Ainda que exista norma infraconstitucional limitando a jornada semanal para a acumulação de cargos públicos, a regularidade da acumulação depende apenas da compatibilidade de horários.
É de conhecimento comum que, em regra, os cargos públicos são inacumuláveis. Trata-se de restrição imposta pelo inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal, segundo o qual só é possível uma mesma pessoa ocupar um único cargo, sendo que, para ocupar outro, faz-se necessário a sua exoneração do anterior.
Leia-se o referido inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[…]
XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;
A leitura do dispositivo, portanto, não deixa dúvidas sobre a impossibilidade de acumulação de cargos públicos, assim como estabelece uma exceção que, a princípio, também seria de interpretação fácil. No entanto, a exceção permitida pela Constituição recebe contornos não tão simples na prática administrativa.
Como se depreende dos grifos conscientemente inseridos, o inciso XVI do artigo 37 estabelece somente dois critérios gerais que devem ser respeitados: (i) estar entre as profissões dispostas no rol de alíneas do inciso XVI e, ao mesmo tempo, (ii) comprovar a compatibilidade de horários.
Ou seja, uma primeira interpretação – e que é a mais correta, como se verá – leva a crer que é irrelevante o fato de que a jornada semanal do indivíduo que ocupa dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, quando somadas, perfaz mais de 60 horas: basta que seja demonstrada a compatibilidade de horários.
Acontece que, como dito, a aplicação prática da exceção trazida pelo texto constitucional não é tão simples como aparenta ser na teoria. E é por essa razão que, há muito tempo, o Poder Judiciário se debruça sobre o tema.
É o caso, por exemplo, do Recurso Especial nº 1767955/RJ, julgado em abril de 2019, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Pautado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), prevaleceu na Corte o entendimento de que o único requisito para a acumulação de “cargos acumuláveis” (de acordo com a Constituição, com o perdão da repetição) depende apenas da compatibilidade de horários. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS REMUNERADOS. ÁREA DA SAÚDE. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. REQUISITO ÚNICO. AFERIÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES DO STF. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. A Primeira Seção desta Corte Superior tem reconhecido a impossibilidade de acumulação remunerada de cargos ou empregos públicos privativos de profissionais da área de saúde quando a jornada de trabalho for superior a 60 (sessenta) horas semanais.
2. Contudo, ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, posicionam-se “[…] no sentido de que a acumulação de cargos públicos de profissionais da área de saúde, prevista no art. 37, XVI, da CF/88, não se sujeita ao limite de 60 horas semanais previsto em norma infraconstitucional, pois inexiste tal requisito na Constituição Federal” (RE 1.094.802 AgR, Relator Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 11/5/2018, DJe 24/5/2018).
3. Segundo a orientação da Corte Maior, o único requisito estabelecido para a acumulação é a compatibilidade de horários no exercício das funções, cujo cumprimento deverá ser aferido pela administração pública. Precedentes do STF.
4. Adequação do entendimento da Primeira Seção desta Corte ao posicionamento consolidado no Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
5. Recurso especial a que se nega provimento.[1]
O Tribunal de Contas da União (TCU) também segue o mesmo entendimento. Assim o foi ao decidir, em fevereiro de 2019, que “a questão da incompatibilidade de horários entre os cargos acumuláveis deve ser estudada caso a caso, sem a limitação objetiva de 60 horas semanais”:
9. De início, insta destacar que, com base na denominação dos cargos exercidos pelos interessados, a acumulação dessas ocupações é permitida. Tal situação encontra amparo na redação atual da alínea ‘c’, inciso XVI, do art. 37 da Constituição Federal de 1988, resguardada no período anterior à EC 19/98 pelo Art. 17, § 2º, do ADCT, uma vez que, tanto os cargos que os interessados exercem na União, quanto nas outras esferas, são privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.
10. No que concerne às respostas encaminhadas pela Unidade Jurisdicionada, verificou-se que as escalas de horários dos vínculos são compatíveis.
[…]
23. Desse modo, com base nos Acórdãos 1.338/2011-TCU-Plenário, de relatoria do Ministro Augusto Nardes, e 1.168/2012-TCU-Plenário, de relatoria do Ministro José Jorge, nos quais se firmou o entendimento de que a questão da incompatibilidade de horários entre os cargos acumuláveis deve ser estudada caso a caso, sem a limitação objetiva de 60 horas semanais, conclui-se que inexiste irregularidade nas admissões das interessadas.
