
A melhor forma de usar as Sociedades em Conta de Participação (SCP)
1. O QUE É UMA SCP (SOCIEDADE EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO)?
Se você atua no meio empresarial, é muito provável que já tenha ouvido falar das SCPs. Algum investidor pode ter pedido para sua empresa constituir uma SCP, ou algum empresário pode ter pedido que você integralizasse bens ou valores em uma SCP. Mas afinal, o que é isso? Tem problema colocar o seu dinheiro em uma SCP? É uma operação segura?
São perguntas que responderemos ao longo deste texto.
O termo SCP é uma sigla para “Sociedade em Conta de Participação”, uma espécie de “sociedade” despersonalizada criada pelo Código Civil brasileiro em seus artigos 991 a 996. Apesar do nome “sociedade”, na prática, as SCPs não são verdadeiras sociedades (ou seja, não são uma “empresa”, como comumente falamos), mas uma espécie de contrato de investimento.
Ao constituir uma SCP, os contratantes delimitam, no contrato social, quais serão os sócios que atuarão ostensivamente em nome da SCP e quais serão os sócios que apenas contribuirão de forma financeira com a SCP. Os primeiros são chamados de “sócios ostensivos”, e respondem ilimitadamente e exclusivamente pelas obrigações assumidas pela SCP (não há separação patrimonial), enquanto os demais são chamados “sócios participantes” ou “sócios ocultos”, que participam dos resultados (se existirem) sem assumir qualquer obrigação perante terceiros (artigo 991 do Código Civil).
Apesar do nome “sócio oculto”, não há qualquer ilegalidade (pelo contrário, as SCPs estão previstas em Lei), visto que a ocultação ocorre apenas perante terceiros, e não perante as autoridades públicas.
Ou seja, nas SCPs, um grupo de sócios “toca” o negócio, enquanto os outros apenas injetam capital e acompanham o desenvolvimento da operação, sem ter que tratar com terceiros, fornecedores, credores, devedores, etc. da SCP, atos que são de exclusiva competência do “sócio ostensivo”. Aliás, os “sócios participantes” estão até mesmo vedados de participar ostensivamente das operações e, se tomarem parte nos negócios do sócio ostensivo, passarão a com ele responder solidariamente pelas obrigações da SCP (artigo 993, parágrafo único, do Código Civil).
Em síntese, significa dizer que o sócio ostensivo executa o objeto social, assumindo inteira responsabilidade pelo negócio, enquanto o sócio participante assume obrigações única e exclusivamente perante o sócio ostensivo, obrigação esta consubstanciada no dever de integralizar (aportar) valores na SCP.
2. PARA QUE SERVE UMA SCP E EM QUE CASOS ADOTÁ-LA?
Pelo contexto legal das SCPs, é possível dizer que essas “sociedades” servem ao empresário que quer realizar determinado projeto e precisa de investidores (capital), mas não quer formar sociedade com eles (ou admitir a entrada de tais investidores em sociedade já constituída). Em outras palavras, por qualquer motivo que seja, (i) não quer manter um vínculo duradouro com os investidores, (ii) não quer manter um vínculo público com determinado investidor, (iii) não quer compartilhar lucros e resultados de toda a empresa com os investidores, mas apenas de negócio(s) específico(s) e determinado(s) e (iv) não quer que os investidores conduzam a operação investida (geralmente porque só ele detém o conhecimento técnico para executar o objeto social).
O contrário também é verdadeiro para o caso do investidor que (i) não quer tornar público que está investindo em determinado negócio ou em determinada sociedade, (ii) não quer assumir os riscos de toda a sociedade investida, mas só de determinado negócio, e (iii) não tem expertise alguma no negócio investido e, por isso, não quer/pode assumir qualquer interlocução com terceiros (fornecedores, credores, devedores, etc.).
Geralmente, é muito comum adotar a estruturação de SCPs em operações imobiliárias, em que a incorporadora (construtora do empreendimento) atua como sócia ostensiva e assume todas as obrigações referentes às obras, enquanto os sócios participantes apenas aportam valores e, como contraprestação, recebem unidades autônomas ou dividendos da operação.
As SCPs também são muito usadas no mercado de investimentos, em que uma empresa especializada busca investidores qualificados para, com a monta angariada, realizar o aporte em operação específica. Por exemplo: uma sociedade de investimentos agrupa 100 investidores, cada um aportando 1 milhão de reais na SCP e, com os 100 milhões adquiridos pela conta de participação, investe em um negócio e divide os rendimentos entre os 100 participantes.
No ramo hoteleiro a estruturação de projetos por meio de SCPs também é comum. Nesse caso, proprietários de um bem imóvel que pode ser utilizado como hotel constituem uma SCP com uma rede hoteleira. Os proprietários atuam como sócios participantes, por meio da cessão de uso do imóvel, ao passo que a rede hoteleira atua como sócia ostensiva, gerenciando o hotel (contrata funcionários, gerencia as reservas, cuida da operacionalização do hotel etc.). As receitas são posteriormente distribuídas entre os sócios participantes e a sócia ostensiva, nos termos do contrato de SCP.
No geral, a SCP pode ser utilizada (e é recomendável) em qualquer investimento em que o sócio ostensivo deseja assumir os riscos, recebendo uma contraprestação por isso (geralmente uma taxa de administração), e os sócios participantes não desejam se expor tanto, seja por vontade própria, seja por vontade do sócio ostensivo. E veja que não há qualquer irregularidade na ocultação dos sócios participantes, pois trata-se de mera divisão de riscos realizada entre as partes que é, inclusive, incentivada pelo direito (tanto que a SCP está expressamente prevista no Código Civil).
3. CONSTITUIR UMA SCP OU ADOTAR OUTRAS ESTRATÉGIAS?
A SCP não é uma estratégia “melhor” ou “pior” do que outras. Ela pode se encaixar, ou não, no que pretende alcançar o empreendedor. Às vezes, é melhor constituir uma sociedade de propósito específico, um consórcio ou até mesmo celebrar um simples contrato de investimento. Abaixo, vamos apresentar as diferenças para que o leitor possa compreender as vantagens e desvantagens desta modelagem comercial.
a. Constituir uma SCP ou um Consórcio?
Tanto a SCP como o consórcio não possuem personalidade jurídica. No entanto, os consórcios precisam ter seus atos constitutivos registrados nas juntas comerciais (artigo 279, parágrafo único, da Lei nº 6.404/1976), o que permite que quaisquer terceiros tenham acesso ao contrato firmado pelas partes e, logicamente, à identidade de todas elas. Na SCP, esse registro não é necessário, impossibilitando que terceiros não autorizados pelo sócio ostensivo tenham acesso ao contrato da SCP.
Além disso, geralmente os contratos de consórcio definem a necessidade de que todas as sociedades participantes partilhem obrigações assumidas com terceiros (divisão de atribuições entre os consorciados para atingir o fim comum). Nas SCPs, isso é expressamente vedado, cabendo unicamente ao sócio ostensivo a prática de atos perante terceiros (aos sócios participantes cabe apenas o aporte de recursos).
b. Constituir uma SCP ou uma SPE?
Uma SPE (sociedade de propósito específico) é uma sociedade constituída em alguma das formas permitidas em Lei (geralmente uma sociedade limitada – LTDA.) tendo como única diferença o fato de que a sua criação foi realizada para um objetivo específico que, após alcançado, atrairá a extinção da pessoa jurídica.
Sendo ente jurídico personalizado (diferente das SCPs), o registro de seus atos constitutivos (contrato ou estatuto social) deverá ser realizado em cartório ou junta comercial (a depender de deter a SPE caráter simples ou empresarial), o que fará com que qualquer pessoa possa identificar os sócios da SPE, mesmo contra a vontade deles. Como dito, na SCP este registro é dispensável, impossibilitando que terceiros tenham acesso aos dados dos sócios participantes.
c. Constituir uma SCP ou uma limitada (LTDA.)?
Os pontos acima indicados para a SPE se aplicam integralmente para as sociedades empresárias limitadas (LTDA.). Ou seja: nas sociedades de responsabilidade limitada é obrigatório o registro do contrato social na junta comercial, tornando público a qualquer interessado as informações referentes aos seus sócios. Nas SCPs este registro não é devido, o que permite a “ocultação” dos sócios participantes.
De toda forma, como contraponto, a constituição de LTDA. permite que a responsabilidade de todos os sócios esteja limitada ao aporte a ser realizado no capital social. Na SCP, por sua vez, a responsabilidade da(s) sócia(s) ostensiva(s) é ilimitada, tanto perante terceiros quanto perante os sócios participantes.
Outro ponto relevante é que, sendo sócio de uma sociedade limitada, os sócios participam da distribuição de lucros de toda a empresa, bem como tomam parte (votam) em reuniões e assembleias referentes a toda a operação empresarial. Nas SCPs isso não ocorre, pois os sócios participantes não participam do quadro social da sócia ostensiva e, logo, só possuem direitos de recebimento de dividendos gerados pela própria SCP e de votarem em matérias relativas exclusivamente à SCP.
Tantos nas SCPs, SPEs, quanto nas LTDAs., é possível estipular que a duração da associação das partes se dará por tempo determinado ou indeterminado.
d. Constituir uma SCP ou fundar uma S/A?
Nas sociedades anônimas (S/As) também é necessário realizar o registro dos atos constitutivos nas juntas comerciais, mas nestes casos o quadro de sócios não é facilmente acessível para terceiros. Isso porque o registro da relação de acionistas das S/A é feito por meio de livro de registro de ações nominativas ou nos livros da instituição financeira depositária das ações.
A dificuldade de acesso, no entanto, não impede que terceiros tomem conhecimento dos dados de alguns acionistas de forma indireta. Ainda que não haja registro expresso de sócios na junta (de forma pública), o interessado ainda pode acessar as atas de assembleias gerais e verificar os dados de alguns dos acionistas que estavam presentes ou que votaram nos conclaves.
Ou seja, apesar de a S/A criar certo obstáculo para a descoberta dos acionistas, se este for o único objetivo do empreendedor, a SCP é mais eficiente.
Assim como nas LTDAs., todos os acionistas são sócios da S/A e participam da distribuição de lucros e das assembleias de temas referentes à toda a atividade empresarial desenvolvida pela S/A. Nas SCPs, as participações em lucros e em deliberações estarão limitadas às operações da SCP (o sócio participante não se imiscui na gestão interna da sócia ostensiva).
e. Constituir uma SCP ou firmar contrato de investimento?
A grande diferença prática de uma SCP para um contrato de investimento é a facilidade prática da SCP para alguns casos: se houver uma grande quantidade de investidores, é mais fácil firmar um contrato padrão com todos eles, de uma só vez (ou seja, uma SCP). Se forem poucos os investidores, ou se as condições negociais com cada um deles for bastante divergente, é mais simples firmar um contrato de investimento com cada um.
4. COMO CONSTITUIR UMA SCP?
Qualquer pessoa capaz pode ser sócia ostensiva ou sócia participante de uma SCP. Assim, podem atuar como operadores ostensivos do negócio tanto pessoas naturais quanto jurídicas (uma sociedade LTDA. ou S/A pode constituir uma SCP). Da mesma forma, podem investir em uma SCP tanto pessoas naturais quanto jurídicas (uma sociedade LTDA. ou S/A pode aportar valores em uma SCP).
Para criar uma SCP, é preciso celebrar um contrato. Neste contrato, dentre outros temas acessórios, serão reguladas as atribuições do sócio ostensivo, a forma de participação dos sócios ostensivos e participantes (percentual detido por cada um, modo de pagamento, valor do aporte, contraprestação, etc.), o objeto a ser explorado pela SCP, a formação e gestão da conta de participação (conta bancária em que serão concentrados os valores captados pela SCP) e a forma de extinção da SCP, quando esgotado o seu objetivo.
Como dito ao longo do texto, este contrato não precisa ser registrado na junta ou no cartório, mas é importante que todas as partes detenham uma cópia, permitindo que seja possível comprovar documentalmente a existência da SCP entre eles. Ainda assim, o sócio ostensivo precisa realizar o registro da SCP na Receita Federal para fins fiscais, obtendo um CNPJ para ela (mas isso não fará com que os sócios participantes sejam expostos).
Acha que a constituição de uma SCP é a melhor modelagem societária para o seu negócio? Estamos aqui para te ajudar, entre em contato!
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Coabitação prévia não é requisito de licença ou remoção para acompanhamento de cônjuge
Para o servidor público, a necessidade de deslocamento geográfico decorrente de uma mudança de lotação, seja de ofício pela Administração ou seja seja a pedido, é uma possibilidade vinculada à carreira. Esse cenário profissional, no entanto, pode trazer impactos relevantes na vida privada do servidor, principalmente no que se refere à estruturação de seu núcleo familiar. Para compatibilizar esse aspecto da vida profissional com a previsão constitucional de proteção à família, o ordenamento jurídico prevê hipóteses que configuram o acompanhamento do servidor por seu cônjuge como um direito subjetivo, seja por meio do instituto da remoção, seja por meio da licença para exercício provisório, ambas com previsão na Lei nº 8.112/1990, respectivamente, nos arts. 36, III e art. 84.
A configuração desse direito subjetivo depende da aferição dos critérios definidos taxativamente em lei, sendo eles, para a remoção: (i) haver um casal de funcionários públicos; (ii) um deles se deslocar para outro ponto do Brasil, a interesse da Administração; e (iii) existir compatibilidade de funções no cargo a ser exercido. Para a concessão de licença provisória para acompanhamento de cônjuge, os requisitos são os mesmos; apenas não é necessário que o deslocamento ocorra no interesse da Administração.
Dessa forma, estando preenchidos os três requisitos descritos, e apenas eles, é obrigatório o reconhecimento do direito do requerente para acompanhar seu cônjuge. É o que reforça a jurisprudência do STJ sobre o instituto da remoção, previsto no art. 36, III da Lei 8.112/90:
Tem-se, pois, que, a teor do art. 36 da Lei 8.112/90, nas hipóteses dos incisos I e II do art. 36 da Lei 8.112/90, a concessão de remoção é ato discricionário da Administração, ao passo que, nos casos enquadrados no inciso III, o instituto passa a ser direito subjetivo do Servidor, de modo que, uma vez preenchidos os requisitos, a Administração tem o dever jurídico de promover o deslocamento horizontal do Servidor dentro do mesmo quadro de pessoal.
(Superior Tribunal de Justiça, Mandado de Segurança 22.283/DF, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira seção, julgado em 10/08/2016).
Ou seja: é vedado que a Administração crie novos requisitos circunstanciais durante o procedimento de análise do requerimento administrativo, já que, sendo a concessão do acompanhamento um ato administrativo vinculado, não há margem de discricionariedade para alegação de critérios de conveniência e oportunidade pelo ente público.
Nesse sentido, não constituindo um dos requisitos legais, a coabitação do casal de funcionários públicos é irrelevante para o reconhecimento do direito de remoção para acompanhamento, como decidido pela 1ª Turma do STJ.
