
Como comprovar a regularidade da reserva de vagas para aprendizes, PCDs e reabilitados em licitações públicas?
1. INTRODUÇÃO
A legislação brasileira assegura a inclusão de pessoas com deficiência (PCD), reabilitados da Previdência Social e aprendizes no mercado de trabalho, como forma de garantir igualdade de oportunidades e efetivar a cidadania. Diante disso, a contratação de aprendizes e a reserva de vagas para PCDs e reabilitados impactam diretamente a gestão de pessoas pelas empresas.
Em relação aos aprendizes, o art. 429 da CLT determina que os estabelecimentos contratem jovens em número equivalente a 5% a 15% dos empregados cujas funções demandem formação profissional. Essas funções são aquelas previstas na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) que exigem conhecimentos técnicos ou específicos, estando excluídas as funções que exijam habilitação técnica de nível médio ou superior.
Por outro lado, no que tange às pessoas com deficiência e reabilitados, a Lei nº 8.213/1991, em seu artigo 93, determina que empresas com mais de 100 empregados devem preencher de 2% a 5% de seus cargos com PCDs e reabilitados da Previdência Social, conforme o número total de empregados. Em ambos os casos, a regularidade da situação pode ser atestada pela Certidão de PCD/Reabilitados e pela Certidão de Aprendizes, que são emitidas pelo Ministério do Trabalho.
Desde a entrada em vigor da Lei n.º 14.133/2021, a participação em licitações passou a exigir que o licitante declare sua situação quanto ao atendimento dessas cotas. Contudo, o cumprimento integral dessas cotas legais para atestar a regularidade apresenta desafios relevantes, pois a documentação administrativa tradicional nem sempre traduz a realidade dinâmica das empresas e do mercado de trabalho. Isso porque muitas empresas que concorrem nos certames públicos não conseguem preencher todas as vagas, tornando sua situação perante o Ministério Público do Trabalho como irregular.
Nesse contexto, para que sua empresa não seja prejudicada por essa exigência legal durante a participação em certames licitatórios, apresenta-se a seguir alternativas para comprovar a reserva de cotas.
2. POSICIONAMENTOS DOS ÓRGÃOS
Na prática administrativa e na jurisprudência recente existe um movimento claro no sentido de reconhecer a volatilidade das certidões expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego e de admitir, em determinadas circunstâncias, a prova do cumprimento das cotas por meio de documentos alternativos.
O Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do acórdão 523/25, enfrentou a discussão acerca da exigência de reserva de vagas para pessoas com deficiência (PCD) e reabilitados em licitações públicas. O caso concreto dizia respeito a uma empresa habilitada como vencedora em pregão eletrônico da Anatel, cuja situação foi questionada com base em certidão do Ministério do Trabalho e Emprego que apontava descumprimento da cota legal prevista no art. 93 da Lei nº 8.213/1991. Todavia, a empresa apresentou documentação complementar que demonstrava esforços para o cumprimento da exigência e a regularidade de seu quadro funcional, inclusive com certidão atualizada e dados do e-Social.
Diante das provas alternativas, o TCU reconheceu que a inabilitação baseada exclusivamente em certidão é inadequada, em razão do caráter dinâmico dos quadros de pessoal e da natureza “volátil” da certidão administrativa. Nesse sentido, compreendeu-se que a certidão emitida pelo MTE reflete apenas a situação da empresa em determinado momento, sem considerar os esforços realizados ou as alterações contratuais posteriores. Por isso, o Tribunal assegurou a possibilidade da empresa apresentar provas alternativas, aptas a demonstrar o cumprimento das cotas ou os esforços realizados para tanto.
Entre os documentos elencados, o TCU considerou como meio de prova dados do e-Social, contratos de trabalho, registros de divulgação de vagas, parcerias com entidades de apoio ao trabalhador com deficiência e relatórios de processos de recrutamento e treinamento.
No plano das orientações jurídicas administrativas, a Advocacia-Geral da União consolidou entendimento no sentido de que, na interpretação do art. 63, IV, da Lei de Licitações, a exigência pode ser compreendida como a destinação de cargos e não necessariamente como a ocupação imediata e permanente desses cargos. Isso porque nem sempre haverá disponibilidade de pessoas que se enquadrem no quantitativo mínimo abstratamente previsto para beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência, não sendo possível penalizar a empresa por essa situação.
Nesse sentido, a AGU entende que a flexibilização do meio de prova está condicionada à demonstração de que a empresa (i) destinou o percentual legal de vagas, (ii) enfrentou circunstâncias alheias à sua vontade que impediram a ocupação imediata e (iii) envidou esforços contínuos para preencher as vagas. Esse parecer administrativo tornou-se referência prática para órgãos de controle que adotam postura mais pragmática na análise da habilitação quanto a esse tema.
