Saiba como a inteligência artificial pode evitar a prática de ilícitos em compras governamentais
Introdução
A Inteligência Artificial (IA) vem revolucionando diversos setores da sociedade, e a área de compras públicas não é uma exceção. Ao aplicarmos a IA nesse contexto, podemos esperar benefícios significativos para promover a transparência, a eficiência e a lisura nos processos licitatórios.
Isso é o que se destacou no texto O que é uma Inteligência Artificial e como ela pode ser utilizada na Nova Lei de Licitações, onde, em linhas gerais, abordou-se os diferentes conceitos de Inteligência Artificial e como essa ascendente tecnologia pode ser utilizada nas compras públicas, conforme a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021).
Contudo, cabe ainda explorar as várias aplicações específicas dessa tecnologia nas licitações, sobretudo como a Inteligência Artificial pode se tornar um potente instrumento no combate à corrupção, desvios e outros ilícitos em licitações públicas.
Nesse sentido, convida-se o leitor a explorar conosco as diversas possibilidades que a IA oferece para aprimorar a gestão das compras públicas e fortalecer a integridade nos processos licitatórios.
Nos próximos tópicos, será examinado como a IA pode ser aplicada para identificar práticas suspeitas, analisar dados em tempo real, acionar alertas preventivos e proporcionar maior transparência e eficiência nas compras governamentais.
Ao final, espera-se não apenas informar, mas também inspirar uma reflexão sobre como a Inteligência Artificial pode ser uma poderosa aliada na construção de um sistema de compras públicas mais justo, íntegro e eficiente.
A evolução da Inteligência Artificial (IA)
O tema “Inteligência Artificial” sempre esteve em pauta na história da humanidade. Uma das maneiras de externalizar a prematura preocupação com a ascensão dessas tecnologias foi por meio da arte. Podemos notar, principalmente nos anos pós-guerra, a crescente de produções como, por exemplo, 2001: Uma Odisséia no Espaço, e na pós-modernidade, com as inúmeras distopias e obras cinematográficas, tais como Exterminador do Futuro, que retratavam a derrocada da humanidade por robôs futuristas e as consequências advindas da evolução dessas tecnologias.
Contudo, o assunto hoje tomou proporções realistas antes jamais vistas. Com a chegada do ChatGPT e demais chatbots, a humanidade passou a experienciar empiricamente – em larga escala – o que essas tecnologias são capazes de realizar e as incertezas de sua evolução em um futuro não tão distante.
Qualquer pessoa hoje, acessando um simples site na internet, consegue utilizar uma tecnologia avançada de IA que, por meio do processamento de linguagem natural, são capazes de gerar respostas para as inúmeras questões, de forma (quase sempre) precisa, natural e semelhante a de humanos. Essas tecnologias têm se tornado cada vez mais sofisticadas e eficientes, capazes de entender perguntas complexas e fornecer respostas precisas em diversos setores.
Essas tecnologias, diferentemente dos sistemas desenvolvidos em outras linguagens, que se utilizam de definições e respostas prévias – como é o caso dos assistentes de voz – que não necessariamente precisam de um tratamento de dados, a IA é capaz de não só processar os dados, como organizá-los, catalogá-los e estruturá-los, conforme o necessário.
Como a inteligência artificial pode auxiliar na prevenção de ilícitos?
A licitação pública desempenha um papel essencial na promoção do interesse público ao buscar a contratação dos melhores fornecedores para suprir as necessidades do Estado e dos cidadãos. Ao estabelecer um ambiente competitivo, no qual as empresas privadas podem concorrer de forma justa e transparente, a Administração Pública busca garantir a obtenção de bens e serviços de qualidade, com preços adequados e em conformidade com a legislação vigente.
O efetivo desempenho das competências da Administração Pública, como a promoção da segurança pública, da educação e da saúde, está diretamente relacionado à forma como os recursos públicos são aplicados. A licitação, ao selecionar as propostas mais vantajosas, visa maximizar a eficiência e a eficácia do gasto público, buscando sempre o melhor custo-benefício para a sociedade.
Ocorre que, infelizmente, devido ao grande potencial de lucro advindos dos processos licitatórios, eles acabam sendo grandes alvos de fraudes, causando enorme prejuízo ao erário e à sociedade.
É importante destacar que fraude é diferente de erro, uma vez que na fraude a conduta é dolosa, enquanto a irregularidade nem sempre será acompanhada de ato fraudulento, podendo ser fruto de negligência, imprudência ou até mesmo de boa-fé, sendo apenas um ato culposo.
Para fins de compreensão do texto, podemos listar como exemplos de fraudes as seguintes práticas:
- Cartéis em licitação pública;
- Jogo de planilhas;
- Superfaturamento;
- Serviços fantasmas;
- Vínculo entre licitantes;
Para conseguir verificar a incidência desses ilícitos, a Administração Pública, devido à amplitude de atuação dos órgãos controladores, precisa manejar um enorme número de dados que possuem baixa qualidade e difícil tratamento, também conhecido como big data.
Nesse sentido, sem o auxílio de uma máquina, é praticamente impossível analisar e processar tantos dados públicos de forma manual, sem o auxílio da tecnologia. É nesse contexto que a IA ganha importante relevância para a Administração Pública, uma vez que o Poder Público se torna capaz de organizar e processar os numerosos dados das licitações, tornando-se capaz de, a partir de eventos passados, acompanhar e prever eventos presentes, tornando mais efetivas as atividades de auditoria, por exemplo.
A IA oferece benefícios significativos, permitindo a identificação de padrões e tendências ocultas nos dados, algo que seria extremamente difícil ou mesmo impossível de ser alcançado manualmente. Além disso, a velocidade e a precisão com que a IA processa essas informações são incomparáveis com os humanos, tornando a tomada de decisões mais ágil e informada.
Um dos expoentes no uso de IA é o Tribunal de Contas da União (TCU), que desenvolveu diversos sistemas para o auxílio no âmbito dos processos de controle da atuação administrativa. Alguns exemplos são:
(i) o sistema Alice, acrônimo de Análise de Licitações e Editais, que tem como propósito analisar licitações e editais publicados no Diário Oficial da União. Por meio dessa análise, ela elabora relatórios e comunica ao TCU a quantidade de processos e indicação do risco de ocorrência de fraudes em cada um deles, permitindo a avaliação preventiva, tempestiva e automatizada dos processos de compras públicas, sendo passível de aperfeiçoamento com a inclusão de novas funcionalidades.
(ii) o sistema Adele, acrônimo de Análise de Disputa em Licitações Eletrônicas, é usado pelo TCU para monitorar pregões eletrônicos e identificar indícios de fraudes, restrição de competitividade ou conluio entre licitantes. O sistema também identifica o uso do mesmo IP (Internet Protocol) por licitantes diferentes, o que pode indicar múltiplos participantes usando o mesmo dispositivo eletrônico.
No Relatório Anual de Atividades do TCU do ano de 2021 e 2022, o Tribunal de Contas revelou que, no ano de 2021, o montante de benefícios decorrentes das análises efetuadas por meio do Sistema Alice totalizou o valor de R$ 426.204.562,86. Já apenas no ano de 2022, o montante de benefícios totalizou em R$ 720.231.589,50. Se juntarmos apenas os últimos dois anos, temos que os benefícios gerados pela IA Alice resultaram em 1,1 bilhão de reais.
Ainda segundo o TCU no relatório do ano de 2022: “a utilização do Sistema de Análise de Licitações e Editais (Alice) tem possibilitado a avaliação tempestiva e automatizada de editais de licitação e atas de pregão. Esse Sistema permite a identificação de indícios de irregularidades, fraudes, desvios e desperdícios de recursos públicos, viabilizando ações de controle mais eficientes e efetivas.”
Conclusão
Como visto, os potenciais benefícios que o uso de sistemas de IA pode conferir para a Administração Pública são quase que inquantificáveis. A evolução da tecnologia permitiu que a Administração Pública (i) fosse capaz de gerar dados e abandonar em parte os primitivos papéis e, por meio disso, (ii) desenvolver ferramentas de IA capazes de processar esses dados e identificar possíveis irregularidades e condutas ilícitas em processos licitatórios.
Ressalta-se que o uso da IA foi potencializado pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021), porque ao criar o Portal Nacional de Compras Públicas (PNCP) centralizou todos os dados de licitações públicas do país em um só ambiente, permitindo que as IAs agora possuam acesso direto a um centro gravitacional de numerosos dados, o que, por consequência, torna o uso dessas tecnologias cada vez mais eficiente.