Essa não é uma decisão isolada: há um entendimento jurisprudencial consolidado pelo STJ nessa matéria quanto à desnecessidade de coabitação prévia entre os servidores, tanto para remoção, quanto para licença provisória, como se observa dos julgados:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. REMESSA OFICIAL E APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. REMOÇÃO PARA ACOMPANHAMENTO DE CÔNJUGE. ARTIGO 36, PARÁGRAFO ÚNICO, III, “A”, LEI 8.112/90. DESLOCAMENTO DE CÔNJUGE SERVIDOR PÚBLICO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. COABITAÇÃO ENTRE OS CÔNJUGES. REQUISITO DISPENSÁVEL. APELAÇÃO DESPROVIDA. […] Consoante precedentes do E.STJ e do E.TRF da 3ª Região, para a concessão da remoção de servidor para acompanhamento de cônjuge, basta que o deslocamento do cônjuge se dê no interesse da administração, não estando sujeita à discricionariedade da Administração Pública e não constituindo óbice se o deslocamento do cônjuge foi originado de pedido, ao participar de concurso de remoção interna. 3. Precedentes do STJ no sentido de que o deferimento do direito à remoção do servidor público, prevista no inciso III do art. 36 da Lei n. 8.112/1990, não impõe como requisito indispensável que os cônjuges residam juntos. 4. A situação fático-jurídica delineada encontra-se albergada pelo dispositivo invocado para garantir a remoção requerida, nos termos do art. 36, III, “a”, Lei 8.112/90.
(REsp 1.824.511, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe 07/10/2019)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. LICENÇA PARA ACOMPANHAMENTO DE CÔNJUGE COM EXERCÍCIO PROVISÓRIO REMUNERADO. ART. 84, § 2º, DA LEI 8.112/1990. DIREITO SUBJETIVO DO SERVIDOR. DESLOCAMENTO CÔNJUGE- SERVIDOR. COABITAÇÃO. DESNECESSIDADE. 1. O Tribunal a quo deu provimento à Apelação da ora recorrida para reformar a sentença que deferira à ora recorrente licença para acompanhar cônjuge com exercício provisório remunerado, nos termos do art. 84, § 2º, da Lei 8.112/1190. A Corte Regional entendeu que não fora atendido o requisito da coabitação. 2. O acórdão recorrido destoa do entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema que interpreta a licença remunerada prevista no art. 84, § 2º, da Lei 8.112/1990 como direito subjetivo do servidor, bastando para a lotação provisória a comprovação do deslocamento do cônjuge-servidor. Não há exigência de coabitação e tampouco importa se a mudança de exercício do cargo público se deu a pedido ou de ofício pela Administração, excetuando-se os casos decorrentes da aprovação em concurso público (provimento originário). Precedentes: REsp 1.778.188/MS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 4/2/2019; AgInt no REsp 1.660.771/RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 26/3/2018 e AgInt no REsp 1.565.070/MS, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 13/3/2017. 3. Recurso Especial provido.
(STJ – REsp: 1788296 RN 2018/0324673-3, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 17/09/2019, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/10/2019).
Há sólida jurisprudência e previsão legal quanto à garantia desse direito, que permite a compatibilização das demandas da esfera profissional com as necessidades de estruturação familiar. Por isso, em caso de obstaculização desse direito de aferição objetiva, o auxílio de um advogado especialista na área é essencial para zelar pela efetivação dessa garantia de fundamento constitucional.
Para entender mais sobre os institutos da remoção e da licença para acompanhamento de cônjuge, sugere-se a leitura dos artigos: 3 fatos importantes sobre a remoção para acompanhamento de cônjuge e Servidor público cujo cônjuge foi deslocado possui direito à licença.
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O Momento Adequado para a Elaboração da Intenção de Registro de Preço (IRP) sob a Lei nº 14.133/2021
1. Introdução
O Sistema de Registro de Preços (SRP) é um procedimento especial de licitação previsto na Lei nº 14.133/2021, destinado ao registro formal de preços relativos à prestação de serviços, obras ou aquisição de bens para contratações futuras. A correta aplicação deste sistema exige a observância de diversas etapas processuais, sendo uma delas a Intenção de Registro de Preço (IRP), disciplinada pelo art. 86 da referida lei.
Este artigo tem por objetivo esclarecer o momento processual adequado para a elaboração da IRP no âmbito da administração pública, especificamente para profissionais da área jurídica que atuam em processos licitatórios. A dúvida central reside em determinar se a IRP deve ser elaborada pelas unidades demandantes juntamente com o levantamento de quantitativos ou pela unidade responsável pelas licitações após a elaboração do Estudo Técnico Preliminar (ETP) e do Termo de Referência (TR).
A adequada compreensão e aplicação dos procedimentos estabelecidos na nova legislação são cruciais para garantir a legalidade, a eficiência e a transparência nos processos de contratação pública.
2. O Sistema de Registro de Preços (SRP) e suas Etapas sob a Lei nº 14.133/2021
O Sistema de Registro de Preços (SRP), conforme a Lei nº 14.133/2021, é um conjunto de procedimentos para realização de licitação na modalidade pregão ou concorrência para registro formal de preços relativos a bens e serviços, a serem contratados no futuro. A operacionalização do SRP envolve diversas fases, que, em geral, seguem uma sequência lógica para garantir a efetividade e a legalidade do processo. Embora a lei não detalhe exaustivamente cada etapa, é possível delinear um fluxo típico com base na legislação e em exemplos práticos.
Inicialmente, as diversas unidades ou órgãos da administração pública identificam suas necessidades de bens ou serviços e realizam o levantamento dos quantitativos estimados para suas demandas futuras. No caso em questão, esta etapa é conduzida pelas unidades que solicitam os quantitativos para registro de preço.
Em seguida, a unidade responsável pela condução do processo licitatório consolida essas informações e inicia a fase de planejamento da contratação. Esta fase compreende a elaboração do Estudo Técnico Preliminar (ETP), que visa demonstrar a necessidade da contratação, definir o objeto, analisar as alternativas existentes e justificar a escolha da solução mais adequada.
Posteriormente, é elaborado o Termo de Referência (TR), documento que detalha as especificações técnicas do objeto a ser contratado, os requisitos de habilitação, os critérios de julgamento, as obrigações das partes e as condições de execução contratual.
A Intenção de Registro de Preço (IRP) surge como uma etapa crucial na fase preparatória da licitação para registro de preços. Após a definição do objeto e das especificações no TR, o processo avança para a publicação do edital de licitação, a realização do certame (pregão ou concorrência), a seleção dos fornecedores e a assinatura da Ata de Registro de Preços (ARP).
A ARP formaliza os preços registrados e as condições para futuras contratações pelos órgãos participantes e, em alguns casos, por órgãos não participantes, denominados “caronas”. Compreender a colocação exata da IRP nesse fluxo é fundamental para a questão levantada.
3. Entendendo a Intenção de Registro de Preço (IRP) – Artigo 86 da Lei nº 14.133/2021
O artigo 86 da Lei nº 14.133/2021 dedica-se especificamente à Intenção de Registro de Preço (IRP), estabelecendo um procedimento público a ser observado na fase preparatória do processo licitatório para registro de preços. O caput do artigo dispõe que o órgão ou entidade gerenciadora deverá realizar este procedimento, com o objetivo de possibilitar, pelo prazo mínimo de 8 (oito) dias úteis, a participação de outros órgãos ou entidades na respectiva ata de registro de preços e determinar a estimativa total das quantidades da contratação.
A finalidade primordial da IRP é, portanto, agregar as demandas de diferentes órgãos públicos para um mesmo objeto, buscando alcançar economia de escala e condições mais vantajosas na contratação. Ao tornar pública a intenção de realizar um registro de preços, a Administração oferece a oportunidade para que outras entidades que possuam a mesma necessidade manifestem seu interesse em participar da futura ata. Isso permite que a licitação seja dimensionada de forma mais precisa, considerando o volume total a ser contratado, o que pode influenciar positivamente os preços ofertados pelos licitantes.
Além de promover a economia de escala, a IRP também contribui para a transparência do processo de planejamento da contratação, permitindo que outros órgãos e a sociedade em geral tenham conhecimento das intenções da Administração. A divulgação da IRP possibilita, ainda, que os órgãos interessados avaliem se o objeto da licitação atende às suas necessidades e, eventualmente, sugiram a inclusão de novos itens ou especificações.
É importante notar que o § 1º do art. 86 prevê a dispensa da IRP quando o órgão ou entidade gerenciadora for o único contratante. Contudo, mesmo nessa situação, a Administração deve avaliar a possibilidade de padronização do objeto para atender a outros órgãos, justificando a decisão de não realizar a IRP caso opte por essa dispensa. Exemplos práticos de IRP demonstram a aplicação deste dispositivo legal, citando o art. 86 e detalhando o objeto da intenção de registro de preços.
4. Analisando o Momento Processual para a IRP
A questão central para o consulente é definir se a IRP deve ocorrer antes ou depois da elaboração do Termo de Referência (TR). A análise do art. 86 da Lei nº 14.133/2021, em conjunto com as melhores práticas e a lógica do processo de contratação, sugere que a IRP deve ser elaborada e divulgada após a elaboração do TR.
A própria finalidade da IRP, de possibilitar a participação de outros órgãos, pressupõe que o objeto da contratação esteja suficientemente definido para que esses órgãos possam avaliar seu interesse.
O Termo de Referência é o documento que contém a descrição detalhada do objeto, com suas especificações técnicas, quantitativos estimados e demais condições da contratação. Sem essas informações essenciais, os outros órgãos não teriam elementos para decidir se desejam participar do registro de preços e quais seriam suas demandas específicas.
Um fluxo de instrução para pregão por SRP demonstra que a elaboração do Termo de Referência ocorre em uma etapa anterior à inclusão e divulgação da IRP. Nesta representação, o TR é elaborado em uma fase anterior, enquanto a IRP é incluída e divulgada posteriormente. Este sequenciamento é lógico, pois a IRP se refere ao objeto detalhado no TR. De forma similar, os exemplos de Intenção de Registro de Preços mencionam o Termo de Referência como o documento que contém as especificações, condições e quantitativos do objeto da licitação.
Isso reforça a ideia de que o TR deve preceder a IRP, fornecendo a base para que outros órgãos possam manifestar seu interesse.
Embora a lei estabeleça que a IRP ocorre na “fase preparatória”, essa fase compreende diversas atividades, e a sequência lógica das informações necessárias para cada etapa indica que a definição detalhada do objeto no TR é um pré-requisito para que a IRP cumpra seu propósito de agregar demandas de outros órgãos.
A comunicação interna para a IRP deve conter o termo de referência ou o projeto básico da contratação, conforme orientação encontrada. Isso permite que as demais unidades avaliem a possibilidade de participar e, eventualmente, façam sugestões para a inclusão de novos itens. Portanto, a elaboração do TR fornece a base informacional necessária para a emissão da IRP.
5. Papéis e Responsabilidades: Unidades Demandantes e Unidade de Licitações
No contexto da consulta, as unidades demandantes são responsáveis por identificar suas necessidades e fornecer os quantitativos iniciais dos bens ou serviços que pretendem contratar. Essa demanda inicial é o ponto de partida para o processo de registro de preços. A unidade responsável pelas licitações, por sua vez, atua como o órgão gerenciador do SRP, sendo responsável por conduzir o processo licitatório em todas as suas etapas, incluindo a elaboração do ETP e do TR.
A elaboração da Intenção de Registro de Preço (IRP) também recai sobre a responsabilidade da unidade responsável pelas licitações, na qualidade de órgão gerenciador. É esta unidade que, após consolidar as demandas e detalhar o objeto da contratação no Termo de Referência, emite a IRP para dar publicidade à intenção de realizar o registro de preços e convidar outros órgãos a participarem.
Embora a responsabilidade pela elaboração e emissão da IRP seja da unidade de licitações, as unidades demandantes podem ter um papel importante no fornecimento de informações detalhadas sobre suas necessidades, que serão incorporadas ao ETP e ao TR.
Além disso, após a publicação da IRP, as unidades que desejarem participar formalmente do registro de preços deverão manifestar seu interesse, possivelmente encaminhando informações adicionais, como seus próprios Estudos Técnicos Preliminares, para justificar sua participação e detalhar suas demandas específicas. A colaboração entre as unidades demandantes e a unidade de licitações é, portanto, essencial para o sucesso do Sistema de Registro de Preços.
A natureza do objeto da licitação ou as normas internas da entidade administrativa podem, em alguns casos, influenciar o nível de envolvimento de cada unidade, mas a responsabilidade central pela condução do processo e pela elaboração da IRP permanece geralmente com a unidade responsável pelas licitações.
6. Orientações de Órgãos de Controle
O Tribunal de Contas da União (TCU) e os Tribunais de Contas Estaduais exercem um papel fundamental na fiscalização dos processos de licitação e contratação pública, incluindo o Sistema de Registro de Preços.
O TCU enfatiza que a Intenção de Registro de Preços (IRP) deve ser realizada na fase preparatória do processo licitatório para fins de registro de preços. O objetivo é possibilitar a participação de outros órgãos e determinar a estimativa total de quantidades da contratação. Essa orientação reforça a ideia de que a IRP é um procedimento antecedente à publicação do edital e à realização do certame.
Além disso, o TCU orienta que, antes de iniciarem um processo licitatório ou contratação direta, os órgãos da Administração Pública federal devem consultar as IRPs em andamento e deliberar sobre a conveniência de sua participação (Decreto 11.462/2023, art. 10).
Essa recomendação sublinha a importância da IRP como um instrumento de planejamento e de agregação de demandas no âmbito da administração pública. Embora essa orientação seja direcionada à esfera federal, o princípio de buscar a participação em registros de preços existentes antes de iniciar um novo processo pode ser aplicado em outras esferas.
A consulta ao Decreto nº 11.462/2023, que regulamenta o SRP no âmbito federal sob a nova lei de licitações, pode fornecer diretrizes mais detalhadas sobre o processo e o momento da IRP, que podem ser aplicáveis ou servir de referência para as práticas em outras esferas administrativas.
7. Conclusão e Recomendações
Com base na análise do art. 86 da Lei nº 14.133/2021, nas orientações do TCU, nas melhores práticas observadas e na lógica do processo de contratação por Sistema de Registro de Preços, conclui-se que a Intenção de Registro de Preço (IRP) deve ser elaborada e divulgada pela unidade responsável pelas licitações após a elaboração do Estudo Técnico Preliminar (ETP) e, principalmente, do Termo de Referência (TR).
Recomenda-se que o fluxo processual siga a seguinte ordem:
- As unidades demandantes identificam suas necessidades e levantam os quantitativos.
- A unidade responsável pelas licitações consolida as demandas e elabora o Estudo Técnico Preliminar (ETP).
- A unidade responsável pelas licitações, com base no ETP, desenvolve o Termo de Referência (TR), detalhando o objeto da contratação.
- A unidade responsável pelas licitações elabora e divulga a Intenção de Registro de Preço (IRP), referenciando o TR e convidando outros órgãos a manifestarem seu interesse em participar.
- Os órgãos interessados manifestam seu interesse, possivelmente apresentando seus próprios ETPs e a Manifestação de Intenção de Registro de Preço (MIRP).
- A unidade responsável pelas licitações prossegue com o processo licitatório (pregão ou concorrência) para registro de preços, considerando as demandas agregadas.
Esta sequência garante que a IRP contenha informações suficientes sobre o objeto da contratação para que outros órgãos possam avaliar seu interesse em participar, cumprindo o objetivo previsto no art. 86 da Lei nº 14.133/2021. A responsabilidade pela elaboração da IRP recai sobre a unidade responsável pelas licitações, enquanto as unidades demandantes contribuem com as informações iniciais e podem manifestar seu interesse em participar após a divulgação da IRP. Recomenda-se, ainda, a consulta ao Decreto nº 11.462/2023 para obter detalhes adicionais sobre a regulamentação do SRP sob a nova lei de licitações.
