
Por que e como transformar uma Sociedade Limitada em uma Sociedade Anônima?
1. Introdução
O ordenamento jurídico brasileiro traz diversos tipos societários para compor o mercado empresarial. A Sociedade Empresária de Responsabilidade Limitada (LTDA.) e a Sociedade Anônima (S.A.) são amplamente utilizadas no mercado empresarial brasileiro, tendo estratégias constitutivas diferentes, ou seja, o motivo pelo qual se constitui uma ou outra segue uma lógica específica.
Nesse sentido, é possível realizar a transformação de uma Sociedade Limitada (LTDA.) em Sociedade Anônima (S.A.) por motivação estratégica, como, por exemplo, o aumento do capital social e do número de sócios, a obtenção de financiamentos mais robustos, a reestruturação interna para atrair potenciais investidores externos ou até mesmo a preparação para potencial futuro lançamento de valores mobiliários na bolsa de valores.
2. Diferenças entre Sociedade Limitada e Sociedade Anônima
Primeiramente, é importante a compreensão das diferenças entre os dois tipos societários, considerando o seu real impacto na atividade econômica exercida.
A Sociedade de Responsabilidade Limitada é regida pelo Código Civil de 2002 (artigos 1.052 a 1.087) e de maneira supletiva pelas normas das sociedades simples, além de poder seguir os dispositivos das Lei das Sociedades Anônimas, de forma supletiva, se assim estipulado no seu contrato social, e possui estrutura jurídica menos complexa e mais flexível.
Nesse sentido, tem-se que o ato constitutivo para uma Sociedade Limitada é o contrato social, e o capital social estabelecido neste divide-se em quotas, as quais representam a participação de cada sócio no empreendimento. Portanto, cada sócio possui responsabilidade limitada à sua participação societária, desde que o capital social esteja integralizado, respondendo todos eles solidariamente pela integralização, caso algum sócio deixe de transferir as quantias prometidas no ato da constituição da sociedade ou do aumento de capital.
Além disso, por sua estrutura de quotas, a entrada de novos sócios em uma LTDA. pode ser mais complexa, dependendo da alteração do contrato social e da aprovação dos sócios, sujeitando-se ao que estiver disciplinado no ato constitutivo (regra geral, na omissão, a entrada de terceiros ao quadro societário depende da não oposição por 25% do capital social – artigo 1.057 do CC/02). Por isso e pelo fato de o Código Civil pouco disciplinar sobre direito dos sócios minoritários, as LTDAs. são menos atrativas para investidores profissionais.
Já a Sociedade Anônima, tanto de capital aberto quanto fechado, é regida por Lei específica (Lei n° 6.404/76), que define requisitos de governança mais complexos rígidos e formais, em espécie societária originariamente voltada para a captação de investimento externo. No que se refere à abrangência desta captação, as Sociedades Anônimas podem ser divididas em duas categorias: capital aberto, quando opera na bolsa de valores ou no mercado de balcão, ou capital fechado, quando não oferta valores mobiliários ao público em geral.
Em relação ao ato constitutivo, o Estatuto Social traz vida à S.A. e nele divide-se o capital social em ações, que podem ser ordinárias ou preferenciais (trazendo vantagem ao acionista, como, por exemplo, prioridade na distribuição de dividendos, em troca da retirada do direito de voto). Ademais, diferentemente do que ocorre na LTDA., na Sociedade Anônima, os acionistas têm responsabilidade limitada ao preço de emissão das ações que adquiriram. A responsabilidade de cada acionista termina no ato da compra das ações, sem possibilidade de responsabilização solidária caso algum(ns) do(s) acionista(s) não integralize(m) os valores prometidos.
Sobre a possibilidade de novos acionistas e investidores, as Sociedades Anônimas de capital fechado, mesmo sem acesso ao mercado de capitais (bolsa de valores e mercado de balcão), ainda oferecem maior facilidade para atraí-los. Novos acionistas podem ser incluídos mediante a compra de ações sem a necessidade de uma alteração estatutária, tornando o processo mais ágil.
Além disso, a Sociedade Anônima é espécie empresarial cujo vínculo societário se forma por razões exclusivamente comerciais, importando muito pouco “quem” é o acionista. Assim, diferente das Limitadas, a livre circulação de ações é considerada premissa essencial e só pode ser restringida se seguidas determinadas regras, e apenas se a S/A for de capital fechado (artigo 36 da Lei nº 6.404/76).
Outra diferença reside na impossibilidade (segundo entendimento majoritário) de, nas Sociedades Anônimas, realizar a exclusão de sócio minoritário. Diferente do Código Civil, a Lei nº 6.404/76 não prevê a possibilidade de a maioria do capital social expulsar um acionista, ainda que ele esteja atrapalhando o desenvolvimento da empresa ou descumprindo suas obrigações sociais (ressalvado em caso de remissão em S.A de capital aberto). O máximo que se pode fazer é, por meio de assembleia geral, suspender direitos do acionista até que a obrigação seja cumprida (artigo 120 da Lei nº 6.404/76).
