A LGPD, agora em parcial vigor, institui regime jurídico devotado à disciplina das operações de tratamento de dados realizadas por entes que compõem o poder público, dos quais se espera que envidem esforços para garantir efetivas prestações estatais para concretizar as normas de proteção de dados pessoais.
Matheus Lopes Dezan[i]
Em 18 de setembro de 2020, sexta-feira, iniciou-se a parcial[ii] produção de vigor pela Lei Federal nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, usualmente denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)[iii]. Cessa o período de vacatio legis da LGPD após extenso processo legislativo. Isso porque, em 29 de abril de 2020, fora adiada a vigência parcial da LGPD para 03 de maio de 2021, por força do 4º artigo da Medida Provisória nº 959[iv]. Contudo, o Congresso Nacional, em 26 de agosto de 2020, optou pela remoção do artigo 4º da MP nº 959/2020 durante votação acerca da conversão dessa MP em Lei Ordinária Federal nº 14.058, sancionada pela Casa Civil na última sexta-feira, 18 de setembro.
Em face do exposto, vigora parcialmente a LGPD, lei que serve de eixo ao sistema normativo brasileiro de proteção de dados pessoais, provocando importantes alterações para as relações público-privadas[v], sobretudo em face do contexto de uma administração pública eletronizada[vi].
A LGPD E A ORDEM CONSTITUCIONAL
A LGPD regula as operações de tratamento de dados pessoais realizadas por agentes públicos e privados, isto é, regula operações tais quais as de acesso, de coleta, de armazenamento, de processamento e de compartilhamento de dados pessoais (informações que versam sobre atributos da pessoa natural identificada ou identificável – artigo 5º, I, LGPD). Instituem-se, pois, garantias normativas postas em defesa do titular de dados tratados.
Nesse sentido, a fim de tornar efetiva a proteção que confere à categoria de dados pessoais, a LGPD busca dar concreção a normas constitucionais fundamentais. Para isso, afirma como fundamentos seus o respeito à privacidade, ao livre desenvolvimento da personalidade (corolário lógico-jurídico do respeito à dignidade humana, positivado pelo inciso III do artigo 1º da CF/88), aos direitos de autonomia informacional da personalidade, às liberdades de expressão, de informação e de comunicação, à intimidade, à honra, à imagem e a outros direitos fundamentais que servem de axioma à nova lei de proteção de dados (artigos 1º e 2º, LGPD).
Do mesmo modo, operações de tratamento de dados pessoais devem observar, em regra, diretrizes normativas de finalidade, de adequação, de necessidade, de livre acesso, de qualidade de dados, de transparência, de segurança, de não discriminação e outras diretrizes afirmadas pela doutrina estudiosa de temas afeitos à proteção de dados pessoais e positivadas pela LGPD (artigo 6º, LGPD).
Precisamente, no que concerne a operações de tratamento de dados pessoais realizadas pelo poder público, importa a observância das diretrizes positivadas em lei para que haja adequação das relações público-privadas às premissas de um Estado efetivamente Democrático e de Direito, que age em atenção à proteção de direitos fundamentais individuais e coletivos e em prol do interesse público.
Há, no entanto, especificidades próprias do regime jurídico criado pela LGPD e devotado aos órgãos e entidades administrativas, que merecem mais profunda abordagem em tópico apartado.
O TRATAMENTO DE DADOS PELO PODER PÚBLICO
O capítulo IV da LGPD é dedicado à instituição de novo regime normativo para a regulação das operações tratamento de dados pessoais executadas pelo poder público. Trata-se de regime jurídico distinto daquele por meio dos quais são disciplinadas as pessoas jurídicas de direito privado, o que se justifica em razão das particularidades de prerrogativa que a administração pública ostenta.