A Justiça do Trabalho, por seu turno, tem consolidado jurisprudência que protege o empregador quando há prova de diligência.
No TST, o entendimento consolidado atual é de que a empresa não pode ser responsabilizada pelo insucesso de cumprir com a exigência do art. 93 da Lei nº 8.213/91, quando comprovado que desenvolveu esforços para preencher a cota mínima, sendo indevida a multa e a condenação ao pagamento de indenização por dano moral coletivo.
Nessa linha de posicionamento, decisões da SDI-1 e turmas do TST afastaram, em casos concretos, a aplicação de multa ou indenização por dano moral coletivo quando restou demonstrado que a empresa realizou esforços reiterados para contratar PCDs e reabilitados ou aprendizes, mas não conseguiu preencher integralmente a cota por motivos como escassez de candidatos qualificados. Esses precedentes reforçam a ideia de que o principal critério de valoração é a prova de busca ativa, convênios e iniciativas concretas, e não apenas a verificação puramente formal do número absoluto de empregados no momento do controle.
3. JUSTIÇA COMUM NOS CASOS ESPECÍFICOS DE LICITAÇÃO
Nos precedentes da Justiça comum, observa-se que os tribunais nem sempre adotam entendimento uniforme quanto ao descumprimento da cota legal de pessoas com deficiência. Em alguns casos, prevalece a interpretação mais flexível, reconhecendo que a legislação exige a reserva de vagas e a demonstração de esforços para o cumprimento, e não necessariamente o preenchimento integral. Com isso, as empresas conseguem manter sua habilitação, desde que apresentem documentação consistente.
Por outro lado, também existem decisões em que o Judiciário se mostra mais rigoroso. Nessas hipóteses, a inabilitação é mantida quando se entende que a empresa apresentou declaração inverídica ou quando as provas trazidas são insuficientes para justificar as dificuldades enfrentadas. Assim, fica claro que a mera alegação de impossibilidade não é aceita sem elementos concretos que a sustentem.
Esse contraste evidencia que não há uma segurança jurídica plena sobre o tema. Embora seja possível encontrar decisões que considerem válidos os esforços demonstrados, persiste o risco de um entendimento mais restritivo que exija provas robustas e atualizadas. Portanto, a organização do dossiê probatório torna-se fator decisivo na avaliação judicial.
4. MEIOS DE PROVA ALTERNATIVOS QUE TÊM SIDO ACEITOS
Importa, portanto, compreender quais são os meios de prova que têm sido aceitos tanto administrativa quanto judicialmente. Além das certidões oficiais (Certidão de Aprendizes e Certidão de PCD/Reabilitados), estão sendo aceitos também:
- Documentação que comprova oferta de vagas para PCDs e reabilitados, com anúncios em diversos locais e divulgação ampla;
- Celebração de convênio com entidades beneficentes de assistência social que possuam como objeto social a capacitação e a colocação à disposição de trabalhadores com deficiência a empresas interessadas;
- Comprovante de parceria com o MTE para receber informações de pessoas com deficiência ou reabilitados disponíveis para o trabalho;
- Busca ativa perante o INSS de trabalhadores habilitados ou reabilitados que podem integrar a empresa;
- Levantamento frequente de cadastros junto às unidades do SENAI, dentre outras, a fim de captar novos colaboradores com deficiência;
- Registros que comprovem promoção de campanha educativa para inserção dos profissionais PCDs na rotina da empresa;
- Cartilha de análise ocupacional dos postos de trabalho para inserção de pessoas com deficiência, provando adequação das instalações da empresa, bem como procedimentos, metodologias e técnicas de trabalho.
- Programa de capacitação dos trabalhadores para aperfeiçoamento profissional e manutenção do emprego
5. CASO DOS APRENDIZES
No que se refere especificamente aos aprendizes, a doutrina e a jurisprudência tratam a matéria em paralelo aos PCDs e reabilitados: a obrigação prevista na CLT quanto ao percentual de aprendizes também admite, na prática, a comprovação por meio de provas alternativas.
A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e dos Tribunais Regionais do Trabalho tem reconhecido que a aplicação de multa ou indenização por descumprimento dessa obrigação não é cabível quando a empresa comprova esforços concretos e reiterados para contratar aprendizes, mas não consegue atingir a cota por razões alheias à sua vontade
Por isso, também são considerados meio de prova a comprovação por meio de parcerias com entidades formadoras, convênios e provas de divulgação e busca ativa quando a empresa não consegue preencher todas as vagas por razões alheias à sua vontade. Assim, o entendimento é de que a simples tentativa isolada não é suficiente, sendo necessária demonstração de esforços concretos e reiterados.