Também é de se destacar que, enquanto nas LTDAs. a forma de distribuição ou retenção de lucros é assunto a ser livremente estipulado no contrato social, nas S.A. o assunto é mais delicado, visto que a Lei nº 6.404/76: (i) não prevê a possibilidade de distribuição desproporcional de lucros (a participação no capital social deve refletir o mesmo percentual de dividendos); e (ii) exige que o Estatuto Social preveja distribuição mínima de lucros sob pena de, na omissão, se ver obrigada a distribuir ao menos 50% do lucro líquido, salvo concordância unânime de todos os acionistas na S.A. de capital fechado (artigo 202 da Lei nº 6.404/76).
Por fim, uma importante mudança operacional que ocorre quando uma LTDA. vira S.A é a forma de convocação e realização de assembleia geral. Diferente das limitadas, os acionistas das S.A. não podem se reunir em simples reunião (convocada na forma livremente estipulada no contrato social), mas devem, obrigatoriamente, realizar assembleia geral convocada na forma do artigo 124 da Lei nº 6.404/76, vedada a substituição por documento escrito.
3. Principais aspectos e impactos da transformação:
Compreendendo as principais diferenças entre os dois tipos societários, é necessário observar os impactos da transformação de uma sociedade limitada em uma sociedade anônima de capital fechado.
A priori, compreende-se que a transformação implica na mudança de regime jurídico, trazendo alterações significativas principalmente em relação à governança corporativa, transparência e prestação de contas. Assim, devem ser observados os seguintes pontos anteriormente à transformação:
- Capital Social e Ações: A transformação exige a adaptação do capital social existente para a forma de ações, o que implica na emissão e distribuição dessas ações entre os sócios que participavam da sociedade limitada.
- Estrutura de Governança: Uma das principais mudanças ao se adotar o regime de sociedade anônima é a necessidade de uma estrutura de governança mais robusta, com um conselho de administração (caso a empresa opte por instituí-lo), um conselho fiscal (ainda que não permanentemente operante) e uma diretoria.
- Relacionamento com acionistas minoritários: Nas LTDAs., qualquer sócio pode exigir a apresentação de livros e balanços empresariais. Nas S.A., esse direito é restringido ao âmbito judicial, desde que haja justo receio de fraudes (artigo 105 da Lei nº 6.404/76). Em compensação, os sócios minoritários das S.A. (até mesmo os que detêm apenas 5-10% do capital) recebem uma série de outros direitos não previstos nas LTDAs., como: exigir a adoção de voto múltiplo em assembleia de eleição do conselho e ajuizar ação de responsabilização do administrador ainda que contra a vontade da maioria do capital social.
- Responsabilidade de administradores e controlador: Diferente do que ocorre no Código Civil, a Lei nº 6.404/76 disciplina de forma minuciosa os deveres dos administradores e controladores das S.A. Se alguma norma for violada, caracterizando-se abuso do poder de controle ou má-administração, os acionistas minoritários terão maior segurança jurídica para responsabilizar o culpado, mesmo que contra a vontade do acionista majoritário.
- Aspectos Tributários: A transição para uma S.A. gera implicações fiscais e tributárias, podendo ser vantajoso em alguns casos, devido à possibilidade de melhores condições de captação de recursos e incentivos fiscais, mas desvantajosas em outros, em razão da complexidade do tipo societário, uma vez que demanda planejamento tributário específico e realizado por profissionais especializados para a diminuição da carga fiscal. Um ponto de extrema relevância é a escolha do regime tributário, uma vez que as LTDAs. possuem maior flexibilidade, podendo optar pelo Simples Nacional, Lucro Presumido ou o Lucro real, a depender do faturamento da sociedade, enquanto que ao se transformarem em Sociedades anônimas, as exigências se tornam mais rigorosas, prevalecendo o regime do Lucro Real, o qual exige um maior controle contábil, já que reflete o lucro líquido da sociedade.
- Forma de escrituração contábil: A Lei nº 6.404/76 trata de forma bastante minuciosa o regime fiscal das S.A., que é diferente do regime previsto no Código Civil. Algumas minúcias devem ser adequadas quando ocorre a transformação, como, por exemplo, a mudança do regime contábil “de caixa” para “de competência”, além da elaboração de outros documentos não exigíveis nas LTDAs.
Realizada a consideração e ponderação dos impactos da alteração do tipo societário e entendendo os sócios que a transformação é a melhor estratégia para a vida da sociedade, é necessário a realização de uma reunião ou assembleia geral de sócios para a aprovação da operação, cujo quórum é de unanimidade (artigo 1.114 do Código Civil). Após a aprovação, registra-se a alteração na Junta Comercial, atualizando os atos constitutivos da empresa, que passará a ser regida por um Estatuto Social.
Para isso, é essencial que os sócios: (i) convoquem regularmente a reunião/assembleia, (ii) estejam todos de acordo com a matéria, de forma unânime, (iii) estejam cientes de todas as implicações jurídicas, visto que as S.A. são tipos societários muito mais complexos do que as LTDAs., e isso trará consequências para o dia-a-dia da administração da sociedade, (iv) já tenham uma minuta de Estatuto Social elaborada, e (v) tenham definido como será realizada a administração da sociedade, a fim de elaborar as atas de eleição da diretoria e, sendo o caso, dos conselhos de administração e fiscal (e demais cargos estatutários).