De pronto, pode-se destacar que o tratamento de dados pelo poder público deve atender a finalidades públicas, com respaldo no interesse público, a fim de que seja possível a execução das atribuições legais do poder público, tais como a execução de políticas públicas, a prestação de serviços públicos e administração da res publica (artigo 23, LGPD). Em todos os casos, deve-se lembrar, observam-se os fundamentos e princípios da LGPD e resguardam-se os direitos do titular dos dados tratos, que deve ser informado sobre os usos que se fazem dos dados tratados por entidades administrativas, bem como deve ter acesso a essas informações em veículos de fácil acesso, sobretudo em portais governamentais em sites da internet (artigo 23, I, LGPD). Ainda, o exercício dos direitos do titular de dados deve ocorrer com amparo no remédio constitucional do Habeas Data, nas disposições da Lei Geral do Processo Administrativo e, ainda, na Lei de Acesso à Informação, todos integrantes do sistema normativo de proteção de dados pessoais ordenado pela LGPD (artigo 23, § 3º, LGPD).
Esse mesmo regime jurídico de direito público disciplina a prestação de serviços notariais e de registros, do mesmo modo que disciplina a execução, por empresas públicas e por sociedades de economia mista, de serviços e políticas públicos (artigo 23, §§ 4º e 5º e artigo 24, parágrafo único, LGPD). Nesses casos, os dados tratados devem ser armazenados em formato interoperável, de modo que seja possível o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos da administração pública, para a execução de políticas públicas. O compartilhamento de dados entre entidades administrativas e empresas privadas é estritamente vedado pela LGPD, salvo em casos excepcionais, sendo sempre devida comunicação acerca do compartilhamento à autoridade nacional e ao titular dos dados (artigos 24 e 25, LGPD).
Sem embargos, empresas públicas e sociedades de economia mista que atuam em regime privado de concorrência devem observar a disciplina normativa própria de entidades privadas (artigo 24, caput, LGPD).
Não se aplicam as normas da LGPD quando o tratamento de dados pessoais ocorrer para fins de segurança nacional, de defesa nacional e de segurança do Estado, bem como para fins investigação e de repressão de infrações penais. Dessa forma, em caso de a administração pública tratar dados pessoais para uma das finalidades elencadas, não é devida a aplicação das normas da LGPD.
Similarmente, a LGPD concebe a possibilidade de a administração pública tratar dados pessoais sem o consentimento do titular dos dados tratados para a execução de políticas públicas previstas em lei, em regulamentos ou em contratos, convênios e outros, bem como a para fins de proteção da saúde pela autoridade sanitária, mesmo que sem consentimento do titular de dados (artigo 7º, III e IX, LGPD). De todo modo, é necessário assegurar ao titular dos dados tratados acesso facilitado às informações sobre essas operações de tratamento de dados, tais como informações sobre as formas de tratamento, sobre a identidade dos agentes de tratamento, sobre a finalidade do tratamento e sobre os direitos do titular (artigo 9º, LGPD).
A AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
Para fiscalizar o cumprimento das normas positivadas pela LGPD, previu-se a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), criada sem aumento de despesas e vinculada à Presidência da República (artigo 55-A, LGPD). A despeito dessa vinculação, em torno da qual pairam inesgotáveis debates, garante-se à ANPD autonomia técnico-decisória. Do mesmo modo, a autoridade nacional instituída por lei possui natureza jurídica transitória, sendo possível, em momento posterior, que a ANPD seja transformada em entidade da administração pública federal indireta, disciplinada por regime autárquico e especial (artigos 55-A, § 1º, e 55-B, LGPD).
Figuram dentre as competências da ANPD aquelas de zelar pela proteção de dados pessoais e pelo respeito aos segredos comerciais e industriais – sobretudo em caso de haver necessidade de auditar operações de tratamento de dados, como provê o artigo 20 da LGPD – de elaborar diretrizes da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade e de aplicar sanções em caso de descumprimento das ordens legais (artigo 55-J, LGPD). Ademais, editou-se recentemente o Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020, que regulamenta com maior especificidade a estrutura e as atribuições da ANPD[vii].
