Devido ao momento de excepcionalidade no qual nos encontramos, seria possível flexibilizar certas exigências, outrora impreteríveis, em virtude do interesse público?
Covid-19 e a Contratação de Médicos Graduados no Exterior
Victoria Magnani de Oliveira Nogueira[1]
Vive-se, atualmente, momento verdadeiramente atípico. A pandemia da Covid-19 vem revolucionando a vida cotidiana em muitos sentidos, que vão desde mudanças de caráter econômico à própria forma de relacionar-se. Com o mundo jurídico o cenário não poderia ser outro: observa-se que o Judiciário brasileiro vem, cada vez mais, atuando em demandas diretamente relacionadas com os impactos da Covid-19, dentre os mais diversos ramos do direito.
Nesse sentido, surge a controvérsia: devido ao momento de excepcionalidade no qual nos encontramos, seria possível flexibilizar certas exigências, outrora impreteríveis, em virtude do interesse público?
Esse questionamento permeia uma série de discussões jurídicas da atualidade, mas aqui pretende-se analisar uma em específico: a possibilidade de exercício da medicina por médicos graduados no exterior, que não tenham concluído o processo de revalidação de diploma.
Introduzindo a temática, ressalta-se que a demanda por profissionais da área da saúde aumenta a cada dia. Com efeito, o Brasil enfrenta grave crise na gestão da saúde pública, em virtude da pandemia da Covid-19, encontrando-se atualmente em um estado emergencial que ameaça colapsar o sistema de saúde de determinados estados.
A situação é de elevada necessidade, sendo que para suprir o déficit de profissionais da saúde foram adotadas diversas medidas governamentais, como, por exemplo, a Portaria nº 374/2020 do Ministério da Educação, que permitiu a antecipação da colação de grau para alunos dos cursos de Medicina, Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia para atuação nas ações de combate à Covid-19, e vem dividindo opiniões quanto às regras para sua aplicabilidade.
Em razão da pandemia, a necessidade de reposição de profissionais que atuem no combate à Covid-19 tem gerado uma contratação de larga escala no setor da saúde, com vistas a evitar o agravamento da situação de hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs) pela falta de recurso humano, uma vez que grande número desses profissionais encontra-se afastado por ter contraído a doença ou por estar sob suspeita.
As políticas de flexibilização adotadas a fim de agilizar a contratação desses profissionais, contudo, têm enfrentado resistência tanto por parte dos Judiciários locais quanto por parte dos Conselhos Regionais de Medicina, que até o momento apresentaram uma postura combativa em relação a iniciativas que visem permitir o exercício da medicina por médicos graduados no exterior que não se submeteram ao processo de revalidação do diploma.
A esse respeito cumpre trazer à baila a discussão firmada nos autos da Ação Civil Pública nº 5007182-62.2020.4.03.6100, ajuizada pela Defensoria Pública da União em face da União Federal e do Conselho Federal de Medicina (CFM), na qual a DPU buscava impor ao Governo Federal, em caráter excepcional e temporário, que viabilizasse a contratação de brasileiros e estrangeiros habilitados para o exercício da medicina no exterior sem a necessidade de revalidação do diploma emitido no estrangeiro.
O magistrado, acatando manifestação proferida em sede de contestação pelo CFM, aduziu que através do processo de revalidação do diploma de graduação emitido no exterior é possível reduzir o risco de expor pacientes a profissionais sem a devida qualificação, uma vez que tal processo visa verificar a capacidade técnica do profissional em sua formação.
O julgador ressaltou, ainda, que “não obstante os graves efeitos causados pela pandemia do COVID-19 na saúde de milhões de pessoas, não é facultado ao Poder Judiciário substituir-se ao legislador para permitir a contratação de profissionais médicos que não atendam a requisitos legais”.[2]
Outra decisão, esta proferida no âmbito de ação ajuizada pelo estado do Acre contra o Conselho Regional de Medicina (CRM), concedeu liminar que autoriza a emissão de licença provisória para exercício profissional de médicos formados no exterior que ainda não passaram pelo processo de revalidação.
A decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal Cível e Criminal da Seção Judiciária do Acre baseou-se na experiência do Programa Mais Médicos, analisando-o como importante e positivo precedente para a emissão de licença provisória de trabalho para profissionais que tenham diploma de medicina emitido por instituições de ensino estrangeiras, mas que se encontram impossibilitados de atuar profissionalmente em decorrência da não realização do processo de revalidação[3].
Ainda que posteriormente a referida liminar tenha tido seus efeitos suspensos por decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sob o argumento de que não haveria prova inequívoca da verossimilhança da alegação em que se sustenta o direito pleiteado, o simples fato de ter sido proferida decisão nesses termos já configura um precedente digno de nota.
De mais a mais, o que leva o Estado brasileiro a entender que, no âmbito do programa Mais Médicos, um determinado profissional tenha capacidade profissional e técnica para atender a população e, em outro cenário, diante de uma pandemia sem proporções, entender que este mesmo profissional seria inapto?
Evidente que cada caso possui as suas peculiaridades, que podem, eventualmente, levar a um entendimento distinto, contudo, a adoção de uma postura que seja, a priori, contrária a possíveis soluções para a crise que se coloca atualmente se mostra, no mínimo, controversa.
Buscando conferir respaldo a essas soluções, há diversos projetos de lei em tramitação que analisam as possibilidades de que médicos formados no exterior e que ainda não revalidaram seus diplomas no país atuem durante a pandemia da Covid-19.