4. Conclusão
Em conclusão, entende-se que a transformação de uma sociedade limitada em uma sociedade anônima de capital fechado é uma decisão estratégica que pode impulsionar o crescimento da empresa. No entanto, essa decisão exige um planejamento minucioso, incluindo uma análise das mudanças administrativas, das exigências legais e do impacto financeiro. Com uma estrutura de S.A., a sociedade poderá contar com uma base mais sólida para atrair investidores e enfrentar os desafios do mercado com maior capacidade competitiva, desde que ela esteja jurídica, contábil e financeiramente madura para tal.
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A melhor forma de usar as Sociedades em Conta de Participação (SCP)
1. O QUE É UMA SCP (SOCIEDADE EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO)?
Se você atua no meio empresarial, é muito provável que já tenha ouvido falar das SCPs. Algum investidor pode ter pedido para sua empresa constituir uma SCP, ou algum empresário pode ter pedido que você integralizasse bens ou valores em uma SCP. Mas afinal, o que é isso? Tem problema colocar o seu dinheiro em uma SCP? É uma operação segura?
São perguntas que responderemos ao longo deste texto.
O termo SCP é uma sigla para “Sociedade em Conta de Participação”, uma espécie de “sociedade” despersonalizada criada pelo Código Civil brasileiro em seus artigos 991 a 996. Apesar do nome “sociedade”, na prática, as SCPs não são verdadeiras sociedades (ou seja, não são uma “empresa”, como comumente falamos), mas uma espécie de contrato de investimento.
Ao constituir uma SCP, os contratantes delimitam, no contrato social, quais serão os sócios que atuarão ostensivamente em nome da SCP e quais serão os sócios que apenas contribuirão de forma financeira com a SCP. Os primeiros são chamados de “sócios ostensivos”, e respondem ilimitadamente e exclusivamente pelas obrigações assumidas pela SCP (não há separação patrimonial), enquanto os demais são chamados “sócios participantes” ou “sócios ocultos”, que participam dos resultados (se existirem) sem assumir qualquer obrigação perante terceiros (artigo 991 do Código Civil).
Apesar do nome “sócio oculto”, não há qualquer ilegalidade (pelo contrário, as SCPs estão previstas em Lei), visto que a ocultação ocorre apenas perante terceiros, e não perante as autoridades públicas.
Ou seja, nas SCPs, um grupo de sócios “toca” o negócio, enquanto os outros apenas injetam capital e acompanham o desenvolvimento da operação, sem ter que tratar com terceiros, fornecedores, credores, devedores, etc. da SCP, atos que são de exclusiva competência do “sócio ostensivo”. Aliás, os “sócios participantes” estão até mesmo vedados de participar ostensivamente das operações e, se tomarem parte nos negócios do sócio ostensivo, passarão a com ele responder solidariamente pelas obrigações da SCP (artigo 993, parágrafo único, do Código Civil).
Em síntese, significa dizer que o sócio ostensivo executa o objeto social, assumindo inteira responsabilidade pelo negócio, enquanto o sócio participante assume obrigações única e exclusivamente perante o sócio ostensivo, obrigação esta consubstanciada no dever de integralizar (aportar) valores na SCP.
2. PARA QUE SERVE UMA SCP E EM QUE CASOS ADOTÁ-LA?
Pelo contexto legal das SCPs, é possível dizer que essas “sociedades” servem ao empresário que quer realizar determinado projeto e precisa de investidores (capital), mas não quer formar sociedade com eles (ou admitir a entrada de tais investidores em sociedade já constituída). Em outras palavras, por qualquer motivo que seja, (i) não quer manter um vínculo duradouro com os investidores, (ii) não quer manter um vínculo público com determinado investidor, (iii) não quer compartilhar lucros e resultados de toda a empresa com os investidores, mas apenas de negócio(s) específico(s) e determinado(s) e (iv) não quer que os investidores conduzam a operação investida (geralmente porque só ele detém o conhecimento técnico para executar o objeto social).
O contrário também é verdadeiro para o caso do investidor que (i) não quer tornar público que está investindo em determinado negócio ou em determinada sociedade, (ii) não quer assumir os riscos de toda a sociedade investida, mas só de determinado negócio, e (iii) não tem expertise alguma no negócio investido e, por isso, não quer/pode assumir qualquer interlocução com terceiros (fornecedores, credores, devedores, etc.).
Geralmente, é muito comum adotar a estruturação de SCPs em operações imobiliárias, em que a incorporadora (construtora do empreendimento) atua como sócia ostensiva e assume todas as obrigações referentes às obras, enquanto os sócios participantes apenas aportam valores e, como contraprestação, recebem unidades autônomas ou dividendos da operação.
As SCPs também são muito usadas no mercado de investimentos, em que uma empresa especializada busca investidores qualificados para, com a monta angariada, realizar o aporte em operação específica. Por exemplo: uma sociedade de investimentos agrupa 100 investidores, cada um aportando 1 milhão de reais na SCP e, com os 100 milhões adquiridos pela conta de participação, investe em um negócio e divide os rendimentos entre os 100 participantes.