24. Nota-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a exemplo dos julgamentos do MS 24.540/DF e do MS 26.085/DF, está alinhada às referidas decisões deste Tribunal, ou seja, a acumulação de cargos, para as situações permitidas constitucionalmente, está condicionada à compatibilidade de horários.
25. Portanto, com base no conjunto de verificações a que os atos foram submetidos não foi possível constatar qualquer óbice a apreciação pela legalidade, cabendo proposta para que sejam considerados legais.[2]
Ademais, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) pela inexistência de limitação de carga horária superior a 60 horas semanais, que já vinha sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Contas da União, foi reafirmado recentemente pela Suprema Corte, ocasião em que foi julgado o Tema 1081 de repercussão geral, referente à “Possibilidade de acumulação remunerada de cargos públicos, na forma do art. 37, inciso XVI, da Constituição Federal, quando há compatibilidade de horários”.
Do julgamento, fixou-se a tese de que “As hipóteses excepcionais autorizadoras de acumulação de cargos públicos previstas na Constituição Federal sujeitam-se, unicamente, a existência de compatibilidade de horários, verificada no caso concreto, ainda que haja norma infraconstitucional que limite a jornada semanal.”.
Ou seja, ainda que exista norma infraconstitucional (lei, decreto, resolução, portaria, etc.) limitando a jornada semanal para a acumulação de cargos públicos, a regularidade da acumulação depende apenas da compatibilidade de horários.
Depreende-se do exposto, portanto, que a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ), e também do TCU, permitem a acumulação de cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde nas hipóteses previstas no inciso XVI do artigo 37 da Constituição Federal, sem limitação de jornada semanal, bastando que o servidor demonstre a compatibilidade de horários.
[1] STJ, REsp 1767955/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/03/2019.
[2] TCU, Acórdão nº 1315/2019, Segunda Câmara, Relator Ministro André de Carvalho, julgado em 26/02/2019.
Read MoreO Tribunal de Contas do Distrito Federal acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame.
O Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) suspendeu cautelarmente, no fim de maio, licitação de serviços de publicidade lançada por empresa estatal do Distrito Federal, pois vislumbrou indícios de irregularidade na pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes[1].
Especificamente, o TCDF acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame. Segundo a decisão, confirmada por unanimidade pelo Plenário da Corte de Contas, “não houve manifestação técnica quanto aos casos de pontuação cuja diferença fosse superior a 20%, caracterizando a existência da fumaça do bom direito na representação tratada nos autos, frente, principalmente, à previsão legal constante do art. 6º, inc. VII, da Lei nº 12.232/2010”.
Para entender melhor o caso analisado pelo TCDF, é importante levar em conta que, com a publicação da Lei Federal nº 12.232/2010, as licitações para a contratação de agências de propaganda receberam um regulamento especial, motivo pelo qual a Lei Federal nº 8666/1993 passou a ser aplicada apenas subsidiariamente nesses casos. O motivo da existência de uma lei especial, com evidente procedimento mais rigoroso para o julgamento das pontuações técnicas, se deve ao fato de que as licitações para serviços de publicidade são naturalmente mais suscetíveis a direcionamentos e favorecimentos indevidos, sobretudo em razão da natureza do julgamento das propostas técnicas.
A preocupação acentuada com a etapa de julgamento das propostas técnicas para contratações desse objeto está expressa na justificativa da proposta legislativa que gerou a Lei Federal nº 12.232/2010. Leia-se o seguinte excerto da exposição de motivos do PL nº 3305/2008:
Tem a nossa experiência recente nos mostrado que a ausência de um tratamento normativo específico para essa matéria possibilita que, nesse campo, grandes arbitrariedades ocorram em todo o país. Empresas de publicidade contratadas com óbvio favorecimento, com base em critérios de julgamento subjetivos, contratos que encobrem a possibilidade de novos ajustes imorais com terceiros, pagamentos indevidos, desvios de verbas públicas destinadas à publicidade com fins patrimoniais privados ou para custeio de campanhas eleitorais são apenas alguns exemplos de transgressões que compõem um cenário já bem conhecido nos dias em que vivemos. [2]
Entre as exigências específicas da Lei Federal nº 12.232/2010, encontra-se a obrigação de a subcomissão técnica (aquela que julga as propostas técnicas dos licitantes) reavaliar a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% da pontuação máxima deste quesito. Como visto, a reavaliação da pontuação fica a cargo de uma subcomissão técnica, prevista no § 1º do artigo 10 da Lei, e deve ser realizada em conformidade com os critérios objetivos estabelecidos no edital de licitação. Confira-se o dispositivo:
Art. 6º A elaboração do instrumento convocatório das licitações previstas nesta Lei obedecerá às exigências do art. 40 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com exceção das previstas nos incisos I e II do seu § 2º, e às seguintes:
[…]
VII – a subcomissão técnica prevista no § 1º do art. 10 desta Lei reavaliará a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% (vinte por cento) da pontuação máxima do quesito, com o fim de restabelecer o equilíbrio das pontuações atribuídas, de conformidade com os critérios objetivos postos no instrumento convocatório.