O Projeto de Lei 2104/20, por exemplo, visa permitir a contratação de médicos brasileiros formados no exterior, que tenham participado do programa Mais Médicos por no mínimo um ano, para atuar em estados, município e hospitais privados enquanto perdurar o estado de calamidade pública decorrente da Covid-19. Além disso, o referido projeto prevê, ainda, a possibilidade de contratação de médicos graduados no exterior que estejam no último semestre da complementação exigida para a revalidação de diploma[4].
Outro projeto que se encontra em tramitação é o Projeto de Lei 2052/20, cujo texto prevê a contratação temporária, por órgãos de saúde públicos e privados, de médicos brasileiros formados no exterior que não prestaram o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira (Revalida).
Segundo o projeto, os profissionais contratados sob essas condições deverão atuar no combate à Covid-19 como auxiliares, sob a coordenação e supervisão de médico chefe de equipe. O texto destaca ainda que a atuação desses profissionais se dará na atenção básica à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), durante o estado de calamidade pública, e o contrato em questão não poderá exceder dois anos[5].
Ressalta-se que, em virtude da contemporaneidade do assunto que aqui se traz, uma vez que se trata de situação relativamente recente e ainda em desenvolvimento, não há jurisprudência pacificada e os impactos e consequências de qualquer decisão proferida nesse âmbito ainda hão de ser mensurados.
Outro ponto interessante que merece reflexão diz respeito à eventual possibilidade de obrigar as instituições de ensino a acelerarem os processos de revalidação de diplomas expedidos no exterior, nos termos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei nº 9.394/96), que dispõe, em seu art. 48, § 2º, que o diploma de graduação emitido no exterior, para que tenha validade nacional, deve ser revalidado por universidade brasileira pública, regularmente credenciada e mantida pelo Poder Público, que tenha curso reconhecido do mesmo nível e área ou equivalente.
Destaca-se que a Portaria Normativa do Ministério da Educação nº 22/2016, que estabelece as normas e procedimentos gerais de tramitação dos processos de revalidação de diplomas de graduação estrangeiros, confere ampla autonomia às instituições revalidadoras, que são responsáveis pela elaboração de seus próprios editais de revalidação.
Quanto a essa possibilidade, verifica-se que essa se consubstancia em um binômio: por um lado, a preservação da autonomia universitária, compreendida nessa a discricionariedade das instituições de ensino no que diz respeito ao processo de revalidação de diploma estrangeiro; e por outro a preservação do interesse público, e a consequente possibilidade de interferência judicial no processo de revalidação.
Apesar de haver entendimentos recentes no sentido de que não é viável interferir judicialmente no processo de revalidação sem que haja violação à autonomia universitária, é possível que, devido ao fato de estarmos vivendo um momento excepcional com a pandemia da Covid-19, o interesse público envolvido na crescente demanda por profissionais da saúde predomine sobre a preservação da autonomia universitária.
Ademais, vislumbra-se a possibilidade de que, ante o estado de escassez de profissionais da saúde atuando no combate à Covid-19, uma alternativa que preze pelo interesse público seja considerada medida mais adequada do que o estrito cumprimento das exigências previstas para o processo de revalidação de diplomas de graduação em medicina expedidos por universidades estrangeiras.
A discussão que ora se trava versa, sobretudo, sobre a resposta ao seguinte questionamento: é melhor ser atendido por um profissional cuja formação foi concluída em país estrangeiro, de acordo com as exigências deste, ou conformar-se com nenhum atendimento?
Diante do cenário incerto que se coloca, cabe ao Direito responder satisfatoriamente às demandas que surgem da prática experienciada no contexto de pandemia, de forma a garantir a implementação das medidas adequadas para que o combate à Covid-19 seja o mais eficaz possível.
[1] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente cursando a oitava fase. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET Direito UFSC de 2017 a 2019, e atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica no campo do Direito Ambiental do Trabalho como bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC.
[2] http://portal.cfm.org.br/images/PDF/decisaorevalida14052020.pdf
[3] http://ajufe.org.br/images/pdf/Decisa%CC%83o_Covid19_me%CC%81dicos_sem_revalida_Acre.pdf
[4] https://www.camara.leg.br/noticias/656726-PROJETO-PERMITE-CONTRATACAO-DE-MEDICOS-BRASILEIROS-FORMADOS-NO-EXTERIOR-SEM-REVALIDA-DURANTE-PANDEMIA
[5] https://www.camara.leg.br/noticias/656636-PROJETO-PERMITE-ATUACAO,-DURANTE-PANDEMIA,-DE-MEDICO-BRASILEIRO-FORMADO-NO-EXTERIOR-SEM-REVALIDA
Read MoreO principal questionamento veio por intermédio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas no STF, nas quais se argumentou que a MP poderia significar uma espécie de salvo-conduto aos agentes públicos.
STF encerra polêmica sobre a MP nº 966/2020
Fernando Coelho[1]
A recente Medida Provisória nº 966/2020, editada no último dia 13 de maio, suscitou muita discussão ao tratar do tema da responsabilização dos agentes públicos no contexto das medidas de combate aos efeitos da pandemia da Covid-19. Um dos primeiros questionamentos suscitados pela MP é como ela se relaciona com as normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro que tratam do tema, bem como a sua necessidade e constitucionalidade.
A MP nº 966/2020 estabelece que a responsabilização civil e administrativa dos agentes públicos é possível somente se a sua ação ou omissão, no enfrentamento às emergências sanitárias e no combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da Covid-19, se derem por dolo ou erro grosseiro (art. 1º), eximindo da responsabilidade o agente público que tiver agido (ou deixado de agir) com base em opinião técnica alheia se não estiverem presentes elementos suficientes para que ele pudesse aferir o dolo ou o erro grosseiro dessa opinião técnica, ou se houve conluio entre os agentes (art. 1º, § 1º, I-II). Além disso, no § 2º, dispõe-se que a responsabilidade civil em caso de resultado danoso não recai sobre o agente público.