No ramo hoteleiro a estruturação de projetos por meio de SCPs também é comum. Nesse caso, proprietários de um bem imóvel que pode ser utilizado como hotel constituem uma SCP com uma rede hoteleira. Os proprietários atuam como sócios participantes, por meio da cessão de uso do imóvel, ao passo que a rede hoteleira atua como sócia ostensiva, gerenciando o hotel (contrata funcionários, gerencia as reservas, cuida da operacionalização do hotel etc.). As receitas são posteriormente distribuídas entre os sócios participantes e a sócia ostensiva, nos termos do contrato de SCP.
No geral, a SCP pode ser utilizada (e é recomendável) em qualquer investimento em que o sócio ostensivo deseja assumir os riscos, recebendo uma contraprestação por isso (geralmente uma taxa de administração), e os sócios participantes não desejam se expor tanto, seja por vontade própria, seja por vontade do sócio ostensivo. E veja que não há qualquer irregularidade na ocultação dos sócios participantes, pois trata-se de mera divisão de riscos realizada entre as partes que é, inclusive, incentivada pelo direito (tanto que a SCP está expressamente prevista no Código Civil).
3. CONSTITUIR UMA SCP OU ADOTAR OUTRAS ESTRATÉGIAS?
A SCP não é uma estratégia “melhor” ou “pior” do que outras. Ela pode se encaixar, ou não, no que pretende alcançar o empreendedor. Às vezes, é melhor constituir uma sociedade de propósito específico, um consórcio ou até mesmo celebrar um simples contrato de investimento. Abaixo, vamos apresentar as diferenças para que o leitor possa compreender as vantagens e desvantagens desta modelagem comercial.
a. Constituir uma SCP ou um Consórcio?
Tanto a SCP como o consórcio não possuem personalidade jurídica. No entanto, os consórcios precisam ter seus atos constitutivos registrados nas juntas comerciais (artigo 279, parágrafo único, da Lei nº 6.404/1976), o que permite que quaisquer terceiros tenham acesso ao contrato firmado pelas partes e, logicamente, à identidade de todas elas. Na SCP, esse registro não é necessário, impossibilitando que terceiros não autorizados pelo sócio ostensivo tenham acesso ao contrato da SCP.
Além disso, geralmente os contratos de consórcio definem a necessidade de que todas as sociedades participantes partilhem obrigações assumidas com terceiros (divisão de atribuições entre os consorciados para atingir o fim comum). Nas SCPs, isso é expressamente vedado, cabendo unicamente ao sócio ostensivo a prática de atos perante terceiros (aos sócios participantes cabe apenas o aporte de recursos).
b. Constituir uma SCP ou uma SPE?
Uma SPE (sociedade de propósito específico) é uma sociedade constituída em alguma das formas permitidas em Lei (geralmente uma sociedade limitada – LTDA.) tendo como única diferença o fato de que a sua criação foi realizada para um objetivo específico que, após alcançado, atrairá a extinção da pessoa jurídica.
Sendo ente jurídico personalizado (diferente das SCPs), o registro de seus atos constitutivos (contrato ou estatuto social) deverá ser realizado em cartório ou junta comercial (a depender de deter a SPE caráter simples ou empresarial), o que fará com que qualquer pessoa possa identificar os sócios da SPE, mesmo contra a vontade deles. Como dito, na SCP este registro é dispensável, impossibilitando que terceiros tenham acesso aos dados dos sócios participantes.
c. Constituir uma SCP ou uma limitada (LTDA.)?
Os pontos acima indicados para a SPE se aplicam integralmente para as sociedades empresárias limitadas (LTDA.). Ou seja: nas sociedades de responsabilidade limitada é obrigatório o registro do contrato social na junta comercial, tornando público a qualquer interessado as informações referentes aos seus sócios. Nas SCPs este registro não é devido, o que permite a “ocultação” dos sócios participantes.
De toda forma, como contraponto, a constituição de LTDA. permite que a responsabilidade de todos os sócios esteja limitada ao aporte a ser realizado no capital social. Na SCP, por sua vez, a responsabilidade da(s) sócia(s) ostensiva(s) é ilimitada, tanto perante terceiros quanto perante os sócios participantes.
Outro ponto relevante é que, sendo sócio de uma sociedade limitada, os sócios participam da distribuição de lucros de toda a empresa, bem como tomam parte (votam) em reuniões e assembleias referentes a toda a operação empresarial. Nas SCPs isso não ocorre, pois os sócios participantes não participam do quadro social da sócia ostensiva e, logo, só possuem direitos de recebimento de dividendos gerados pela própria SCP e de votarem em matérias relativas exclusivamente à SCP.
Tantos nas SCPs, SPEs, quanto nas LTDAs., é possível estipular que a duração da associação das partes se dará por tempo determinado ou indeterminado.
d. Constituir uma SCP ou fundar uma S/A?
Nas sociedades anônimas (S/As) também é necessário realizar o registro dos atos constitutivos nas juntas comerciais, mas nestes casos o quadro de sócios não é facilmente acessível para terceiros. Isso porque o registro da relação de acionistas das S/A é feito por meio de livro de registro de ações nominativas ou nos livros da instituição financeira depositária das ações.
A dificuldade de acesso, no entanto, não impede que terceiros tomem conhecimento dos dados de alguns acionistas de forma indireta. Ainda que não haja registro expresso de sócios na junta (de forma pública), o interessado ainda pode acessar as atas de assembleias gerais e verificar os dados de alguns dos acionistas que estavam presentes ou que votaram nos conclaves.
