Hoje em dia, a intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental já está consolidada. Entretanto, há uma barreira ainda não transposta, de forma definitiva, pelo Supremo Tribunal Federal: a abertura da ADPF para a intervenção de particulares.
Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
1. Introdução
Desde que o Supremo Tribunal Federal consagrou a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) como uma ação residual do controle concentrado de constitucionalidade, admitindo-a, por exemplo, nas hipóteses de descabimento de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade, operou-se uma verdadeira popularização do instituto, convertido atualmente em relevante instrumento de impugnação de atos públicos conflitantes com a Constituição Federal.
Tal popularização, como era de se esperar, provocou o interesse de diversos atores políticos que, embora não arrolados no rol de legitimados para a propositura da ação (art. 103, CF), viram-se instigados a participar de tais processos, apresentando petições e realizando sustentações orais, na condição de amicus curiae (no plural, amici curiae) – figura jurídica costumeiramente tratada como uma verdadeira amiga da corte, na medida em que atua visando não apenas resguardar os seus interesses próprios, mas, também, visando fornecer subsídios que contribuam para o julgamento final das relevantes causas decididas pelo Supremo Tribunal Federal.
Foi assim, v.g., na ADPF 54, uma das mais relevantes ações do controle concentrado já julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, cujo objeto era a discussão sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, tendo em vista os direitos fundamentais conferidos à mulher pela Constituição Federal de 1988, na qual órgãos dos mais diversos matizes (científicos, acadêmicos, religiosos, etc.) pleitearam o ingresso na ação na condição de amicus curiae.
Diante desse cenário, é possível afirmar que, hoje em dia, a intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental já está consolidada. Entretanto, há uma barreira ainda não transposta, de forma definitiva, pelo Supremo Tribunal Federal: a abertura da ADPF para a intervenção de particulares.
Conforme se verá ao longo deste breve texto, embora não haja qualquer empecilho na Lei da ADPF (Lei Federal nº 9.882/1999) no sentido de se admitir a manifestação de particulares no processo, o STF vem aplicando, por analogia, o art. 7º, § 2º, da Lei da ADIn (Lei Federal nº 9.868/1999), somente admitindo a participação de “órgãos ou entidades” nas ações do controle concentrado.
O que se pretende argumentar, no presente artigo, é que, com a edição do Novo Código de Processo Civil (Lei Federal nº 13.105/2015), não há mais razão para que o Supremo aplique subsidiariamente a Lei da ADIn em matéria de intervenção de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental. Havendo norma processual mais recente e menos restritiva, é ela que deve ser doravante aplicada. Até porque, como se sabe, o Novo Código de Processo Civil foi editado com o objetivo de ser aplicado em todos os processos judiciais em trâmite no Brasil, ainda que de forma subsidiária.
2. Tratamento legal e jurisprudencial da matéria
A Lei Federal nº 9.882/1999, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1º do art. 102 da Constituição Federal”, não contemplou expressamente a possibilidade de intervenção de terceiros no processamento das ações por ela regidas.
Não obstante, diante do caráter objetivo desse tipo de ação, o Supremo Tribunal Federal jamais negou a possibilidade de admissão de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental. Veja-se o comentário do Ministro Gilmar Mendes em obra acadêmica sobre o tema:
Independentemente das cautelas que hão de ser tomadas para não inviabilizar o processo, deve-se anotar que tudo recomenda que, tal como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental assuma, igualmente, uma feição pluralista, com ampla participação de amicus curiae.[2]
De fato, uma vez que pertence ao rol de ações do chamado controle concentrado de constitucionalidade, tal como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, não há nenhuma justificativa para que não se aceite, também na arguição de descumprimento de preceito fundamental, a participação de amicus curiae. Mais ainda: por ser a mais abrangente de todas as ações dessa natureza, tudo recomendaria que a intervenção de amicus curiae nas ADPF’s fosse, inclusive, mais intensa do que nas demais ações do controle concentrado de constitucionalidade.
Assim é que, tendo em vista as premissas acima mencionadas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se consolidou no sentido de aplicar às arguições de descumprimento de preceito fundamental, por analogia, o art. 7º, § 2º, da Lei Federal nº 9.868/1999, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”. In verbis:
Art. 7º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.
[…]
§ 2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
Em recentes decisões monocráticas, membros do Supremo Tribunal Federal admitiram a intervenção de amicus curiae na ADPF 529 (Ministro Gilmar Mendes), na ADPF 548 (Ministra Cármen Lúcia) e nas ADPF’s 514 e 530 (Ministro Edson Fachin).