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Programa Empresa Pró-Ética 2025-2026: integridade como diferencial competitivo
A Controladoria-Geral da União (CGU) publicou o regulamento do Programa Empresa Pró-Ética 2025-2026, iniciativa que reconhece empresas que adotam medidas efetivas de prevenção à corrupção, responsabilidade socioambiental e respeito aos direitos humanos. Conduzido pelo principal órgão de controle interno do país, o programa possui reconhecimento nacional e internacional e se consolidou como uma das maiores referências em boas práticas de compliance empresarial.
O programa evolui em sua nova edição ao incorporar temas ligados à agenda ESG, como sustentabilidade, diversidade e direitos humanos — ampliando sua abordagem sobre o que significa, hoje, ter um programa de integridade robusto e eficaz.
Por que participar?
Ser reconhecida como Empresa Pró-Ética traz um importante diferencial reputacional. A empresa aprovada entra para a lista oficial da CGU e pode utilizar a marca “Empresa Pró-Ética” em seus materiais institucionais, reforçando sua imagem perante clientes, parceiros, investidores e o poder público. Em licitações e contratações governamentais, esse reconhecimento funciona como um indicativo de confiabilidade e maturidade institucional, aumentando a competitividade da empresa e sua atratividade no mercado.
Além do reconhecimento oficial, o processo de candidatura também oferece benefícios importantes para empresas que ainda não atingem a pontuação necessária. A estruturação dos formulários exige revisão crítica do programa de integridade e mobilização de diversas áreas internas. Empresas que atingem uma pontuação mínima na avaliação técnica costumam receber um retorno detalhado da CGU sobre pontos fortes e oportunidades de melhoria — um feedback técnico que frequentemente impulsiona aprimoramentos relevantes.
Regulamento 2025-2026: panorama das regras e critérios
A nova edição do programa apresenta regras mais robustas, com foco na ampliação temática e no rigor técnico da avaliação. Veja os principais pontos:
- Período de inscrição: de 5 de maio a 5 de junho de 2025, exclusivamente pela plataforma SAMPI.
- Adesão prévia obrigatória ao Pacto Brasil pela Integridade: é necessário obter ao menos 70% de conformidade na autoavaliação promovida pela CGU, além de ser signatária do Pacto Empresarial pela Integridade do Instituto Ethos.
- Avaliação em 10 áreas temáticas, entre elas: liderança e comprometimento da alta direção; estrutura de compliance; políticas internas; gestão de riscos; controles internos e auditoria; comunicação e treinamentos; due diligence de terceiros; canal de denúncias; medidas disciplinares e remediação; e responsabilidade socioambiental. Ao todo, o regulamento inclui 28 questões ligadas a ESG integradas nesses eixos.
- Pontuação mínima para aprovação: para ser reconhecida como Empresa Pró-Ética, a empresa deve:
- Obter pontuação total igual ou superior a 70 pontos (de um total de 100);
- Alcançar, no mínimo, 45% da pontuação em cada uma das 10 áreas avaliadas.
- Etapas do processo: a empresa deve preencher dois formulários (Perfil e Conformidade), anexando os documentos comprobatórios. Em seguida, passa por uma triagem de admissibilidade e avaliação técnica. Os casos aprovados são deliberados por um comitê multissetorial vinculado à CGU.
- Critérios de admissibilidade:
- Não estar inscrita nos cadastros CEIS (Cadastro de Empresas Inidôneas e Suspensas), CNEP (Cadastro Nacional de Empresas Punidas) ou na “lista suja” do trabalho escravo;
- Não estar respondendo a processo administrativo de responsabilização por corrupção (Lei 12.846/2013), nem ter sido condenada nos últimos 5 anos;
- Não estar sob monitoramento decorrente de acordo de leniência, nem em processo de negociação de leniência;
- Estar em situação regular nos âmbitos fiscal (Receita Federal/PGFN), trabalhista (FGTS, Justiça do Trabalho) e ambiental (Ibama).
Uma nova abordagem para a integridade corporativa
O Pró-Ética 2025-2026 marca uma inflexão importante na definição do que se entende por integridade empresarial. Ao incorporar temas como diversidade, direitos humanos e sustentabilidade, o programa amplia seu escopo de forma alinhada às tendências internacionais — tornando-se não apenas um referencial técnico, mas também um catalisador da cultura ética dentro das empresas.
O processo de candidatura exige a articulação entre múltiplas áreas — jurídico, RH, financeiro, compliance — e, independentemente do resultado final, promove uma visão integrada e estratégica sobre governança, riscos e responsabilidade institucional.
Como o escritório Schiefler Advocacia pode apoiar sua empresa
O escritório Schiefler Advocacia possui sólida experiência na estruturação, revisão e fortalecimento de programas de integridade, com foco em empresas que mantêm relações com o setor público. Oferecemos assessoria completa para a participação no Pró-Ética: da adesão ao Pacto Brasil à análise dos critérios do regulamento, passando pela revisão documental e orientação estratégica em cada etapa do processo.
Se sua empresa busca destacar-se pelo compromisso com a ética, a sustentabilidade e a integridade, estamos prontos para caminhar ao seu lado nessa jornada.
📌 Saiba mais:
Programa de integridade: quando ele é obrigatório?

A Nova Advocacia: inteligência artificial e o protagonismo das habilidades de negociação
Hoje, em 2025, é consenso que os modelos avançados de linguagem e outras formas de inteligência artificial estão revolucionando o trabalho jurídico. Desde o lançamento do ChatGPT em fins de 2022, o mundo do Direito e, especialmente, escritórios de advocacia ao redor do globo vêm experimentando um ponto de inflexão comparável ou superior à introdução da internet.[1] A IA generativa está para os juristas como a calculadora esteve para os engenheiros e matemáticos.[2]
Fato é que ferramentas de IA generativa conseguem redigir e analisar documentos legais com rapidez inédita, pesquisar jurisprudência e até sugerir estratégias – tarefas que antes consumiam horas de trabalho técnico dos advogados. Essa transformação tecnológica aumenta extraordinariamente a produtividade nos serviços jurídicos, em termos quantitativos e qualitativos, mas também traz novos desafios e reposiciona as habilidades valorizadas no profissional do Direito. Diante de um prognóstico de futuro cada vez mais tecnológico, em que há verdadeira fusão entre o profissional humano e a máquina, uma pergunta emerge: o que esperar dos advogados após a onda da IA generativa?
A resposta está na valorização das habilidades de negociação, incluindo a capacidade de comunicação e de persuasão, que se tornam cada vez mais essenciais.
Inteligência Artificial: Um caminho sem volta
Modelos de linguagem (LLMs) (como o ChatGPT, Gemini, Copilot ou DeepSeek) têm mostrado resultados impressionantes na automação de tarefas repetitivas e de baixo valor agregado. Estudos recentes indicam que sistemas de IA jurídica reduziram o tempo necessário para concluir tarefas em até 37%, dobrando ou até mais a produtividade dos advogados em certas atividades.[3] Em outras palavras, advogados assistidos por IA são capazes de entregar trabalho de qualidade em menos tempo, o que tem um impacto direto na melhoria da clareza e da organização de petições, contratos e outros documentos legais.
Ao facilitar a automatização de tarefas técnicas repetitivas, a IA generativa, quando devidamente operada, está ajudando os advogados a lidarem com um volume maior de casos sem comprometer a qualidade. A IA pode iniciar e evoluir os trabalhos técnicos de redação, fornecendo rascunhos bem estruturados e detalhados, cabendo ao advogado refinar, revisar e personalizar o conteúdo. Ou seja, se antes a eficiência repetitiva se dava pela adaptação de modelos (de petições, contratos, e etc.), hoje é possível ser eficiente mesmo em tarefas para as quais o advogado não dispõe de modelos.
Em determinado levantamento internacional de 2023, constatou-se que 87% dos profissionais do direito diziam que a tecnologia melhorou seu trabalho diário, sendo que 73% dos advogados consultados já planejavam integrar a IA generativa em seu trabalho jurídico dentro de um ano.[4] Essa rápida adesão reflete a preocupação dos advogados de que ignorar tais ferramentas pode em breve significar uma imensa desvantagem competitiva, ou mesmo a situação limite de um “iletramento jurídico-tecnológico”.
Por outro lado, existe ainda a desconfiança sobre o fato de que modelos generativos cometem equívocos, incluindo a chamada alucinação de conteúdo – por exemplo, citando precedentes ou normas inexistentes. É justamente neste flanco que plataformas de ferramentas jurídicas, que já estão incorporando IA generativa, travam o principal desafio tecnológico-jurídico, a saber: construir ferramentas precisas, que acertem a resposta e forneçam, de forma individualizada, o fundamento normativo, jurisprudencial ou doutrinário.[5] Nos Estados Unidos, ferramentas como Lexis+AI[6] e Harvey AI[7], bem como, no Brasil, a Schief.ai e o produto licito.guru IA[8] já se colocam na linha de frente dessa batalha. Disclosure: Os autores desse texto contribuíram diretamente na construção da Schief.ai e do produto licito.guru IA.
Reconhecendo essas falhas ainda existentes nos modelos generativos, órgãos de controle, como o CNJ[9] e o TCU[10], e entidades de classe, como a OAB[11] e a American Bar Association (EUA)[12], estão regulamentando e orientando que o uso de IA requer, obviamente, supervisão humana. Isto é, o advogado deve entender os benefícios e riscos da tecnologia e conferir a exatidão de toda resposta gerada, para cumprir seu dever de competência profissional. Em suma, a conjunção entre inteligência artificial e exercício da advocacia constitui um ponto de não retorno, mas não elimina a responsabilidade do advogado sobre o seu trabalho – ele continua assinando as peças e respondendo por elas.
Habilidades de negociação: o novo paradigma da advocacia
Se conferir respostas e revisar os textos gerados pela IA faz parte da responsabilidade profissional, o que, então, devemos esperar como habilidades de um advogado neste novo paradigma? Se a inteligência artificial consegue suprir boa parte do conhecimento técnico-jurídico operacional, o que passa a diferenciar um advogado “notável”?
Evidentemente, habilidades essencialmente humanas, antes tidas como complementares, passam a sobressair e alcançar um protagonismo natural, destacando-se como aquelas que a tecnologia não consegue replicar plenamente. Mais do que nunca, a “nova advocacia”, além do manejo desenvolto da tecnologia, repousa a sua boa execução na construção de relações de confiança entre advogado e cliente.
Em outras palavras, se a IA tende a “comoditizar” tarefas técnicas padronizáveis, outras qualidades como escuta ativa, empatia e a capacidade de leitura de cenários litigiosos complexos passam a ser, hoje, mais valorizadas do que nunca.
Atualmente, muitos clientes já conseguem buscar respostas corretas e completas utilizando as mesmas ferramentas que os advogados. Diante da análise de um caso, o que mais diferencia as posições entre o profissional e o cliente assistido é a capacidade de compreender as dores e os objetivos envolvidos na situação, e com isso traçar a melhor estratégia jurídica possível. Para tanto, é indispensável o refinamento de perspectiva, sensibilidade e pensamento crítico por parte do advogado, para que o cliente não receba apenas “uma aula de direito” ou respostas óbvias e que poderia alcançar sozinho.
Ao mesmo tempo, na práxis de litígios, a habilidade de negociação e comunicação persuasiva reposiciona-se como o centro da preocupação do advogado. Isso porque, se as respostas e a execução de tarefas técnicas são facilitadas pela IA, sobra mais tempo e espaço para a valorização dos relacionamentos e da visão estratégica aplicada sobre os casos. Isto é, se a boa redação jurídica e o acesso a respostas podem vir a se tornar comuns a todos os advogados, o que distinguirá a melhor solução será a sua condução estratégica, seja em direção a acordos mutuamente favoráveis ou no aconselhamento frente a dilemas legais.
Neste sentido, profissionais da advocacia que dominam técnicas especializadas de negociação podem se destacar significativamente. Por exemplo, ao utilizar ferramentas de IA para analisar contratos, um advogado pode identificar rapidamente cláusulas padrão e potenciais áreas de risco. Com essa informação, aplicando métodos de negociação específicos (como o método de negociação de Harvard), o advogado pode separar as pessoas do problema, focando nos interesses das partes envolvidas, e não nas suas posições. Essa abordagem orientada para soluções tende a resultar em acordos mais satisfatórios, perenes e legítimos para todas as partes, evidenciando como a combinação de habilidades negociais e IA pode aprimorar a prática jurídica – tendência essa que já é reconhecida em algumas instituições públicas, como o TCU, nessa nova “era da consensualidade”.[13]
Portanto, o perfil do advogado contemporâneo está em redefinição. O conhecimento doutrinário e jurisprudencial profundo seguirá valioso, mas agora alia-se com a competência de trabalhar junto com as IA’s, extraindo valor máximo dessas ferramentas. Como já aconteceu com a pesquisa eletrônica e editores de texto modernos, hoje já é impensável um advogado não saber como utilizar as tecnologias de IA a seu favor. Essa é a premissa técnica de toda “nova advocacia”.
Em paralelo, habilidades como escuta ativa, leitura de situações complexas e capacidade de negociar interesses conflitantes passam a ser indispensáveis na advocacia, fazendo do paradigma de “advogado notável” não mais aquele jurista “oráculo do Direito” ou sagaz em encontrar “brechas na lei”, mas, sim, um profissional que consegue, com segurança jurídica, agir com empatia, assertividade, persistência, além de oferecer compreensão e resolução de problemas concretos de um lugar mais próximo dos seus clientes.
Num mundo de advogados potencializados por tecnologia, aqueles que aliarem expertise jurídica, domínio de IA e sólidas habilidades interpessoais, definitivamente estarão em posição de destaque na profissão.
Em última instância, a Nova Advocacia não será conquistada por quem apenas domina códigos e precedentes, mas por aqueles que sabem transformar argumentos em acordos, conflitos em soluções e impasses em oportunidades. O advogado que não apenas entende a lei, mas domina a arte da negociação, não será substituído – ao revés, será indispensável. Enquanto a IA otimiza a técnica, é ainda a persuasão humana que define o resultado.
Autores:
Gustavo Schiefler. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Educação Executiva em Negociação (Harvard Law School).
Walter Marquezan Augusto. Doutor em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP).
Eduardo Schiefler. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
Marco Antônio Ferreira Pascoali. Mestre em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Referências:
[1] PERLMAN, A. The Implications of ChatGPT for Legal Services and Society. Harvard Law School Center on the Legal Profession, 2023. Disponível em: https://clp.law.harvard.edu/knowledge-hub/magazine/issues/generative-ai-in-the-legal-profession/the-implications-of-chatgpt-for-legal-services-and-society/ Acesso em: 23/03/2025.
[2] SCHIEFLER, Gustavo. Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data. CONJUR. 09 de junho de 2024. Disponível em: Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data https://www.conjur.com.br/2024-jun-09/os-assistentes-juridicos-virtuais-inteligencia-artificial-big-data/
[3] AMBROGI, B. Another New Study of Legal AI Shows Some Models Can Significantly Improve Work Quality and Efficiency. LawNext, 2025. Disponível em: https://www.lawnext.com/2025/03/another-new-study-of-legal-ai-shows-some-models-can-significantly-improve-work-quality-and-efficiency.html Acesso em: 23/03/2025.
[4] Wolters Kluwer. Future Ready Lawyer Survey 2023 – Generative AI, Nov. 2023. Disponível em: https://www.wolterskluwer.com/en/news/future-ready-lawyer-2023-report. Acesso em 23/03/2025.
[5] SCHIEFLER, Gustavo. Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data. CONJUR. 09 de junho de 2024. Disponível em: Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data https://www.conjur.com.br/2024-jun-09/os-assistentes-juridicos-virtuais-inteligencia-artificial-big-data/
[6] AMBROGI, B. LexisNexis Rolls Out Lexis+ AI for General Availability, Promising Hallucination-Free Answers to Legal Questions. LawNext, 2023. Disponível em: https://www.lawnext.com/2023/10/lexisnexis-rolls-out-lexis-ai-for-general-availability-promising-hallucination-free-answers-to-legal-questions Acesso em: 23/03/2025.