Ou seja, apesar de a S/A criar certo obstáculo para a descoberta dos acionistas, se este for o único objetivo do empreendedor, a SCP é mais eficiente.
Assim como nas LTDAs., todos os acionistas são sócios da S/A e participam da distribuição de lucros e das assembleias de temas referentes à toda a atividade empresarial desenvolvida pela S/A. Nas SCPs, as participações em lucros e em deliberações estarão limitadas às operações da SCP (o sócio participante não se imiscui na gestão interna da sócia ostensiva).
e. Constituir uma SCP ou firmar contrato de investimento?
A grande diferença prática de uma SCP para um contrato de investimento é a facilidade prática da SCP para alguns casos: se houver uma grande quantidade de investidores, é mais fácil firmar um contrato padrão com todos eles, de uma só vez (ou seja, uma SCP). Se forem poucos os investidores, ou se as condições negociais com cada um deles for bastante divergente, é mais simples firmar um contrato de investimento com cada um.
4. COMO CONSTITUIR UMA SCP?
Qualquer pessoa capaz pode ser sócia ostensiva ou sócia participante de uma SCP. Assim, podem atuar como operadores ostensivos do negócio tanto pessoas naturais quanto jurídicas (uma sociedade LTDA. ou S/A pode constituir uma SCP). Da mesma forma, podem investir em uma SCP tanto pessoas naturais quanto jurídicas (uma sociedade LTDA. ou S/A pode aportar valores em uma SCP).
Para criar uma SCP, é preciso celebrar um contrato. Neste contrato, dentre outros temas acessórios, serão reguladas as atribuições do sócio ostensivo, a forma de participação dos sócios ostensivos e participantes (percentual detido por cada um, modo de pagamento, valor do aporte, contraprestação, etc.), o objeto a ser explorado pela SCP, a formação e gestão da conta de participação (conta bancária em que serão concentrados os valores captados pela SCP) e a forma de extinção da SCP, quando esgotado o seu objetivo.
Como dito ao longo do texto, este contrato não precisa ser registrado na junta ou no cartório, mas é importante que todas as partes detenham uma cópia, permitindo que seja possível comprovar documentalmente a existência da SCP entre eles. Ainda assim, o sócio ostensivo precisa realizar o registro da SCP na Receita Federal para fins fiscais, obtendo um CNPJ para ela (mas isso não fará com que os sócios participantes sejam expostos).
Acha que a constituição de uma SCP é a melhor modelagem societária para o seu negócio? Estamos aqui para te ajudar, entre em contato!
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Exclusão Extrajudicial de Sócio em Sociedade Limitada
1. SUA EMPRESA É UMA SOCIEDADE LIMITADA (LTDA)?
A Sociedade Empresária de Responsabilidade Limitada (LTDA.) representa o tipo societário mais utilizado na praxe comercial brasileira, e é sobre ela que iremos tratar neste artigo. Se sua empresa for uma sociedade anônima (S/A), a exclusão extrajudicial de sócios é um tema mais delicado e, em razão da inexistência de previsão legal, existe intensa divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a (i)legalidade da expulsão[1].
No entanto, a partir do momento em que constituídas, uma dúvida que sempre surge aos empreendedores é: o quadro societário só pode sofrer alterações voluntárias, por unanimidade dos sócios, ou um sócio pode deliberar pela exclusão de outro(s) sócios(s), mesmo contra a vontade do excluído? E, nesse último caso, é necessário acionar a Justiça?
2. DOS REQUISITOS PARA A EXCLUSÃO DOS SÓCIOS NAS SOCIEDADES LIMITADAS.
Existem três formas de saída de um sócio de uma sociedade: (i) uma na qual o próprio sócio que deseja se retirar pede para sair da empresa por meio do exercício do direito de retirada (artigo 1.029 do Código Civil), (ii) duas, em que o sócio comete falta grave e é expulso por meio de ação judicial ajuizada com este fim (artigo 1.030 do Código Civil) e (iii) três, pela qual os demais quotistas utilizam-se do percentual majoritário do capital social (mais de 50%) para, comprovada a existência de justa causa, excluir extrajudicialmente o sócio contra sua vontade (artigo 1.085 do Código Civil).
Em relação ao direito de retirada, a própria Constituição Federal de 1988 traz, em seu artigo 5°, XX, que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”, podendo o sócio que assim desejar utilizar-se de seu direito de retirada, saindo por vontade própria do quadro societário da pessoa jurídica, mesmo que os demais sócios não concordem com a saída dele. Se a sociedade for de tempo determinado, é necessário ajuizar ação para comprovar justa causa e, sendo de tempo indeterminado, basta o pedido extrajudicial com antecedência mínima de 60 (sessenta dias), conforme artigo 1.029 do Código Civil.
Por outro lado, a exclusão extrajudicial do sócio (retirada forçada), foi expressamente prevista no artigo 1.085 do Código Civil de 2002, no qual se estabeleceu que: “(…) quando a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa”.