6. CONCLUSÃO
A exigência legal de reserva de vagas para aprendizes, pessoas com deficiência (PCDs) e reabilitados da Previdência Social constitui uma obrigação que impacta diretamente a capacidade de competir da sua empresa em licitações públicas e, ao mesmo tempo, exige cuidados práticos de gestão de pessoas e compliance que não podem ser negligenciados.
A recomendação prática para empresas que participam de licitações é privilegiar, sempre que possível, a produção de provas robustas e atualizadas, prontas para serem juntadas já na fase de habilitação, e não apenas para eventual defesa em sede administrativa ou judicial.
Em casos de dúvidas quanto ao cumprimento das cotas em licitações, é indispensável contar com um parceiro jurídico experiente e especializado. O escritório Schiefler Advocacia possui ampla experiência em Direito Administrativo e em temas de compliance trabalhista aplicados ao setor público, oferecendo assessoria completa para empresas que desejam participar de certames de forma segura. Atuamos desde a análise preventiva da documentação até a defesa em processos administrativos e judiciais, sempre com estratégia, agilidade e sólida base técnica.
Read More
Exploração trabalhista na cadeia produtiva da Tod’s reacende debate sobre due diligence em fornecedores
A marca italiana de luxo Tod’s se tornou o centro de uma nova controvérsia envolvendo exploração trabalhista em sua cadeia produtiva. A Suprema Corte da Itália marcou audiência para 19 de novembro a fim de definir a jurisdição do caso, após promotores de Milão solicitarem a adoção de medida de administração judicial preventiva contra a empresa.
O Ministério Público acusa a Tod’s de conduta facilitadora, ao não exercer controle suficiente sobre oficinas subcontratadas que produziam uniformes para seus funcionários de loja. As investigações apontam que o trabalho era realizado em oficinas geridas por cidadãos chineses nas regiões de Milão e Marche, em condições precárias e com jornadas análogas à escravidão. Os trabalhadores recebiam entre 2,75 e 3 euros por hora, menos da metade do salário mínimo previsto em lei, além de sofrerem descontos ilegais por moradia e alimentação.
Embora a empresa alegue cumprir integralmente as normas trabalhistas e realizar inspeções constantes, a investigação sugere falhas graves na supervisão de sua cadeia de fornecimento — especialmente no caso dos produtos internos, como uniformes, que receberam atenção menor em comparação aos produtos de venda.
O episódio revela uma vulnerabilidade estrutural cada vez mais sensível: o controle efetivo sobre terceiros e fornecedores. Em um cenário global de crescente escrutínio social e jurídico, a due diligence não é mais uma formalidade, mas uma obrigação estratégica.
No Brasil, a Lei Anticorrupção (12.846/2013) e o Decreto 11.129/2022 já incorporam a diligência prévia como pilar essencial de integridade corporativa, exigindo que empresas verifiquem o histórico e a conformidade de parceiros, fornecedores e prestadores de serviço.
Desconsiderar esse tipo de verificação pode gerar prejuízos profundos. Em muitos casos, é por meio de fornecedores e parceiros que surgem as principais crises corporativas — e a legislação brasileira prevê que a empresa responda objetivamente pelos atos praticados em seu nome, mesmo quando não há envolvimento direto na irregularidade.
Casos como o da Tod’s reforçam que compliance trabalhista vai muito além de cumprir a lei: envolve auditorias periódicas, monitoramento contínuo, capacitação de gestores, canais de denúncia e políticas de conduta robustas. A ausência desses mecanismos pode resultar em ações judiciais, perdas financeiras e danos irreversíveis à reputação corporativa.
Em tempos de ESG e superexposição midiática, o recado é claro: quem não controla seus fornecedores, terceiriza também seus riscos.
Read MorePor mais que muitas normas e conceitos estabelecidos pela CLT não façam sentido dentro do modelo de negócios inovador e disruptivo das startups, essas empresas continuam legalmente obrigadas pelas normas trabalhistas aplicáveis a qualquer outra empresa.
Victoria Magnani[1]
As chamadas startups, empresas ligadas à inovação que se encontram em estágio inicial de desenvolvimento, podem ser definidas como empresas de perfil inovador cujo modelo de negócios se caracteriza como repetível e escalável, além de ser marcado por um cenário de extrema incerteza. Essas empresas têm como característica, além do fator inovação, um potencial de crescimento exponencial associado a baixos investimentos, bem como uma ampla flexibilidade no que diz respeito às noções tradicionais associadas ao direito trabalhista.