O uso de sistemas de IA devem ser cada vez mais incentivados pela Administração Pública no combate aos ilícitos em processos licitatórios, permitindo não só uma competição justa entre licitantes, como também o bom uso do dinheiro público e efetiva entrega de competências públicas à sociedade.
Read MoreComo as vítimas de golpes virtuais podem recuperar os valores enviados aos golpistas?
Após serem atingidas por um golpe financeiro, como aqueles aplicados por falsas corretoras de investimentos, sites de apostas e cassinos online, dentre outros, o primeiro reflexo das vítimas costuma ser o de se dirigir à autoridade policial para a tomada de providências e para a formalização do Boletim de Ocorrência.
Em outra passagem, informamos ao leitor sobre as dificuldades enfrentadas pela polícia para oferecer uma rápida solução ao problema, visto que o modus operandi dos golpistas visa exatamente apagar rastros e sumir com o produto do crime mediante remessa de valores ao exterior ou para conta de “laranjas”, tornando praticamente infrutíferas as ações policiais urgentes de busca e apreensão ou de bloqueio de contas bancárias.
Nesse contexto, depois de relatarem seus casos à autoridade policial e tomarem as providências penais, as vítimas irão se tranquilizar e pensar “mas e agora, como faço para recuperar o dinheiro?”. A resposta é: muito provavelmente terão que propor uma ação judicial cível-consumerista para, saindo vitoriosos, executarem os bens dos criminosos e recomporem suas perdas.
No texto anterior sobre a série dos golpes financeiros, indicamos alguns dos mecanismos existentes no ordenamento jurídico brasileiro para se buscar a condenação dos golpistas no que se chama de “ação de conhecimento”, mais efetivamente por meio da propositura de ações coletivas propostas pelas entidades competentes (MP, PROCONs, associações e outros).
Independentemente do meio escolhido para buscar a condenação dos criminosos (por ação individual ou coletiva), as vítimas ainda se verão diante da tortuosa e demorada fase de execução para a recuperação dos ativos.
Como adiantamos, os golpistas se escondem atrás de terceiros “laranjas”, empresas de fachada ou de influenciadores digitais para blindar o seu patrimônio de forma irregular e ilegal, muitas das vezes impedindo (com sucesso) qualquer tentativa de penhora de seus bens. De forma mais direta: prevendo a condenação, o sujeito dilapida seu patrimônio e os entrega para parentes, amigos, empresas de fachada, “laranjas” ou os remete para contas no exterior.
E isso é possível porque a execução é direcionada apenas ao sujeito que consta como réu condenado na decisão judicial, não podendo, via de regra, atingir o patrimônio de terceiros estranhos ao processo.
Portanto, no intuito de contornar o impasse e buscar ativos ilegalmente enviados pelo condenado a outra pessoa, a vítima deverá alegar e provar (1) que os requisitos para a desconsideração direta ou inversa da personalidade jurídica estão preenchidos; (2) que houve fraude à execução ou fraude à credores; ou (3) que existe responsabilidade por ato igualmente ilegal de um terceiro ou intermediador.
Visto que as fraudes digitais costumam se fantasiar de relações consumeristas, a vítima poderá se valer da primeira hipótese para desconsiderar a personalidade jurídica do condenado (se for uma pessoa jurídica) a fim de atingir o patrimônio dos donos da empresa golpista com base no artigo 28 do CDC, bastando, para isso, ficar demonstrado que o executado não possui bens suficientes para reparar os danos causados. A mesma solução poderá ser adotada contra os auxiliares do criminoso, caso estes constem no título executivo.
Sendo o executado uma pessoa natural (física), a desconsideração da personalidade jurídica ainda poderá ser realizada em sua modalidade inversa com o intuito de atingir o patrimônio das empresas usadas pelo golpista para realizar confusão patrimonial e fugir de constrições judiciais de seus bens.
Mesmo que se argumentasse pela impossibilidade do uso do artigo 28 do CDC (chamada desconsideração pela teoria menor), o artigo 50 do Código Civil ainda traria os subsídios para se pleitear a desconsideração com base na teoria maior, haja vista ser inegável que a empresa constituída com o intuito de aplicar golpes e esconder patrimônio (atos ilícitos) estará obviamente desviando de sua finalidade (que pressupõe um objeto social lícito) e se valendo de confusão patrimonial, incorrendo em abuso da personalidade jurídica reprimível com a desconsideração direta ou inversa.
Para invocar a desconsideração direta ou inversa, bastará que o exequente demonstre que seus requisitos foram cumpridos. Neste caso, a parte convocada ao processo (suposto golpista ou sua empresa) se manifestará e se defenderá em incidente processual, sem necessidade de que tenha participado da fase de conhecimento anteriormente. Alerta-se apenas que há divergência jurisprudencial sobre a possibilidade de o sucumbente ser condenado ao pagamento de honorários no incidente de desconsideração, sendo, porém, a tese contrária ao pagamento a que hoje vem se consolidando no Superior Tribunal de Justiça.
Quanto à segunda hipótese, há que se diferenciar a fraude contra credores da fraude à execução. Na primeira, o desvio de bens do patrimônio do devedor (a fim de torná-lo insolvente e frustar futuros processos executórios) ocorre antes da citação no processo judicial, enquanto na segunda, a fraude é realizada após o início do processo ou durante a fase de execução, a fim de esconder bens e ativos da Justiça mediante transferência para terceiros.
Havendo indícios de fraude à credores, a vítima deverá propor a chamada “ação pauliana” a fim de tornar nulos os atos de alienação realizadas de forma fraudulenta pelo devedor com terceiros de má fé (artigo 161 do Código Civil). Tratando-se de fraude virtual, em que muito provavelmente as partes não possuíam vínculos e relações anteriores, é muito improvável que a ação anulatória possa ser utilizada.
Mais plausível é afirmar que muitas das vezes a execução restará frustrada por impossibilidade de penhora de quaisquer bens no patrimônio do condenado, visto inexistir ativos aptos a servir como garantia da condenação. Em tais circunstâncias, o credor poderá requerer a anulação das alienações realizadas em favor de terceiros durante o curso do processo, desde que possua meios de provar que o executado detinha bens e se livrou deles de modo ilegal.
O pedido de anulação poderá ser dirigido contra qualquer uma das partes do polo passivo, seja o golpista propriamente dito, sejam seus auxiliares corresponsáveis. Os terceiros de má-fé também poderão sofrer os efeitos da anulação dos atos jurídicos, mesmo que não tenham sido partes do processo de conhecimento. Caso sejam terceiros de boa-fé, poderão discutir a ordem judicial por meio de embargos de terceiros.
A terceira hipótese, por seu turno, não trata tecnicamente de uma execução/constrição sobre patrimônio de terceiros, haja vista que, para buscar a responsabilização solidária dos sujeitos que auxiliaram o golpista, a vítima ou a entidade legitimada para propositura da Ação Civil Pública (ACP), individual ou coletiva (a depender do caso), deverão, já na fase de conhecimento, incluir os terceiros como partes no processo a fim de que a decisão judicial forme coisa julgada contra eles.
Cuida-se, nesse contexto, dos casos em que terceiros ligados ao golpista tomam parte na execução do golpe, seja de forma consciente ou inconsciente, tornando-o possível ou divulgando-o para uma quantidade grande de pessoas. Como exemplo, citam-se os influenciadores digitais (influencers) que divulgam as fraudes em suas redes sociais, as plataformas que lucram com anúncios fraudulentos, os intermediadores de pagamento irregulares (empresas de fachada criadas para movimentar os ativos enviados pelas vítimas) e as instituições financeiras (como os bancos).
No caso das plataformas (redes sociais e aplicativos), a responsabilização civil só poderá ocorrer após descumprimento de decisão judicial que ordene a retirada do conteúdo fraudulento, segundo ditames do artigo 19 da Lei no 12.965/2014 (Marco Civil da Internet). Cuidando-se de instituições financeiras, a jurisprudência brasileira diverge, ora na adoção da plena responsabilização objetiva e solidária dos bancos, ora na exclusão da responsabilidade bancária quando demonstrada a culpa exclusiva das vítimas que agem sem tomar qualquer precaução para evitar golpe óbvios (imagine-se, por exemplo, um cliente que enviou um PIX para adquirir o curso “como ganhar dinheiro fingindo ser corretor de investimentos no WhatsApp”).
Para buscar a responsabilização desses terceiros, a ação de conhecimento deverá ser direcionada também contra eles, sendo obrigatória a presença destes como partes no polo passivo da ação. Afinal, alegar a existência da responsabilidade de terceiro apenas na fase de execução (salvo nas hipóteses 1 e 2 acima citadas) será considerado ato processualmente irregular, visto que só pode ser executado aquele que participou dos debates no devido processo legal.
