, que deverá vir, necessariamente, por meio de uma Emenda Constitucional.
A solução menos traumática seria incluir no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) regra específica e limitada apenas para as eleições de 2020, que poderiam ocorrer em novembro ou dezembro, considerando os impactos produzidos pela pandemia do novo coronavírus. Em assim procedendo, eleições futuras não seriam abarcadas por tal Emenda.
Sabe-se que já existem propostas tramitando no Congresso Nacional, no sentido de prorrogar os mandatos dos atuais Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores até 2022, ocasião em que as eleições gerais (para Presidente, Vice-Presidente, Senadores, Governadores, Deputados Federais e Estaduais) e as eleições municipais (Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores) seriam doravante unificadas.
Entretanto, tais propostas não agradam ao próximo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que vê com bons olhos as eleições de dois em dois anos, por serem um “rito vital para a democracia”.
De fato, na atual conjuntura política brasileira, o pleito eleitoral parece ser o momento em que o princípio democrático mais se conecta com os cidadãos. Nesse sentido, diminuir a frequência dos pleitos, de dois para quatro anos, poderia provocar um resultado deletério, aumentando o desinteresse do brasileiro pela política. De qualquer modo, parece inadequado e, em certo sentido, oportunista propor uma discussão dessa envergadura em meio a uma situação de extrema excepcionalidade, tal como a que ora se apresenta a todos os brasileiros.
Com a definição do adiamento em junho, certamente um novo calendário eleitoral será proposto e, a partir dele, poderemos compreender melhor o impacto da Covid-19 nas eleições de 2020.
[1] Eduardo de Carvalho Rêgo – Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
Read MoreÉ possível que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais, de modo que os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
A confidencialidade de informações da empresa estatal não pode acarretar prejuízo à ampla defesa do particular
Não é segredo que a Administração Pública brasileira está vinculada e deve ter a sua atuação alinhada com o ordenamento jurídico, em especial com o que dispõe o artigo 37 da Constituição Federal. Este dispositivo, ao prever o princípio da publicidade, impõe o caráter público dos atos e documentos administrativos como regra, e o sigilo como exceção.
Por este motivo, inclusive, o princípio da publicidade permeia todas as fases dos processos de contratação pública conduzidos pelos órgãos e entidades da Administração Pública brasileira, inclusive pelas empresas estatais.
Mas há uma peculiaridade relevante. No caso das empresas estatais, especialmente quando atuam em regime de livre mercado, ou seja, em concorrência com outros players do mercado, produzem informações cuja divulgação ao público pode afetar a sua governança corporativa, oferecer vantagens competitivas a outros agentes econômicos, ou ainda, impactar a competitividade de futuras licitações ou os interesses de acionistas minoritários. A legislação é sensível a esta questão e admite, em algumas hipóteses, a classificação de confidencialidade a informações de empresas estatais, vide, por exemplo, o artigo 22 da Lei de Acesso à Informação (Lei Federal nº 12.527/2011).
Especificamente no âmbito das contratações públicas, o regramento jurídico aplicável às empresas estatais também é mais permissivo em relação à sigilosidade de informações. Por exemplo, o artigo 34 da Lei Federal nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) estabelece, em caráter excepcional, o sigilo aos orçamentos estimados das licitações conduzidas pelas empresas estatais. Ou seja, nessa hipótese, a própria lei impõe o sigilo como regra, condicionando a publicidade do valor estimado do objeto da licitação à exigência de justificativa na fase de preparação. Inverte-se, portanto, a lógica tradicional de publicidade como regra nos processos de contratações públicas – e, em verdade, de toda a atividade administrativa.
A rigor, o principal motivo teórico que justificou a opção legislativa pela não divulgação do orçamento nas licitações empreendidas pelas empresas estatais refere-se a uma tentativa de evitar que os licitantes precifiquem as suas propostas de forma a orbitar o orçamento estipulado pela Administração, mitigando-se, assim, o risco de contratação por preços superiores ao valor de mercado. Mas questões relacionadas à governança corporativa da empresa e o impacto à competitividade de futuros certames também justificaram a criação desta regra.
Acontece que a possibilidade de que informações pertencentes às empresas estatais sejam classificadas como confidenciais traz à tona um importante ponto que merece reflexão: os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório de um particular podem entrar em rota de confronto com o sigilo de documentos das empresas estatais.