Anteriormente, na ADPF 187, a importância da intervenção de amicus curiae foi reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em voto da lavra do Ministro Relator Celso de Mello:
‘AMICUS CURIAE’ – (…) – PLURALIZAÇÃO DO DEBATE CONSTITUCIONAL E A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL – DOUTRINA – PRECEDENTES – (…) – DISCUSSÃO SOBRE A (DESEJÁVEL) AMPLIAÇÃO DOS PODERES PROCESSUAIS DO ‘AMICUS CURIAE’ – NECESSIDADE DE VALORIZAR-SE, SOB PERSPECTIVA EMINENTEMENTE PLURALÍSTICA, O SENTIDO DEMOCRÁTICO E LEGITIMADOR DA PARTICIPAÇÃO FORMAL DO ‘AMICUS CURIAE’ NOS PROCESSOS DE FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA.[3]
Como já mencionado anteriormente, nas arguições de descumprimento de preceito fundamental, a intervenção de amicus curiae é ainda mais recomendável e necessária do que nas outras ações do controle concentrado, como a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade. Veja-se o magistério de Isabel da Cunha Bisch:
Observe-se, contudo, que o STF aponta ser necessária a distinção do instituto, quando se tratar de ADIN e de ADC, e quando se tratar de ADPF. Nas primeiras ações, há a previsão de participação de órgãos ou entidades. Por conseguinte, não poderão intervir voluntariamente pessoas físicas (cientistas, experts, advogados, professores, etc.) a não ser que haja requisição do juiz para sua manifestação. E, já que a lei da ADPF admite a manifestação de todos aqueles interessados no processo, os legitimados a atuarem como amicus curiae formariam rol mais extenso [grifo acrescido].[4]
O próprio STF, em decisão monocrática da lavra do Ministro Menezes Direito, indicou no ano de 2007 que “a Lei nº 9.882/99, que disciplina as argüições de descumprimento de preceito fundamental, é mais flexível a respeito da possibilidade de terceiros poderem se manifestar nos autos”, pois “não exige que o postulante tenha alguma representatividade, bastando que demonstre interesse no processo”.[5]
Embora tenha sido desenvolvido na década anterior, o argumento utilizado pelo Ministro Menezes Direito se coaduna com a orientação constante no art. 138 do Novo Código de Processo Civil, que entrou em vigor no mês de março de 2016:
Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.
§ 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º.
§ 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.
§ 3º O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em nítido movimento de evolução, e certamente buscando inspiração na sistemática processual das ações do controle concentrado de constitucionalidade, o art. 138 do recente Código de Processo Civil veio a lume com a previsão de abertura democrática dos processos judiciais em trâmite no Brasil.
Por mais que a ação direta de inconstitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental possuam trâmite processual próprio, previsto em leis específicas, a aplicação subsidiária e complementar do Código de Processo Civil jamais foi questionada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.[6]
E mais: considerando que a Lei da ADPF é silente no que diz respeito à participação de amicus curiae, e que a Lei da ADIn, nesse aspecto, é mais restritiva do que o novo CPC, tudo recomenda que, ao menos no contexto das ADPF’s, seja aplicado o diploma mais recente. Ou seja, em vez de empreender analogia com a Lei da ADIn, o que se defende aqui é uma analogia, ou melhor, uma aplicação subsidiária do Novo CPC à espécie.
Não se deve nunca esquecer que “o amicus curiae é um terceiro que intervém em um processo, do qual ele não é parte, para oferecer à corte sua perspectiva acerca da questão constitucional controvertida, informações técnicas acerca de questões complexas cujo domínio ultrapasse o campo legal ou, ainda, defender os interesses dos grupos por ele representados, no caso de serem, direta ou indiretamente, afetados pela decisão a ser tomada”[7].
3. Possíveis e devidos temperamentos
Evidente que uma abertura irrestrita da ADPF para a manifestação de todo e qualquer interessado poderia, a médio e longo prazo, inviabilizar o próprio trabalho da Corte, mais prejudicando do que favorecendo o trâmite das arguições de descumprimento de preceito fundamental. Por isso é que é importante ressaltar que o que se defende aqui não é o deferimento automático de todo e qualquer pedido de ingresso de particulares na condição de amicus curiae nas arguições de descumprimento de preceito fundamental.
Nesse sentido, parece natural que o Supremo Tribunal Federal continue a analisar, caso a caso, a pertinência ou a impertinência da participação dos interessados nesse tipo de processo – independentemente do fato de serem particulares, órgãos ou entidades –, inclusive de forma monocrática e irrecorrível, nos termos da jurisprudência atualmente em vigor. Além disso, poder-se-ia exigir desses interessados alguns requisitos básicos para o ingresso na ADPF, como a demonstração de pertinência temática ou de representatividade, considerando a matéria em discussão na causa.
O que parece ultrapassado, com a edição do novo Código de Processo Civil, é uma jurisprudência que barra o ingresso de um potencial amicus curiae na arguição de descumprimento de preceito fundamental apenas e tão somente pelo fato de este não constituir formalmente “órgão ou entidade”, como se os particulares, individualmente ou em grupo, não pudessem, de forma satisfatória e eficaz, contribuir para a resolução da arguição de descumprimento de preceito fundamental, na condição de amigos da corte.
[1] Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[2] MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 126.
[3] STF, ADPF 187. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em 15/06/2011.
[4] BISCH, Isabel da Cunha. O Amicus Curiae, as Tradições Jurídicas e o Controle de Constitucionalidade: um estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 109.
[5] STF, ADC 18. Relator: Ministro Menezes Direito. Julgamento em 14/11/2007.
[6] A propósito, vale a pena transcrever trechos do decisum cautelar proferido nos autos da ADI 5316: “MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 88/2015. CUMULAÇÃO DE AÇÕES EM PROCESSO OBJETIVO. POSSIBILIDADE. ART. 292 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA […]. A cumulação simples de pedidos típicos de ADI e de ADC é processualmente cabível em uma única demanda de controle concentrado de constitucionalidade, desde que satisfeitos os requisitos previstos na legislação processual civil (CPC, art. 292)” (STF, ADI 5316 MC/DF. Relator: Min. Luiz Fux. Julgamento: 21/05/2018).
[7] MEDINA, Damares. Amicus Curiae: Amigo da Corte ou Amigo da Parte? São Paulo: Saraiva, 2010, p. 17.
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