Nessas hipóteses, dever-se-á igualmente observar o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010, que prevê o envio das planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso à comissão permanente ou especial de licitação. Esta é considerada uma condição essencial do julgamento nas licitações de serviços de publicidade, uma vez que a ausência de motivação para as pontuações pode impedir o controle sobre o seu mérito, facilitando eventuais direcionamentos.
Desse modo, as razões das pontuações devem ser registradas por escrito pela subcomissão técnica e encaminhadas à comissão permanente ou especial, quer incida na hipótese regulada pelo inciso VII do artigo 6º, quer não. Veja-se como a exigência de manifestação escrita é expressa na Lei nº 12.232/2010:
Art. 11. Os invólucros com as propostas técnicas e de preços serão entregues à comissão permanente ou especial na data, local e horário determinados no instrumento convocatório. […]
§ 4º O processamento e o julgamento da licitação obedecerão ao seguinte procedimento: […]
V – análise individualizada e julgamento dos quesitos referentes às informações de que trata o art. 8º desta Lei, desclassificando-se as que desatenderem quaisquer das exigências legais ou estabelecidas no instrumento convocatório;
VI – elaboração de ata de julgamento dos quesitos mencionados no inciso V deste artigo e encaminhamento à comissão permanente ou especial, juntamente com as propostas, as planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso.
Ou seja, a subcomissão técnica precisa justificar expressamente os motivos que justificam a atribuição da nota, sob pena de violar diversas regras que regem a atividade administrativa e que permeiam todos os processos de contratação pública, em especial os deveres de motivação dos atos administrativos e do tratamento isonômico, além dos princípios da publicidade e da impessoalidade.
É preciso que os licitantes saibam os motivos que levaram à pontuação dos quesitos quando da análise da sua proposta técnica, caso contrário serão impedidos de, se necessário, exercer o seu direito constitucional de defesa. Neste sentido, encontra-se a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), segundo a qual “a ausência de justificativa escrita acerca das pontuações e das razões que as fundamentam em cada caso, nos procedimentos licitatórios para oferta de serviços de publicidade, afronta o que dispõe o art. 11, § 4º, inciso IV, da Lei 12.232/2010”[3].
Acontece que, não obstante a clareza das determinações legais, nem sempre a subcomissão técnica registra por escrito a justificativa das razões que basearam a avaliação ou a reavaliação de determinada pontuação, descumprindo assim o inciso VII do artigo 6º e/ou o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010. No caso noticiado, pela violação do inciso VII do artigo 6º da referida lei, como salientado, o Tribunal confirmou a necessidade de realizar a sobredita reavaliação e, por unanimidade, dada a ausência de tal procedimento, suspendeu cautelarmente o certame.
A decisão noticiada confirma a competência legítima dos Tribunais de Contas em intervir cautelarmente para evitar irregularidade no curso da licitação pública, assim como o entendimento de que, nas licitações submetidas à Lei Federal nº 12.232/2020, configura ilegalidade a ausência de reavaliação da pontuação concedida a um quesito de um determinado licitante, quando a diferença entre a maior e a menor pontuação, atribuída pelos integrantes da subcomissão técnica, for superior a 20% da pontuação máxima do quesito.
[1] TCDF – Decisão nº 1798/2020, Plenário. Relator: Antônio Renato Alves Rainha. Data de Julgamento: 27/05/2020.
[2] Projeto de Lei nº 3305/2008, Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=391688 Acesso em 29 jun. 2020.
[3] TCU – Acórdão nº 2813/2017, Plenário. Relator: AROLDO CEDRAZ, Data de Julgamento: 06/12/2017.
Read More