Isto é, o sigilo de informações produzidas pela empresa estatal nos processos de contratação pública empreendidos pode obstaculizar, de alguma forma, a defesa plena do licitante. Imagine-se, por exemplo, que a empresa estatal suspeita que determinado produto ou serviço foi oferecido com sobrepreço pelo licitante ou pela empresa já contratada, mas ao mesmo tempo se nega a revelar os documentos que embasam esta sua suspeita, que, se confirmada, poderá trazer obrigações de ressarcimento, ou mesmo penalidades, ao particular.
Nesses casos, o que deve prevalecer?
O Tribunal de Contas da União (TCU) abordou o tema e trouxe luzes à questão, esclarecendo que, apesar de existir respaldo legal para o sigilo de documentos de empresa estatal, as leis que admitem esta operação são normas infraconstitucionais e, portanto, não podem ferir os princípios dispostos na Constituição Federal de 1988. Confira-se o que julgou o TCU no Acórdão nº 423/2019, do Plenário:
Relatório
49. Embora a referida Sociedade de Economia Mista tenha declarado que alguns documentos acostados a estes autos sejam confidenciais, verifica-se a plena possibilidade de extensão da guarda do sigilo às partes do processo para que estas possam exercer, de forma completa, o seu direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, sem, contudo, retirar desses documentos o atributo de sigilo perante terceiros, impondo aos que tiverem acesso às informações sigilosas o cuidado necessário à sua guarda, sob pena de responsabilização por negligência no tratamento dessas informações.
50. A Carta Magna, em seu art. 5º, inciso LV, garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
51. De fato, nos processos em geral, a restrição de acesso ao conteúdo dos autos pode embaraçar o exercício do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa em sua plenitude, uma vez que cria assimetrias de informação entre os interessados e prejudica a bilateralidade do processo, dificultando, em última análise, a aclaração das questões apontadas nos autos. […]
64. […] Por sua vez, as empresas estatais devem se submeter aos princípios estabelecidos na Carta Magna, dentre os quais, o da transparência, que exsurge de diversos dispositivos da Constituição Federal, a exemplo do princípio da publicidade, grafado no art. 37, caput, ou o direito de obter informações de seu interesse junto a órgãos públicos, conforme preconiza o art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988.
A própria Carta da República prevê as hipóteses em que o direito à informação é relativizado, como quando o sigilo é imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5°, inciso XXXIII parte final), ou a fim de preservar o direito à intimidade (art. 5°, inciso LX).
Por óbvio, eventual classificação de sigilo de informações conferidas por legislação infraconstitucional, a exemplo do sigilo comercial, não pode obstaculizar o exercício de garantias asseguradas pelo manto constitucional.
Na espécie, a estatal manifesta preocupação com o fato de o Consórcio ter acesso a determinadas informações, especialmente, as do seu orçamento sigiloso.
Em situações análogas à que ora aqui se examina, esta Corte de Contas tem decidido que o sigilo imposto ao orçamento da estatal, em sua fase interna, não pode ser oposto ao exercício do contraditório e da ampla-defesa, a exemplo do que foi decidido nos Acórdãos 1.854/2015 e 2.254/2016, ambos do Plenário. (…)
VOTO
10. Além da devida observância ao princípio da publicidade (artigo 37, caput, da Constituição de 1988), há interesse público de que a apreciação de matérias como essa não seja afastada do escrutínio social, e este Tribunal não tem mais acatado o procedimento antes costumeiro de a Petrobras apontar, indiscriminadamente, sigilo das informações prestadas com a simples justificativa de que “os dados apresentados podem representar vantagem competitiva a outros agentes econômicos”, sem indicação específica de quais informações conteriam tal sensibilidade, ou de quais vantagens poderiam ser auferidas por terceiros que tomassem ciência desses dados (Acórdão 3.343/2015 – Plenário, da relatoria do ministro Vital do Rêgo). […]
14. Vale dizer que a interpretação de que o sigilo conferido a documentos constantes de procedimentos licitatórios, como o orçamento da estatal, não pode ser usado para impedir o exercício do contraditório e da ampla defesa não configura precedente isolado, mas refletiu evolução da jurisprudência sobre o tema, como se vê, por exemplo, nos Acórdãos 248/2016, 2.005 e 2.014/2017 – Plenário (relatores os ministros Vital do Rêgo, Benjamin Zymler e Bruno Dantas, respectivamente). […]
(TCU, Acórdão 423/2019, Plenário. Relatora Ministra Ana Arraes, julgado em 27/2/2019)
Nesse sentido, embora entenda que o ordenamento jurídico brasileiro admite o sigilo de documentos inseridos nos processos administrativos dedicados às contratações públicas de empresas estatais, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que, se houver conflito, deve prevalecer o direito à ampla defesa e ao contraditório das empresas particulares. Inclusive, previu-se a possibilidade de que o sigilo seja mantido em relação a terceiros, facultando-se, todavia, o pleno acesso pela empresa juridicamente interessada.