Finalmente, a MP define erro grosseiro como “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” (art. 2º), que deve ser aferido considerando-se: i) os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; ii) a complexidade da matéria e das atribuições do agente; iii) a incompletude das informações; iv) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e v) o contexto da incerteza das medidas mais adequadas no contexto e suas consequências inclusive econômicas (art. 3º).
Entretanto, se comparada aos artigos 22 e 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (os artigos 20 a 30 foram inseridos pela Lei nº 13.655/2018) e ao artigo 12 do Decreto nº 9.830/2019, que tratam do tema da responsabilização dos agentes públicos, a MP nº 966/2020, apesar de ter sido concebida no contexto do enfrentamento dos efeitos da pandemia da Covid-19, parece ter trazido bem pouca novidade. Para uma melhor comparação, apresentamos no quadro abaixo os dispositivos da MP ao lado dos artigos análogos da LINDB e do Decreto nº 9.830/2019:
Após cotejamento, verifica-se que as novidades dispositivas se resumem às seguintes:
a) O caput do art. 1º da MP é mais explícito e mais genérico. Refere-se aos agentes públicos nas suas ações ou omissões, e não às suas decisões ou opiniões técnicas, além de mencionar que a responsabilização se dará nas esferas civil e administrativa. Além disso, dispõe que a responsabilização é devida somente se se configurar erro grosseiro ou dolo na prática de atos no contexto da pandemia da Covid-19;
b) O art. 3º elenca mais fatores, além dos já existentes, a serem considerados para a aferição do erro grosseiro: i) os obstáculos e as dificuldades reais do agente público, as circunstâncias de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; ii) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; iii) e o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.
Contudo, no que diz respeito àqueles dispositivos da MP e do Decreto nº 9.830/2019 que são análogos, a sua positivação em forma de lei, que se verificará caso o Congresso aprove o texto da MP, trará maior segurança jurídica aos agentes públicos interessados. Afora a maior legitimidade de um texto aprovado pelo Poder Legislativo e a sua capacidade de inovar o ordenamento, criando direitos antes inexistentes, a consagração desses elementos em lei nacional abrange expressamente os demais entes federados, não se restringindo à União Federal. Além disso, na esteira do que já escreveu Gustavo Schiefler, “novas leis que estabelecem novos institutos são seguidas frequentemente de um sem número de obras doutrinárias e da ampla divulgação pelos meios de comunicação”[2].
Embora a Medida Provisória nº 966/2020 não tenha uma carga significativa de inovação normativa, pois, como visto, se caracteriza como um detalhamento maior de regras preexistentes, a sua publicação em um período sensível como o pandêmico trouxe questionamentos por parte da sociedade.
O principal questionamento veio por intermédio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade[3] ajuizadas no STF por partidos políticos e pela Associação Brasileira de Imprensa, nas quais se argumentou que a MP poderia significar uma espécie de salvo-conduto, anistiando os agentes públicos por quaisquer ações ou omissões relacionadas direta ou indiretamente com a pandemia de Covid-19 que não fossem caracterizadas por dolo ou erro grosseiro.
No julgamento das ADIs, o plenário do STF decidiu no dia 21/05/2020 que a MP nº 966/2020 é constitucional, salvaguardando assim as disposições análogas da LINDB e do Decreto nº 9.830/2019, e firmou as duas seguintes teses.
Em primeiro lugar, o erro grosseiro no âmbito da MP consiste na violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou nos impactos adversos à economia, quando resultarem da inobservância de normas e critérios técnicos ou dos princípios constitucionais da precaução ou da prevenção. Em segundo lugar, a autoridade incumbida de decidir, sob pena de se tornar corresponsável por eventuais violações a direitos, deve exigir que as opiniões técnicas que utilizará como base para a sua decisão tratem expressamente “(i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.”
[1] Doutor em Estudos da Tradução (PPGET/UFSC/2018) com tese sobre a tradução do direito romano (Digesto de Justiniano). Estágio de pós-doutorado na Universidade Sorbonne (Paris, 2019). Mestre em Estudos da Tradução. Bacharel e licenciado em Filosofia (UFSC/2005). Licenciado em Letras/Francês (UFSC/2008). Bacharel em Letras/Italiano (UFSC/2014). Atualmente graduando matriculado na 6ª fase de Direito (UFSC, 2017-), tendo realizado intercâmbio no Universidade Nanterre (Paris X) no segundo semestre de 2019.
[2] SCHIEFLER, Gustavo H. C. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): Solicitação e Apresentação de Estudos e Projetos para a Estruturação de Concessões Comuns e Parcerias Público-Privadas. Tese de Doutorado. UFSC, Florianópolis, 2013.
[3] São sete ações: ADIs: 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431.
Read MoreSe houver previsão em lei e no edital, se o edital prevê critérios objetivos para avaliação e se houver possibilidade de revisão/recurso da conclusão a ser obtida no teste, a submissão dos candidatos ao teste psicotécnico pode ser exigida, desde que respeitados os princípios que regem a atividade administrativa.
Quais os critérios para aplicação de exame psicotécnico em concursos públicos?
As carreiras públicas são, frequentemente, objeto de interesse de uma parcela considerável da população brasileira. Além da boa remuneração, a estabilidade e as boas condições de aposentadoria podem ser ativos bastante atrativos para as mais diversas profissões.
Por questões constitucionais, o ingresso em cargos públicos está condicionado à aprovação em uma série de provas e avaliações – os famosos concursos públicos. Dentre as diversas etapas que podem compor estes certames, encontram-se, tradicionalmente, a prova objetiva ou discursiva, a avaliação de títulos e o teste psicotécnico.