Observa-se que, para ser possível a exclusão extrajudicial de um sócio do quadro societário, é necessária a verificação de três pressupostos: previsão no contrato social, que o sócio a ser excluído detenha menos da metade do capital social e haja justa causa. Vamos analisar cada um deles.
- Previsão no contrato social: deve haver previsão expressa no contrato social de que os sócios podem ser excluídos extrajudicialmente e, se não houver, será necessário ajuizar ação judicial (artigo 1.030 do Código Civil). A previsão legal contida no artigo 1.085 do Código Civil não supre a omissão, interpretando-se a ausência como discordância dos sócios pela sua aplicação.
- O sócio a ser excluído deve deter menos da metade do capital social: o artigo 1.085 do Código Civil exige quórum de maioria do capital social para a exclusão do sócio, tornando impossível que um sócio detentor de mais da metade do capital (mais de 50%) seja excluído extrajudicialmente. Assim, apenas sócios que detenham 49,999%, ou menos, das quotas sociais podem ser excluídos desta forma.
- Deve haver justa causa: Para ser excluído de uma sociedade, o sócio deve estar atrapalhando a atividade comercial, não bastando para tal a simples desavença ou desentendimento pessoal entre os sócios (a famosa “quebra de affectio societatis”). Como diz a Lei, o sócio deve ter cometido “ato de inegável gravidade” que esteja “pondo em risco a continuidade da empresa”.
Assim, compreende-se que, no caso da exclusão extrajudicial (art. 1.085 do Código Civil), apenas os sócios que detenham participação inferior a 50% poderão ser atingidos, uma vez que é necessário a deliberação de mais da metade do capital social. Caso o sócio que se queira excluir possua 50% + 1 quota, ou em qualquer caso, na hipótese de inexistir previsão expressa da exclusão extrajudicial no contrato social, será necessário ajuizar ação judicial para demonstrar a falta grave cometida por ele (artigo 1.030 do Código Civil).
Uma dúvida que se põe neste ponto é: se nenhum sócio possuir mais de 50% do capital social, ainda é possível excluir os demais sócios? E a resposta é positiva, pois o artigo 1.085 do Código Civil apenas menciona que o quórum deve ser de maioria do capital social, sem distinção. Assim, os sócios podem unir suas participações para, juntos, excluírem o quotista faltoso. Por exemplo, em uma empresa com 10 sócios em que cada um possua 10% do capital social, é possível realizar a exclusão extrajudicial de qualquer um deles, desde que haja voto favorável de pelo menos 6 (60%, mais de 50%) quotistas.
Além disso, o sócio deve ter cometido um ato que efetivamente tenha afetado o bom andamento da empresa, não bastando para tal a alegação de mera quebra de “affectio societatis”, quebra de confiança ou outros argumentos genéricos deste tipo. O pretenso excluído deve estar descumprindo suas obrigações assumidas ou atrapalhando o desenvolvimento da empresa (por exemplo, dificultando vendas, desviando clientela, esvaziando o patrimônio da sociedade, dificultando relacionamento com credores, devedores e fornecedores, tumultuando assembleias/reuniões, etc.).
Se qualquer destes pressupostos não estiver presente, a exclusão do sócio será considerada ilegal e passível de ser levada ao Poder Judiciário, que pode até mesmo anular a deliberação e ordenar a recondução do sócio ao quadro societário.
3. DO PROCEDIMENTO PARA EXCLUSÃO DE SÓCIO DE LTDAS.
Estando presentes os requisitos, a exclusão do sócio pode ser decidida em uma reunião ou assembleia convocada especificamente para esse propósito. Nesse caso, o sócio deverá ser notificado com antecedência suficiente para que possa exercer seu direito de defesa.
Vale lembrar que a assembleia de sócios, disposta no artigo 1.072 do Código Civil, é obrigatória apenas para sociedades com mais de 10 sócios. Em sociedades com até 10 sócios, as deliberações podem ser realizadas em reuniões.
A realização da assembleia/reunião, convocada nos termos do contrato social e da Lei, bem como a garantia de prazo para que o sócio apresente sua defesa, são pontos bastante relevantes: o sócio excluído deve ter efetivamente a oportunidade de ser notificado com antecedência e se defender das acusações imputadas. Se não lhe for permitido o direito de contraditório e ampla defesa, a deliberação também poderá ser anulada pelo Poder Judiciário.
Após a realização da reunião ou assembleia e a decisão pela exclusão do sócio, a ata e a alteração do contrato social devem ser encaminhadas à Junta Comercial para arquivamento, uma vez que a exclusão do sócio naturalmente implica mudanças no quadro societário.
Além disso, ao se resolver em relação a um sócio, deverão ser pagos a ele o valor de sua quota (apuração e pagamento de haveres). O artigo 1.031 do Código Civil afirma que, salvo disposição contrária no contrato social, o valor será calculado com base na situação patrimonial da sociedade, por meio de balanço especialmente levantado. Determina-se, ainda, a redução do capital social, salvo se os sócios remanescentes suprirem o valor da quota, e o pagamento dos haveres no prazo de 90 (noventa) dias a partir da resolução, prevalecendo a disposição do contrato social, se contrária.