Um exemplo pode ilustrar bem do que estamos tratando: imagine-se que um influenciador digital (influencer) anuncie em sua rede social um investimento fraudulento de um terceiro que cause danos indevidos a um indivíduo. Neste caso, a vítima poderá direcionar sua ação reparatória tanto em face do golpista quanto do influenciador, com base na responsabilização solidária do CDC que permitirá, no futuro, que a execução recaia sobre o patrimônio de dois sujeitos (aumentando as chances de execução frutífera).
Também se pautando na responsabilização solidária a vítima poderá posicionar no polo passivo da ação os terceiros (como empresas ou pessoas “laranjas”) que participaram da execução do golpe, como nas muito comuns empresas de fachada que se passam por pequenas instituições de crédito intermediadoras de pagamento.
Mesmo que os “laranjas” sejam empresas, por se tratar de relação consumerista fraudulenta, ainda caberia a desconsideração da personalidade jurídica pelo simples fato de não serem encontrados bens suficientes em seu patrimônio para ressarcir os danos causados. Como já explicado, mesmo que se entenda pela adoção da teoria maior da desconsideração (artigo 50 do Código Civil), acredita-se que o próprio fato do cometimento do golpe já é motivo suficiente para fundamentar a ocorrência do desvio de finalidade da empresa e, consequentemente, do abuso da personalidade jurídica.
Obtendo condenação favorável contra todos (tanto golpistas como terceiros auxiliares), a vítima estará livre para cobrar a dívida completa contra todos eles, sendo-lhe lícito direcionar seus esforços para a penhora de bens do executado que aparenta ter melhores chances de pagar o débito (artigo 18, caput e § 6o, incisos II e III, do CDC e artigo 275 do Código Civil).
Conjuntamente às ações, sejam individuais, sejam coletivas, as vítimas de golpes praticados por meio da Internet dispõem, também, da provocação das Polícias Civil e Federal e dos Ministérios Públicos Estaduais e Federal. Assim, a vítima, sempre que possível por meio intermédio de advogado, deve comunicar o fato a essas autoridades, que têm competência para instaurar inquéritos, no caso das Polícias, e para propor ações coletivas, no caso dos Ministérios Públicos.
Especificamente quanto à instauração de inquéritos, veja-se que, a depender do sucesso das investigações policiais, pode-se solicitar que o juiz profira ordem de quebra de sigilo bancário das pessoas físicas e jurídicas investigadas e ordem de busca e apreensão de bens dos investigados. Se comprovada a prática de crime, esses bens podem ser utilizados para ressarcir a vítima, ao fim da ação penal.
Além disso, em caso de propositura de ação penal por parte dos Ministérios Públicos, a vítima pode se habilitar para o recebimento dos valores provenientes de eventual condenação penal dos autores do crime.
Em qualquer das hipóteses, quando houver remessa de produtos do ilícito para o exterior (conforme o modus operandi comumente adotado pelos golpistas digitais), medidas de cooperação jurídica internacional, acionados pelo Poder Judiciário com o auxílio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) — ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública —, poderão ser tomadas a fim de efetivar providências para bloquear bens ou encontrar informações que tenham sido levadas ilicitamente para o estrangeiro (incluindo os paraísos fiscais). A eficácia da medida, entretanto, dependerá do grau de comprometimento do Estado nacional acionado.
Achou que algumas das estratégias apresentadas por este texto se aplicam ao seu caso? Não hesite em contatar um advogado especialista em recuperação de ativos perdidos em golpes financeiros para uma consulta detalhada e individualizada.
Read MoreOs benefícios do compliance para o poder público
A Administração Pública é responsável pela prestação de serviços à sociedade nos mais variados âmbitos: saúde, educação, segurança pública, dentre outros. Como toda prestação de serviços, porém, há uma série de riscos envolvidos, os quais precisam ser adequadamente tratados para que a referida prestação seja realizada com qualidade e com eficiência.
É aí que entra o compliance no setor público: um dos principais pilares de um programa de compliance é, justamente, a análise e gestão dos riscos a que está sujeita uma determinada organização, inclusive as públicas, com o objetivo de mitigar esses riscos e reduzir potenciais prejuízos.
Mas, afinal, o que é compliance?
O compliance pode ser definido como o conjunto de medidas e procedimentos que tem o objetivo de evitar, detectar e remediar a ocorrência de irregularidades, fraudes e corrupção. O compliance não se limita, porém, à conformidade com leis e regulamentos!
Para que uma determinada organização esteja verdadeiramente em compliance, é necessário que a condução dos seus processos internos e de suas relações com terceiros seja pautada pela ética, pela integridade e por uma preocupação constante com a conduta dos envolvidos no dia a dia dessa organização, estimulando uma cultura organizacional que privilegie a tomada de decisões orientadas pela responsabilidade e pela preocupação com a integridade.
A principal forma de estruturar o compliance enquanto uma estratégia de mitigação de riscos e aprimoramento organizacional é por meio da implementação de um programa de compliance (também chamado “programa de integridade”), identificando os riscos, planejando as estratégias de prevenção e implementando as melhores práticas de governança e métodos para mitigação dos riscos identificados.
E o compliance público?
O compliance público nada mais é do que a implementação de um programa de compliance em órgãos públicos, abrangendo, por exemplo, empresas estatais, autarquias, estados, municípios e demais integrantes da Administração Pública.
A estrutura de um programa de compliance público é muito parecida com aquela existente em programas de compliance da iniciativa privada, visto que os sistemas de gestão de compliance contidos nas regulamentações específicas sobre o tema, como, por exemplo, ISO 37301 e ISO 37001, são aplicáveis tanto às organizações privadas, quanto às organizações públicas.
Nesse sentido, o programa de compliance pode contribuir para que uma gestão seja eficiente e traga bons resultados, atentando para a responsabilidade no uso dos recursos públicos e para a otimização de seus processos, promovendo um serviço eficiente e de alta qualidade para todos os cidadãos.
Principais marcos regulatórios do compliance no setor público
Apesar de não haver uma norma única que “compile” todas as diretrizes do compliance no setor público, no ordenamento jurídico brasileiro temos uma série de leis e decretos que trazem disposições sobre o tema, prevendo a adoção de boas práticas de compliance ou mesmo obrigando a implementação de programas de compliance em algumas situações. Vejamos abaixo algumas dessas normas:
1. Lei Anticorrupção (Lei Federal nº 12.846/2013):
Apesar de não se tratar de uma norma especificamente voltada ao compliance no setor público, foi a partir da promulgação da Lei Federal nº 12.846/13, conhecida como Lei Anticorrupção, que o compliance passou a receber maior destaque dentro do ordenamento jurídico brasileiro, de modo que vale aqui mencionar em linhas gerais do que trata a referida norma.
De forma resumida, a maior inovação trazida pela Lei Anticorrupção foi a previsão da responsabilidade objetiva para as pessoas jurídicas, que se tornaram responsáveis pelos atos lesivos praticados por seus dirigentes, administradores ou funcionários, independentemente da comprovação de dolo ou de culpa.
Na prática, a Lei Anticorrupção prevê que empresas, órgãos públicos, ONGs e organizações em geral responderão, civil e administrativamente, sempre que a ação de um de seus representantes causar prejuízos ao patrimônio público, infringir as regras da gestão pública ou obrigações internacionais assumidas pelo Brasil.
O Decreto Federal nº 8.420/2015, por sua vez, trouxe a regulamentação a respeito de como as empresas e organizações em geral devem implementar mecanismos de compliance e mitigação de riscos, tendo sido revogado e substituído, recentemente, pelo Decreto nº 11.129/2022.
2. Lei das Estatais (Lei Federal nº 13.303/2016):
A Lei das Estatais, como é popularmente conhecida a Lei Federal nº 13.303/2016, traz disposições expressas que obrigam as empresas estatais, sejam elas empresas públicas ou sociedades de economia mista, a adotar certas ferramentas de compliance público.
É o caso, por exemplo, da previsão contida no artigo 6º, que estabelece que “O estatuto da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias deverá observar regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno […]”.
O artigo 9º, por sua vez, dispõe que as empresas públicas e sociedades de economia mista deverão adotar regras de estruturas e práticas de gestão de riscos e controle interno, elaborando, ainda, um Código de Conduta e Integridade que disponha sobre os seus princípios, valores e missão, e que traga orientações sobre a prevenção de conflito de interesses e vedação a atos de corrupção e fraude.