Nada obstante, as sanções de multa previstas pela LGPD, e passíveis de serem aplicadas pela ANPD, apenas vigoram a partir de 1º de agosto de 2021, período reservado à estruturação da ANPD, o que apenas recentemente se iniciou.
UM PANORAMA GERAL
Em suma, a LGPD, agora em parcial vigor, institui regime jurídico devotado à disciplina das operações de tratamento de dados realizadas por entes que compõem o poder público. Consequentemente, espera-se que a administração pública, imergida no contexto de eletronização de seus atos, envide esforços, como o tem feito desde 2018, no sentido de convergir a sua estrutura interna para as disposições inauguradas pela LGPD, de modo que seja possível garantir efetivas prestações estatais em consonância com a ordem constitucional, concretizada pelas normas de proteção de dados pessoais.
QUADRO COMPARATIVO
Notas de fim de página
[i] Estagiário de Direito em Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN). Membro do Grupo de Pesquisa certificado pelo CNPq Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB). Membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia (GEDE/UnB/IDP). Membro do Grupo de Pesquisa em Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (HDAPP/UniCeub). Membro do Grupo Bioethik: Grupo de Pesquisas em Bioética.
[ii] Por força do inciso I do artigo 65 da LGPD, os artigos 55-A, 55-B, 55-C, 55-D, 55-E, 55-F, 55-G, 55-H, 55-I, 55-J, 55-K, 55-L, 58-A e 58-B vigoram desde 28 de dezembro de 2018, e os artigos 52, 53 e 54, que versam acerca das sanções administrativas a serem aplicadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados a infratores da Lei, por força do inciso I-A do artigo 65 da LGPD, vigoram apenas a partir de 1º de agosto de 2021. A redação da MP 959/2020, portanto, apenas modificou a redação do inciso II do artigo 65 da LGPD, que cuida da vigência dos demais artigos da lei.
[iii] BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 21 ago. 2020.
[iv] BRASIL. Medida Provisória nº 959, de 29 de abril de 2020. Estabelece a operacionalização do pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda e do benefício emergencial mensal de que trata a Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, e prorroga a vacatio legis da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, que estabelece a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2250977. Acesso em: 21 ago. 2020.
[v] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
[vi] SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho. Processo administrativo eletrônico. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
[vii] BRASIL. Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e remaneja e transforma cargos em comissão e funções de confiança. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.474-de-26-de-agosto-de-2020-274389226. Acesso em: 21 ago. 2020.
Read MoreA Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça uniformizou o entendimento da Corte sobre a polêmica extensão da penalidade de perda da função pública em virtude de ato de improbidade administrativa, prevista no artigo 12 da Lei nº 8.429/1992.
Recentemente, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) uniformizou o entendimento da Corte sobre a polêmica extensão da penalidade de perda da função pública em virtude de ato de improbidade administrativa, prevista no artigo 12 da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa).
Em Embargos de Divergência opostos em sede do Recurso Especial nº 1701967/RO[1], o Superior Tribunal de Justiça definiu que a penalidade em questão atinge não só o cargo ocupado pelo infrator no momento da prática da conduta ímproba, mas também se estende ao cargo público eventualmente ocupado por este no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória (artigo 20 da Lei de Improbidade Administrativa[2]).
A controvérsia foi julgada por maioria pelo colegiado dos órgãos especializados em Direito Público, tendo sido analisada em razão de divergência existente entre a Primeira e Segunda Turmas da Corte. No voto vencedor, o Ministro Francisco Falcão afirma que a sanção de perda do cargo tem por objetivo afastar dos quadros da Administração Pública o agente que apresentou conduta ímproba e carência ética para o exercício da função pública. Por essa lógica, defendeu que a penalidade em questão deve abranger toda e qualquer atividade que o agente esteja exercendo no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Considerando que o objetivo da perda do cargo é o de salvaguardar a Administração de agentes que demonstrem “pouco ou nenhum apreço pelos princípios regentes da atividade administrativa”[3], a penalidade deve atingir não só o cargo ocupado no momento da prática do ato ímprobo, como também eventual outra função pública que esteja sendo exercida, uma vez que a improbidade não está ligada ao cargo em si, mas à própria atuação desse agente na Administração Pública.