Entretanto, existe um importante fato sobre o teste psicotécnico que é desconhecido para muitos: o psicotécnico só pode ser exigido se houver previsão em lei condicionando o cargo pretendido à realização desse teste. Ou seja, o psicotécnico só pode ser exigido para cargos em que a lei determina a sua necessidade, de forma que não é aplicável a todos os cargos.
Além disso, a validade desta etapa, quando o teste psicotécnico é exigido, está condicionada ao estabelecimento de critérios objetivos, claros e racionais previstos no edital do certame. Não basta que a lei preveja a submissão dos candidatos ao teste psicotécnico. É preciso que o edital, com base na legislação, preveja critérios objetivos e pertinentes para a realização do teste, a fim de evitar que candidatos sejam eliminados do concurso público de forma arbitrária e desmotivada.
E mais: além da necessidade de haver (i) previsão legal e (ii) critérios objetivos, para que a avaliação psicotécnica seja válida, também é necessário (iii) prover ao candidato a oportunidade de recorrer de eventual conclusão obtida no teste.
Este é o entendimento recorrente nos Tribunais brasileiros. Confira-se julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que entendeu pela necessidade de previsão legal e de critérios objetivos para que a submissão de candidato a exame psicotécnico seja válida:
ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CIVEL. CONCURSO PÚBLICO. DELEGADO DA POLÍCIA FEDERAL. EXAME PSICOTÉCNICO. AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA. EXIGÊNCIA DE PERFIL PROFISSIOGRÁFICO PARA O CARGO. NECESSIDADE DE PREVISÃO LEGAL E DE CRITÉRIOS OBJETIVOS. LAUDO PERICIAL REALIZADO EM JUÍZO. APTIDÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. REPERCUSSÃO GERAL. INCABÍVEL. MANUTENÇÃO DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA AFASTADA.
1. Nos termos da atualizada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a legalidade do exame psicotécnico em provas de concurso público está submetida (a) à previsão legal, (b) à objetividade dos critérios adotados e (c) à possibilidade de revisão do resultado obtido pelo candidato. Portanto, além de ter previsão legal e possibilidade de revisão, o exame deverá ser pautado em critérios objetivos, e não critérios genéricos e subjetivos, como no caso.
2. Não é possível a realização de psicotécnico com a finalidade de verificar a adequação do candidato a ‘perfil profissiográfico’ considerado ideal pela Administração, mas não previsto em lei e expresso no edital de abertura, por violação ao princípio da publicidade. Precedentes. […]
(TRF-4 – AC: 50013400320144047000 PR 5001340-03.2014.4.04.7000, Relator: MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, Data de Julgamento: 14/02/2019, VICE-PRESIDÊNCIA)
Ademais, é oportuno salientar que, considerando não ser a psicologia uma ciência exata, a subjetividade é componente essencial e indissociável dela. No entanto, isso não significa que a Administração possui liberdade para, a seu bel prazer, eliminar candidatos de forma subjetiva durante a fase de exame psicotécnico.
Se é verdade que a subjetividade não macula a validade dos testes psicotécnicos, o entendimento majoritário é de que, desde que respeitados os princípios da publicidade e da igualdade – ou seja, se houver previsão na lei e no edital, além de definição de metodologia predefinida que garanta a isonomia – não há ilegalidade. Confira-se mais um precedente:
DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. CONCURSO PÚBLICO. EXAME PSICOLÓGICO. PREVISÃO NO EDITAL DO CERTAME E NA LEI. REPROVAÇÃO. POSSIBILIDADE. Ação proposta por participante de concurso para provimento de cargo de soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro eliminado no teste psicológico. Sentença de improcedência. Apelo da autora.
1. Nada inquina teste psicológico o fato de ser subjetivo, já que a psicologia, voltando-se para a psique do indivíduo e da pessoa, não é ciência exata, sendo, aliás, por natureza a do subjetivismo.
2. O ordenamento jurídico autoriza a realização do exame psicotécnico como condição de ingresso em determinados concursos públicos, desde que previsto no edital e em lei, atendendo, ainda, a realização do aludido exame a critérios metodológicos objetivos e previamente determinados.
3. Ademais, não havendo indícios de que a Administração Pública feriu os princípios da igualdade, da moralidade administrativa e da razoabilidade, prover o pleito implicaria intolerável interferência judicial na discricionariedade administrativa.
4. Recurso de apelação ao qual se nega seguimento, na forma do art. 557, caput, do CPC.
(TJRJ, Apelação Cível nº 0334274-60.2010.8.19.0001, Des(a). FERNANDO FOCH DE LEMOS ARIGONY DA SILVA – Julgamento: 30/06/2015 – TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)
Da leitura das decisões judiciais transcritas acima, é de se observar que o Poder Judiciário evita interferir na discricionariedade administrativa, se verificar que a avaliação psicotécnica dos candidatos respeitou os ditames legais, mais especificamente os princípios da igualdade, da moralidade administrativa, da razoabilidade e da publicidade.
Portanto, depreende-se da jurisprudência que, se houver previsão em lei e no edital, se o edital prevê critérios objetivos para avaliação e se houver possibilidade de revisão/recurso da conclusão a ser obtida no teste, a submissão dos candidatos ao teste psicotécnico pode ser exigida, desde que respeitados os princípios que regem a atividade administrativa.
Em caso de violação de violação desses princípios ou regras jurídicas, o Poder Judiciário possui legitimidade para anular a eliminação de candidato indevidamente prejudicado nesta fase do concurso.