3. Decreto da Governança Pública Federal (Decreto Federal nº 9.203/2017)
Outro marco legal muito importante no âmbito do compliance público é o Decreto da Governança Pública (Decreto nº 9.203/2017), que dispõe sobre a política de governança na Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.
Trata-se da principal norma vigente hoje sobre governança pública, contendo uma série de obrigações e diretrizes relacionadas às boas práticas de governança, além de desenhar os programas de compliance em órgãos públicos federais, conforme previsto no artigo 19 do Decreto:
Art. 19 – Os órgãos e as entidades da administração direta, autárquica e fundacional instituirão programa de integridade, com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, detecção, punição e remediação de fraudes e atos de corrupção, estruturado nos seguintes eixos:
I – comprometimento e apoio da alta administração;
II – existência de unidade responsável pela implementação no órgão ou na entidade;
III – análise, avaliação e gestão dos riscos associados ao tema da integridade; e
IV – monitoramento contínuo dos atributos do programa de integridade.
O artigo 19 faz menção a diversos pilares considerados essenciais a um programa de compliance, como o comprometimento da alta gestão, o estabelecimento de uma unidade responsável pela implementação do programa no órgão, a análise e gestão de riscos e o monitoramento contínuo do programa de compliance.
4. Manual para Implementação de Programas de Integridade – Orientações para o setor público
Ainda que não seja uma norma propriamente dita, e sim um compilado de recomendações e boas práticas opcionais para órgãos públicos, vale aqui mencionar também o Manual para Implementação de Programas de Integridade – Orientações para o setor público, elaborado pela Controladoria-Geral da União (CGU).
Trata-se de um manual elaborado pela CGU com o objetivo de orientar os gestores públicos sobre questões que devem ser discutidas e implementadas com o intuito de mitigar a ocorrência de corrupção e desvios éticos em seus órgãos ou entidades, apresentando uma proposta de implementação de programa de compliance.
O manual traz os elementos básicos de um programa de compliance, as ações e medidas que precisam ser executadas, bem como formas de monitoramento e aprimoramento contínuo do programa.
Para além das normativas federais, no âmbito estadual podemos citar como exemplos de entes públicos que aderiram aos programas de compliance os seguintes estados:
- Minas Gerais (Decreto Estadual nº 47.185/2017);
- Rio de Janeiro (Decreto Estadual nº 46.745/2019);
- Santa Catarina (Lei Estadual nº 17.715/2019);
- Paraná (Lei nº 19.857/2019);
- Mato Grosso (Lei Estadual nº 10.691/2018);
- Goiás (Lei Estadual nº 9.406/2019); e
- Distrito Federal (Decreto nº 39.736/2019).
Compliance público: por que é importante?
Em razão do cenário sensível envolvendo as compras públicas e a gestão da coisa pública, que possuem riscos inerentes, a implementação de um programa de compliance pode contribuir muito para mitigar riscos, auxiliando tanto na prevenção de riscos relacionados à corrupção quanto de riscos de outras naturezas, como aqueles relacionados à má gestão de recursos públicos e possível ineficiência administrativa.
Além disso, há uma série de adequações que a Administração Pública precisa fazer em sua gestão, como, por exemplo, a necessidade de compatibilização da proteção de dados pessoais com o dever de transparência ativa, visto que o Poder Público está sujeito tanto à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei Federal nº 13.709/2018) quanto à obrigação de promover a transparência independentemente de provocação do particular.
Uma outra particularidade do compliance público diz respeito à tomada de decisão. Sabe-se que as decisões tomadas pelos gestores públicos impactam não apenas o seu órgão específico, mas todos os administrados que se beneficiam de alguma forma da atuação daquele órgão. A adoção de um programa de compliance permite promover mecanismos de registro inteligentes, com o objetivo de demonstrar de que forma as decisões foram tomadas dentro da Administração Pública.
Por exemplo, a implementação de controles internos pode contribuir para documentar um processo de contratação de determinada empresa, especificando por que se escolheu contratar aquela empresa e não outra, ou por que se optou por uma modalidade licitatória e não por outra em um caso concreto. O programa de compliance público contribui, portanto, não apenas para promover a transparência da gestão pública, mas também para salvaguardar os agentes públicos envolvidos na tomada de decisões, que eventualmente podem ser chamados a responder por suas escolhas perante órgãos de controle.
Como implementar e aplicar o compliance público?
Para aplicar de forma prática os pilares de um programa de compliance em órgãos públicos, são recomendáveis as seguintes ações:
- Obter o comprometimento da alta administração do órgão e manifestar esse comprometimento para todos os servidores do órgão, em todos os níveis funcionais;
- Estabelecer uma instância responsável pela gestão do programa de compliance;
- Realizar uma análise dos riscos de integridade a que o órgão está sujeito, mapeando as áreas e processos que representam riscos;
- Estabelecer padrões de ética e conduta que direcionem a atuação dos servidores;
- Realizar iniciativas de comunicação e treinamento para a correta apreensão das diretrizes de integridade;
- Implementação de canais de denúncia para viabilizar o reporte de potenciais irregularidades;
- Implementar medidas de controle e medidas disciplinares, com o objetivo de mitigar os riscos na atuação do órgão;
- Em caso de comprovadas irregularidades, tomar ações de remediação dos danos e estabelecer novos controles para evitar a reincidência.
Quer saber mais sobre o Compliance Público ou deseja iniciar a implementação de um programa de compliance no órgão em que você trabalha? Não hesite em contatar um advogado especialista do nosso escritório para uma consulta detalhada e individualizada!
Read MoreOs benefícios e os desafios na previsão dos Meios Extrajudiciais de conflitos nos Contratos Administrativos firmados por Municípios
“Se um paciente está doente, o médico sempre opera? Claro que não. O médico e o paciente discutem todas as soluções possíveis. Da mesma forma com o campo jurídico – para cada doença jurídica, uma variedade de opções precisa ser discutida”.[1]“If a patient is ill, does the doctor always operate? Of course not. The doctor and patient discuss all possible solutions. Likewise with the legal field – for each legal ailment, a variety … Continue reading Essas palavras, em tradução livre, que abrem uma apresentação realizada em 1984 por Terry Simonson, então diretor do Multi-Door Courthouse Program de Tulsa, sintetizam uma das principais premissas ao se abordar a temática da solução de conflitos: é preciso que se adapte a cura jurídica ao problema específico. É com base nessa ideia que se estrutura o Multi-Door Courthouse System (Sistema de Múltiplas Portas ou Sistema Multiportas, em tradução livre). Além de oferecer meios de resolução de conflitos diversos do adjudicatório, o sistema multiportas, após investigação específica e diagnóstico minucioso da causa em análise e das possibilidades existentes, deve encaminhar as partes para a “porta” mais adequada à solução do caso concreto, dependendo das suas peculiaridades.
Subsidiando o entendimento acima, tem-se a premissa de que uma variedade significativa de procedimentos pode fornecer uma composição mais efetiva – em termos de custo, rapidez, precisão, credibilidade (para o público e para as partes), funcionalidade e previsibilidade – do que o método judiciário estatal de litigância.
Nesse aspecto, nos últimos anos, dentro do ordenamento jurídico nacional, a ideia de justiça multiportas e a aplicação de métodos extrajudiciais de resolução de conflitos passou a ser cada vez mais utilizada, com essa ideia aplicada também para os conflitos envolvendo a Administração Pública e, portanto, o interesse público, sendo notável o movimento legislativo para a utilização de Meios Extrajudiciais de Solução de Conflitos (MASCs) nesse campo.
Como marco intensificador desse movimento, cita-se a Lei Federal nº 13.129/2015, que alterou a Lei de Arbitragem (Lei Federal nº 9.307/1996) e autorizou expressamente a utilização da arbitragem pela Administração Pública direta e indireta (§1º do artigo 1º); e a Lei nº 13.140/2015, que entre outros pontos dispõe sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Da mesma forma, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal nº 14.133/2021) dedicou capítulo próprio (Capítulo XII) para tratar somente dos meios alternativos de resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
Assim, como se verifica, hoje existe não só uma ampla gama de normativas que conferem ampla segurança jurídica para a utilização dos Meios Extrajudiciais de Solução de Conflitos (MASCs) em âmbito de conflitos que envolvem a Administração Pública, como existe um verdadeiro incentivo à utilização deles. Diante disso, é seguro afirmar que o ambiente jurídico-técnico-político atual é propício à formação de consensos e acordos, assim como à obtenção de decisões tecnicamente mais qualificadas por meio de arbitragem, caso necessário.