[7] CLIO. Harvey AI: Legal Artificial Intelligence (blog), 2023. Disponível em: https://www.clio.com/blog/harvey-ai-legal/ Acesso em: 23/03/2025.
[8] Disponível em: https://schief.ai/ e https://www.licito.guru/ia Acesso em: 23/03/2025.
[9] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ aprova resolução regulamentando o uso da IA no Poder Judiciário. 2025. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-resolucao-regulamentando-o-uso-da-ia-no-poder-judiciario/ Acesso em: 23/03/2025.
[10] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Guia de Uso de Inteligência Artificial Generativa no Tribunal de Contas da União (TCU). Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/42/F7/91/4B/B59019105E366F09E18818A8/Guia%20de%20uso%20de%20IA%20generativa%20no%20TCU.pdf. Acesso em: 24/03/2025.
[11] OAB. Confira versão final da recomendação do CFOAB sobre o uso de IA na prática jurídica. 2024. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/62711/confira-versao-final-da-recomendacao-do-cfoab-sobre-o-uso-de-ia-na-pratica-juridica Acesso em: 23/03/2025.
[12] New York State Bar Association. Justice Meets Algorithms: The Rise of Gen AI in Law Firms, 2025. Disponível em: https://nysba.org/justice-meets-algorithms-the-rise-of-gen-ai-in-law-firms/ Acesso em: 23/03/2025.
[13] SCHIEFLER, Gustavo. A negociação pelo método Harvard em conflitos da administração pública. CONJUR. 08 de dezembro de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-08/a-negociacao-pelo-metodo-harvard-em-conflitos-da-administracao-publica/ Acesso em: 23/03/2025.
Bibliografia:
AMBROGI, B. Another New Study of Legal AI Shows Some Models Can Significantly Improve Work Quality and Efficiency. LawNext, 2025. Disponível em: https://www.lawnext.com/2025/03/another-new-study-of-legal-ai-shows-some-models-can-significantly-improve-work-quality-and-efficiency.html Acesso em 23/03/2025.
AMBROGI, B. LexisNexis Rolls Out Lexis+ AI for General Availability, Promising Hallucination-Free Answers to Legal Questions. LawNext, 2023. Disponível em: https://www.lawnext.com/2023/10/lexisnexis-rolls-out-lexis-ai-for-general-availability-promising-hallucination-free-answers-to-legal-questions Acesso em: 23/03/2025.
NEW YORK STATE BAR ASSOCIATION. Justice Meets Algorithms: The Rise of Gen AI in Law Firms, 2025. Disponível em: https://nysba.org/justice-meets-algorithms-the-rise-of-gen-ai-in-law-firms/ Acesso em: 23/03/2025.
PERLMAN, A. The Implications of ChatGPT for Legal Services and Society. Harvard Law School Center on the Legal Profession, 2023. Disponível em: https://clp.law.harvard.edu/knowledge-hub/magazine/issues/generative-ai-in-the-legal-profession/the-implications-of-chatgpt-for-legal-services-and-society/ Acesso em 23/03/2025.
SCHIEFLER, Gustavo. Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data. CONJUR. 09 de junho de 2024. Disponível em: Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data https://www.conjur.com.br/2024-jun-09/os-assistentes-juridicos-virtuais-inteligencia-artificial-big-data/ Acesso em 23/03/2025.
SCHIEFLER, Gustavo. A negociação pelo método Harvard em conflitos da administração pública. CONJUR. 08 de dezembro de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-08/a-negociacao-pelo-metodo-harvard-em-conflitos-da-administracao-publica/ Acesso em: 23/03/2025.
WOLTERS KLUWER. Future Ready Lawyer Survey 2023 – Generative AI, Nov. 2023. Disponível em: https://www.wolterskluwer.com/en/news/future-ready-lawyer-2023-report. Acesso em 23/03/2025.
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Obrigatoriedade de diligência prévia na desclassificação de propostas inexequíveis, conforme a Lei 14.133/2021
Introdução
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) trouxe importantes inovações, dentre elas um critério objetivo para identificar propostas possivelmente inexequíveis (ou seja, de valor tão baixo que seriam inexequíveis na prática).
No entanto, longe de permitir a desclassificação automática dessas propostas, a lei e a jurisprudência exigem que a Administração Pública realize uma diligência prévia antes de inabilitar (desclassificar) uma proposta por inexequibilidade. Em recente decisão (Acórdão 803/2024 do Tribunal de Contas da União – TCU), essa obrigatoriedade foi reforçada, consolidando o entendimento de que o órgão licitante deve oportunizar ao licitante a chance de comprovar a viabilidade de sua oferta.
Neste artigo, será explorado o contexto legal e jurisprudencial desse tema, as implicações práticas para as empresas licitantes e exemplos de como a atuação jurídica especializada pode proteger os interesses do licitante. Veremos a definição de proposta inexequível, a análise do §4º do art. 59 da Lei 14.133/21, o papel da diligência prévia, os riscos da desclassificação automática e boas práticas para licitantes.
Proposta inexequível: conceito e critério legal na Lei 14.133/2021
Em licitações públicas, considera-se inexequível a proposta cujo preço é tão baixo que não permitiria a execução satisfatória do objeto licitado. Em outras palavras, é uma oferta antieconômica ou inviável, que levanta suspeitas de que o licitante não conseguirá cumprir o contrato por aquele valor.
A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 59, traz parâmetros objetivos para identificar possíveis propostas inexequíveis, especialmente em contratos de obras e serviços de engenharia. O §4º do art. 59 estabelece que, “No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”. Ou seja, a nova lei fixa um limite percentual (75% do orçamento estimado) abaixo do qual a proposta deve ser tratada com suspeita de inexequibilidade.
Exemplo prático: Suponha que a Administração estime que determinada obra de engenharia custe R$ 1.000.000,00. Se um licitante apresentar proposta de valor inferior a R$ 750.000,00 (75% do orçamento), essa oferta se enquadrará como potencialmente inexequível segundo o critério legal. Nessa situação, a proposta não pode ser simplesmente descartada de imediato, mas sim avaliada com maior cuidado mediante diligências.
Importante destacar que esse critério objetivo não significa que qualquer proposta abaixo de 75% do orçamento seja inexequível em termos absolutos, mas apenas que presume-se sua inexequibilidade até prova em contrário. A experiência prática demonstra que podem existir justificativas legítimas para um preço significativamente inferior, como tecnologias inovadoras que reduzem custos, condições comerciais vantajosas, estoque de materiais a preços baixos, estratégia empresarial de menor margem de lucro para entrar no mercado, entre outros. Por isso, é necessário analisar caso a caso se aquela oferta pode, de fato, ser executada pelo proponente.
Essa compreensão de que o parâmetro numérico gera apenas uma presunção relativa não é nova. A antiga Lei nº 8.666/1993 (agora revogada) já previa critério semelhante (70% em obras de engenharia, conforme seu art. 48, §1º, alínea a e b) e, naquela época, o TCU firmou entendimento de que esse era um indicador relativo, não uma regra absoluta.
Esse entendimento foi consolidado na Súmula 262 do TCU, a qual enuncia que “o critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta”. Em suma, já na vigência da lei antiga ficou assente que a Administração deve permitir que o proponente com preço suspeito demonstre que, apesar de baixo, seu preço é viável.
A Lei 14.133/2021 seguiu filosofia semelhante: embora tenha fixado um critério objetivo (75% do orçamento) para alertar sobre possível inexequibilidade, ela contém dispositivos que asseguram a possibilidade de o licitante provar a exequibilidade da sua proposta. Esses dispositivos impõem, como veremos a seguir, um verdadeiro dever de diligência prévia por parte do órgão público antes de efetivar a desclassificação.
Aplicação da IN nº 73/2022 na Inexequibilidade de Propostas para Bens e Serviços Comuns
A Instrução Normativa SEGES/MGI nº 73/2022 trouxe, no âmbito das licitações de bens e serviços comuns, um critério objetivo para identificar propostas presumivelmente inexequíveis. De acordo com o art. 34 dessa IN, considera-se indício de inexequibilidade qualquer proposta cujo valor seja inferior a 50% do valor estimado (orçado) pela Administração.
Em outras palavras, uma oferta abaixo de metade do preço de referência do edital é automaticamente sinalizada como possivelmente inviável.
Importa destacar que a IN 73/2022 adota o termo indício, indicando que esse critério de 50% serve como uma presunção relativa – um alerta inicial, não uma desclassificação automática. Tanto é que a própria norma exige, no parágrafo único do art. 34, a realização de diligência antes de confirmar a inexequibilidade, a fim de verificar objetivamente a capacidade de execução daquela proposta de baixo valor.
Nesse procedimento, o agente de contratação (pregoeiro) deverá averiguar se os custos do licitante ultrapassam o valor ofertado e se inexistem ganhos ou fatores compensatórios (custos de oportunidade) que justifiquem o preço tão reduzido. Somente se a diligência comprovar que o licitante não teria como cumprir o contrato sem incorrer em prejuízo (ou sem um motivo econômico válido para ofertar tão abaixo do mercado) é que a proposta será formalmente declarada inexequível e desclassificada.
É importante comparar esse critério dos 50% da IN 73/2022 com o parâmetro estabelecido na Lei nº 14.133/2021, especificamente no §4º do art. 59, que trata da inexequibilidade em obras e serviços de engenharia.
A Lei 14.133/21 determina que, no caso de contratos de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas com valores inferiores a 75% do valor orçado pelo órgão público. Ou seja, para obras e serviços de engenharia, a própria lei fixou um limite de 75% do orçamento como piso de viabilidade – qualquer proposta abaixo disso é presumida inexequível de acordo com a legislação.
Trata-se de um parâmetro mais rigoroso do que o aplicado a bens e serviços comuns (75% contra 50%), refletindo a natureza distinta desses objetos.
Bens e serviços comuns geralmente permitem margens de desconto maiores devido à padronização e competitividade de mercado, de modo que preços muito baixos (até certa medida) podem ainda ser exequíveis.
Já obras e serviços de engenharia envolvem custos fixos significativos, riscos e complexidades que tornam impraticáveis descontos tão expressivos – daí o limite mais elevado de 75%.
Em síntese, conforme o tipo de objeto licitado, aplica-se um critério distinto de inexequibilidade: nas licitações de itens comuns vale a regra dos 50% do estimado (conforme a IN 73/2022), ao passo que nas contratações de obras/engenharia vigora a regra dos 75% do estimado (conforme a Lei 14.133).
Vale lembrar ainda que a Lei 14.133/2021 não estipulou um percentual fixo para bens e serviços em geral, lacuna essa preenchida, no âmbito federal, pela IN 73/2022. Assim, cada modalidade de objeto possui sua faixa de alerta: abaixo de 50% para itens comuns, abaixo de 75% para engenharia – sempre exigindo a análise adequada da viabilidade antes de qualquer decisão definitiva.
Exemplo prático: Considere uma licitação para fornecimento de 100 unidades de determinado equipamento, com valor estimado oficial de R$ 100.000,00. Suponha que o Licitante A apresente uma proposta de R$ 48.000,00, equivalente a 48% do valor orçado. Segundo o critério da IN 73/2022, essa oferta está abaixo do limite de 50%, configurando um forte indício de inexequibilidade. Nessa situação, o pregoeiro (agente de contratação) deve instaurar diligência para que o Licitante A comprove como será possível executar o objeto por esse preço extraordinariamente baixo. O licitante poderá, por exemplo, apresentar uma planilha detalhada de custos, demonstrando que obteve preços excepcionais de insumos ou que dispõe de estoque e logística eficiente, de forma que seus custos totais fiquem dentro do valor proposto. Poderá ainda alegar alguma estratégia comercial específica – como vender sem margem de lucro imediata visando benefícios futuros (ganhar mercado, publicidade, etc.) – o que se enquadraria em “custos de oportunidade” justificadores da oferta atípica. Caso o Licitante A comprove satisfatoriamente a exequibilidade (viabilidade) da proposta nesse procedimento de diligência, sua oferta deverá ser mantida na disputa. Por outro lado, se não conseguir demonstrar de forma convincente que executará o contrato por R$ 48 mil sem prejuízo ou quebra da qualidade, a administração desclassificará a proposta por inexequibilidade. Note que, sem esse rito de verificação, a proposta poderia ser sumariamente excluída por estar abaixo de 50%, mas a IN 73/2022 garante ao licitante essa oportunidade de esclarecimento antes da desclassificação.
O dever de diligência prévia no art. 59 da Lei 14.133/2021
A nova Lei de Licitações também deixou claro nos seus próprios termos que a Administração Pública tem o dever de verificar a exequibilidade das propostas suspeitas, em vez de simplesmente desclassificá-las de plano. Duas previsões do art. 59 são centrais aqui:
- Art. 59, inciso IV: determina a desclassificação das propostas que “não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração”. Ou seja, a Administração pode exigir que o licitante demonstre a viabilidade de sua oferta; se ele não conseguir demonstrar quando exigido, aí sim sua proposta será desclassificada como inexequível.
- Art. 59, §2º: dispõe que “a Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo”. Em outras palavras, a lei faculta (e implicitamente obriga, diante do interesse público) que a equipe de licitação realize todas as verificações necessárias junto ao licitante para confirmar se a proposta é exequível.
Essas regras deixam claro que o critério de 75% do §4º não implica uma desclassificação imediata. Trata-se de uma presunção relativa de inexequibilidade que aciona o dever de verificação.
Portanto, cabe à Administração promover diligências quando se deparar com uma proposta abaixo do patamar indicativo. Na prática, essa diligência prévia envolve medidas como:
- Solicitação formal de esclarecimentos e documentos ao licitante, referentes à formação de seu preço. Por exemplo, pedir planilhas de composição de custos, notas fiscais de insumos, comprovantes de que o licitante possui condições especiais (descontos de fornecedores, estrutura própria, menor carga tributária etc.) que justifiquem o preço ofertado.
- Análise técnica detalhada dos elementos apresentados. A comissão de licitação deve verificar se os custos alegados são compatíveis com os de mercado, se as quantidades e produtividade estimadas pelo licitante são razoáveis, e se a margem de lucro (se houver) está dentro de um patamar realista.
- Comparação com parâmetros externos, quando possível. A Administração pode confrontar os dados do licitante com referências de preços em bancos de dados públicos, contratos similares já executados, tabelas oficiais (por exemplo, SINAPI para construção civil, em se tratando de obras) etc., para aferir a coerência da proposta.
- Decisão fundamentada: Após a análise, se ficar demonstrado que, apesar de estar abaixo de 75% do orçamento, a proposta é exequível, a empresa não poderá ser desclassificada por preço inexequível. Por outro lado, se o licitante não conseguir comprovar de forma satisfatória a viabilidade ou se ficar claro que os números não fecham (por exemplo, o custo dos insumos básicos já supera o valor proposto), aí sim a desclassificação por inexequibilidade estará amparada, devendo ser formalizada com a devida justificativa.
Resumidamente, a diligência prévia é a etapa em que se verifica, de maneira transparente e técnica, se a oferta aparentemente muito baixa pode ser sustentada na execução do contrato. Essa exigência não é apenas uma opção da Administração, mas configura um verdadeiro dever, visto que decorre do princípio do procedimento formal correto, do estímulo à competitividade e, até mesmo, dos direitos ao contraditório e ampla defesa do licitante.