Read MoreCaso o procedimento administrativo sancionatório (sindicância ou processo disciplinar) não seja instaurado e finalizado em tempo hábil, a Administração perderá o direito de punir o servidor ou empregado público.
A Administração Pública pode perder o direito de aplicar uma penalidade administrativa a servidor ou empregado público em razão da demora em fazê-lo desde a descoberta dos fatos que justificariam esta sanção. Esta perda do direito de punir em razão do lapso temporal para aplicar a penalidade é denominada prescrição[1].
Em linhas gerais, a prescrição é um instituto jurídico que possui origem vinculada ao princípio da segurança jurídica, sendo que o seu objetivo é reconhecer estabilidade à relação funcional entre o agente público e a Administração em virtude do decurso do tempo.
Para o que interessa à questão desta nota, verifica-se que o instituto da prescrição possui plena aplicabilidade aos Processos Administrativos Disciplinares (PADs). Inclusive, a incidência da prescrição está expressamente prevista no artigo 142 da Lei Federal nº 8.112/1990, que disciplina o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
Leia-se o que dispõe o referido artigo:
Art. 142. A ação disciplinar prescreverá:
I – em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;
II – em 2 (dois) anos, quanto à suspensão;
III – em 180 (cento e oitenta) dias, quanto à advertência.
§ 1º O prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido.
§ 2º Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime.
§ 3º A abertura de sindicância ou a instauração de processo disciplinar interrompe a prescrição, até a decisão final proferida por autoridade competente.
§ 4º Interrompido o curso da prescrição, o prazo começará a correr a partir do dia em que cessar a interrupção.
As regras estabelecidas no artigo 142 da Lei Federal nº 8.112/1990 são claras, mas, na prática, insuficientes para responder a todas as questões que surgem sobre a aplicabilidade da prescrição aos Processos Administrativos Disciplinares (PADs).
Por exemplo: (i) O prazo da prescrição começa a correr desde que se tornou conhecido por quem? Por qualquer outro servidor público? Pela autoridade competente para aplicar a sanção? (ii) Há um prazo máximo para que seja promovido o reinício do prazo prescricional após a interrupção prevista no § 3º do artigo 142 da Lei Federal nº 8.112/1990? Ou a demora da Administração Pública em finalizar a sindicância ou processo disciplinar mantém indefinidamente a interrupção e impede a possibilidade de se reconhecer a prescrição?
A jurisprudência nacional recentemente estabilizou as respostas a essas questões práticas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) elaborou uma súmula sobre o assunto. Trata-se da Súmula nº 635, aprovada em junho de 2019 pela 1ª Turma da Corte Superior, que é responsável por julgar os processos com matéria de direito público. A súmula possui a seguinte redação:
Súmula nº 635 – STJ
Os prazos prescricionais previstos no art. 142 da Lei n. 8.112/1990 iniciam-se na data em que a autoridade competente para a abertura do procedimento administrativo toma conhecimento do fato, interrompem-se com o primeiro ato de instauração válido – sindicância de caráter punitivo ou processo disciplinar – e voltam a fluir por inteiro, após decorridos 140 dias desde a interrupção.
De acordo com a Súmula 635 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), portanto, o prazo prescricional inicia-se quando a autoridade competente para a abertura do procedimento administrativo toma conhecimento do fato. Destaque-se que o início da contagem do prazo prescricional não exige que a autoridade competente para aplicar a sanção tome conhecimento do fato, apenas que este fato seja de conhecimento da autoridade competente para abrir o procedimento administrativo sancionatório.
Além disso, estabeleceu-se a regra de que, com a abertura do processo sancionatório, o decurso do prazo prescricional deve ser necessariamente reiniciado após 140 dias. Ou seja, a interrupção não pode ocorrer por tempo indefinido.
O retorno da fluência do prazo, por inteiro, após os 140 dias desde a instauração ocorre em razão de que “esse seria o prazo legal para término do processo disciplinar (§ 4º do art. 142 c/c arts. 152 e 167)”[2], também nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Note-se que este entendimento encontra-se sumulado precisamente porque reverbera uma jurisprudência consolidada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como se verifica do seguinte julgado:
MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL. CONHECIMENTO DOS FATOS PELA ADMINISTRAÇÃO, MAS NÃO PELA AUTORIDADE COMPETENTE PARA APURAR AINFRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL PREVISTO NO CPB, POR INEXISTÊNCIA DE AÇÃO PENAL E CONDENAÇÃO EM DESFAVOR DO IMPETRANTE. APLICAÇÃO DO PRAZO QUINQUENAL PREVISTO NA LEGISLAÇÃO ADMINISTRATIVA (ART. 142 DA LEI 8.112/90). INSTAURAÇÃO DE PAD. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. REINÍCIO APÓS 140 DIAS. TRANSCURSO DE MAIS DE 5 ANOS. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. ORDEM CONCEDIDA, EM CONSONÂNCIA COM O PARECER MINISTERIAL.
1. O excepcional poder-dever de a Administração punir a falta cometida por seus Servidores não se desenvolve ou efetiva de modo absoluto, de sorte que encontra limite temporal no princípio da segurança jurídica, de hierarquia constitucional, uma vez que os administrados não podem ficar indefinidamente sujeitos à instabilidade originada da potestade disciplinar do Estado, além de que o acentuado lapso temporal transcorrido entre o cometimento da infração e a aplicação da respectiva sanção esvazia a razão de ser da responsabilização do Servidor supostamente transgressor.
2. O art. 142, I da Lei 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos da União) funda-se na importância da segurança jurídica no domínio do Direito Público, instituindo o princípio da inevitável prescritibilidade das sanções disciplinares, prevendo o prazo de cinco anos para o Poder Público exercer o jus puniendi na seara administrativa, quanto à sanção de demissão.