Todavia, se em âmbito Federal e, de modo geral, em âmbito Estadual, pode-se dizer que a utilização dos MASCs já é uma realidade, com um considerável grau de maturidade e uma série de louváveis iniciativas, como, por exemplo, a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal; o Núcleo Especializado em Arbitragem da AGU; dentre outros órgãos e iniciativas que trazem amplo suporte e segurança jurídica para a utilização da via extrajudicial, mesmo cenário não se repete no contexto de grande parte dos municípios. O que se verifica atualmente é que existe um verdadeiro abismo entre o nível de maturação dos MASCs envolvendo a Administração Pública em âmbito federal e em âmbito municipal. Enquanto no primeiro os gestores já se mostram bem mais familiarizados ao tema, com órgãos especializados para a temática, o tema, em muitos municípios, nem sequer é citado.
Nessa linha, e deslocando-se as reflexões deste texto exclusivamente para uma análise do cenário Municipal, o que se percebe – já que ainda não há uma ampla análise empírica dessa realidade em âmbito municipal – é que hoje, salvo raríssimas exceções concentras nos grandes centros, como, por exemplo, São Paulo e Rio de Janeiro, a utilização dos MASCs no âmbito de contratos administrativos municipais está longe de ser uma prática. Apesar de hoje, conforme exposto nas linhas acima, já existir um amplo permissivo jurídico para que os Municípios apliquem os MASCs dentro dos seus contratos – passível de trazer inúmeros benefícios técnico-financeiros para a municipalidade – verifica-se que essa ainda não é uma realidade.
Alguns fatores podem ser citados e analisados na busca de se tentar traçar uma causa para o diagnóstico acima.
O primeiro deles, sem dúvida, envolve a própria falta de conhecimento e conscientização quanto às possibilidades e benefícios na utilização dos MASCs. Justamente em virtude dos gestores públicos não estarem familiarizados com os meios extrajudiciais de resolução de conflitos ou sequere compreenderem plenamente seus benefícios, a sua utilização, e consequente previsão nos Contratos Administrativos Municipais firmados, acaba não ocorrendo.
Ademais, essa falta de conhecimento e/ou familiaridade com os MASCs ainda leva a um segundo problema: a resistência em adotá-los como alternativa ao processo judicial. Na medida em que existe um desconhecimento quanto às formas e cenários de aplicação dos MESCs, é natural que os gestores não se sintam seguros para a sua utilização, optando por permanecer exclusivamente no tradicional método judicial.
A ausência de regulamentação dos MASCs às realidades locais de cada Município também é um outro revés à utilização dos mesmos. Apesar de já existir uma ampla segurança jurídica à utilização dos MASCs em virtude das normativas federais, é inegável que uma regulamentação local teria o condão de dar maior segurança ao gestor – além de, é claro, como já citado, adaptar os MASCs às realidades e particularidades de cada município.
A Cultura adversarial também é outro fator que não pode ser ignorado. Especialmente em Municípios menores ainda permanece firme a cultura predominante da litigância e adversariedade. Em âmbito de Administração Pública esse cenário é ainda mais enraizado, especialmente porque, como já apontado anteriormente, os gestores possuem receios e dúvidas quanto à regularidade e a aplicabilidade dos MASCs para conflitos que envolvem o poder público.
Para superar esse cenário, vislumbra-se algumas medidas que podem ser adotadas.
A primeira, sem dúvidas, é capacitação dos envolvidos na administração municipal, incluindo gestores, servidores públicos e contratados, sobre a possibilidade de utilização e os benefícios dos meios extrajudiciais de resolução de conflitos. Mais do que capacitar os gestores para que esses familiarizem-se com os MASCs, é preciso que se dê aos memos segurança quanto à regularidade e possibilidade jurídica da sua utilização e aplicação nos contratos firmados pela Municipalidade.
Por oportuno, também é extremamente benéfico que se estabeleçam regulamentações prévias a nível municipal, como fez a cidade de São Paulo, para garantir maior segurança jurídica aos envolvidos. Igualmente, o apoio de instituições especializadas, como centros de mediação e arbitragem, também pode ser buscado para auxiliar na implementação dos meios extrajudiciais. Tanto é possível que os Municípios firmem parcerias com Câmaras de Mediação e Arbitragem privadas já existentes, como institua e regulamente uma Câmara própria. Inclusive, a criação de uma Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos, como estabelecido no Decreto Municipal nº 57.262/2016 em São Paulo, é uma excelente medida municipal. Tanto representa uma boa prática na resolução de conflitos por meio de autocomposição administrativa, como contribui para fortalecer a solução arbitral nos municípios, pois a arbitragem seria reservada para conflitos contratuais que não puderam ser resolvidos na esfera administrativa.
Veja-se que o momento atual é favorável para essas regulamentações, especialmente ao se levar em consideração a previsão dos MASCs na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/21) e a consequente necessidade dos Municípios de regulamentar a nova Lei. A regulamentação dos MASCs tendo como plano de fundo a Nova Lei de Licitações tem o condão de trazer maior segurança jurídica a todos os atores públicos e privados envolvidos, representando forte incentivo normativo e de gestão pública para o uso e expansão dos MASCs.
Referências[+]
↑1 | “If a patient is ill, does the doctor always operate? Of course not. The doctor and patient discuss all possible solutions. Likewise with the legal field – for each legal ailment, a variety of options need to be discussed” (Trecho retirado da apresentação de Terry Simonson, Diretor do Tulsa Multi-Door Courthouse Program, em conferência realizada em 7 de novembro de 1984, registrada in RAY, Larry; CLARE, Anne L. The Multi-Door Courthouse Idea: Building the Courthouse of the future… Today. Journal on Dispute Resolution. v. 1:1, 1985, p. 7). |
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Folha de São Paulo: Governo Lula quer mudar regras para concursos públicos
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Read MoreO Registro de Preços na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos
No mercado de contratações públicas, uma prática muito comum é a celebração ou a adesão a uma ata de registro de preços. Por meio deste documento, a Administração Pública e um potencial fornecedor ou prestador de serviços formalizam um compromisso de contratação futura. O conjunto de procedimentos que antecede este compromisso de contratação futura é chamado de sistema de registro de preços.
Para compreender o funcionamento deste modelo, imagine-se que a Administração Pública precise contratar determinado bem ou serviço, mas que não consiga estimar, com precisão, quando efetivamente precisará deste bem ou serviço e em qual quantidade. É justamente neste contexto que se faz oportuno o registro de preços, como uma forma de garantir que, quando a demanda surgir, a Administração Pública possa ser imediatamente atendida na medida das suas necessidades.
A título de exemplo, considere-se que o Poder Público tem o dever de fornecer determinado medicamento à população, mas que a sua demanda varia, de modo que, comprando em excesso, corre-se o risco de que decorra o prazo de validade antes a distribuição desses medicamentos, enquanto, se comprar em quantidade insuficiente, tem-se o risco de não atender à demanda. No caso, o que pode fazer o Poder Público é celebrar uma ata de registro de preços, na qual bastará estimar a quantidade máxima da sua demanda, e o particular se vinculará à obrigação de fornecer o medicamento até essa quantidade máxima durante o período de vigência deste compromisso.
Diante dessa situação, vemos a importância do registro de preços para a Administração Pública brasileira. Não por outro motivo, ao tratar do tema, a Lei nº 14.133/2021 – a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – trouxe uma série de novidades, buscando potencializar as vantagens do registro de preços. Neste artigo, abordaremos os principais pontos do registro de preços na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
A possibilidade de estabelecer preços diferentes para o mesmo bem ou serviço
Um primeiro ponto relevante sobre a regulamentação do registro de preços é a possibilidade de que o potencial fornecedor ou prestador de serviço estabeleça preços distintos para o mesmo bem ou serviço. Essa possibilidade é delimitada pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos para situações específicas, previstas no art. 82, III. São elas:
- Quando o objeto contratado for entregue em locais diferentes;
- Em razão da forma e do local de acondicionamento;
- Em razão do tamanho do lote;
- Por outros motivos justificados no processo.
Em todas essas situações, é natural que o potencial fornecedor ou prestador de serviço tenha um incremento em seus custos para atender a Administração Pública. Reconhecendo essa situação, a Nova Lei de Licitações permitiu expressamente o oferecimento de preços distintos. Todavia, sendo o caso, é recomendável que o edital referente à contratação preveja expressamente tal possibilidade, e que o potencial fornecedor ou prestador de serviço justifique a variação dos preços no processo de contratação.
Possibilidade de proposta em quantitativo inferior ao máximo previsto no edital
Outro ponto da regulamentação do registro de preços na Nova Lei de Licitações que também se relaciona com as propostas oferecidas pelos potenciais fornecedores ou prestadores de serviços diz respeito à possibilidade de que o proponente se vincule a um quantitativo inferior ao máximo previsto no edital.