Afinal, desclassificar um concorrente sem lhe dar chance de explicar seu preço equivaleria a uma sanção prematura e poderia eliminar indevidamente a proposta possivelmente mais vantajosa para a Administração.
Jurisprudência do TCU
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem se mostrado alinhada com essa leitura da lei, reforçando que o limite de 75% é uma presunção relativa e que a diligência prévia é obrigatória.
Como mencionado, a Súmula 262/TCU (editada em 2010 sob a égide da Lei 8.666) já estabelecia expressamente que a Administração deve oportunizar ao licitante a prova da exequibilidade da proposta suspeita. Com a vigência da Lei 14.133/2021, o TCU passou a enfrentar casos práticos envolvendo o novo critério de 75%, e suas decisões reafirmaram essa compreensão.
Destaca-se, em especial, o Acórdão 803/2024 – Plenário do TCU (relatado pelo Min. Benjamin Zymler, julgado em 24/04/2024), que abordou diretamente a interpretação do art. 59, §4º da Lei 14.133/21. Nesse caso, discutia-se uma possível contradição entre a lei e uma norma infralegal (Instrução Normativa Seges/MGI 2/2023) que autorizava a realização de diligências quando houvesse proposta inferior a 75% do orçamento. Alegava-se que a lei teria criado um critério absoluto (ou seja, abaixo de 75% seria inexequível sem discussão), de modo que a previsão de diligência na IN seria ilegal.
O TCU, contudo, afastou essa interpretação literal rígida do §4º. O plenário do Tribunal fez observações importantes: uma leitura inflexível do limite de 75% poderia, na verdade, prejudicar a competição e até contrariar princípios constitucionais. Isso porque, se todos soubessem que ofertas abaixo de 75% seriam desclassificadas automaticamente, os licitantes tenderiam a não ofertar descontos além desse patamar – na prática, congelando o desconto máximo em 25%. Isso eliminaria a disputa por preços melhores, pois nenhum concorrente iria abaixo disso com medo de ser eliminado. Como resultado, muitos certames poderiam acabar empatados justamente nesse limite, forçando o uso de critérios de desempate. Segundo o TCU, tal cenário frustraria o objetivo da licitação de obter a proposta mais vantajosa e poderia até afrontar o princípio da economicidade e o dever de licitar previstos na Constituição.
Além disso, o Acórdão 803/2024 salientou que não cabe ao Estado uma tutela excessiva dos licitantes a ponto de fixar um corte absoluto para preços. Cada empresa conhece sua estrutura de custos e suas estratégias. Um critério legal fixo não consegue abarcar todas as nuances da atividade econômica. Citou-se, por exemplo, a situação de uma empresa que deliberadamente faz uma proposta muito barata visando obter experiência ou um atestado técnico, mesmo arcando com pouco ou nenhum lucro – uma decisão empresarial válida em certos contextos. Se a Administração impuser um paternalismo exagerado, poderia estar interferindo indevidamente na liberdade do setor privado assumir riscos calculados.
Por outro lado, o TCU reconheceu que propostas excessivamente baixas podem ocultar intenções prejudiciais, aludindo ao chamado “risco moral”. Esse risco ocorre quando o licitante assume postura irresponsável por saber que, se não conseguir cumprir o contrato, as consequências podem recair em parte sobre a Administração (por exemplo, ele abandona a obra após executar a parte mais lucrativa, deixando o restante para ser contratado de emergência, ou então ganha a licitação barato já contando em pedir aditivos ilegais posteriormente para aumentar o valor). Porém, conforme frisou o Acórdão 803/2024, a solução para coibir esse risco moral não é fixar um critério inflexível de preço, mas sim aprimorar os procedimentos de análise e fiscalização. Ou seja, cabe à Administração, no momento da licitação e da execução contratual, ser rigorosa na avaliação das propostas (incluindo exigência de demonstração de exequibilidade) e no acompanhamento do contrato, de modo a evitar comportamentos oportunistas.
Em conclusão, o TCU julgou improcedente a representação que alegava a ilegalidade das diligências e afirmou, em caráter pedagógico, que o §4º do art. 59 da Lei 14.133 deve ser interpretado à luz do §2º do mesmo artigo. Não se trata de uma presunção absoluta de inexequibilidade, mas relativa. O resultado prático desse entendimento é: sempre que uma proposta estiver abaixo do referencial de 75%, a Administração deve acionar o mecanismo da diligência, dando oportunidade ao licitante de comprovar a exequibilidade da sua oferta, em atenção ao que determinam o inciso IV e o §2º do art. 59.
Somente após essa apuração, e caso o proponente não consiga dissipar as dúvidas sobre sua capacidade de executar pelo preço proposto, é que a desclassificação por inexequibilidade estará juridicamente respaldada.
Vale mencionar que esse posicionamento do Acórdão 803/2024 não é isolado. Outros precedentes do TCU, também já sob a vigência da Lei 14.133, seguem na mesma linha. Por exemplo, o Acórdão 465/2024-Plenário igualmente registrou que a regra do art. 59, §4º gera presunção relativa e impõe o dever de dar ao licitante a chance de demonstrar a viabilidade de sua proposta.
Para as empresas licitantes, essa jurisprudência é uma garantia de que seus direitos serão respeitados: se oferecerem um preço agressivo (baixo), não poderão ser eliminadas sumariamente sem chance de se defender. Contudo, também traz responsabilidades, pois caberá a elas reunir e apresentar elementos técnicos convincentes quando forem chamadas a justificar seus preços.
Jurisprudência do TCU: reforço à presunção relativa e à obrigatoriedade de diligência
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem se consolidado no sentido de que o limite de 75% do valor estimado, previsto no §4º do art. 59 da Lei nº 14.133/2021, bem como o de 50% previsto no art. 34 da Instrução Normativa SEGES/MGI nº 73/2022, configuram apenas uma presunção relativa de inexequibilidade, e não uma presunção absoluta. Assim, impõe-se à Administração Pública o dever de realizar diligência prévia, sempre que a proposta apresentar indícios de inexequibilidade com base nesse parâmetro.
Essa orientação encontra respaldo desde a Súmula 262/TCU, editada sob a égide da antiga Lei nº 8.666/1993, que já reconhecia a necessidade de oportunizar ao licitante a demonstração da exequibilidade da proposta suspeita. Com a vigência da nova lei, o TCU reafirmou esse entendimento em diversas decisões relevantes.
Dentre elas, merece destaque o Acórdão nº 803/2024 – Plenário do TCU (rel. Min. Benjamin Zymler), que enfrentou diretamente o tema da interpretação do §4º do art. 59. Na ocasião, afastou-se a tese de que a norma teria criado um critério absoluto de desclassificação automática, ao reconhecer que a realização de diligência para apuração da viabilidade econômica da proposta é obrigatória, mesmo quando esta se encontrar abaixo do limite de 75%.
O Tribunal ressaltou que uma leitura inflexível do dispositivo legal poderia restringir indevidamente a competitividade, ao desencorajar propostas com descontos mais agressivos. Além disso, apontou que o papel do Estado não é exercer tutela paternalista sobre os licitantes, mas sim assegurar que propostas exequíveis e vantajosas tenham a oportunidade de prevalecer — desde que o proponente consiga comprovar tecnicamente sua capacidade de execução.
Mais recentemente, essa jurisprudência foi reforçada com ainda mais clareza pelo Acórdão nº 214/2025 – Plenário do TCU, que deve ser considerado como o precedente mais atual e contundente sobre o tema. Nesse julgamento, o Tribunal reiterou que a Administração não pode desclassificar proposta com fundamento exclusivo no §4º do art. 59 da Lei 14.133/2021, sem antes oportunizar ao licitante a demonstração da exequibilidade por meio de diligência, sob pena de violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da busca pela proposta mais vantajosa.
O acórdão foi categórico ao afirmar que a interpretação sistemática dos §§2º e 4º do art. 59 conduz à obrigatoriedade de diligência sempre que houver dúvida quanto à exequibilidade da proposta. Ressaltou-se, inclusive, que essa etapa é condição de validade da própria desclassificação, sob pena de nulidade do ato.
Para as empresas licitantes, essa jurisprudência representa uma dupla garantia: o direito de defender propostas competitivas e o dever de estar preparadas para justificar, com base técnica, a viabilidade econômica da sua oferta.
Riscos da desclassificação automática sem diligência
Desconsiderar esse dever de diligência prévia e partir para a desclassificação automática de uma proposta suspeita de inexequível representa um grave risco jurídico e prático tanto para a Administração quanto para os licitantes envolvidos. Dentre os principais problemas de uma inabilitação sumária sem observância do procedimento adequado, destacam-se:
- Nulidade do ato e do certame: Uma desclassificação feita em desacordo com a Lei 14.133/21 e a jurisprudência do TCU pode ser declarada inválida. O licitante prejudicado tem o direito de apresentar recurso administrativo no próprio processo licitatório, alegando a irregularidade (violação do art. 59, §2º e inc. IV). Caso a comissão de licitação mantenha a decisão ilegal, é possível buscar a anulação do ato via representação aos órgãos de controle (como o TCU ou os Tribunais de Contas estaduais/municipais) ou mesmo por ação judicial.
- Violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa: A Constituição Federal (art. 5º, LV) assegura o direito ao contraditório e à ampla defesa nos processos administrativos. Embora um julgamento de propostas não seja um “processo sancionador” típico, a exclusão de uma proposta legítima sem chance de defesa fere o senso de justiça procedimental. Os órgãos de controle e o Poder Judiciário têm reconhecido que o licitante deve ser ouvido quanto à viabilidade de sua proposta antes de ser afastado, sob pena de ofensa a princípios basilares do Direito Administrativo.
- Prejuízo à competitividade e à economicidade: Como apontado pelo TCU, eliminar automaticamente propostas abaixo de certo patamar pode distorcer o jogo competitivo. Em vez de incentivar descontos maiores (beneficiando a Administração com preços mais baixos), um critério rígido desestimula propostas ousadas. Isso significa que a Administração pode acabar pagando mais caro por contratar uma proposta “segura” (acima de 75%) quando poderia ter obtido uma oferta válida de menor valor. Ou seja, a falta de diligência pode levar à contratação de uma proposta menos vantajosa economicamente, contrariando o princípio da busca da proposta mais vantajosa.
- Risco de responsabilização do agente público: Os agentes da comissão de licitação ou o pregoeiro que deixarem de realizar diligência e efetuarem uma desclassificação indevida podem ser responsabilizados. O TCU já qualificou a desclassificação sem diligência como irregularidade passível de apontamento em auditorias. Em casos graves, isso pode levar a sanções aos responsáveis, como multas ou determinações de correção do procedimento.
- Imagem e confiança no processo licitatório: Para os licitantes, ver propostas descartadas sem análise gera desconfiança na lisura do certame. Empresas idôneas podem se sentir desestimuladas a participar de futuras licitações daquele órgão, receosas de arbitrariedades. A longo prazo, isso reduz a competição nos certames, o que também prejudica a Administração.
Em face desses riscos, fica evidente que não compensa “queimar etapas”. O procedimento correto – isto é, investigar a exequibilidade por meio de diligência – não é burocracia excessiva, mas sim uma garantia de segurança jurídica e de decisão acertada. Inclusive, a diligência bem conduzida não tende a alongar demasiadamente o certame; pelo contrário, pode evitar impugnações e atrasos futuros. Muitas vezes, basta conceder ao licitante um prazo curto (24 ou 48 horas) para apresentar esclarecimentos/documentos, analisar rapidamente em seguida, e então tomar a decisão fundamentada. Esse pequeno investimento de tempo previne uma série de problemas maiores adiante.
Do ponto de vista do licitante, caso ele seja vítima de uma inabilitação por inexequibilidade sem ter havido diligência, é crucial que saiba que pode e deve reagir. Os caminhos incluem interpor recurso administrativo contra a desclassificação, juntando toda a documentação que comprove a exequibilidade e citando a legislação e precedentes do TCU favoráveis. Se mesmo assim não for revertido, buscar a via judicial ou representação ao TCU são alternativas. Nessas horas, contar com assessoria jurídica especializada, como a do Schiefler Advocacia, faz a diferença para reverter o quadro com rapidez e efetividade.
Boas práticas para licitantes: preparando-se para comprovar a exequibilidade
Para as empresas que participam de licitações, especialmente em setores de obras e engenharia (onde o critério de 75% se aplica), seguem algumas boas práticas a adotar visando prevenir problemas com alegações de inexequibilidade e se proteger caso elas surjam:
- Elaboração cuidadosa da proposta: Antes de tudo, o licitante deve montar sua proposta de preço com base em uma planilha de custos realista. Identifique todos os custos diretos (materiais, mão de obra, equipamentos, logística) e indiretos, tributos incidentes, margens etc. Se o preço final ofertado for muito baixo em relação ao orçamento público, certifique-se de que internamente você consegue justificar cada cifra. Isso já serve de preparação para uma eventual diligência.
- Documentação de suporte pronta: Tenha à mão documentos que possam comprovar condições vantajosas da sua empresa. Por exemplo: cotações de fornecedores com valores menores que os usuais, demonstrações de eficiência produtiva, comprovantes de estoque próprio de material, contratos anteriores em que executou serviço similar por preço equivalente, enfim, qualquer evidência de que você consegue realizar pelo valor proposto. Essa documentação poderá ser apresentada rapidamente se a comissão solicitar esclarecimentos.
- Atenção ao edital e comunicações da licitação: O edital pode prever expressamente como será avaliada a exequibilidade e quais documentos podem ser exigidos. Siga essas regras. Além disso, fique atento durante a sessão ou fase de julgamento: se o pregoeiro/comissão mencionar suspeita de inexequibilidade, esteja pronto para requerer a oportunidade de demonstrar sua exequibilidade (caso não seja automaticamente concedida). Faça constar em ata, se possível, seu compromisso de apresentar justificativas.
- Responda prontamente às diligências: Se a Administração abrir diligência para comprovação de exequibilidade, observe rigorosamente o prazo concedido e responda de forma completa. Entregue todos os documentos solicitados e, se cabível, acrescente uma explicação por escrito, clara e objetiva, indicando como chegou àquele preço e porque ele é exequível. Essa resposta bem fundamentada frequentemente é suficiente para convencer a comissão e evitar a desclassificação.
- Recurso bem fundamentado em caso de desclassificação indevida: Caso, apesar de tudo, sua proposta seja desclassificada sem chance de esclarecimento (ou você julgue que a avaliação foi equivocada), interponha recurso administrativo. Demonstrar conhecimento técnico-jurídico firme pode fazer a própria Administração reconsiderar a decisão, evitando escalonar o conflito.
- Assessoria jurídica especializada: Conte com apoio de advogados experientes em licitações antes, durante e depois do certame. Essa parceria preventiva pode evitar que o problema de inexequibilidade sequer aconteça, ou tratar rapidamente dele se surgir, protegendo sua posição no certame.
Adotando essas boas práticas, o licitante minimiza consideravelmente o risco de ser surpreendido por uma inabilitação por inexequibilidade. E mesmo que seus preços agressivos despertem questionamentos, estará bem aparelhado para demonstrar a viabilidade e assegurar sua vitória legítima na licitação.
A participação em licitações públicas envolve desafios técnicos e jurídicos significativos, sobretudo diante da possibilidade de desclassificação por inexequibilidade. Nesse contexto, contar com uma assessoria jurídica especializada, como a oferecida pelo Schiefler Advocacia, é fundamental para proteger os interesses das empresas licitantes. Atuamos desde a análise preventiva dos editais e elaboração estratégica das propostas, passando pelo acompanhamento criterioso do certame e intervenções técnicas imediatas, até a apresentação robusta de justificativas técnicas e recursos administrativos contra decisões indevidas.
