Devido ao momento de excepcionalidade no qual nos encontramos, seria possível flexibilizar certas exigências, outrora impreteríveis, em virtude do interesse público?
Covid-19 e a Contratação de Médicos Graduados no Exterior
Victoria Magnani de Oliveira Nogueira[1]
Vive-se, atualmente, momento verdadeiramente atípico. A pandemia da Covid-19 vem revolucionando a vida cotidiana em muitos sentidos, que vão desde mudanças de caráter econômico à própria forma de relacionar-se. Com o mundo jurídico o cenário não poderia ser outro: observa-se que o Judiciário brasileiro vem, cada vez mais, atuando em demandas diretamente relacionadas com os impactos da Covid-19, dentre os mais diversos ramos do direito.
Nesse sentido, surge a controvérsia: devido ao momento de excepcionalidade no qual nos encontramos, seria possível flexibilizar certas exigências, outrora impreteríveis, em virtude do interesse público?
Esse questionamento permeia uma série de discussões jurídicas da atualidade, mas aqui pretende-se analisar uma em específico: a possibilidade de exercício da medicina por médicos graduados no exterior, que não tenham concluído o processo de revalidação de diploma.
Introduzindo a temática, ressalta-se que a demanda por profissionais da área da saúde aumenta a cada dia. Com efeito, o Brasil enfrenta grave crise na gestão da saúde pública, em virtude da pandemia da Covid-19, encontrando-se atualmente em um estado emergencial que ameaça colapsar o sistema de saúde de determinados estados.
A situação é de elevada necessidade, sendo que para suprir o déficit de profissionais da saúde foram adotadas diversas medidas governamentais, como, por exemplo, a Portaria nº 374/2020 do Ministério da Educação, que permitiu a antecipação da colação de grau para alunos dos cursos de Medicina, Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia para atuação nas ações de combate à Covid-19, e vem dividindo opiniões quanto às regras para sua aplicabilidade.
Em razão da pandemia, a necessidade de reposição de profissionais que atuem no combate à Covid-19 tem gerado uma contratação de larga escala no setor da saúde, com vistas a evitar o agravamento da situação de hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs) pela falta de recurso humano, uma vez que grande número desses profissionais encontra-se afastado por ter contraído a doença ou por estar sob suspeita.
As políticas de flexibilização adotadas a fim de agilizar a contratação desses profissionais, contudo, têm enfrentado resistência tanto por parte dos Judiciários locais quanto por parte dos Conselhos Regionais de Medicina, que até o momento apresentaram uma postura combativa em relação a iniciativas que visem permitir o exercício da medicina por médicos graduados no exterior que não se submeteram ao processo de revalidação do diploma.
A esse respeito cumpre trazer à baila a discussão firmada nos autos da Ação Civil Pública nº 5007182-62.2020.4.03.6100, ajuizada pela Defensoria Pública da União em face da União Federal e do Conselho Federal de Medicina (CFM), na qual a DPU buscava impor ao Governo Federal, em caráter excepcional e temporário, que viabilizasse a contratação de brasileiros e estrangeiros habilitados para o exercício da medicina no exterior sem a necessidade de revalidação do diploma emitido no estrangeiro.
O magistrado, acatando manifestação proferida em sede de contestação pelo CFM, aduziu que através do processo de revalidação do diploma de graduação emitido no exterior é possível reduzir o risco de expor pacientes a profissionais sem a devida qualificação, uma vez que tal processo visa verificar a capacidade técnica do profissional em sua formação.
O julgador ressaltou, ainda, que “não obstante os graves efeitos causados pela pandemia do COVID-19 na saúde de milhões de pessoas, não é facultado ao Poder Judiciário substituir-se ao legislador para permitir a contratação de profissionais médicos que não atendam a requisitos legais”.[2]
Outra decisão, esta proferida no âmbito de ação ajuizada pelo estado do Acre contra o Conselho Regional de Medicina (CRM), concedeu liminar que autoriza a emissão de licença provisória para exercício profissional de médicos formados no exterior que ainda não passaram pelo processo de revalidação.
A decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal Cível e Criminal da Seção Judiciária do Acre baseou-se na experiência do Programa Mais Médicos, analisando-o como importante e positivo precedente para a emissão de licença provisória de trabalho para profissionais que tenham diploma de medicina emitido por instituições de ensino estrangeiras, mas que se encontram impossibilitados de atuar profissionalmente em decorrência da não realização do processo de revalidação[3].
Ainda que posteriormente a referida liminar tenha tido seus efeitos suspensos por decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sob o argumento de que não haveria prova inequívoca da verossimilhança da alegação em que se sustenta o direito pleiteado, o simples fato de ter sido proferida decisão nesses termos já configura um precedente digno de nota.