Portanto, prevaleceu o entendimento que vinha sendo adotado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, que pode ser representado pelo seguinte julgado:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. COBRANÇA DE PROPINA. […] PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. ART. 12 DA LEI 8.429/1992. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. SÚMULA 7/STJ. […]
5. A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e afastar da atividade pública todos os agentes que demonstraram pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida.
6. A sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível.
7. Não havendo violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, modificar o quantitativo da sanção aplicada pela instância de origem, no caso concreto, enseja reapreciação dos fatos e provas, obstado nesta instância especial (Súmula 7/STJ).
8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.[4]
No caso analisado e julgado, discute-se a extensão da sanção de perda da função pública à ex-policial federal que se encontrava exercendo o cargo de Defensor Público ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória.
De toda forma, embora se trate de uma uniformização da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível que, em algum momento, a questão seja levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para análise da constitucionalidade da extensão da penalidade.
Vale ressaltar, ainda, que a prática de ato de improbidade administrativa não acarreta, automaticamente, a necessidade de aplicação da penalidade de perda da função pública, uma vez que a própria Lei nº 8.429/1992 determina que o juiz deverá, na fixação das penas, levar em conta “a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”.
Nesse sentido, considerando que o acórdão prolatado pela Primeira Seção do STJ ainda não foi disponibilizado (em 16/9/2020), ainda não está claro se o entendimento que prevaleceu, além de confirmar a abrangência da perda de função pública atualmente ocupada, também veda a hipótese de que um juiz, com base nos elementos do caso concreto e em atenção à razoabilidade e proporcionalidade entre conduta e sanção, restrinja a condenação ao cargo que serviu como instrumento para a prática do ato de improbidade.
[1] Informações obtidas por meio de notícia veiculada no site do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Cf. http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16092020-Perda-de-funcao-publica-por-improbidade-atinge-qualquer-outro-cargo-ocupado-no-momento-da-condenacao-definitiva.aspx. Acesso em 16 set. 2020.
[2] Art. 20. A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Parágrafo único. A autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual.
[3] ANDRADE, Landolfo. Aplicabilidade da sanção de perda da função pública sobre qualquer função exercida pelo agente ímprobo ao tempo do trânsito em julgado da decisão condenatória. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/07/23/sancao-perda-da-funcao-publica/.
[4] STJ, REsp 1297021/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/11/2013.
Read MoreOs três pareceres consultivos elaborados pela Advocacia Geral da União (AGU) formulam uma análise jurídica da questão e indicam possíveis caminhos para a gestão dos contratos terceirizados.
Nesta quarta-feira (16 de junho de 2020), Victoria Magnani teve o artigo “Orientações da AGU sobre o tratamento e gestão dos contratos de terceirização durante a pandemia de Covid-19“, de sua autoria, publicado no blog da Zênite Informação, o qual pode ser visualizado neste link. Em razão da relevância do tema, vamos republicá-lo na íntegra, com a autorização da autora:
Orientações da AGU sobre o tratamento e gestão dos contratos de terceirização durante a pandemia de Covid-19.
Victoria Magnani[1]
Devido à situação excepcional vivida atualmente, em virtude da pandemia de covid-19, os órgãos da Administração Pública em geral vêm realizando uma série de mudanças e adaptações no sentido de migrar boa parte dos colaboradores para o regime de teletrabalho/home office, em um esforço para reduzir a taxa de contaminação pelo vírus Sars-Cov-19 (coronavírus).