Além disso, nossa equipe está preparada para representar empresas perante Tribunais de Contas e Poder Judiciário, sempre embasada em sólida argumentação jurídica e técnica, amparada pela mais recente jurisprudência do TCU. Nossa atuação continua na fase contratual, garantindo apoio jurídico em situações que demandem reequilíbrio econômico-financeiro e renegociações, assegurando, assim, a execução sustentável e vantajosa dos contratos administrativos.
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Contratação de Empresa com CNAE Divergente do Objeto Licitado: Análise Jurídica sob a Lei 14.133/2021
Introdução
A contratação pública de empresas cuja inscrição no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) não apresenta atividade econômica (CNAE) correspondente ao objeto licitado levanta importantes questões jurídicas. Com a entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), é fundamental analisar como ficam os requisitos de habilitação das licitantes nesse contexto.
Este artigo aprofunda o tema à luz da nova legislação, em especial no que tange à habilitação jurídica e à qualificação técnica dos licitantes, e examina entendimentos jurisprudenciais relevantes do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a matéria. O objetivo é esclarecer se a ausência de determinado CNAE no cadastro da empresa pode, por si só, impedi-la de contratar com a Administração Pública, mesmo quando esteja tecnicamente apta a executar o objeto licitado.
CNAE e Objeto Licitado: Conceitos e Implicações
A Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) é o código oficial que identifica as atividades econômicas exercidas por uma empresa. No cadastro do CNPJ, cada pessoa jurídica informa um ou vários CNAEs correspondentes aos ramos de atuação aos quais se dedica.
Em licitações públicas, muitas vezes se menciona o CNAE da empresa como indicativo de sua aptidão para realizar o objeto contratual. Entretanto, o CNAE em si não define de forma absoluta a capacidade de uma empresa executar determinado serviço ou obra.
Ele é uma referência administrativa e fiscal das atividades empresariais, mas não um limitador legal das atividades que a empresa pode exercer – desde que estas estejam abrangidas, ainda que genericamente, em seu objeto social (a descrição das atividades permitidas em seu contrato ou estatuto social).
É relativamente comum que editais de licitação contenham cláusulas exigindo que a empresa licitante tenha finalidade ou ramo de atuação ligado ao objeto licitado. Essa prática busca garantir que apenas concorram empresas “do ramo” do objeto da contratação. Contudo, surge o questionamento: se a empresa não tem em seu cadastro um CNAE específico para aquela atividade, mas comprova que já a executou com qualidade, poderia ser inabilitada?
A Nova Lei de Licitações e Contratos e a jurisprudência moderna apontam para um tratamento mais flexível e focado na capacidade real da empresa, conforme veremos a seguir.
Habilitação Jurídica na Lei 14.133/2021
A habilitação jurídica diz respeito à capacidade da empresa de exercer direitos e assumir obrigações perante a Administração. Na Lei nº 14.133/2021, diferentemente da legislação anterior, simplificou-se a exigência de habilitação jurídica.
Segundo o art. 66 da nova lei, a documentação se limita à comprovação da existência jurídica da pessoa e, quando cabível, de autorização específica para o exercício da atividade a ser contratada. Em outras palavras, basta demonstrar que a empresa existe formalmente (por meio do contrato social registrado, CNPJ ativo etc.) e que não há impedimentos legais para que atue naquele ramo – se a lei exigir alguma autorização especial (por exemplo, licenças ou registro em conselho profissional para atividades regulamentadas).
Importante destacar que a lei não menciona nenhuma obrigação de que o objeto social ou o CNAE da empresa coincida exatamente com o objeto licitado. A ênfase está na regularidade formal da empresa e na autorização legal quando a atividade exigir condição especial (por exemplo, registro na Anvisa para certas atividades de saúde, ou no CREA/CAU para serviços de engenharia/arquitetura, etc.).
Fora dessas hipóteses de exigência legal específica, não há base legal para desclassificar licitantes unicamente porque seu cadastro empresarial não listava determinada atividade. Tal entendimento é coerente com o princípio da ampla concorrência (ou competitividade) previsto na própria Lei 14.133/2021 e na Constituição Federal (art. 37, XXI), que proíbe a Administração de restringir injustificadamente a participação de interessados na licitação.
Qualificação Técnica: Comprovação de Capacidade x CNAE
Enquanto a habilitação jurídica cuida dos aspectos formais de existência e capacidade legal da empresa, a qualificação técnica verifica se o licitante possui aptidão técnica para executar o contrato. A Lei 14.133/2021 disciplina a qualificação técnica principalmente em seu art. 67, que trata da documentação técnico-profissional e técnico-operacional exigível.
Dentre os meios de comprovação de qualificação técnica permitidos, destacam-se: apresentação de atestados de capacidade técnica (fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado que atestem que a empresa realizou serviços ou forneceu bens semelhantes ao objeto da licitação), indicações de equipe técnica e aparelhamento adequados, e registro em conselho profissional, quando aplicável.
Em suma, a lei prioriza a comprovação concreta da experiência e capacidade técnica da empresa, por meio de atestados e certificações, em vez de se ater a classificações formais. Não há no art. 67 ou em qualquer dispositivo da Lei 14.133/2021 previsão de exigência do código CNAE como condição de qualificação. A Administração deve exigir prova da capacidade técnica pertinente ao objeto (por exemplo, atestados de serviços similares já executados), o que é muito mais eficaz para avaliar a aptidão do que verificar se determinada atividade consta ou não do cadastro fiscal da empresa.
Assim, do ponto de vista estritamente legal, nada impede que uma empresa sem o CNAE exato do objeto licitado participe e seja habilitada, desde que comprove, por outras vias, que tem condições técnicas de executar o contrato. Essa comprovação ocorre mediante os documentos de qualificação técnica elencados na lei – e não pela simples classificação fiscal.
Em última análise, o que se busca é a garantia de que a contratada entregue o objeto com qualidade, e isso se verifica pelos seus antecedentes de desempenho (experiência pretérita) e estrutura atual, e não por códigos de inscrição econômica.
Jurisprudência do TCU sobre CNAE e Objeto Social do Licitante
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União tem reiteradamente firmado entendimento de que o CNAE ou a descrição específica do objeto social da empresa não constituem, por si sós, elementos essenciais para habilitação, se a capacidade técnica restar devidamente demonstrada.
Em casos concretos, o TCU vem decidindo que a inabilitação fundada exclusivamente na ausência de determinado CNAE configura formalismo excessivo e viola o caráter competitivo da licitação. Desde meados dos anos 2000, o TCU assinala que a Administração não deve restringir a competição exigindo correspondência exata entre o ramo de atividade registrado da empresa e o objeto licitado.
No Acórdão nº 571/2006 – TCU (2ª Câmara), por exemplo, discutiu-se a situação de um licitante cujo contrato social não continha, de forma expressa, a atividade específica objeto da licitação (transporte de pessoas). Naquela oportunidade, o Tribunal ponderou que a empresa havia apresentado três atestados de capacidade técnica por entes públicos distintos, comprovando experiência na execução do serviço pretendido. Concluiu, então, ser irrazoável exigir que o objeto social preveja minuciosamente cada subatividade ligada à atividade principal desempenhada: “Se uma empresa apresenta experiência adequada e suficiente para o desempenho de certa atividade, não seria razoável exigir que ela tenha detalhado o seu objeto social a ponto de prever expressamente todas as subatividades complementares à atividade principal”. Nesse caso, o TCU entendeu que a desclassificação da empresa com base unicamente nessa lacuna do contrato social feriu o interesse público, pois impediu a seleção da melhor proposta possível – entendimento inteiramente alinhado ao princípio da competitividade.
Essa linha de raciocínio foi posteriormente reafirmada em diversos outros precedentes do TCU.
No Acórdão nº 1203/2011 – Plenário, citando um exemplo, o Tribunal julgou indevida a inabilitação de empresa que não possuía CNAE específico para transporte de cargas leves, pois a licitante demonstrara já ter executado serviços semelhantes para a própria Administração contratante em contrato anterior – evidência de capacidade técnica que se sobrepôs a meras formalidades cadastrais.
De forma semelhante, no Acórdão nº 9365/2015 – 2ª Câmara, uma licitante de serviços de alimentação foi mantida na disputa apesar de não ter o CNAE exato de “distribuição de refeições”, porque apresentou atestados comprovando larga experiência no fornecimento de refeições em eventos de grande porte.
Mais recentemente, em pleno vigorar da nova lei, o Acórdão nº 444/2021 – Plenário reforçou esse entendimento ao considerar ilegal a desclassificação de uma empresa por divergência de CNAE em um pregão para recuperação de estradas vicinais – o TCU ressaltou que o essencial era a comprovação da experiência da empresa em atividades análogas, tratando a exigência rígida de CNAE como indevida por comprometer a seleção da proposta mais vantajosa.
Em síntese, a posição consolidada do TCU é de que a ausência de determinada atividade no objeto social ou no CNAE da licitante não é motivo suficiente para inabilitá-la, desde que fique demonstrada sua aptidão técnica para executar o objeto contratual. Cláusulas editalícias que exijam estritamente a correspondência do CNAE como critério eliminatório tendem a ser consideradas restritivas em demasia. O foco deve recair sobre a comprovação efetiva da capacidade de desempenho – por meio de atestados, registros profissionais, qualificação de equipe, etc. – em observância aos arts. 67 e 69 da Lei 14.133/2021 e ao princípio da competitividade.
Consequências Práticas e Recomendações
Diante do arcabouço legal e jurisprudencial exposto, uma empresa pode, em tese, ser contratada pelo Poder Público mesmo que não possua, em seu CNPJ, CNAE correspondente ao objeto da licitação.
Não havendo vedação legal expressa, a ausência do código específico não impede a contratação se a licitante cumprir os demais requisitos de habilitação. Isso traz alívio para muitas empresas, especialmente as que diversificam seus serviços ao longo do tempo e nem sempre atualizam imediatamente seus CNAEs junto aos órgãos de registro.
Entretanto, é recomendável adotar boas práticas preventivas. Do ponto de vista prático, incluir no objeto social da empresa descrições amplas ou abrangentes das atividades que ela desenvolve (ou pretende desenvolver) pode evitar questionamentos nas fases de habilitação. Manter o cadastro CNAE atualizado com as principais atividades também é salutar – não por imposição legal, mas para reduzir resistências e necessidade de esclarecimentos perante comissões de licitação menos experientes.
Em caso de cláusulas restritivas no edital, a empresa deve considerar impugná-las administrativamente antes da licitação ou, se necessário, recorrer judicialmente ou aos órgãos de controle. A própria nova lei reforça a possibilidade de saneamento de falhas e flexibilização de exigências excessivas para ampliar a disputa (fundamento que embasa, por exemplo, o art. 9º, I, “b” e o art. 12, III, da Lei 14.133/2021, que vedam cláusulas ou práticas que frustrem o caráter competitivo injustificadamente).
Em suma, prevalece o meritório sobre o meramente formal: uma empresa tecnicamente qualificada não deve ser afastada apenas por não constar determinado código de atividade em seu CNPJ. A Administração Pública, ao conduzir suas licitações, deve buscar a proposta mais vantajosa e selecionar fornecedores capazes, evitando formalismos exagerados que não guardem relação direta com a futura execução contratual.
Esse entendimento, lastreado na lei e na jurisprudência do TCU, promove a competitividade e a eficiência nas contratações públicas, beneficiando tanto o setor público (que passa a contar com um leque maior de propostas qualificadas) quanto as empresas que, por sua expertise, podem participar de certames além das definições estritas de seus cadastros.
Conclusão
A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) consolida uma visão moderna da fase de habilitação: privilegia-se a efetiva capacidade jurídica e técnica do licitante em detrimento de formalidades cadastrais rígidas. Nesse cenário, exigir que o CNAE ou o objeto social do licitante seja idêntico ao objeto licitado não encontra amparo expresso na lei e vem sendo refutado pelos órgãos de controle. Desde que a empresa demonstre, com documentação hábil, estar legalmente constituída e tecnicamente apta a executar o contrato, não deverá ser inabilitada pela mera ausência de um código CNAE específico ligado ao objeto da licitação. Tal prática, além de juridicamente questionável, pode privar a Administração da melhor proposta, contrariando o interesse público.
Por todo o exposto, a resposta à indagação inicial é clara: é possível a contratação pública de empresa cujo CNPJ não apresente atividade econômica correspondente ao objeto licitado, desde que atendidos os requisitos legais de habilitação (existência jurídica regular e qualificação técnica comprovada por outros meios idôneos).
A atenção deve recair sobre a essência (capacidade de executar) e não sobre a forma (registro burocrático da atividade). Esse entendimento, respaldado pela jurisprudência do TCU, fortalece os princípios da isonomia e da competitividade nas licitações, ao mesmo tempo em que impõe às empresas o ônus de demonstrar sua qualificação de maneira robusta.
Diante das nuances legais e dos riscos envolvidos nas contratações públicas, é imprescindível contar com orientação jurídica especializada.
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Obrigatoriedade de Apresentação do Balanço Patrimonial por MEIs em Licitações Públicas
Fundamentos Legais: da Lei nº 8.666/1993 à Nova Lei nº 14.133/2021
A exigência de demonstrações contábeis (balanço patrimonial, DRE etc.) em licitações públicas tem base nas leis de licitações, tanto na antiga Lei nº 8.666/1993 quanto na nova Lei nº 14.133/2021. Essas normas visam garantir que os licitantes possuam saúde financeira mínima para cumprir um futuro contrato público.
Pela Lei nº 8.666/1993, a habilitação econômico-financeira restringia-se à apresentação de: (i) balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e na forma da lei, comprovando a boa situação financeira da empresa (não se admitindo balancetes ou balanços provisórios); (ii) certidão negativa de falência ou concordata (no caso de pessoa jurídica) ou de execução patrimonial (para pessoa física); e (iii) eventualmente, garantia limitada a 1% do valor do contrato. Em suma, a antiga lei exigia o balanço patrimonial do último ano como comprovação da capacidade econômico-financeira.
Com a Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), em vigor integral desde 2023, a regra foi mantida e até ampliada. O artigo 69 dessa lei estabelece que a habilitação econômico-financeira será demonstrada, de forma objetiva, pela apresentação de balanço patrimonial, demonstração do resultado do exercício (DRE) e demais demonstrações contábeis dos 2 (dois) últimos exercícios sociais, além da certidão negativa de falência/insolvência.
Ou seja, agora podem ser exigidos os balanços dos dois últimos anos, aumentando o escopo de análise das finanças do licitante. Há, contudo, uma salvaguarda para empresas novas: se o licitante tiver menos de 2 anos de constituição, os documentos contábeis se limitam ao último exercício encerrado. Essa evolução normativa demonstra que o legislador reforçou a necessidade de transparência financeira, sem dispensar micro ou pequenos empreendedores dessa obrigação.
Importante notar que essa obrigação legal vale para qualquer participante da licitação, incluindo microempresas, empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais (MEIs). A legislação especial das licitações, por sua natureza, impõe essas exigências a todos os concorrentes, visando resguardar o interesse público na contratação. No âmbito das leis de licitação, não há exceção expressa que dispense MEIs ou microempresas de apresentar balanço patrimonial – as únicas flexibilizações são aquelas gerais, como a possibilidade de exigir apenas o último balanço para empresas constituídas há menos de dois anos (no caso da Lei 14.133) e os benefícios da Lei Complementar nº 123/2006 que não incluem isenção de demonstrações contábeis, como veremos adiante.