De mais a mais, o que leva o Estado brasileiro a entender que, no âmbito do programa Mais Médicos, um determinado profissional tenha capacidade profissional e técnica para atender a população e, em outro cenário, diante de uma pandemia sem proporções, entender que este mesmo profissional seria inapto?
Evidente que cada caso possui as suas peculiaridades, que podem, eventualmente, levar a um entendimento distinto, contudo, a adoção de uma postura que seja, a priori, contrária a possíveis soluções para a crise que se coloca atualmente se mostra, no mínimo, controversa.
Buscando conferir respaldo a essas soluções, há diversos projetos de lei em tramitação que analisam as possibilidades de que médicos formados no exterior e que ainda não revalidaram seus diplomas no país atuem durante a pandemia da Covid-19.
O Projeto de Lei 2104/20, por exemplo, visa permitir a contratação de médicos brasileiros formados no exterior, que tenham participado do programa Mais Médicos por no mínimo um ano, para atuar em estados, município e hospitais privados enquanto perdurar o estado de calamidade pública decorrente da Covid-19. Além disso, o referido projeto prevê, ainda, a possibilidade de contratação de médicos graduados no exterior que estejam no último semestre da complementação exigida para a revalidação de diploma[4].
Outro projeto que se encontra em tramitação é o Projeto de Lei 2052/20, cujo texto prevê a contratação temporária, por órgãos de saúde públicos e privados, de médicos brasileiros formados no exterior que não prestaram o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira (Revalida).
Segundo o projeto, os profissionais contratados sob essas condições deverão atuar no combate à Covid-19 como auxiliares, sob a coordenação e supervisão de médico chefe de equipe. O texto destaca ainda que a atuação desses profissionais se dará na atenção básica à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), durante o estado de calamidade pública, e o contrato em questão não poderá exceder dois anos[5].
Ressalta-se que, em virtude da contemporaneidade do assunto que aqui se traz, uma vez que se trata de situação relativamente recente e ainda em desenvolvimento, não há jurisprudência pacificada e os impactos e consequências de qualquer decisão proferida nesse âmbito ainda hão de ser mensurados.
Outro ponto interessante que merece reflexão diz respeito à eventual possibilidade de obrigar as instituições de ensino a acelerarem os processos de revalidação de diplomas expedidos no exterior, nos termos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei nº 9.394/96), que dispõe, em seu art. 48, § 2º, que o diploma de graduação emitido no exterior, para que tenha validade nacional, deve ser revalidado por universidade brasileira pública, regularmente credenciada e mantida pelo Poder Público, que tenha curso reconhecido do mesmo nível e área ou equivalente.
Destaca-se que a Portaria Normativa do Ministério da Educação nº 22/2016, que estabelece as normas e procedimentos gerais de tramitação dos processos de revalidação de diplomas de graduação estrangeiros, confere ampla autonomia às instituições revalidadoras, que são responsáveis pela elaboração de seus próprios editais de revalidação.
Quanto a essa possibilidade, verifica-se que essa se consubstancia em um binômio: por um lado, a preservação da autonomia universitária, compreendida nessa a discricionariedade das instituições de ensino no que diz respeito ao processo de revalidação de diploma estrangeiro; e por outro a preservação do interesse público, e a consequente possibilidade de interferência judicial no processo de revalidação.
Apesar de haver entendimentos recentes no sentido de que não é viável interferir judicialmente no processo de revalidação sem que haja violação à autonomia universitária, é possível que, devido ao fato de estarmos vivendo um momento excepcional com a pandemia da Covid-19, o interesse público envolvido na crescente demanda por profissionais da saúde predomine sobre a preservação da autonomia universitária.
Ademais, vislumbra-se a possibilidade de que, ante o estado de escassez de profissionais da saúde atuando no combate à Covid-19, uma alternativa que preze pelo interesse público seja considerada medida mais adequada do que o estrito cumprimento das exigências previstas para o processo de revalidação de diplomas de graduação em medicina expedidos por universidades estrangeiras.
A discussão que ora se trava versa, sobretudo, sobre a resposta ao seguinte questionamento: é melhor ser atendido por um profissional cuja formação foi concluída em país estrangeiro, de acordo com as exigências deste, ou conformar-se com nenhum atendimento?
Diante do cenário incerto que se coloca, cabe ao Direito responder satisfatoriamente às demandas que surgem da prática experienciada no contexto de pandemia, de forma a garantir a implementação das medidas adequadas para que o combate à Covid-19 seja o mais eficaz possível.