Em outras palavras, o que se reconheceu neste caso é que o sigilo das informações impediria o exercício do contraditório e da ampla defesa da empresa contratada, de modo que a confidencialidade das informações não poderia prevalecer.
O eventual sigilo de documentos das empresas estatais, portanto, não é absoluto. Aliás, como exemplifica o § 3º do artigo 34 da Lei das Estatais, ainda que a informação relativa ao valor estimado do objeto da licitação tenha caráter sigiloso, ela “será disponibilizada a órgãos de controle externo e interno, devendo a empresa pública ou a sociedade de economia mista registrar em documento formal sua disponibilização aos órgãos de controle, sempre que solicitado”. Além disso, especificamente no caso do orçamento estimado, a recomendação é que tal informação seja revelada ao público após a etapa de julgamento das propostas dos licitantes, exercendo apenas uma função temporária de promover propositalmente esta assimetria informacional durante a licitação.
Portanto, diante de uma situação concreta de confrontamento entre o direito de defesa e o sigilo de informações mantidas pela empresa estatal, é preciso analisar as peculiaridades do caso e o objetivo da norma legal, a fim de verificar se a manutenção do sigilo impediria ou não a defesa do particular. A depender da conclusão a ser tomada nessa análise, o sigilo pode ser levantado para que o contraditório e a ampla defesa sejam desempenhadas em sua plenitude.
Read MoreHoje em dia, a intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental já está consolidada. Entretanto, há uma barreira ainda não transposta, de forma definitiva, pelo Supremo Tribunal Federal: a abertura da ADPF para a intervenção de particulares.
Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
1. Introdução
Desde que o Supremo Tribunal Federal consagrou a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) como uma ação residual do controle concentrado de constitucionalidade, admitindo-a, por exemplo, nas hipóteses de descabimento de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade, operou-se uma verdadeira popularização do instituto, convertido atualmente em relevante instrumento de impugnação de atos públicos conflitantes com a Constituição Federal.
Tal popularização, como era de se esperar, provocou o interesse de diversos atores políticos que, embora não arrolados no rol de legitimados para a propositura da ação (art. 103, CF), viram-se instigados a participar de tais processos, apresentando petições e realizando sustentações orais, na condição de amicus curiae (no plural, amici curiae) – figura jurídica costumeiramente tratada como uma verdadeira amiga da corte, na medida em que atua visando não apenas resguardar os seus interesses próprios, mas, também, visando fornecer subsídios que contribuam para o julgamento final das relevantes causas decididas pelo Supremo Tribunal Federal.
Foi assim, v.g., na ADPF 54, uma das mais relevantes ações do controle concentrado já julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, cujo objeto era a discussão sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, tendo em vista os direitos fundamentais conferidos à mulher pela Constituição Federal de 1988, na qual órgãos dos mais diversos matizes (científicos, acadêmicos, religiosos, etc.) pleitearam o ingresso na ação na condição de amicus curiae.
Diante desse cenário, é possível afirmar que, hoje em dia, a intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental já está consolidada. Entretanto, há uma barreira ainda não transposta, de forma definitiva, pelo Supremo Tribunal Federal: a abertura da ADPF para a intervenção de particulares.
Conforme se verá ao longo deste breve texto, embora não haja qualquer empecilho na Lei da ADPF (Lei Federal nº 9.882/1999) no sentido de se admitir a manifestação de particulares no processo, o STF vem aplicando, por analogia, o art. 7º, § 2º, da Lei da ADIn (Lei Federal nº 9.868/1999), somente admitindo a participação de “órgãos ou entidades” nas ações do controle concentrado.