Jurisprudência do TCU: MEI Deve Apresentar Balanço Patrimonial
Diante da dúvida se um Microempreendedor Individual, por ter obrigações contábeis simplificadas, precisaria mesmo entregar balanço patrimonial em licitações, o Tribunal de Contas da União (TCU) firmou entendimento claro: sim, deve apresentar. Em diversas decisões recentes, o TCU consolidou que as exigências das leis de licitação prevalecem sobre eventuais dispensas previstas em legislação civil ou comercial.
Um marco nesse entendimento foi o Acórdão nº 133/2022 do TCU – Plenário, de relatoria do Ministro Walton Alencar Rodrigues. Nessa decisão, o TCU examinou a participação de um MEI em licitação regida pela Lei 8.666/93 e concluiu que, mesmo que o Código Civil dispense o pequeno empresário de manter balanço, o MEI deve apresentá-lo se o edital exigir para fins de qualificação econômico-financeira. Conforme consta do voto, “ainda que o MEI esteja dispensado da elaboração do balanço patrimonial pelo Código Civil, para participação em licitação pública regida pela Lei 8.666/1993, deverá apresentar o balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e na forma da lei, conforme previsto no art. 31, inciso I, da Lei 8.666/1993”. Em outras palavras, a obrigação de demonstrar a boa situação financeira prevalece no âmbito da licitação, independentemente do regime simplificado do empresário.
Mais recentemente, já na vigência da nova lei, o TCU reafirmou esse entendimento no Acórdão nº 2586/2024 – Plenário. Nesse julgado, ao apreciar um recurso, o Tribunal adaptou a redação da orientação anterior para o contexto da Lei 14.133/2021. Ficou consignado que, em licitações sob a égide da Lei 14.133, o MEI – mesmo dispensado de escrituração contábil pelo Código Civil – deverá apresentar, quando exigido para comprovação de sua boa situação financeira, o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis do último exercício social, salvo nas hipóteses de dispensa de documentação previstas no art. 70, inciso III, da Lei 14.133/2021.
A referência ao art. 70, III, diz respeito a casos excepcionais em que a própria lei de licitações permite a dispensa de documentos de habilitação (por exemplo, contratações de menor valor com entrega imediata e pagamento único, conforme limites legais). Fora dessas situações excepcionais, o entendimento do TCU é peremptório: MEIs estão obrigados a apresentar suas demonstrações contábeis nas licitações, assim como qualquer outra empresa.
Essa posição não surgiu do nada – o TCU já vinha sinalizando em decisões anteriores que não poderia o edital isentar MEIs ou microempresas da apresentação de balanço. Por exemplo, em 2016 e 2017, o Tribunal censurou editais que desobrigavam balanço patrimonial, por violarem a Lei 8.666 e os princípios da isonomia. No Acórdão 1.857/2022, também do Plenário, reiterou-se que a desobrigação de balanço para ME/EPP é irregular, devendo os benefícios às microempresas limitar-se àqueles previstos na Lei Complementar 123/2006.
Ou seja, a jurisprudência do TCU tem sido consistente em não admitir tratamento favorecido além do previsto em lei, reforçando que a exigência de balanço patrimonial é regra geral para todos os licitantes.
O Conflito com o Código Civil e a Prevalência da Lei Especial de Licitações
A resistência de alguns microempreendedores em apresentar balanço patrimonial deriva do aparente conflito de normas. De um lado, o Código Civil (Lei nº 10.406/2002) estabelece, em seu art. 1.179, que todo empresário e sociedade empresária devem seguir um sistema de contabilidade e levantar anualmente balanço patrimonial e de resultado. Por outro lado, o próprio art. 1.179 do Código Civil, em seu §2º, dispensa dessas exigências “o pequeno empresário a que se refere o art. 970”. Na prática, este “pequeno empresário” abrange as microempresas e, por extensão, o microempreendedor individual (que é uma categoria criada posteriormente pela LC 123/2006, gozando de tratamento semelhante ao da microempresa). Além disso, a Lei Complementar nº 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte) permite que microempresas optantes pelo Simples Nacional adotem uma contabilidade simplificada, a critério do empreendedor. Em suma, a legislação civil e comercial não obriga o MEI a ter balanço patrimonial e escrituração completa, diferentemente de empresas maiores.
Diante disso, seria lógico questionar: por que exigir balanço do MEI na licitação, se a lei dispensa sua elaboração? A resposta está na hierarquia e especialidade das normas.
As regras de habilitação em licitações integram uma legislação especial (leis de licitação) voltada especificamente à contratação pública, com objetivos próprios de proteção ao interesse público (garantia da execução contratual, seleção de propostas vantajosas, isonomia entre licitantes, etc.). Já as disposições do Código Civil e da LC 123/2006 são normas gerais de direito empresarial e econômico, visando desburocratização e incentivo aos pequenos negócios de forma ampla.
Prevalece, nesse caso, o princípio de que a lei especial prevalece sobre a lei geral (lex specialis derrogat legi generali). O TCU explicitou exatamente isso: a licitação pública é regida por lei específica e, em razão dessa especialidade, afasta a aplicação da lei geral naquilo que for incompatível. Portanto, a dispensa contábil do art. 1.179 do Código Civil não isenta o MEI das exigências da Lei de Licitações, pois esta representa um microssistema próprio. Ademais, a Constituição Federal, ao tratar de licitações (art. 37, XXI), exige igualdade de condições e cumprimento estrito dos termos do edital e da lei. Isentar um licitante de apresentar documentos exigidos dos demais violaria a isonomia e a competitividade do certame.
Assim, a interpretação que se consolidou é de que o MEI pode, para efeitos do direito privado, não ter obrigação de escrituração mercantil completa, mas se ele optar por participar de licitação pública, deve atender às exigências documentais dessa legislação especial, inclusive no tocante ao balanço patrimonial.
Ressalte-se que a LC 123/2006, ao estabelecer tratamento favorecido às micro e pequenas empresas nas contratações públicas, não prevê a dispensa da documentação de qualificação econômico-financeira. Os benefícios ali elencados referem-se a outras medidas, como preferência em caso de empate, prazos para regularizar certidões fiscais, subdivisão de lotes, etc. Não há na LC 123/06 qualquer artigo isentando microempresas ou MEIs de apresentar balanços ou demonstrativos em licitações. Portanto, permitir que um MEI concorra sem comprovar sua situação financeira seria criar um benefício não previsto em lei, algo que os órgãos de controle rechaçam.
Em síntese, o entendimento dominante é que a obrigação de balanço patrimonial prevalece, e a dispensa do Código Civil não pode ser invocada para frustrar as exigências de habilitação fixadas nas leis de licitação.
Consequências da Não Apresentação do Balanço Patrimonial
A não apresentação do balanço patrimonial pelo MEI em um processo licitatório pode acarretar sérias consequências práticas, em especial a sua inabilitação imediata. Nos processos regidos tanto pela antiga Lei 8.666 quanto pela nova Lei 14.133, a fase de habilitação é eliminatória: o licitante que não entregar toda a documentação exigida no edital (observados os limites da lei) será desclassificado da licitação (inabilitado), não podendo prosseguir na disputa. Assim, um MEI que deixa de incluir suas demonstrações contábeis (quando o edital as exige) muito provavelmente será excluído do certame por não atender à qualificação econômico-financeira.
Mesmo que o microempreendedor individual argumente que não possui balanço formal por não ser obrigado a elaborá-lo no dia a dia, a comissão de licitação ou pregoeiro não tem amparo legal para relevá-lo, salvo nas hipóteses excepcionalíssimas de dispensa de documentação previstas na lei (como contratações diretas ou licitações dispensáveis de baixo valor, conforme art. 70 da Lei 14.133, mencionadas). Na prática comum das licitações, a ausência do balanço no envelope de habilitação leva à inabilitação do MEI – ou de qualquer outra empresa nas mesmas condições.
Do ponto de vista do órgão público condutor da licitação, há também consequências caso ele tente flexibilizar indevidamente essa exigência. Se um edital dispensar o MEI de apresentar balanço patrimonial (tentando favorecer sua participação), tal cláusula será considerada ilegal e inconstitucional pelos órgãos de controle. O TCU já determinou ciência a entes públicos alertando que isentar MEIs da exigência do balanço contraria o art. 37, XXI, da CF/88 (princípio da isonomia e seleção da proposta mais vantajosa), bem como a Lei 8.666/93 e a jurisprudência consolidada. Isso significa que o procedimento licitatório pode ser impugnado por outros licitantes ou questionado pelos Tribunais de Contas, levando à anulação do edital ou à necessidade de correção das regras. Em suma, a Administração não pode criar exceções não previstas em lei sob pena de invalidar o certame.
Portanto, a não apresentação do balanço patrimonial resulta, para o MEI, na perda da oportunidade de contratar (desclassificação), e para o processo licitatório em si, no risco de nulidade caso a exigência tenha sido indevidamente dispensada.
Recomendações Práticas para MEIs e Pequenas Empresas em Licitações
Diante desse cenário, é fundamental que microempreendedores individuais e pequenas empresas tomem algumas precauções e adotem boas práticas ao se prepararem para participar de licitações públicas. Seguem algumas recomendações úteis:
- Mantenha a contabilidade em dia: Mesmo que a lei civil não o obrigue, o MEI deve preparar anualmente um balanço patrimonial e demonstrações de resultado. Busque auxílio de um contador para elaborar esses documentos conforme os princípios contábeis. Assim, quando surgir uma oportunidade de licitação, a empresa já terá em mãos as demonstrações do último exercício (ou dos dois últimos, se aplicável) prontas para apresentação.
- Verifique o edital com atenção: Ao se interessar por um certame, leia cuidadosamente a seção de habilitação econômico-financeira do edital. Identifique se é exigido balanço patrimonial e de quais exercícios. Verifique também se há menção a índices financeiros mínimos (ex.: liquidez corrente, solvência) a serem calculados a partir do balanço. Esteja preparado para apresentar os documentos e cálculos requeridos ou questione formalmente caso alguma exigência extrapole o permitido em lei.
- Utilize os mecanismos da lei a seu favor: Se o edital trouxer exigências muito rígidas ou em desconformidade com a legislação (por exemplo, pedir balanço de mais anos do que a lei exige, ou índices indevidos), protocolize um pedido de esclarecimento ou impugnação ao edital dentro do prazo cabível. A nova Lei de Licitações enfatiza a objetividade e a justificativa das exigências; portanto, o MEI pode e deve buscar a correção de clausulados excessivos para evitar ser barrado indevidamente. Garantir regras equilibradas faz parte do direito dos licitantes, especialmente dos pequenos negócios.
- Conheça os benefícios legais, mas não conte com perdão para documentação: Esteja ciente dos benefícios do Estatuto da Microempresa (LC 123/06) nas licitações, como empate ficto e preferência de contratação local. Porém, não interprete esses benefícios como perdão para faltas documentais. Diferentemente de algumas certidões fiscais que podem ser regularizadas em 5 dias úteis se a microempresa sair vencedora, o balanço patrimonial é um documento de qualificação cuja ausência pode não ser passível de correção posterior. Portanto, encare a preparação do balanço como parte indispensável do planejamento para licitar.
- Planejamento e investimento: Participar do mercado de compras governamentais exige profissionalização. Considere investir em assessoria contábil e jurídica especializadas em licitações. Isso ajuda a estruturar a empresa para atender aos editais (do ponto de vista documental, fiscal e trabalhista) e também a navegar nos procedimentos licitatórios sem incorrer em erros formais. O custo de manter contabilidade regular é compensado pelas oportunidades de negócios com o poder público que se abrem ao estar habilitado corretamente.
Seguindo essas orientações, o MEI e as pequenas empresas aumentam significativamente suas chances de sucesso nas licitações. Em resumo, a chave é antecipar-se às exigências, tratar a elaboração de balanço patrimonial como parte do negócio e não apenas uma burocracia, e valer-se dos instrumentos legais para competir em condições justas.
Considerações Finais
Em conclusão, a obrigatoriedade de apresentação do balanço patrimonial por MEIs em licitações públicas é hoje uma realidade incontornável do ordenamento jurídico brasileiro. A evolução normativa – da Lei 8.666/1993 para a Lei 14.133/2021 – reforçou a importância da qualificação econômico-financeira dos licitantes, e a jurisprudência do TCU consolidou o entendimento de que nem mesmo o regime simplificado dos microempreendedores individuais os exime desse dever legal.
Para evitar inabilitações e garantir a competitividade, os MEIs devem se preparar adequadamente, mantendo suas demonstrações contábeis em ordem e atendendo rigorosamente aos editais, valendo-se dos mecanismos de flexibilidade apenas nos estritos termos da lei.
A Atuação do Escritório Schiefler Advocacia
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Entenda o processo de desapropriação do imóvel de “Ainda Estou Aqui”: aspectos jurídicos e alternativas
No dia 03/10/2025, o prefeito do Rio de Janeiro publicou o Decreto nº 55729/2025[1], declarando de utilidade pública o imóvel na Urca onde foi filmado “Ainda Estou Aqui”, filme vencedor do Oscar. O objetivo anunciado foi o de transformar a casa em um espaço cultural aberto ao público. O valor do imóvel – que encontrava-se à venda – teria saltado de R$ 13,9 milhões para R$ 25 milhões após a vitória no Oscar.
Antes de adentrar aos aspectos legais da desapropriação, é necessário partir da seguinte premissa: a desapropriação constitui uma venda, embora forçada.
O Decreto-Lei nº 3.365/1941, que dispõe sobre desapropriações por utilidade pública, elenca diversos motivos – desde segurança nacional e salubridade pública até preservação de patrimônio histórico e cultural. No caso do imóvel da Urca, o fundamento para a desapropriação se deu com base na alínea “h” do art. 5º do Decreto-Lei nº 3.365/1941, que considera caso de utilidade pública a “exploração ou a conservação dos serviços públicos”.
A peculiaridade do caso “Ainda Estou Aqui” é que o imóvel não possui propriamente um patrimônio histórico tradicional – visto que foi locado pela produção do filme para as gravações. Isso explica, em parte, o motivo pelo qual o decreto não invocou diretamente a justificativa de “preservação de monumento histórico” (alínea “k”, do art. 5º), optando por enquadrar a hipótese no interesse de instalação de serviço público (alínea “h” do art. 5º).
Vale dizer que o conceito de patrimônio cultural abrange qualquer bem portador de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (CF, art. 216), o que confere respaldo ao Poder Público para agir na proteção de um local que se tornou simbolicamente relevante para a sociedade.
Por outro lado, o decreto levanta o questionamento se a transformação de um imóvel utilizado como cenário cinematográfico em centro cultural se enquadraria adequadamente na motivação pública. Se o objetivo é preservar a memória cultural e a premiação do filme, por que não utilizar o instituto do tombamento, que visa precisamente resguardar a identidade e a memória de bens culturais?
Em suma, do ponto de vista jurídico, a validade do decreto depende de demonstrar um interesse público concreto e legítimo, o que, no caso ora analisado, convida a um exame sobre a fundamentação legal mais adequada para o atingimento da finalidade pública pretendida.
O que ocorre após a publicação do decreto de utilidade pública?
A partir da declaração de utilidade pública, formalizada pelo decreto publicado, o poder público tem prazo legal de até cinco anos para efetivar a desapropriação (art. 10 do DL 3.365/1941) – o que não necessariamente pressupõe a intervenção do judiciário, conforme decurso apresentado a seguir.