[1] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente cursando a oitava fase. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET Direito UFSC de 2017 a 2019, e atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica no campo do Direito Ambiental do Trabalho como bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC.
[2] http://portal.cfm.org.br/images/PDF/decisaorevalida14052020.pdf
[3] http://ajufe.org.br/images/pdf/Decisa%CC%83o_Covid19_me%CC%81dicos_sem_revalida_Acre.pdf
[4] https://www.camara.leg.br/noticias/656726-PROJETO-PERMITE-CONTRATACAO-DE-MEDICOS-BRASILEIROS-FORMADOS-NO-EXTERIOR-SEM-REVALIDA-DURANTE-PANDEMIA
[5] https://www.camara.leg.br/noticias/656636-PROJETO-PERMITE-ATUACAO,-DURANTE-PANDEMIA,-DE-MEDICO-BRASILEIRO-FORMADO-NO-EXTERIOR-SEM-REVALIDA
Read MoreOs efeitos da penalidade retroagem ou não aos contratos celebrados em momento anterior ao da sanção?
Os contratos administrativos vigentes e a superveniência de sanção restritiva do direito de licitar e de contratar: os efeitos da penalidade retroagem ou não aos contratos celebrados em momento anterior ao da sanção?
Se a dúvida sobre a amplitude da penalidade de suspensão de contratar com a Administração já é bastante pertinente (se é restrita ao ente sancionador ou abrange toda a administração pública brasileira[1]), há ainda outra questão a ser enfrentada no que toca ao tema: afinal, a suspensão temporária para contratar com a Administração – ou outra penalidade análoga, como a declaração de inidoneidade ou o impedimento de licitar e de contratar – produz efeito ex nunc ou ex tunc no que toca aos contratos vigentes, celebrados em momento anterior ao da infração?
Para que seja sanada esta dúvida, deve-se, primeiramente, recorrer à Lei nº 8.666/93, a Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Em seu artigo 87, a Lei dispõe, em ordem crescente de gravidade, sobre as sanções administrativas aplicáveis aos contratados que não honrarem o contrato administrativo, quer pela inexecução parcial, quer pela inexecução total das obrigações nele avençadas.
Em específico, os incisos III e IV desse artigo tratam, respectivamente, da sanção de suspensão temporária do direito de participação em processo licitatório e impedimento de contratar com a Administração, e da declaração de inidoneidade. Leia-se:
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
[…]
III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Percebe-se, da leitura do dispositivo, que inexiste expressão na norma a qual ampare a interpretação literal de que esta sanção administrativa, em regra, possuiria efeitos retroativos.
Esta conclusão apoia-se também no princípio da legalidade, insculpido no artigo 37 da Constituição Federal e que rege toda a atividade da Administração Pública, sendo verdadeira pedra-basilar, de modo que não se pode presumir na Lei o que não está nela escrito, sobretudo em se tratando de direito sancionatório.
Assim, ao menos no que toca à eficácia direta da sanção, não há dúvidas de que seus efeitos promanam-se, em regra, prospectivamente, e não de maneira ex tunc. E desse entendimento não destoa a jurisprudência, que o aplica com tal efeito à mais grave sanção de declaração de inidoneidade, prevista no inciso IV do mesmo artigo. Leia-se:
Administrativo. Declaração de lnidoneidade para licitar e contratar com a Administração Pública. Efeitos ex nunc da Declaração de lnidoneidade: Significado. Precedente da 1.ª Seção (STJ, MS 13.964/DF, DJe de 25/05/2009).
Portanto, da Lei Federal nº 8.666/1993 extrai-se interpretação sólida e benéfica ao licitante/contratado, de que a penalidade de suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de contratar com a Administração, ou mesmo a declaração de inidoneidade, produz efeito ex nunc (isto é, prospectivo – ao futuro), e não ex tunc (isto é, retroativo – ao passado).
No entanto, reside ainda a seguinte dúvida: os efeitos da sanção são, em regra, prospectivos, não havendo o que se cogitar de anulação de contratação vigente e sem relação com o vício que levou à sanção; mas, afinal, aplicar-se-á a penalidade, mesmo que prospectivamente, de alguma forma, aos contratos e licitações vigentes à época da declaração da sanção? Ou seja, ainda que não se reconheça a aplicação retroativa, o futuro das licitações e dos contratos em andamento poderá ser afetado? Será necessário promover a rescisão contratual?
Se a questão ventilada anteriormente é de menor controvérsia, não o é esta última.