3. A Terceira Seção desta Corte pacificou o entendimento de que o termo inicial do prazo prescricional da Ação Disciplinar é a data em que o fato se tornou conhecido pela Administração, mas não necessariamente pela autoridade competente para a instauração do Processo Administrativo Disciplinar (art. 142, § 1o. da Lei 8.112/90). Precedente: MS 11.974/DF, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJU07.05.2007.
4. Qualquer autoridade administrativa que tiver ciência da ocorrência de infração no Serviço Público tem o dever de proceder à apuração do ilícito ou comunicar imediatamente à autoridade competente para promovê-la, sob pena de incidir no delito de condescendência criminosa (art. 143 da Lei 8.112/90); considera-se autoridade, para os efeitos dessa orientação, somente quem estiver investido de poder decisório na estrutura administrativa, ou seja, o integrante da hierarquia superior da Administração Pública. Ressalvado ponto de vista do relator quanto à essa exigência.
5. Ainda que o ilícito administrativo configure, em tese, ilícito penal, não havendo a formalização de denúncia contra o Servidor, aplica-se o prazo prescricional previsto na Lei 8.112/90 à sancionabilidade administrativa; a eventual presença de indícios de crime, sem a devida imputação, afasta a aplicação da norma penal no cômputo da prescrição (RMS 20.337/PR, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJU07.12.2009), o mesmo ocorrendo no caso de o Servidor ser absolvido na Ação Penal (MS 12.090/DF, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJU21.05.2007); não seria razoável aplicar-se à prescrição da punibilidade administrativa o prazo prescricional da sanção penal, se sequer se deflagrou a iniciativa criminal, sendo incerto, portanto, o tipo em que o Servidor seria incurso, bem como a pena que lhe seria imposta, o que inviabiliza a apuração da respectiva prescrição.
6. Neste caso, entre o conhecimento dos fatos pela Administração e a instauração do primeiro Processo Disciplinar transcorreu pouco menos de 1 ano, não havendo falar em prescrição retroativa. Contudo, o primeiro procedimento válido teve início em 26 de agosto de 2002, pelo que a prescrição voltou a correr em 25 de dezembro de 2002, data em que findou o prazo de 140 dias para conclusão do PAD. Desde essa data, passaram-se mais de 5 anos até a edição da Portaria Conjunta AGU/MPS/PGR 18, de 25 de agosto de 2008, que designou nova Comissão de Processo Administrativo Disciplinar para apurar irregularidades referentes ao convênio objeto de apuração.
7. A prescrição tem o condão de eliminar qualquer possibilidade de punição do Servidor pelos fatos apurados, inclusive futuras anotações funcionais em seus assentamentos, já que, extinta a punibilidade, não há como subsistir qualquer efeito reflexo.
8. Ordem concedida, em conformidade com o parecer ministerial.[3] [grifo acrescido]
Dessa sorte, caso o procedimento administrativo sancionatório (sindicância ou processo disciplinar) não seja instaurado e finalizado em tempo hábil, a Administração perderá o direito de punir o servidor ou empregado público.
Em atenção à questão que intitula esta nota, portanto, responde-se que as diretrizes para a contagem dos prazos prescricionais em Processos Administrativos Disciplinares (PADs) seguem atualmente as regras indicadas no artigo 142 da Lei Federal nº 8.112/1990 e a interpretação conferida pela Súmula nº 635 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Gustavo Schiefler – Advogado no escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
[1] A título de esclarecimento, a prescrição no âmbito das sanções administrativas não se confunde com a prescrição na teoria geral do direito civil, prevista no artigo 189 do Código Civil, que se refere à perda da pretensão de exigir a reparação de um direito violado em razão da inércia de seu titular. A rigor, a prescrição prevista na Lei Federal nº 8.112/1990 se assemelha até mesmo ao instituto denominado por decadência no direito civil, uma vez que também ocorre a própria perda do direito (no caso, de exercer o poder-dever de punir o indivíduo), distanciando-se conceitualmente da decadência apenas em razão de que, na prescrição da sanção administrativa, admite-se a interrupção e a suspensão do prazo.
[2] STJ – MS: 17954 DF 2011/0302495-0, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 26/02/2014, S1 – PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 19/03/2014
[3] STJ – MS: 14391 DF 2009/0107475-0, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 24/08/2011, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 10/02/2012
Read MoreO candidato foi considerado inapto na fase de avaliação médica com base nas “condições incapacitantes gerais”, dispostas no edital de concurso público.
O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia acolheu, em decisão liminar, os argumentos apresentados pelo escritório Schiefler Advocacia, reconhecendo a ilegalidade da reprovação de candidato daltônico no concurso público para o cargo de Investigador de Polícia do Estado da Bahia.
O candidato foi considerado inapto na fase de avaliação médica com base nas “condições incapacitantes gerais”, dispostas no edital de concurso público. Não havia, no entanto, qualquer indicativo específico de que daltonismo seria considerado um fator impeditivo para o exercício do cargo.
Diante disso, a desembargadora relatora, ao acolher o pedido, reconheceu que “o instrumento editalício não traz o daltonismo especificado como causa para exclusão do certame, contrariamente à justificativa apresentada pelas autoridades coatoras para excluí-lo do concurso público”.
Além disso, a decisão judicial se fundamentou no fato de que não havia indicação de que qualquer função típica do cargo, dentre as especificadas no edital, não poderia ser exercida adequadamente pelo candidato em razão do daltonismo. Foi constatado, também, que o candidato possui Carteira Nacional de Habilitação (CNH) sem qualquer tipo de restrição e que faz uso de óculos corretivos de tons, o que viabiliza a percepção das diferentes tonalidades – “corrigindo” os efeitos do daltonismo.