Contudo, ressalta-se que as alternativas formuladas pelo Poder Público a fim de lidar com os impactos da pandemia foram pensadas com vistas a balizar a atuação de servidores, empregados públicos, estagiários e demais colaboradores que possuem vínculo direto com a Administração Pública, não tendo sido emitida, porém, orientação normativa central para esclarecer o tratamento que deve ser dado aos empregados terceirizados, os quais possuem vínculo jurídico contratual com as empresas contratadas pela Administração.
Essa situação levou administradores de todo o país a um cenário de incertezas e insegurança na tomada de decisões, o que, por sua vez, motivou a formulação de questionamentos com vistas a esclarecer o tratamento que deve ser dado aos contratos terceirizados no âmbito da Administração Pública. A Advocacia-Geral da União (AGU), nesse ínterim, publicou três pareceres consultivos sobre o assunto, formulando uma análise jurídica da questão e indicando possíveis caminhos para a gestão dos contratos terceirizados no âmbito da pandemia do novo coronavírus.
Foram publicados o Parecer nº 106/2020, formulado pelo Departamento de Assuntos Jurídicos Internos (DAJI) da Secretaria Geral de Consultoria/AGU; o Parecer nº 63/2020, publicado pela Consultoria Jurídica junto à Controladoria Geral da União (CONJUR-CGU/AGU); e o Parecer nº 310/2020, elaborado pela Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Educação (CONJUR-MEC), vinculada à Consultoria Geral da União/AGU.
Destaca-se que as deliberações propostas pela Advocacia-Geral da União no contexto dos pareceres supracitados dizem respeito a medidas mitigadoras destinadas aos casos em que a Administração decide manter vigentes os contratos de prestação de serviços terceirizados, uma vez que não se exclui a eventual possibilidade de rescisão contratual unilateral pela Administração, por motivo de força maior, em especial nos casos em que esta for comprovadamente a medida mais benéfica aos interesses públicos.
Os pareceres em questão versam sobre diferentes aspectos e reflexos contratuais decorrentes dos impactos da covid-19 nos contratos firmados pela Administração com empresas prestadoras de serviços terceirizados e, devido ao fato de terem sido formulados por órgãos consultivos diversos, alguns questionamentos se repetem, motivo pelo qual será feita uma análise conjunta das orientações enunciadas em cada parecer.
É possível a substituição dos empregados terceirizados que integram grupos de risco?
Sim. Primeiramente, destaca-se que são enquadrados como pertencentes aos grupos de risco, segundo o Ministério da Saúde, pessoas acima de 60 anos, portadores de doenças cardiovasculares ou respiratórias, diabéticos, portadores de doença neurológica ou renal, bem como pessoas que tenham comorbidades tais quais imunodepressão, obesidade, asma e puérperas[2].
No âmbito do Parecer nº 106/2020[3], a Secretaria-Geral de Administração, através da Nota Técnica n. 35/2020/CLOG/SGA/AGU, formulou questionamento acerca da possibilidade de exigir que as empresas contratadas pela Administração façam a substituição de empregados terceirizados que estejam enquadrados nos chamados grupos de risco. A conclusão exposta no parecer elaborado pelo Departamento de Assuntos Jurídicos Internos (DAJI) da Secretaria Geral de Consultoria/AGU foi no sentido de que é possível à Administração, sim, proceder a tal exigência.
Isso porque, apesar de haver vedação ao direcionamento na contratação de terceirizados para trabalhar nas empresas contratadas (vide art. 5º, inciso III da Instrução Normativa nº 5, de 26 de maio de 2017, que dispõe sobre as regras e diretrizes do procedimento de contratação de serviços sob o regime de execução indireta no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional), tem-se que, em virtude da excepcionalidade e gravidade da situação atual, não parece ilegal a tentativa de negociar com a empresa o remanejamento das pessoas enquadradas nos grupos de risco para atividades dentro da própria empresa terceirizada, ou que possam ser executadas de modo remoto, destinando pessoas menos vulneráveis às atividades que exijam exclusivamente execução presencial.