No entendimento de Marçal Justen Filho, em relação à eficácia da punição sobre contratos vigentes, “O art. 55, XIII, determina que o contratado deverá manter os requisitos de habilitação e qualificação ao longo da execução do contrato. Essa disciplina é compatível com o entendimento de que o preenchimento dos requisitos de habilitação envolvem não propriamente uma formalidade a ser cumprida somente por ocasião da licitação, mas evidenciam a capacitação do sujeito para executar a contratação. Portanto, desaparecido o requisito de habilitação durante a contratação, o contrato deve ser rescindido.”.[2]
Malgrado o entendimento do reconhecido jurista, verifica-se, em certos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU), a existência de entendimento diverso: de que as sanções impeditivas do direito de licitar e de contratar não atingem, em regra, os contratos em curso.
A propósito, veja-se acórdão prolatado pelo Plenário do TCU em setembro de 2019, relatado pelo Ministro Augusto Sherman Cavalcanti:
Voto
12. Com efeito, a despeito da proximidade das datas, a superveniência da mencionada sanção administrativa, por si só, não teria o condão de ensejar a nulidade ou a rescisão do contrato em epígrafe, uma vez que a suspensão temporária para licitar produz efeitos ex nunc, não se aplicando automaticamente aos contratos já celebrados, sobretudo em contratos outros distintos do que gerou a sanção, consoante jurisprudência predominante desta Casa.
13. Como é sabido, em sanção mais grave de declaração de inidoneidade, esta Corte seguindo jurisprudência inaugurada pelo STJ nos MS 13.101-DF, Min. Eliana Calmon, de 9/12/2008, e 13.964, Min. Teori Zavascki, de 25/5/2009, estabeleceu que seus efeitos são para o futuro ou ex nunc, nos termos dos Acórdãos 1262/2009-Plenário, Min. José Jorge, e 1340/2011-Plenário, Min. Weder de Oliveira. Mesma regra se aplica a suspensão temporária para licitar.[3]
Ademais, como se percebe do Acórdão nº 2183/2019 do TCU, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão jurisdicional responsável pela uniformização dos entendimentos judiciais em todo o Brasil, estabeleceu a regra de que a sanção de inidoneidade produz efeito para o futuro (ex nunc), de modo a não prejudicar os contratos administrativos celebrados antes da aplicação da sanção. Confira-se o acórdão paradigma e um exemplo da jurisprudência surgida a partir dele:
ADMINISTRATIVO – LICITAÇÃO – INIDONEIDADE DECRETADA PELA CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO – ATO IMPUGNADO VIA MANDADO DE SEGURANÇA.
1. Empresa que, em processo administrativo regular, teve decretada a sua inidoneidade para licitar e contratar com o Poder Público, com base em fatos concretos.
2. Constitucionalidade da sanção aplicada com respaldo na Lei de Licitações, Lei 8.666/93 (arts. 87e 88).
3. Legalidade do ato administrativo sancionador que observou o devido processo legal, o contraditório e o princípio da proporcionalidade.
4. Inidoneidade que, como sanção, só produz efeito para o futuro (efeito ex nunc), sem interferir nos contratos já existentes e em andamento.
5. Segurança denegada.[4]
ADMINISTRATIVO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. PRECEDENTE DA 1ª SEÇÃO (MS 13.964/DF, DJe DE 25/05/2009).
Segundo precedentes da 1ª Seção, a declaração de inidoneidade “só produz efeito para o futuro (efeito ex nunc), sem interferir nos contratos já existentes e em andamento” (MS 13.101/DF, Min. Eliana Calmon, DJe de 09.12.2008). Afirma-se, com isso, que o efeito da sanção inibe a empresa de licitar ou contratar com a Administração Pública (Lei 8666/93, art. 87), sem, no entanto, acarretar, automaticamente, a rescisão de contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente e em curso de execução, notadamente os celebrados perante outros órgãos administrativos não vinculados à autoridade impetrada ou integrantes de outros entes da Federação (Estados, Distrito Federal e Municípios). Todavia, a ausência do efeito rescisório automático não compromete nem restringe a faculdade que têm as entidades da Administração Pública de, no âmbito da sua esfera autônoma de atuação, promover medidas administrativas específicas para rescindir os contratos, nos casos autorizados e observadas as formalidades estabelecidas nos artigos 77 a 80 da Lei 8.666/93. […][5]
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. JULGADO DA PRIMEIRA SEÇÃO (MS 13.964/DF, DJe DE 25.5.2009). AGRAVO INTERNO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA A QUE SE NEGA PROVIMENTO. […]
2. É certo que a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça entende que a sanção prevista no art. 87, III da Lei 8.666/1993 produz efeitos não apenas no âmbito do ente que a aplicou, mas na Administração Pública como um todo (REsp. 520.553/RJ, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 10.2.2011).