O que se pretende argumentar, no presente artigo, é que, com a edição do Novo Código de Processo Civil (Lei Federal nº 13.105/2015), não há mais razão para que o Supremo aplique subsidiariamente a Lei da ADIn em matéria de intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental. Havendo norma processual mais recente e menos restritiva, é ela que deve ser doravante aplicada. Até porque, como se sabe, o Novo Código de Processo Civil foi editado com o objetivo de ser aplicado em todos os processos judiciais em trâmite no Brasil, ainda que de forma subsidiária.
2. Tratamento legal e jurisprudencial da matéria
A Lei Federal nº 9.882/1999, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1º do art. 102 da Constituição Federal”, não contemplou expressamente a possibilidade de intervenção de terceiros no processamento das ações por ela regidas.
Não obstante, diante do caráter objetivo desse tipo de ação, o Supremo Tribunal Federal jamais negou a possibilidade de admissão de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental. Veja-se o comentário do Ministro Gilmar Mendes em obra acadêmica sobre o tema:
Independentemente das cautelas que hão de ser tomadas para não inviabilizar o processo, deve-se anotar que tudo recomenda que, tal como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental assuma, igualmente, uma feição pluralista, com ampla participação de amicus curiae.[2]
De fato, uma vez que pertence ao rol de ações do chamado controle concentrado de constitucionalidade, tal como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, não há nenhuma justificativa para que não se aceite, também na arguição de descumprimento de preceito fundamental, a participação de amicus curiae. Mais ainda: por ser a mais abrangente de todas as ações dessa natureza, tudo recomendaria que a intervenção de amicus curiae nas ADPF’s fosse, inclusive, mais intensa do que nas demais ações do controle concentrado de constitucionalidade.
Assim é que, tendo em vista as premissas acima mencionadas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se consolidou no sentido de aplicar às arguições de descumprimento de preceito fundamental, por analogia, o art. 7º, § 2º, da Lei Federal nº 9.868/1999, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”. In verbis:
Art. 7º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.
[…]
§ 2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
Em recentes decisões monocráticas, membros do Supremo Tribunal Federal admitiram a intervenção de amicus curiae na ADPF 529 (Ministro Gilmar Mendes), na ADPF 548 (Ministra Cármen Lúcia) e nas ADPF’s 514 e 530 (Ministro Edson Fachin).
Anteriormente, na ADPF 187, a importância da intervenção de amicus curiae foi reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em voto da lavra do Ministro Relator Celso de Mello:
‘AMICUS CURIAE’ – (…) – PLURALIZAÇÃO DO DEBATE CONSTITUCIONAL E A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL – DOUTRINA – PRECEDENTES – (…) – DISCUSSÃO SOBRE A (DESEJÁVEL) AMPLIAÇÃO DOS PODERES PROCESSUAIS DO ‘AMICUS CURIAE’ – NECESSIDADE DE VALORIZAR-SE, SOB PERSPECTIVA EMINENTEMENTE PLURALÍSTICA, O SENTIDO DEMOCRÁTICO E LEGITIMADOR DA PARTICIPAÇÃO FORMAL DO ‘AMICUS CURIAE’ NOS PROCESSOS DE FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA.[3]
Como já mencionado anteriormente, nas arguições de descumprimento de preceito fundamental, a intervenção de amicus curiae é ainda mais recomendável e necessária do que nas outras ações do controle concentrado, como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade. Veja-se o magistério de Isabel da Cunha Bisch:
Observe-se, contudo, que o STF aponta ser necessária a distinção do instituto, quando se tratar de ADIN e de ADC, e quando se tratar de ADPF. Nas primeiras ações, há a previsão de participação de órgãos ou entidades. Por conseguinte, não poderão intervir voluntariamente pessoas físicas (cientistas, experts, advogados, professores, etc.) a não ser que haja requisição do juiz para sua manifestação. E, já que a lei da ADPF admite a manifestação de todos aqueles interessados no processo, os legitimados a atuarem como amicus curiae formariam rol mais extenso [grifo acrescido].[4]
O próprio STF, em decisão monocrática da lavra do Ministro Menezes Direito, indicou no ano de 2007 que “a Lei nº 9.882/99, que disciplina as argüições de descumprimento de preceito fundamental, é mais flexível a respeito da possibilidade de terceiros poderem se manifestar nos autos”, pois “não exige que o postulante tenha alguma representatividade, bastando que demonstre interesse no processo”.[5]
Embora tenha sido desenvolvido na década anterior, o argumento utilizado pelo Ministro Menezes Direito se coaduna com a orientação constante no art. 138 do Novo Código de Processo Civil, que entrou em vigor no mês de março de 2016:
Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.