Sobre isso, é importante compreender que, no sistema de registro de preços, o quantitativo previsto no edital e na própria ata de registro de preços é apenas um limite máximo, e não vincula a Administração Pública, que poderá contratar somente na medida do que for necessário para atender a sua demanda durante o prazo de vigência do compromisso celebrado.
Todavia, nem sempre o fornecedor ou prestador de serviço que pode oferecer os melhores preços tem capacidade para se comprometer com o quantitativo máximo definido em edital. Diante disso, a Nova Lei de Licitações admitiu expressamente a possibilidade de que sejam oferecidas propostas em quantidade inferior àquela prevista no edital. Contudo, sendo o caso, recomenda-se que isso somente seja feito se expressamente autorizado no próprio edital.
O sistema de registro de preços para obras e serviços de engenharia
A Nova Lei de Licitações também trouxe uma importante novidade ao permitir, expressamente, a utilização do sistema de registro de preços para contratações envolvendo obras e serviços de engenharia. Essa possibilidade é abordada nos arts. 82, § 2º, e 85 desta Lei, que estabelece as seguintes condições:
Realização prévia de pesquisa de mercado;
- Seleção de acordo com os procedimentos previstos em regulamento;
- Desenvolvimento de rotina de controle;
- Atualização periódica dos preços registrados;
- Definição do período de validade do registro de preços;
- Inclusão, em ata, do licitante que aceitar cotar preços iguais aos do licitante vencedor na sequência de classificação e inclusão do licitante que mantiver sua proposta original;
- Existência de projeto padronizado, sem complexidade técnica e operacional;
- Necessidade permanente ou frequente de obra ou do serviço contratado.
O sistema de registro de preços nas hipóteses de contratação direta
A Nova Lei de Licitações também inovou na regulamentação do regime do sistema de registro de preços ao permitir a utilização desta modelagem para contratações diretas, isto é, por inexigibilidade ou dispensa de licitação. Essa permissão consta tanto no art. 6º, XLVI e XLVII, quanto no artigo 82, § 6º, desta Lei.
Nesse sentido, em que pese a Lei nº 8.666/1993 não vedasse expressamente a aplicação do sistema de registro de preços para contratações diretas, ela também não autorizava essa prática, havendo, portanto, uma omissão legislativa. Ao regulamentar o tema em âmbito federal, o Decreto nº 7.892/2013 manteve a lacuna legislativa.
Por isso é que, neste contexto, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos inova ao autorizar expressamente a possibilidade de usar o sistema de registro de preços nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade de licitação.
O aumento do prazo máximo de vigência das atas de registro de preços
Quanto ao prazo de vigência das atas de registro de preços, a Nova Lei de Licitações previu que esse prazo é de um ano, mas que é possível a sua prorrogação por mais um ano, desde que comprovada a vantajosidade do preço registrados. Sendo assim, passa a ser possível a extensão do prazo de validade de ata de registro de preços pelo período de até dois anos.
Vale sempre notar, todavia, que a vigência da ata de registro de preços não se confunde com a vigência dos contratos celebrados a partir dela, que podem durar para além do prazo de validade da ata.
Obrigatoriedade da contratação
Outro ponto relevante sobre a regulamentação do registro de preços na Nova Lei de Licitações diz respeito à vinculação da Administração Pública à contratação por meio da ata de registro de preços. Isso porque, conforme o art. 83 desta Lei, a Administração não estará obrigada a contratar o bem ou serviço constante em ata de registro de preços daquele fornecedor ou prestador de serviço, podendo realizar licitação específica para tanto, desde que justifique essa escolha.
A possibilidade e os limites para a adesão ou “carona” no Sistema de Registro de Preços
A possibilidade de adesão ou “carona” no sistema de registro de preços também foi alvo de regulamentação pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que tratou do tema no art. 86, § 2º. A regulamentação impõe as seguintes condições para a adesão de órgãos ou entidades administrativas não participantes da ata de registro de preços:
- Apresentação de justificativa da vantagem da adesão;
- Demonstração de que os valores registrados estão compatíveis com aqueles praticados no mercado;
- Prévias consulta e aceitação do órgão ou entidade gerenciadora da ata e do fornecedor ou prestador de serviços.
Nessa linha, também é importante compreender os limites para a adesão em ata de registro de preços. No caso, esses limites se baseiam no quantitativo máximo registrado na ata em que ocorrerá a adesão. Um desses limites diz respeito à quantidade máxima de cada item registrado em ata que poderá ser adquirido pelo órgão ou entidade aderente, que não poderá superar a metade do quantitativo máximo registrado em ata. Além disso, no total, somando-se todas as adesões, não se poderá adquirir mais do que o dobro do quantitativo máximo registrado em ata.
Para ilustrar, imagine-se que um órgão celebrou uma ata de registro de preços para adquirir 100 unidades de determinado bem. Por óbvio, este órgão gerenciador da ata não poderá superar o quantitativo máximo nela previsto. Quanto aos órgãos ou entidades que tenham interesse em aderir a esta ata, eles poderão fazer, cada qual, até o limite de 50 unidades. Ao todo, os órgãos ou entidades aderentes não poderão superar o limite de 200 unidades. Supondo-se que cada aderente adquirisse 10 unidades, seria possível realizar até 20 adesões a partir da mesma ata, observadas as demais condições legais.
Considerações finais
Como visto, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos traz uma série de novidades importantes para o sistema de registro de preços. Além dos pontos apresentados neste artigo, vale mencionar, também, a previsão dos critérios de julgamento da licitação, que deverão ser de menor preço ou maior desconto sobre tabela, e a possibilidade de alteração de preços registrados em ata, e de licitação por registro de preços sem prévia estimativa do quantitativo máximo, hipótese em que deverá ser previsto o valor máximo a ser despendido em contratações.
Diante de um cenário repleto de inovações legislativas, é importante que o fornecedor ou prestador de serviços que costuma participar de atas de registro de preços esteja atento e ciente das novidades, sejam aquelas trazidas na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ou mesmo na regulamentação específica do tema por cada órgão ou entidade administrativa, a fim de que possa aperfeiçoar suas práticas comerciais, garantindo mais segurança e eficiência.
Read MoreComo o Planejamento Sucessório pode ajudar a evitar disputas entre herdeiros?
O Planejamento Sucessório é uma prática cada vez mais comum, que visa não só mitigar burocracias e proteger adequadamente os bens, como também evitar conflitos entre os herdeiros que podem comprometer os laços familiares e a preservação dos bens.
A utilização estratégica adequada dos instrumentos jurídicos disponíveis para realização do planejamento possibilita a minimização de eventuais conflitos familiares e garante que a vontade do titular de bens seja respeitada.
Neste artigo, vamos discutir como o Planejamento Sucessório pode auxiliar na minimização de possíveis conflitos familiares e eventuais disputas entre herdeiros, bem como as estratégias que podem ser adotadas para garantir a transmissão pacífica dos bens.
O que é o Planejamento Sucessório?
O Planejamento Sucessório pode ser considerado como um conjunto de estratégias que visa organizar a transmissão do patrimônio aos herdeiros, reunindo os objetivos e interesses da pessoa que detém a propriedade dos bens e buscando a sucessão de modo seguro, rápido, menos burocrático e pacífico.
Quais os instrumentos jurídicos utilizados no Planejamento Sucessório?
Existem inúmeros instrumentos jurídicos que podem auxiliar na transmissão patrimonial. Para a escolha adequada dos recursos, torna-se necessário analisar de modo individualizado os objetivos e interesses do titular dos bens quando da realização de um Planejamento Sucessório.
Fato é que, como dito, uma das vantagens observadas no Planejamento Patrimonial e Sucessória é a mitigação de riscos de conflitos familiares. Nesse sentido, alguns instrumentos podem ser adotados para evitar as disputas entre herdeiros.
1.Testamento:
O testamento é o instrumento mais conhecido e utilizado no Planejamento Sucessório. É um ato de manifestação de última vontade, permitindo que o testador deixe determinações específicas sobre a destinação de seus bens, de modo individualizado, bem como a disposição de outros assuntos não patrimoniais.
Sugere-se que o documento seja elaborado por um profissional qualificado, que consiga extrair do testador todos os seus desejos e transferir, ao documento, esta manifestação – desde que, claramente, nenhum desejo do testador viole disposição legal.
Este instrumento é muito útil para a destinação de bens específicos aos herdeiros – evitando discussões desnecessárias sobre determinado imóvel ou resguardando o direito a um dos herdeiros sobre bem específico que possua vínculo emocional – e também é bastante utilizado para a realização de partilha desproporcional, garantindo ao herdeiro que possua menos condições, por exemplo, uma parte maior do patrimônio.