Deste modo, concluiu que a reprovação do candidato foi ilegal, razão pela qual os efeitos da decisão administrativa foram suspensos. Assim, determinou que fosse viabilizada a participação do candidato em todas as demais fases do concurso público – inclusive aquelas que já haviam sido realizadas sem sua participação, como o Teste de Aptidão Física.
Read MoreO único requisito para a licença é o deslocamento do cônjuge e, para fins de exercício provisório, a sua possibilidade na instituição de destino.
Não são raras as vezes em que o cônjuge[1] ou companheiro de um servidor público é deslocado para trabalhar em outro local. Seja ele servidor público ou da iniciativa privada, é comum e natural que isso ocorra, a pedido ou de ofício (no interesse da Administração ou do empregador).
Nessas situações, o servidor público federal cujo cônjuge tenha sido deslocado possui direitos que podem ser requeridos perante a Administração Pública, tais como a remoção para acompanhamento de cônjuge ou a licença por motivo de afastamento de cônjuge, sendo este último o objeto deste texto.
O direito à licença por motivo de afastamento do cônjuge está previsto no artigo 84 da Lei Federal nº 8.112/1990 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais):
Art. 84. Poderá ser concedida licença ao servidor para acompanhar cônjuge ou companheiro que foi deslocado para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o exercício de mandato eletivo dos Poderes Executivo e Legislativo.
§ 1º A licença será por prazo indeterminado e sem remuneração.
§ 2º No deslocamento de servidor cujo cônjuge ou companheiro também seja servidor público, civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, poderá haver exercício provisório em órgão ou entidade da Administração Federal direta, autárquica ou fundacional, desde que para o exercício de atividade compatível com o seu cargo. [Grifou-se]
Em regra, esta espécie de licença (por motivo de afastamento do cônjuge) é sem remuneração e por prazo indeterminado. Ou seja, permite-se ao servidor público que acompanhe o seu cônjuge, mas ele não receberá nada durante o período em que estiver licenciado. Para que um servidor possa se licenciar, sem remuneração, basta que o seu cônjuge tenha sido deslocado para outro ponto do território nacional.
Por sua vez, o § 2º do artigo 84 da Lei Federal nº 8.112/1990 estabelece uma exceção à regra, qual seja, o da possibilidade de este servidor exercer provisoriamente as funções do seu cargo. Nessa hipótese, o servidor obtém o melhor dos dois mundos: a licença para acompanhar o seu cônjuge e, além disso, continua trabalhando e recebendo por isso.
Acontece que a licença remunerada não é automática. O servidor público precisa preencher três requisitos:
a) O cônjuge deslocado deve ser necessariamente um servidor público municipal, estadual ou federal, de qualquer dos Poderes;
b) O cônjuge precisa ter sido deslocado para outro ponto do território nacional;
c) Deve ser possível, no órgão de destino, o exercício de atividade compatível com a função anteriormente desenvolvida no órgão de origem.
Estes são as exigências dispostas na Lei Federal nº 8.112/1990 para que um servidor público federal possa se licenciar, com remuneração, para acompanhar o seu cônjuge deslocado. Nada mais, nada menos.
Se o servidor público atende esses requisitos, ele possui direito subjetivo à licença, não podendo a Administração se negar a concedê-la. A concessão da licença remunerada se transforma em ato administrativo vinculado (não discricionário).
Registra-se que a legislação não exige que haja coabitação prévia, ou seja, que o servidor público e o seu cônjuge vivessem juntos quando do deslocamento. Além disso, também não há que se diferenciar o deslocamento a pedido ou de ofício: ainda que o cônjuge tenha pleiteado o seu deslocamento para a Administração Pública, o servidor possui direito à licença e à remuneração, desde que atenda aos três requisitos.
Esta é a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão responsável por uniformizar os entendimentos judiciais de todo o Brasil. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. LICENÇA PARA ACOMPANHAMENTO DE CÔNJUGE. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO ART. 1.022 DO CPC/2015. INEXISTÊNCIA. ACÓRDÃO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. […]
IV – No mérito, verifica-se que o acórdão ora recorrido encontra-se em consonância com o entendimento pacífico desta Corte Superior no sentido de que, para caracterizar o direito subjetivo do servidor à licença prevista no art. 84, § 2º, da Lei n. 8.112/90, basta o requisito do deslocamento de seu cônjuge.
V – Constata-se pelo acórdão recorrido que foi reconhecido o atendimento ao requisito necessário à concessão da licença pleiteada, pois a norma de regência não exige a contemporaneidade do pedido, ou que ambos os cônjuges residam na mesma localidade e, se o legislador não condicionou a concessão da licença a tais requisitos, não cabe ao intérprete fazê-lo. Neste sentido: AgInt no REsp 1565070/MS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/03/2017, DJe 13/03/2017; AgRg no REsp 1243276/PR, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 08/02/2013.
VI – Agravo interno improvido. [Grifou-se]
(STJ, AgInt no REsp 1660771/RS, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/03/2018)
Repita-se: o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não exige a coabitação prévia nos casos de licença com exercício provisório. O único requisito para a licença é o deslocamento do cônjuge e, para fins de exercício provisório, a sua possibilidade na instituição de destino:
[…] SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. EXERCÍCIO PROVISÓRIO EM LOCALIDADE DIVERSA DE SUA LOTAÇÃO. ART. 84, CAPUT, E § 2º, DA LEI 8.112/90. REQUISITOS. PREENCHIMENTO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. Dispõe o art. 84, caput, da Lei 8.112/90 que “Poderá ser concedida licença ao servidor para acompanhar cônjuge ou companheiro que foi deslocado para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o exercício de mandato eletivo dos Poderes Executivo e Legislativo”. Seu parágrafo segundo, por sua vez, estabelece que, “No deslocamento de servidor cujo cônjuge ou companheiro também seja servidor público, civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, poderá haver exercício provisório em órgão ou entidade da Administração Federal direta, autárquica ou fundacional, desde que para o exercício de atividade compatível com o seu cargo”.