§ 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º.
§ 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.
§ 3º O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em nítido movimento de evolução, e certamente buscando inspiração na sistemática processual das ações do controle concentrado de constitucionalidade, o art. 138 do recente Código de Processo Civil veio a lume com a previsão de abertura democrática dos processos judiciais em trâmite no Brasil.
Por mais que a ação direta de inconstitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental possuam trâmite processual próprio, previsto em leis específicas, a aplicação subsidiária e complementar do Código de Processo Civil jamais foi questionada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.[6]
E mais: considerando que a Lei da ADPF é silente no que diz respeito à participação de amicus curiae, e que a Lei da ADIn, nesse aspecto, é mais restritiva do que o novo CPC, tudo recomenda que, ao menos no contexto das ADPF’s, seja aplicado o diploma mais recente. Ou seja, em vez de empreender analogia com a Lei da ADIn, o que se defende aqui é uma analogia, ou melhor, uma aplicação subsidiária do Novo CPC à espécie.
Não se deve nunca esquecer que “o amicus curiae é um terceiro que intervém em um processo, do qual ele não é parte, para oferecer à corte sua perspectiva acerca da questão constitucional controvertida, informações técnicas acerca de questões complexas cujo domínio ultrapasse o campo legal ou, ainda, defender os interesses dos grupos por ele representados, no caso de serem, direta ou indiretamente, afetados pela decisão a ser tomada”[7].
3. Possíveis e devidos temperamentos
Evidente que uma abertura irrestrita da ADPF para a manifestação de todo e qualquer interessado poderia, a médio e longo prazo, inviabilizar o próprio trabalho da Corte, mais prejudicando do que favorecendo o trâmite das arguições de descumprimento de preceito fundamental. Por isso é que é importante ressaltar que o que se defende aqui não é o deferimento automático de todo e qualquer pedido de ingresso de particulares na condição de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental.
Nesse sentido, parece natural que o Supremo Tribunal Federal continue a analisar, caso a caso, a pertinência ou a impertinência da participação dos interessados nesse tipo de processo – independentemente do fato de serem particulares, órgãos ou entidades –, inclusive de forma monocrática e irrecorrível, nos termos da jurisprudência atualmente em vigor. Além disso, poder-se-ia exigir desses interessados alguns requisitos básicos para o ingresso na ADPF, como a demonstração de pertinência temática ou de representatividade, considerando a matéria em discussão na causa.
O que parece ultrapassado, com a edição do novo Código de Processo Civil, é uma jurisprudência que barra o ingresso de um potencial amicus curiae na arguição de descumprimento de preceito fundamental apenas e tão somente pelo fato de este não constituir formalmente “órgão ou entidade”, como se os particulares, individualmente ou em grupo, não pudessem, de forma satisfatória e eficaz, contribuir para a resolução da arguição de descumprimento de preceito fundamental, na condição de amigos da corte.
[1] Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[2] MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 126.
[3] STF, ADPF 187. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 15/06/2011.
[4] BISCH, Isabel da Cunha. O Amicus Curiae, as Tradições Jurídicas e o Controle de Constitucionalidade: um estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 109.
[5] STF, ADC 18. Relator: Ministro Menezes Direito. Julgamento em 14/11/2007.
[6] A propósito, vale a pena transcrever trechos do decisum cautelar proferido nos autos da ADI 5316: “MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 88/2015. CUMULAÇÃO DE AÇÕES EM PROCESSO OBJETIVO. POSSIBILIDADE. ART. 292 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA […]. A cumulação simples de pedidos típicos de ADI e de ADC é processualmente cabível em uma única demanda de controle concentrado de constitucionalidade, desde que satisfeitos os requisitos previstos na legislação processual civil (CPC, art. 292)” (STF, ADI 5316 MC/DF. Relator: Min. Luiz Fux. Julgamento: 21/05/2018).
[7] MEDINA, Damares. Amicus Curiae: Amigo da Corte ou Amigo da Parte? São Paulo: Saraiva, 2010, p. 17.
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