3. A declaração de idoneidade não tem a faculdade de afetar os contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente ou em fase de execução, sobretudo aqueles celebrados com entes públicos não vinculados à autoridade sancionadora e pertencente a Ente Federado diverso (MS 14.002/DF, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJe 6.11.2009).
4. A sanção aplicada tem efeitos apenas ex nunc para impedir que a Sociedade Empresária venha a licitar ou contratar com a Administração Pública pelo prazo estabelecido, não gerando como consequência imediata a rescisão automática de contratos administrativos já em curso (MS 13.101/DF, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Min. ELIANA CALMON, DJe 9.12.2008).5. Agravo Interno da Sociedade Empresária a que se nega provimento.[6]
A despeito desses precedentes, é de se ressaltar que a questão ainda é controversa na doutrina e na jurisprudência, havendo tanto entendimentos favoráveis quanto contrários ao sancionado no que toca aos contratos vigentes à época da suspensão.
Inclusive, tão controversa é a questão que a jurisprudência do STJ concebeu ainda um tertium genus de aplicação normativa, aplicando uma sorte de teoria mitigada da manutenção dos contratos vigentes, relegando tal decisão à discricionariedade motivada do gestor público. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR E CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EFEITOS EX NUNC DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE: SIGNIFICADO. PRECEDENTE DA 1ª SEÇÃO […]. 1. Segundo precedentes da 1ª Seção, a declaração de inidoneidade “só produz efeito para o futuro (efeito ex nunc), sem interferir nos contratos já existentes e em andamento” (MS 13.101/DF, Min. Eliana Calmon, DJe de 09.12.2008). Afirma-se, com isso, que o efeito da sanção inibe a empresa de “licitar ou contratar com a Administração Pública” (Lei 8666/93, art. 87), sem, no entanto, acarretar, automaticamente, a rescisão de contratos administrativos já aperfeiçoados juridicamente e em curso de execução, notadamente os celebrados perante outros órgãos administrativos não vinculados à autoridade impetrada ou integrantes de outros entes da Federação (Estados, Distrito Federal e Municípios). Todavia, a ausência do efeito rescisório automático não compromete nem restringe a faculdade que têm as entidades da Administração Pública de, no âmbito da sua esfera autônoma de atuação, promover medidas administrativas específicas para rescindir os contratos, nos casos autorizados e observadas as formalidades estabelecidas nos artigos 77 a 80 da Lei 8.666/93. […][7]
Segundo este entendimento do STJ, a regra seria a da não aplicação automática da penalidade aos demais contratos vigentes; podendo, todavia, a Administração promover medidas administrativas justificadas e específicas para rescindir estes contratos.
Vê-se daí que, embora haja fundamentos tanto para a aplicação retroativa quanto para a aplicação prospectiva das sanções previstas nos incisos III e IV do artigo 87 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o tema ainda é objeto de controvérsia, não existindo posição sedimentada, sobretudo no que concerne à jurisprudência pátria.
Se, por um lado, a interpretação conjunta do 87 com o artigo 55, inciso XIII, da Lei Federal nº 8.666/93 enseja aplicação mais severa da norma, com o escopo de estender a penalidade a todos os contratos vigentes da apenada, uma interpretação mais benéfica e principiológica do ordenamento jurídico, calcada na legalidade estrita exigida no direito sancionatório, na tipicidade e na razoabilidade dos atos administrativos, conclui pela possibilidade de limitação da penalidade somente às licitações e aos contratos futuros.
[1] Cf. “A penalidade de suspensão temporária do direito de licitar é válida apenas para o órgão/entidade que aplicou a sanção?” Disponível em: https://schiefler.adv.br/a-penalidade-de-suspensao-temporaria-do-direito-de-licitar-e-valida-apenas-para-o-orgaoentidade-que-aplicou-a-sancao/.
[2] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 8.666/1993. ed. 16., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista do Tribunais, 2014. p. 1159.
[3] TCU, Acórdão nº 2183/2019, Plenário, Relator: AUGUSTO SHERMAN, Data de Julgamento: 11/09/2019.
[4] STJ, MS 13.101/DF, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/05/2008.
[5] STJ, MS 14.002/DF, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2009.
[6] STJ, AgInt no REsp 1552078/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 30/09/2019.
[7] MS nº 14.002-DF, Relator: Ministro Teori Albino Zavascki, 1ª Seção do STJ, DJe de 06.11.2009.
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