Todos estes pontos (alteração do quadro societário e diminuição ou recomposição do capital social) podem ser resolvidos em uma mesma alteração ao contrato social. O pagamento dos haveres, por sua vez, também pode se dar de forma extrajudicial e nos termos do que estiver previsto no contrato social, não sendo necessário ajuizar ação de apuração de haveres contra o excluído.
4. CONCLUSÃO
Em conclusão, a exclusão extrajudicial de sócio em sociedade limitada configura-se como um procedimento sensível e rigorosamente regulamentado pela legislação brasileira. As disposições do Código Civil estabelecem requisitos essenciais para a exclusão, que deve ocorrer por justa causa e com base em critérios objetivos previstos no contrato social. A exigência de justa causa protege o sócio de arbitrariedades e assegura que a exclusão ocorra somente quando os atos do sócio representem um risco grave à continuidade da sociedade.
O procedimento para exclusão deve ser realizado de forma transparente, garantindo o direito de defesa ao sócio em questão. A realização de reunião ou assembleia específica, com registro e arquivamento da decisão na Junta Comercial, resguarda o processo e assegura a conformidade com os requisitos legais. Ademais, a previsão do pagamento de haveres ao sócio excluído, de acordo com o descrito no contrato social, reforça o compromisso da legislação em equilibrar os interesses dos sócios remanescentes e do sócio retirado.
[1] Desfavoravelmente, há STJ – Recurso Especial 1.459.190/SP. Comentário por Marcelo Vieira von Adamek. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 33. ano 9. p. 447-473. São Paulo: Ed. RT, out./dez. 2022.
Read MoreSe a Administração Pública deixar de pagar por mais de 90 dias, a empresa contratada não precisa de autorização judicial para suspender a execução das suas obrigações contratuais.
Enunciado 6 – O atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional.
As licitações e contratos administrativos firmados pela Administração Pública direta e por parcela[1] da Administração indireta são regidos, regra geral, pela Lei Federal nº 8.666/1993, que estabelece normas gerais pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Esta Lei prevê, em seu artigo 78, diversas hipóteses que constituem motivo para a rescisão do contrato administrativo celebrado com a Administração Pública. Para o que interessa ao assunto que se está abordando, vale transcrever in verbis o inciso XV do artigo 78:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
[…]
XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;
A regra é clara: se o Poder Público não cumprir com a contraprestação financeira acordada em contrato, por mais de 90 dias, a empresa contratada está autorizada a rescindir o contrato, o que só pode ser realizado por decisão judicial, ou a suspender o cumprimento das suas obrigações, ou seja, autoriza-se a suspensão do contrato até o cumprimento por parte da Administração. Este dispositivo trata de ferramenta extremamente valiosa para as empresas contratadas, as quais estão situadas em uma posição de fragilidade jurídica em comparação às prerrogativas da Administração em matéria de contrato administrativo.
A bem da verdade, o artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993 positiva e atrai ao campo das licitações e contratos administrativos a oponibilidade da exceção do contrato não cumprido, também conhecida como exceptio non adimpleti contractus.
Em matéria de direito privado, esta hipótese está prevista nos artigos 476 e 477 do Código Civil[2], os quais vedam a possibilidade de que algum dos contratantes exija, antes de cumprida a sua obrigação, o implemento da do outro. Já no que toca ao campo dos contratos administrativos, MARÇAL JUSTEN FILHO entende que “A exceptio non adimpleti contractus adquire configuração específica no campo dos contratos administrativos”, sendo admitida a recusa do contratado em desempenhar as suas obrigações “quando a Administração incorrer em atraso superior a noventa dias do pagamento de obras, serviços ou fornecimento já realizados (art. 78, XV)”[3].
Por óbvio, a hipótese de rescisão/suspensão contratual ventilada não é aplicada sem que haja controvérsia sobre os seus efeitos e, especialmente, sobre a possibilidade de que a empresa contratada simplesmente decida, proativamente, suspender a execução das suas obrigações contratuais.
Com o objetivo de trazer mais clareza a esse instituto, tão importante para fortalecer a segurança jurídica no âmbito dos contratos administrativos e evitar que os contratados sejam obrigados a manter execução contratual em franco prejuízo, este tema foi objeto de discussão na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, tendo sido aprovado o Enunciado 6 com o seguinte teor:
Enunciado 6
O atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional.
De acordo com o texto do enunciado aprovado, que repete em boa parte o conteúdo do dispositivo legal, um detalhe, que já foi objeto de controvérsia, torna-o importante ferramenta para tornar mais clara e efetiva a incidência da hipótese do inciso XV do artigo 78 da Lei nos casos concretos: a prescindibilidade de que a empresa contratada obtenha autorização judicial para suspender o cumprimento das suas obrigações contratuais.
Ao que parece, o Enunciado 6 busca consolidar ainda mais o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no paradigmático julgamento do REsp nº 910.802/RJ, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, segundo o qual a Lei nº 8.666/1993 não exige a obtenção de provimento jurisdicional para que o contrato esteja autorizado a optar pela suspensão da execução contratual. Confira-se:
[…] 4. Com o advento da Lei 8.666/93, não tem mais sentido a discussão doutrinária sobre o cabimento ou não da inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a Administração, ante o teor do art. 78, XV, do referido diploma legal. Por isso, despicienda a análise da questão sob o prisma do princípio da continuidade do serviço público.