Após a publicação do decreto, o próximo passo é a elaboração de um laudo de avaliação para determinar o valor da indenização a ser oferecida ao proprietário. Essa oferta inicial deve corresponder a um valor justo, atendendo ao mandamento constitucional de prévia e justa indenização em dinheiro (CF, art. 5º, XXIV). Na prática, esse valor tende a se situar entre o valor venal do IPTU (geralmente inferior) e o valor de mercado do imóvel. Notificado o proprietário e apresentada a proposta, busca-se uma composição amigável, de modo que, se o proprietário aceitar o montante, a transferência ocorre administrativamente, evitando-se litigiosidade.
Vale ressaltar que a partir de 2019, tornou-se possível a opção pela mediação ou pela via arbitral para a definição de valores de indenização, hipótese em que o particular indicará um dos órgãos ou instituições especializados previamente cadastrados pelo órgão responsável pela desapropriação (Art. 10-B do DL. 3.365/41).
Caso não haja acordo, o ente público deverá propor uma ação judicial de desapropriação. Nessa fase judicial, o Município normalmente deposita em juízo o valor ofertado (ou o valor venal) e pode requerer a imissão provisória na posse (art. 15 do DL 3.365/41) – para tomar posse do bem antes da conclusão do processo, quando a urgência ou interesse público o justifique.
O proprietário desapropriando é então citado e tem oportunidade de contestação, que só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço (art. 20 do DL 3.365/41). O processo segue sob rito ordinário, com a designação de perícia judicial para apurar o justo preço do imóvel. Neste ínterim, o bem já pode estar em posse do poder público, mas a discussão sobre o quantum indenizatório pode se arrastar por anos até trânsito em julgado.
O proprietário do bem poderá, então, aceitar, em juízo, a oferta feita pelo expropriante, realizando um acordo judicial; ou aguardar a sentença, que fixará a indenização definitiva, considerando fatores como localização, estado do imóvel, potencial de uso e valorização.
Desapropriação vs. Tombamento: diferenças e possibilidades
Diante do propósito declarado pelo decreto de preservar a memória cultural ligada ao imóvel, cabe a diferenciação entre dois institutos do direito administrativo que giram em torno da intervenção do Estado na propriedade: a desapropriação e o tombamento.
O tombamento é um ato administrativo em que o Poder Público reconhece o valor histórico, cultural, arquitetônico ou paisagístico de um bem, inscrevendo-o nos livros do tombo e impondo restrições à sua utilização para assegurar sua preservação.
Diferentemente da desapropriação, o tombamento não transfere a titularidade do bem – no entanto, o proprietário passa a ter o dever legal de conservar o bem e fica proibido de demolir, alterar ou dar destinação que comprometa o valor cultural protegido.
Em regra, o tombamento não gera direito a indenização, por ser considerado uma limitação administrativa ao uso da propriedade, e não uma perda da propriedade em si.
No caso do imóvel da Urca, se o objetivo predominante fosse a preservação da identidade e memória do local, o tombamento seria um caminho juridicamente pertinente, e não a desapropriação. A casa estaria legalmente protegida contra destruição ou descaracterização, sem que o Município tivesse que adquirir sua propriedade.
Por outro lado, o tombamento, isoladamente, não garantiria o acesso público ao imóvel nem a implementação imediata de um centro cultural, dependendo sempre da anuência ou parceria do proprietário para que o local possa receber visitantes ou abrigar atividades.
Já a desapropriação proporciona à administração controle pleno sobre o bem, viabilizando a instalação de um equipamento público e o acesso da população. Em contrapartida, exige recursos financeiros elevados para indenizar o particular e representa a medida mais drástica de intervenção na propriedade, só se justificando quando o interesse público assim o exigir.
No espectro das alternativas, entre o tombamento (mera restrição preservacionista) e a desapropriação (aquisição compulsória), há ainda saídas intermediárias que poderiam ter sido consideradas. Por exemplo, a Lei de Licitações prevê, enquanto hipótese de inexigibilidade de licitação, a “aquisição ou locação de imóvel cujas características de instalações e de localização tornem necessária sua escolha” (art. 74, V, da Lei 14.133/2021). Mas, para que tal alternativa fosse efetivamente considerada, o proprietário deveria necessariamente anuir com a venda, o que não ocorre na hipótese da desapropriação .
Considerações finais: do Oscar à desapropriação
Os “considerandos” do decreto delineiam a motivação contida na pretensão de desapropriar: fala-se da relevância cultural da casa construída em 1938 utilizada enquanto locação principal do filme (Considerando 2º); da indicação do filme “Ainda Estou Aqui” ao Oscar e a sua vitória em uma das categorias (Considerandos 3º e 4º); do dever do Estado de preservar a memória democrática e a superação do autoritarismo (Considerando 8º); e da a necessidade de criar um espaço de memória do cinema brasileiro (Considerando 10º).
Nesse cenário, diversas alternativas jurídicas poderiam ter sido adotadas para atender o interesse público concreto e legítimo: o tombamento garantiria a preservação do bem sem a transferência de propriedade e o acesso ao público; a aquisição mediante inexigibilidade de licitação permitiria uma venda consensual entre o poder público e o proprietário. Em suma, a adoção da alternativa jurídica mais adequada envolve ponderar custos, grau de intervenção e efetividade do resultado almejado: no caso de “Ainda Estou Aqui”, a Prefeitura optou pelo caminho da desapropriação, que assegura a criação do museu e a prestação de um serviço público, em que pese tratar-se de uma intervenção supressiva e mais onerosa.
Do ponto de vista do direito dos proprietários, diante da publicação do decreto de utilidade e a iminente abertura da fase executória da desapropriação, o auxílio de uma assessoria jurídica é essencial para construir alternativas que culminem em uma indenização justa pelo Poder Público.
[1] Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/rj/r/rio-de-janeiro/decreto/2025/5573/55729/decreto-n-55729-2025-declara-de-utilidade-publica-para-fins-de-desapropriacao-o-imovel-que-menciona. Acesso em: 14/03/2025.
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Programa de Integridade: Quando ele é obrigatório?
1. INTRODUÇÃO
O termo compliance, de origem anglo-saxônica, não possui uma tradução exata para o português, o que justifica sua permanência na língua inglesa no uso cotidiano no Brasil. Derivado do verbo to comply, o conceito remete à ideia de conformidade e é amplamente utilizado por organizações para estabelecer diretrizes voltadas à prevenção, detecção e correção de práticas ilegais, antiéticas ou incompatíveis com os valores institucionais[1].
Nesse cenário, as ferramentas de compliance assumem papel estratégico na gestão de riscos empresariais, prevenindo condutas indesejadas tanto por colaboradores internos quanto por terceiros que integrem a cadeia de relações comerciais da organização[2].
Com esse objetivo, os Programas de Integridade despontam como uma vertente específica do compliance, com foco na promoção de uma cultura organizacional baseada na ética e na transparência, pilares essenciais da governança corporativa e elementos indispensáveis para relações públicas e privadas sustentáveis.
2. BREVE CONTEXTO HISTÓRICO
A partir de 1992, o Brasil aprofundou sua abertura comercial, adequando-se às exigências do mercado global e ampliando sua competitividade. Esse processo também demandou uma regulamentação mais rigorosa do mercado interno, em sintonia com padrões internacionais[3].
Nesse contexto, novas obrigações de conformidade emergiram, impulsionando a redefinição das responsabilidades no campo do compliance, notadamente com a promulgação de normativas voltadas à transparência e à integridade empresarial[4]. Assim, as organizações passaram a buscar maior alinhamento às boas práticas e aos incentivos promovidos pela Lei Anticorrupção[5]–[6].
Diante da recorrência de escândalos de corrupção que evidenciaram fragilidades estruturais no ambiente corporativo brasileiro, a institucionalização dos Programas de Integridade no país surgiu como uma resposta para o fortalecimento dos mecanismos de proteção empresarial.
3. COMPLIANCE COMO PILAR DE GOVERNANÇA
No cenário atual, o compliance transcendeu a função de mera estratégia de mitigação de riscos e consolidou-se como um pilar essencial de governança. Mais do que prevenir ilícitos, tornou-se um diferencial competitivo e um fator determinante para a sustentabilidade das organizações.
Dessa forma, o compliance atua como agente transformador ao fomentar uma cultura organizacional baseada na ética, transparência e responsabilidade corporativa. Inicialmente tratado como uma vantagem competitiva, o Programa de Integridade evoluiu sob o impulso da legislação e hoje se apresenta como uma exigência indispensável tanto sob a ótica estatal quanto social.
A integridade corporativa, nesse sentido, desempenha papel central no fortalecimento da confiança entre empresas, consumidores e demais stakeholders, deixando de ser um conceito abstrato para consolidar-se como um elemento estratégico fundamental na construção de um ambiente de negócios mais ético, transparente e sustentável[7].
4. A OBRIGATORIEDADE DE PROGRAMAS DE INTEGRIDADE NAS CONTRATAÇÕES DE GRANDE VULTO
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA – Lei nº 14.133/2021)[8] prevê expressamente a adoção de programas de integridade como critério relevante em diversas situações. Especificamente, estabelece sua utilização como critério de desempate em licitações (art. 60, IV), reconhece sua adoção como fator atenuante na aplicação de sanções administrativas (art. 156, §1º, V) e exige sua implementação como requisito para a reabilitação de licitantes eventualmente sancionados (art. 163, parágrafo único).
Além disso, a NLLCA impõe a obrigatoriedade de programas de integridade em contratações de grande vulto — aquelas cujo valor estimado ultrapasse R$ 200 milhões (art. 25, §4º)[9]. A exigência visa fortalecer a segurança jurídica e mitigar riscos em contratos de alto impacto financeiro para a Administração Pública, reforçando a necessidade de mecanismos que assegurem transparência, ética e conformidade na execução contratual.
A regulamentação dessa exigência foi aprimorada pelos Decretos nº 11.129/2022 e 12.304/2024, que detalham os parâmetros essenciais para a estruturação de um programa de integridade eficaz e estabelecem critérios objetivos para a avaliação dos programas exigidos em contratações de grande vulto.
Dessa maneira, as empresas contratadas no grande vulto, devem adotar medidas concretas para assegurar a conformidade e mitigar riscos, implementando mecanismos eficazes que garantam a integridade nos contratos firmados com a Administração Pública. Dentre essas medidas, destacam-se:
- Código de Ética e Conduta, com diretrizes claras para a atuação organizacional.
- Procedimentos de controle interno, com práticas que assegurem a efetividade da conformidade.
- Canal de denúncias, garantindo um mecanismo seguro e anônimo para o reporte de irregularidades.
- Treinamentos periódicos, com um cronograma de capacitação contínua para a disseminação da cultura de integridade.
- Políticas de prevenção a fraudes e corrupção, com normativas voltadas à mitigação de riscos e ao fortalecimento da transparência.
Ante o exposto, a obrigatoriedade dos programas de integridade em contratações de grande vulto representa um avanço significativo na prevenção de ilícitos e no fortalecimento da governança pública.
5. OS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE NAS CONTRATAÇÕES ESTADUAIS
A exigência de programas de integridade como condição para a celebração de contratos com a Administração Pública tem se tornado uma realidade crescente no Brasil. Diversos entes federativos, em movimento prévio à regulamentação federal, instituíram normas específicas impondo tal requisito, muitas vezes com critérios próprios e valores mínimos distintos.
Entre os estados que adotaram essa diretriz, destacam-se:
- Rio de Janeiro (Lei 7.753/2017): determina a obrigatoriedade de programas de integridade em contratos acima de R$ 1,5 milhão para obras e serviços.
- Goiás (Lei 20.489/2019): fixa a exigência para contratos acima de R$ 650 mil para compras e R$ 1,5 milhão para obras públicas.
- Distrito Federal (Lei 6.308/2019): estabelece o limite de R$ 5 milhões para a implementação obrigatória de programas de integridade.
- Rio Grande do Sul (Lei 15.228/2018): estipula a obrigatoriedade para contratos de R$ 10 milhões ou mais.
- Amazonas (Lei 4.730/2018): fixa valores de R$ 3,3 milhões para obras e serviços de engenharia, e R$ 1,43 milhão para compras e serviços.
- Pernambuco (Lei 16.722/2019): apresenta uma graduação nos valores, exigindo a partir de 2022 programas de integridade para contratos de obras e serviços de engenharia acima de R$ 10 milhões, reduzindo esse limite para R$ 5 milhões em 2024 e, a partir de 2025, aplicando a regra a contratos administrativos gerais acima de R$ 10 milhões.
Observa-se que, em muitas unidades da federação, os valores exigidos para a implementação de programas de compliance são inferiores aos previstos na legislação federal. Além disso, há estados que adotam requisitos mais rigorosos. Também há requisitos similares. No Rio de Janeiro, por exemplo, exige-se que o programa de integridade esteja implementado em até 180 dias após a assinatura do contrato, enquanto a legislação federal estipula o prazo de seis meses.
A tendência reflete a crescente importância da governança corporativa nas contratações públicas, obrigando empresas que desejam contratar com o setor público a adotarem mecanismos de compliance eficazes. Em um cenário de maior controle e exigência de transparência, estar em conformidade com as normas não é apenas um diferencial competitivo, mas um requisito imprescindível para aqueles que pretendem atuar junto à Administração Pública.
[1]SOUSA, Henrique Adriano de; PASSOS, Gabriela de Abreu; PORTULHAK, Henrique; AZEVEDO, Sayuri Unoki de; IRIGARAY, Hélio Arthur Reis; STOCKER, Fabricio. A evolução na divulgação de práticas de compliance por companhias abertas brasileiras no período “Lava Jato”. Cadernos EBAPE.BR, v. 22, n. 1, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1679-395120230041. Acesso em: 10 mar. 2025.
[2]SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo; ANTONIETTO, Caio. Criminal Compliance: Prevenção e minimização de riscos na gestão da atividade empresarial. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 114, p. 341-375, mai.-jun. 2015. IN MAGALHÃES JÚNIOR, Danilo Brum de. Gerenciamento de risco, compliance e geração de valor: os compliance programs como ferramenta para mitigação de riscos reputacionais nas empresas. Revista dos Tribunais, v. 997, p. 575-594, nov. 2018. Disponível em: <DTR\2018\20828>. Acesso em: 12 fev. 2025.
[3]DALLA PORTA, Flaviano Carvalho. As diferenças entre auditoria interna e compliance. 2011. 91 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Economia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós-Graduação em Economia, Porto Alegre, 2011.
[4]SALES, Absolon Silva de. A corrupção transnacional e os programas de compliance. 2023. 155 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/21659. Acesso em: 3 mar. 2025
[5]MAGALHÃES JÚNIOR, Danilo Brum de. Gerenciamento de risco, compliance e geração de valor: os compliance programs como ferramenta para mitigação de riscos reputacionais nas empresas. Revista dos Tribunais, v. 997, p. 575-594, nov. 2018. Disponível em: <DTR\2018\20828>. Acesso em: 12 fev. 2025.
[6]BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em: 10 mar. 2025.
[7]MARTINS, Ana Luiza Gomes; NEGRI, Luiz Felipe Almeida. Dia Internacional da Proteção de Dados: um marco global e nacional. São Paulo: Schiefler Advocacia, 2025. Disponível em: https://schiefler.adv.br/dia-internacional-da-protecao-de-dados/ Acesso em: 10 mar. 2025.
[8]BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Estabelece novas normas gerais de licitação e contratação para a administração pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º abr. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 10 mar. 2025.
[9]Art. 6º, Lei 14.133/2021. Para os fins desta Lei, consideram-se: XXII – obras, serviços e fornecimentos de grande vulto: aqueles cujo valor estimado supera R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais)
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