2.Contrato de doação:
O contrato de doação possibilita que uma pessoa, denominada doadora, transfira a outra, designada donatária, por mera liberalidade, um determinado bem ou bens. É por intermédio deste instrumento que se permite aos donatários (herdeiros), tornarem-se de imediato proprietários de bens que, se não houvesse o ato de liberalidade, tão somente receberiam com a abertura da sucessão e consequente partilha.
É também considerado um excelente instrumento para evitar litígio entre herdeiros, pois permite uma espécie de adiantamento de herança, possibilitando, a cada herdeiro, o direito de administrar os bens recebidos desde logo e assegurando a propriedade exclusiva de determinado bem em favor de um donatário (herdeiro) específico, excluindo da respectiva titularidade outros herdeiros.
Quando os bens doados são gravados com cláusulas de incomunicabilidade e/ou impenhorabilidade, também propicia segurança de que os bens permanecerão na esfera patrimonial do donatário e, consequentemente, da própria família.
3.Holding familiar:
Dentre as formas de transmissão e organização do patrimônio familiar, tem-se a popularmente conhecida holding familiar, que nada mais é do que uma empresa constituída para gerir o patrimônio da família de forma mais simples e otimizada.
Além de facilitar a administração do patrimônio e a transmissão aos herdeiros, a constituição de uma holding familiar também permite, sob diferentes aspectos, uma menor carga tributária através de um planejamento fiscal adequado. É o que se verifica, por exemplo, quando se promove a doação, em vida, das participações societárias.
Neste caso, as quotas serão tributadas com base na alíquota do ITCMD vigente à época da doação – e não da sucessão, antecipando o recolhimento do imposto e evitando os riscos de eventual aumento de alíquota do tributo.
Revela-se bastante prudente essa preocupação, diante da sabida intenção do governo de elevar a alíquota máxima do aludido imposto.
Como o Planejamento Sucessório pode evitar disputas entre herdeiros?
Dentre as inúmeras vantagens de se realizar um Planejamento Patrimonial e Sucessório, que envolvem não somente a morosidade, os custos, tributos e riscos societários eventualmente envolvidos, enxerga-se também a possibilidade de mitigar os riscos de disputas entre herdeiros.
Os instrumentos jurídicos adequados podem mitigar ou até mesmo extirpar os riscos de litígios judiciais entre os herdeiros envolvidos. A estratégia adequada pode, também, evitar a realização de um processo de inventário, possibilitando que cada herdeiro receba aquilo o que é seu por direito sem ter que se submeter a procedimentos e/ou processos morosos e, por vezes, dolorosos.
A definição e a execução antecipada dos procedimentos envolvidos para a transmissão dos bens e para a sucessão hereditária nada mais é do que um ato de amor, que evita a deterioração das relações familiares e o perecimento do patrimônio envolvido.
Ficou com alguma dúvida ou possui algum comentário sobre o tema? Entre em contato através do e-mail contato@schiefler.adv.br que um de nossos advogados especialistas irá lhe atender!
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Read MoreCaí em um golpe virtual. A quem posso pedir ajuda?
Em recente texto, explicamos como funcionam os golpes financeiros, dando foco principalmente àqueles que ocorrem em meio digital, como aqueles relacionados a falsas corretoras de investimentos, casas de apostas e cassinos online. Nele, foi informado o modus operandi dos criminosos, os meios que geralmente se utilizam para remeter os bens para paraísos fiscais de difícil acesso e quais as atitudes e diligências a serem tomadas para diminuir a chance de se tornar vítima da fraude.
Acontece que alguns golpes são extremamente bem executados e acabam atraindo até mesmo aqueles que adotam todas as estratégias e cautelas para se verem livres de criminosos. Por vezes, os membros das organizações criminosas criam perfis em redes sociais, sites e até gravam vídeos de “feedback de clientes”, tornando crível que se trata de comércio lícito e confiável. Em outros casos, os golpistas replicam sites de lojas famosas ou se passam por familiares em aplicativos de conversa, adotando identidades que “desarmam” as vítimas.
O modo como o sujeito se torna vítima, entretanto, não importa. Como o crime foi cometido, os golpistas precisam ser punidos e os bens precisam ser recuperados. Mas como fazer isso e a quem se pode recorrer? É o que será tratado neste texto.
Antes de responder à pergunta, é preciso que se entenda que esses crimes, ao se maquiarem como relações de consumo, assim deverão ser tratados. Por isso, as ferramentas consumeristas geralmente poderão ser utilizadas, visto ser crime contra as relações e o mercado de consumo as atitudes que induzirem os usuários a erro:
Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: […]
VII – induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária (Lei no 8.137/1990);
Mas não só. Os golpes financeiros podem ser considerados crimes contra a economia popular e contra as ordens tributária e econômica, bem como é possível a tipificação como crime de fraude com a utilização de ativos virtuais. Além disso, os golpes financeiros, por atingirem bens de uma quantidade enorme de pessoas, acabam por se enquadrar no conceito atos ilícitos violadores de direitos coletivos ou individuais homogêneos a depender de como perpetrados e, por isso, poderão ser objeto de ações coletivas manejadas pelos órgãos e entidades públicas e privadas para os quais a lei atribui legitimidade processual para substituir, em juízo, as vítimas de evento danoso.
E essa ação coletiva é regulada por lei própria, a chamada Lei de Ação Civil Pública – ACP (Lei no 7.347/1985). A ACP deverá ter como objeto a reparação de danos patrimoniais e extrapatrimoniais causados, dentre outros, contra consumidores. Ou seja, a definição se encaixa “como uma luva” aos golpes financeiros digitais. Veja-se:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: […]
ll – ao consumidor; […]
IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; […]
Os legitimados para propor a ACP, deste modo, serão os mesmos sujeitos aos quais a vítima de um golpe financeiro poderá recorrer. Importa para este assunto, conforme artigo 5o da Lei da ACP: o Ministério Público (Federal e Estadual), a Defensoria Pública, as autarquias (como o são os PROCONs) e as associações (inclusive privadas).
Diferente das ações penais, geralmente de iniciativa exclusiva do Ministério Público, as ACPs, como o nome já diz, são cíveis e pretendem reparar o dano causado às vítimas de determinado fato ou conduta, podendo ser instaurados por todos os legitimados acima citados. O objetivo central é recuperar bens.
A vítima de golpe financeiro poderá, então, enviar denúncia aos legitimados para proposição de ACPs, desde que possua indícios iniciais de que o dano está sendo causado para inúmeras pessoas, o que geralmente é de fácil constatação em pirâmides e fraudes digitais.
Em síntese, ao sofrer danos por golpe financeiro, a vítima pode, individualmente ou representada por um advogado, relatar os fatos e remeter as provas que possuir para o Ministério Público, para a Polícia Civil e Federal, para o PROCON de seu Estado, para a Defensoria Pública (caso as vítimas sejam hipossuficientes economicamente) ou para associações privadas de defesa do consumidor.
Com os indícios em mãos, as autoridades deverão tomar as diligências internas necessárias (como a instauração de inquérito civil pelo MP) para investigar os fatos e, assim, propor a Ação Civil Pública. Obtendo sucesso, a sentença (ou acórdão) referente à ACP poderá ser executada pelas vítimas no montante dos danos que conseguirem provar.
Como dito em texto anterior, entretanto, o envio de bens produtos do ilícito para o exterior (principalmente para paraísos fiscais) dificulta muito a execução da sentença condenatória. Entretanto, os legitimados para propositura da ACP (MP, autarquias, associações) costumam estar bem equipados e preparados para casos de grandes proporções (inclusive com acesso à ferramentas de busca de bens no exterior e de realização de cooperações jurídicas internacionais), o que pode não se repetir em ações propostas individualmente pelo prejudicado.
Apesar da dificuldade, nada impede que tais ações individuais sejam propostas. Muito provavelmente o autor terá sucesso na fase de conhecimento (o réu, na maioria dos casos, sequer irá aparecer no processo e será citado por edital), mas quando tentar o ressarcimento na fase de execução, se frustrará pela impossibilidade de busca de bens e dos reais sócios da empresa.
Mas não só. Além das autoridades públicas e associações privadas estarem melhor estruturadas para auxiliar as vítimas, a propositura de ACPs dispensa o adiantamento de quaisquer valores pelo legitimado, de modo que a utilização de ferramentas que geralmente custam muito dinheiro (como perícias, comunicações internacionais, traduções de documentos, atos necessários para cooperação jurídica, custas judiciais e honorários de sucumbência) não representarão impasse para o célere andamento processual (artigo 18 da Lei no 7.347/1985).