2. O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o referido dispositivo legal, firmou a conclusão no sentido de que ele não dispõe acerca de um mero poder discricionário da Administração, e sim de direito subjetivo do servidor público, desde que preenchidos os requisitos legais pertinentes. Nesse sentido: AgRg no REsp 1.217.201/SC, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, DJe 25/4/11.
3. “Se a norma não distingue a forma de deslocamento do cônjuge do servidor para ensejar a licença, se a pedido ou por interesse da Administração, não cabe ao intérprete fazê-la, sendo de rigor a aplicação da máxima inclusio unius alterius exclusio” (AgRg no REsp 1.195.954/DF, Rel. Min. CASTRO MEIRA, Segunda Turma, DJe 30/8/11.
4. Também é irrelevante perquirir qual o eventual impacto que a ausência do autor ocasionaria ao seu órgão de origem, tendo em vista que, não bastasse se tratar de critério não elencado no art. 84, § 2º, da Lei 8.112/90, a própria Administração deferiu em parte o pedido administrativo por ele formulado, concedendo-lhe licença não remunerada.
5. Da mesma forma, não há no art. 84, § 2º, da Lei 8.112/90, nenhuma menção à necessidade de existência de cargos vagos no órgão de destino, mas apenas que o servidor exerça atividades compatíveis com seu cargo efetivo.
6. Agravo regimental improvido.
(STJ, AgRg no REsp 1283748/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/02/2013).
Em síntese, para que um servidor público federal tenha direito à licença sem remuneração, por motivo de afastamento de cônjuge, basta que o seu cônjuge tenha sido deslocado, independentemente de ser servidor público.
No que diz respeito à licença remunerada, com exercício provisório, o servidor público passa a ter direito de acompanhar o seu cônjuge e perceber remuneração se este também for servidor público e se, no órgão de destino, for possível exercer atribuições compatíveis com o cargo que ocupa, não havendo que se falar sequer em existência de vaga, uma vez que se trata de ato vinculado da Administração, a qual não possui discricionariedade de entender de modo diverso.
Portanto, se o seu cônjuge for deslocado para outro local, fique tranquilo. Você pode requerer à Administração Pública a sua licença para acompanhá-lo, com ou sem remuneração.
Eduardo Schiefler – Advogado no escritório Schiefler Advocacia, com atuação específica na área de Direito Administrativo. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.UnB). Colaborador do Portal Jurídico Investidura (PJI). Colaborador da Loja.Legal. Autor de artigos acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia.
[1] Para facilitar a leitura deste texto, o termo “cônjuge” será utilizado como sinônimo de “esposa/marido” e “companheiro/companheira”.
Read MoreO deferimento do direito à remoção, prevista no inciso III do art. 36 da Lei n. 8.112/1990, não impõe como requisito indispensável a coabitação entre os cônjuges.
A primeira turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, em agravo regimental em recurso especial, que a coabitação dos cônjuges agentes públicos, no momento em que um deles é deslocado no interesse da Administração, é irrelevante para o reconhecimento do direito de remoção para acompanhamento, requerido com fundamento na alínea a do inciso III do art. 36 da Lei Federal nº 8.112/1998. A decisão foi assim ementada:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. REMOÇÃO. COABITAÇÃO ENTRE OS CÔNJUGES. REQUISITO DISPENSÁVEL. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. 1. O acórdão recorrido encontra-se em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, no sentido de que o deferimento do direito à remoção, prevista no inciso III do art. 36 da Lei n. 8.112/1990, não impõe como requisito indispensável a coabitação entre os cônjuges. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento.1
Este precedente é importante na consolidação da jurisprudência e pacificação deste entendimento. Isso porque há relativa divergência nas decisões prolatadas por tribunais instados a se pronunciar sobre a questão.
Parte dos precedentes adota o entendimento de que uma interpretação teleológica do dispositivo normativo levaria à necessidade da existência do rompimento do vínculo familiar, que se manifestaria no fato de o deslocamento ter resultado no afastamento de cônjuges que coabitavam.
Outra parte, seguindo a jurisprudência do STJ, baseia seu entendimento no fato de que o dispositivo se refere a ato administrativo vinculado, e os requisitos para sua prática estão prévia e taxativamente definidos em lei. Neste caso, os requisitos são três: (i) existência de um vínculo matrimonial, ou equivalente, (ii) ambos os cônjuges serem agentes públicos e o (iii) deslocamento do cônjuge ter sido realizado no interesse da Administração. Como a lei não estabeleceu exigência de coabitação do casal no momento em que se expediu a ordem para deslocamento, não cabe ao agente público que acrescente este quesito no momento da análise da requisição do cônjuge que pretende acompanhar. Deste modo, estando preenchidos estes três requisitos, e apenas eles, é obrigatório o reconhecimento do direito do requerente para acompanhar seu cônjuge.
Com o recente julgamento, espera-se que a Administração Pública Federal reconheça o entendimento do STJ e passe a adotá-lo em suas decisões administrativas, reduzindo a litigiosidade entre servidores públicos e a União.
1. STJ, AgInt no REsp 1603404/PR, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/02/2018.
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