Devido a essa dinâmica única, típica do ambiente das startups[2], surge uma série de embates com os conceitos trabalhistas “tradicionais” previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), diploma legal que muitas vezes se mostra insuficiente para lidar com a prática do dia a dia dessas empresas.
Apesar do modelo de negócios marcado pelo alto risco e instantaneidade, a preocupação trabalhista não pode ser deixada em segundo plano, visto que eventual irregularidade na contratação e gestão da equipe pode gerar diversas consequências graves para as startups, que vão desde multas oriundas de órgãos fiscalizadores até reclamações trabalhistas, impactando a imagem da empresa e, consequentemente, o seu financiamento.
Embora o Direito do Trabalho não possua grande incidência nas startups early stage[3], conforme as empresas vão crescendo e se desenvolvendo as questões trabalhistas tornam-se cada vez mais presentes em sua realidade. Assim, para as startups que se encontram em growth stage[4] é essencial tratar as questões relacionadas ao Direito do Trabalho de forma adequada, uma vez que, caso estas sejam mal conduzidas, o surgimento de um eventual passivo trabalhista pode vir a prejudicar a própria captação de recursos externos nas próximas rodadas de investimento.
Nesse sentido, é importante destacar que, apesar de possuírem um modelo de negócios distinto daquele atribuído às empresas “tradicionais”, as startups não possuem tratamento normativo diferenciado, estando sujeitas à mesma legislação trabalhista que as demais empresas.
Vale dizer que, por mais que muitas normas e conceitos estabelecidos pela CLT não façam sentido dentro do modelo de negócios inovador e disruptivo das startups (tipicamente marcado pela instantaneidade e flexibilidade), essas empresas continuam legalmente obrigadas pelas normas trabalhistas aplicáveis a qualquer outra empresa.
É nesse panorama que acabam surgindo alguns riscos trabalhistas derivados do próprio modelo de negócios das startups, principalmente aqueles relacionados à contratação e gerenciamento dos colaboradores. A título de exemplo, é possível citar a celebração de contratos de prestação de serviços e a contratação de pessoas jurídicas[5], duas alternativas que se popularizaram no ambiente das startups justamente por se adequarem ao baixo orçamento dessas empresas e não envolverem tantas formalidades para sua realização, mas que podem ocasionar inúmeros problemas na Justiça do Trabalho caso não sejam executados de maneira correta.
Logo, a contratação dos diversos colaboradores da startup, seja por meio de contratos de prestação de serviços, contratos celebrados com pessoas jurídicas ou mesmo os contratos de vesting[6], deve ser elaborada em consonância com a legislação, a fim de minimizar riscos trabalhistas e eventuais ilegalidades.
Por que pensar preventivamente?
Uma boa prevenção de demandas trabalhistas traz inúmeras vantagens competitivas, pois, além da significativa redução de custos, a melhoria do meio ambiente de trabalho por meio do aperfeiçoamento da estrutura organizacional reflete diretamente na produtividade da empresa, influenciando no seu faturamento. Além disso, esses atributos são interessantes para atrair investidores, uma vez que estes certamente irão priorizar startups que, além de oferecerem menos riscos, também trazem o melhor retorno para o seu capital.
[1] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente cursando a oitava fase. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET Direito UFSC de 2017 a 2019, e atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica no campo do Direito Ambiental do Trabalho como bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC.
[2] FEIGELSON, Bruno; NYBØ, Erik Fontenele; FONSECA, Victor Cabral. Direito das Startups. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[3] Como são chamadas as startups em estágio inicial de desenvolvimento.
[4] As startups em growth stage são aquelas que, depois de terem provado seu valor no mercado e obtido financiamento, estão no processo de crescimento, tentando escalar seu produto. O foco não é mais simplesmente na inovação, mas em expandir o produto já existente e aprovado pelo mercado.
[5] Fenômeno conhecido como “pejotização”.
[6] O contrato de vesting consiste em uma promessa de participação societária, estabelecida com colaboradores estratégicos com vistas a estimular a expansão, o êxito e a consecução dos objetivos sociais da startup (FEIGELSON; NYBO; FONSECA, 2018).
E mais: “o Vesting, entre outras hipóteses, consiste em um Contrato de opção de aquisição de participação societária, de forma gradual, mediante cumprimento de metas em/ou dado período de tempo.” (MAY, Pedro Henrique. O Contrato de Vesting no sistema societário brasileiro e a sua aplicabilidade em startups constituídas na forma de sociedade limitada. Monografia (graduação) – Curso de Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, 2018. p. 42).
Read More