No que se refere às associações privadas, estas deverão estar formadas há pelo menos 1 (um) ano da propositura da ACP e possuir como uma de suas finalidades institucionais (ou seja, como objeto em seu estatuto) a proteção ao consumidor e à ordem econômica, nos termos do artigo 5o, inciso V, alíneas “a” e “b” da Lei no 7.347/1985.
A constituição há mais de 1 (um) ano, no entanto, poderá ser dispensada pelo juiz competente para julgar a ACP, caso haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou características do dano (artigo 5o, § 4o, da Lei no 7.347/1985). A previsão tutela os casos em que as vítimas de dano específico decidem se juntar para, em associação, defender seus interesses por si mesmos.
Por exemplo, vítimas de determinado golpe perpetrado pela “Empresa fictícia X” se unem e criam a “Associação de Vítimas da Fraude Financeira da Empresa fictícia X”. Nesse caso, poderá o juiz, dada as características do dano a ser reparado, dispensar a apresentação de registro da pessoa jurídica há mais de 1 ano, permitindo que a associação cumpra seu único objetivo: buscar a reparação dos danos sofridos pelos associados.
Ademais, em caso de o Ministério Público propor ação penal contra os autores de crimes de golpes financeiros virtuais, a vítima pode habilitar-se, para aproveitar o resultado do julgamento da ação penal em seu favor, executando a sentença penal contra os condenados.
Dentre os possíveis instrumentos para o ressarcimento das vítimas de golpes financeiros virtuais, destaca-se, além da ação civil pública, a instauração de inquérito policial para a investigação do crime. Para tanto, é preciso contatar a Polícia Civil do local de ocorrência do crime ou a Polícia Federal, informando os detalhes do crime e apresentando, sempre que possível, todas as provas produzidas.
Com base no relato e nas provas apresentadas pela vítima, a polícia poderá instaurar inquérito e proceder à investigação, inclusive requerendo a concessão de ordem judicial de quebra de sigilo bancário das pessoas físicas e jurídicas identificadas como autoras do crime. A depender do resultado da investigação, pode-se requerer, também, a concessão de ordem judicial de busca e apreensão dos bens dos autores do crime, e esses bens serão utilizados para ressarcir a vítima do crime.
Independentemente da solução a ser adotada, vale sempre contar com a assistência de advogados que, especializados na recuperação destes valores, já conhecem os caminhos para a comunicação com as autoridades competentes (MP, Polícia, PROCON).
Além disso, a assistência jurídica é essencial para que as vítimas, sendo estas suas vontades, constituam regularmente a associação privada. Criada a pessoa jurídica, ainda será necessária a atuação dos advogados para elaboração e gerenciamento da Ação Civil Pública (e o melhor, sem necessidade de adiantamento de custas que normalmente são requeridas nas ações individuais).
Como já narrado, as associações também podem se valer da inexigibilidade de adiantamento de custas previstas no artigo 18 da Lei no 7.347/1985, entretanto, em caso de propositura de ACP temerária ou praticada com litigância de má-fé, a associação e seus diretores serão solidariamente condenados em honorários de sucumbência e ao décuplo das custas, mais perdas e danos (se houverem), conforme artigo 17 da mesma lei. Portanto, reitera-se a necessidade de consultar um advogado antes de tomar decisões precipitadas.
Read MoreCartel em licitação pública: quais as penalidades?
Alguma vez você, licitante, já se sentiu prejudicado ou até mesmo “perseguido” por um determinado grupo em algum certame público? Por mais que isso possa ser um desdobramento natural do caráter competitivo das licitações públicas, é sempre recomendável analisar todas as evidências à disposição para se certificar que você não tenha sido vítima de um cartel.
Os cartéis são acordos entre concorrentes para combinar o aumento de preços, a divisão de mercado, a exclusão de licitantes do certame ou outras práticas pré-acordadas com o objetivo de frustrar o caráter competitivo de uma licitação pública. Segundo estimativas da OCDE, os cartéis geram um sobrepreço estimado entre 10% e 20%, em comparação com os preços de um mercado competitivo, razão pela qual são uma das práticas mais danosas contra a sociedade no âmbito das contratações públicas.
Em uma licitação, os concorrentes devem atuar de forma independente e empreender esforços individuais para ofertar a melhor proposta possível para a administração pública. Tanto é verdade que a Nova Lei de Licitações incluiu em seu artigo 5º o princípio da competitividade, que visa assegurar a justa competição entre os concorrentes.
Em razão da gravidade da prática, os cartéis são proibidos por diversas leis e esferas diferentes. Abaixo serão apresentadas as possíveis penalidades aplicadas contra licitantes punidos pelo crime de cartel em licitação pública.
Penalidades administrativas
A nova lei de licitações (Lei 14.133/2021) prevê expressamente a responsabilização administrativa de licitantes que adotem a prática de “atos ilícitos com vistas a frustrar os objetivos da licitação” (artigo 155, inciso XI). Nestes casos, a depender da gravidade da situação e das peculiaridades do caso concreto (artigo 156), poderão ser aplicadas as seguintes penalidades administrativas:
- advertência;
- multa;
- impedimento de licitar e contratar;
- declaração de inidoneidade para licitar ou contratar.
Estas penalidades administrativas são aplicadas diretamente pelo órgão contratante da licitação pública afetada, a partir da instauração de processo administrativo contra o(s) licitante(s) responsabilizado(s).
Adicionalmente, a repressão aos cartéis em licitação também está prevista na Lei 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Este diploma legal (artigo 36, §3º, inciso I, alínea ‘a’) prevê expressamente a vedação à prática de “acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma, preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública”. Nestes casos, a responsabilização é levada a cabo pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autoridade responsável pela defesa da ordem econômica e concorrencial.
Nos casos processados pelo tribunal administrativo do CADE, as penalidades podem ser, conforme artigo 38 da Lei 12.529/2011, as seguintes:
- À empresa: multa de 0,1% a 20% do valor do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado, no último exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração.
- Aos administradores da empresa: se direta ou indiretamente envolvidos com o ilícito podem ser condenados a pagar uma multa entre 1% a 20% daquela aplicada à empresa.
- Outras penas acessórias: a publicação em meia página, às expensas do infrator, em jornal indicado na decisão, de extrato da decisão condenatória por prazo indeterminado em lei; a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participação em licitação da administração pública por prazo não inferior a 5 anos; inscrição no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor; a proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica pelo prazo de até 5 anos, entre outros
Os critérios para a penalização de cartelistas pelo CADE leva em conta os critérios dispostos no artigo 45 da Lei 12.529/2011. Entre eles, cita-se a avaliação da gravidade, da boa-fé do infrator e da vantagem auferida pela prática anticoncorrencial.
Penalidades criminais
Além da responsabilização administrativa demonstrada acima, a prática de cartel pode ser configurada como crime, conforme previsão do código penal brasileiro. O crime de cartel já era previsto genericamente no art. 4º da lei 8.137/90, que define crimes contra a ordem econômica. No âmbito das licitações públicas, a Lei 8.666/93 previa em seu artigo 90 o crime de frustrar ou fraudar o caráter competitivo das licitações públicas, com pena de 2 a 4 anos, além de multa.
No entanto, a Nova Lei de Licitações fez alteração no código penal para incluir previsão expressa do crime de fraude à licitação, agora inserido no artigo 337-F do Código Penal, com a seguinte redação:
Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Assim, os administradores responsáveis pelas empresas condenadas pela prática de cartel também podem ser responsabilizados criminalmente, a partir da investigação e atuação do Ministério Público e da Polícia Civil.
Penalidades cíveis
Por fim, ainda é possível a responsabilização cível pela prática anticoncorrencial. Nestes casos, de acordo com o artigo 47 da Lei 12.529/2011, os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no artigo 82 da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração à ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos. Tal ação independe da abertura ou resultado de processo administrativo por parte do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação.
Como se vê, a prática de cartelização é uma das infrações mais graves no âmbito das licitações públicas, e pode ser penalizada de formas diferentes e cumulativas. Para evitar prejuízos e prevenir o ilícito, uma das melhores práticas é a elaboração de um Programa de Integridade para a empresa licitante, com o objetivo de assegurar as melhores práticas profissionais para a empresa e a prevenção de ilícitos administrativos e criminais.
Em caso de dúvida sobre como agir frente a uma situação de violações concorrenciais em licitações públicas, não deixe de consultar um advogado especializado no tema para uma assessoria jurídica experiente e qualificada!
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