5.Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito.
6.Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido.
(STJ, REsp 910.802/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/06/2008)
Como era de se esperar, tendo em vista a função do STJ de uniformizar as interpretações dos Tribunais brasileiros atinentes à legislação federal, este acórdão balizou o entendimento de que o provimento jurisdicional é desnecessário nessas hipóteses. Cita-se como exemplo mais um julgado do STJ, que faz referência expressa ao REsp nº 910.802/RJ:
[…] 10. O Superior Tribunal de Justiça consagra entendimento no sentido de que a regra de não-aplicação da exceptio non adimpleti contractus, em sede de contrato administrativo, não é absoluta, tendo em vista que, após o advento da Lei 8.666/93, passou-se a permitir sua incidência, em certas circunstâncias, mormente na hipótese de atraso no pagamento, pela Administração Pública, por mais de noventa dias (art. 78, XV). A propósito: AgRg no REsp 326.871/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 20.2.2008; RMS 15.154/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 2.12.2002. Além disso, não merece prosperar o fundamento do acórdão recorrido de que as empresas necessitariam pleitear judicialmente a suspensão do contrato, por inadimplemento da Administração Pública. Isso, porque, conforme bem delineado pela Ministra Eliana Calmon no julgamento do REsp 910.802/RJ (2ª Turma, DJe de 6.8.2008), “condicionar a suspensão da execução do contrato ao provimento judicial, é fazer da lei letra morta”. […]
11.Recurso especial parcialmente provido, apenas para afastar a multa aplicada em sede de embargos declaratórios.
(STJ, REsp 879.046/DF, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/05/2009, DJe 18/06/2009)
A jurisprudência dos demais Tribunais brasileiros está consoante o entendimento do STJ, como se verifica, exemplificativamente, da seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), que afastou multa imposta à empresa contratada pela Administração por ter interrompido a execução das suas obrigações:
[…] 3. O art. 78, inciso XV, da Lei 8.666/93 é claro ao consignar que é motivo de rescisão do contrato o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração, assegurando ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação.
4.Restando demonstrado que houve a entrega dos materiais médico-hospitalares pela apelada, conforme contratado, e que o atraso no pagamento, em período superior a 90 dias, se deu por responsabilidade exclusiva da Administração Pública, impõe-se o afastamento da multa aplicada, devendo ser restituída a glosa da fatura de pagamento pela medicação fornecida.
5.Não há necessidade de pronunciamento jurisdicional para suspensão de fornecimento de insumos à Administração Pública. No caso em análise, no mesmo dia em que foi recebida a nota de emprenho, a fornecedora notificou extrajudicialmente o Distrito Federal quanto à impossibilidade de cumprir com o prazo devido ao inadimplemento do ente estatal.
6.Recurso conhecido e desprovido. Sentença mantida.
(TJ-DF 07058804220198070018 DF 0705880-42.2019.8.07.0018, Relator: ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO, Data de Julgamento: 27/05/2020, 5ª Turma Cível)
Os demais Tribunais brasileiros caminham no mesmo sentido, como se vê dos julgados dos Tribunais de Justiça dos Estados de Santa Catarina (TJSC), no qual se reconheceu que “Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito” (MS 4006820-94.2018.8.24.0000, julgado em 21/05/2013), e do Rio de Janeiro (TJRJ), que reconheceu que “PODE O CONTRATADO, LICITAMENTE, SUSPENDER A EXECUÇÃO DO CONTRATO, SENDO DESNECESSÁRIA, NESSA HIPÓTESE, A TUTELA JURISDICIONAL PORQUE O ART. 78, XV, DA LEI 8.666/93 LHE GARANTE TAL DIREITO” (AI: 00508620920198190000, , Data de Julgamento: 11/02/2020).
Sobre o tema, são esclarecedores os ensinamentos de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, a qual reconhece a licitude da suspensão contratual na hipótese em que a Administração não proceda ao pagamento em prazo superior a 90 dias:
A Lei nº 8.666/93 previu uma hipótese em que é possível, com critério objetivo, saber se é dado ou não ao particular suspender a execução do contrato. Trata-se da norma do artigo 78, inciso XV, segundo a qual constitui motivo para rescisão do contrato “o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimentos, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação”.
Isto significa que, ultrapassados os 90 dias sem que a Administração efetue os pagamentos em atraso, é dado ao contratado, licitamente, suspender a execução do contrato.[4]
Assim, é de se observar que a doutrina caminha no sentido de que a obtenção de provimento jurisdicional não é requisito indispensável para que o contratado oponha a exceção de contrato não cumprido.
Nesse sentido, a tese fixada no Enunciado 6 aprovado na Jornada pacifica o entendimento de que, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro (legislação, jurisprudência e doutrina), a empresa contratada está autorizada a suspender a execução das suas obrigações contratuais quando a Administração Pública deixar de realizar o pagamento devido por mais de 90 dias, sem que, para tanto, precise obter provimento jurisdicional.
[1] As licitações e contratos pertinentes às empresas públicas e às sociedades de economia mista são reguladas pela Lei Federal nº 13.303/2016, o que, todavia, não impede a aplicação do Enunciado 6 aos contratos regidos por esta norma.
[2] Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 559.
[4] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
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