Ademais, o parecer ressaltou que o próprio portal de compras do Governo Federal[4] já recomendou o levantamento dos empregados pertencentes aos grupos de risco para a avaliação da necessidade de suspensão ou substituição temporária na prestação de serviços por esses terceirizados, nos termos das “Recomendações Covid-19 – Contratos de prestação de serviços terceirizados”, que orientam a aplicação por analogia da Nota Técnica nº 66/2018- Delog/Seges/MP para o contexto de pandemia.
O Parecer nº 310/2020[5], por sua vez, endossa esse entendimento, citando, inclusive, o mesmo art. 3º das “Recomendações Covid-19 – Contratos de prestação de serviços terceirizados”. Segundo a manifestação, que orienta o afastamento dos prestadores de serviço terceirizados que se encontram no “grupo de risco”, será aplicado o art. 3º da Lei nº 13.979/2020, que estabelece que “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: (…) “§ 3º Será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo”.
Logo, a área de recursos humanos pode conceder falta justificada nesta hipótese, assim como os encarregados dos contratos de terceirização podem fazer uso de tais medidas. A verificação de pertencimento do empregado terceirizado ao grupo de risco, por sua vez, caberá à própria empresa terceirizada que, tão logo encaminhada a autodeclaração de pertencimento feita pelo empregado, avaliará caso a caso se o trabalhador em questão faz jus à liberação, por estar este incluído no grupo de risco.
O parecer ressaltou, ainda, que não cabe à Administração esse encargo, em razão de não ser ela a empregadora, mas, sim, a tomadora do serviço. Caberá à Administração tão somente solicitar à empresa contratada relatório sobre os empregados afastados, identificando a motivação e o período de afastamento respectivo, que deverá ser acordado entre a Administração Pública e a empresa, em virtude da instabilidade vivenciada.
É possível inserir os terceirizados em trabalho remoto?
Sim. Acerca da viabilidade de inserção dos empregados terceirizados em trabalho remoto, todos os pareceres emitidos pela Advocacia-Geral da União se mostraram favoráveis à tal alternativa, desde que verificada a possibilidade de realização das atividades em regime de teletrabalho.
Nos termos do Parecer nº 106/2020, a Instrução Normativa nº 21, de 16 de março de 2020, que traz orientações aos órgãos e entidades do Sistema de Pessoal Civil da Administração Pública Federal – SIPEC, estabelece, em seu art. 6º-A, as medidas de proteção para enfrentamento da emergência de saúde pública, bem como, no art. 7º, que “Caberá ao Ministro de Estado ou à autoridade máxima da entidade, em conjunto com o dirigente de gestão de pessoas, assegurar a preservação e funcionamento das atividades administrativas e dos serviços considerados essenciais ou estratégicos, utilizando com razoabilidade os instrumentos previstos nos art. 6º-A e art. 6º-B, a fim de assegurar a continuidade da prestação do serviço público”.
Segundo o parecer, apesar de a referida Instrução Normativa ter sido expedida para os servidores com vínculo direto com a Administração Pública, não há qualquer razoabilidade em desvincular os serviços terceirizados da prestação efetiva do serviço público. Assim, tendo em vista o contexto atual, a AGU manifestou-se no sentido de que o art. 7º da Instrução Normativa nº 21 autoriza o Excelentíssimo Senhor Advogado-Geral da União a, em caráter excepcional e temporário, visando assegurar a continuidade de prestação do serviço público, adotar as medidas gerais de prevenção, cautela e redução da transmissibilidade previstas nos arts. 6º-A e B da referida IN, consistentes na adoção de regime de jornada em turnos alternados de revezamento ou em trabalho remoto, para aqueles terceirizados que exerçam atividades compatíveis com esta modalidade.
Por sua vez, o Parecer nº 63/2020[6] concluiu que, respeitados os princípios da supremacia e indisponibilidade do interesse público, bem como da eficiência, há possibilidade de ajustar o acompanhamento dos contratos terceirizados para viabilizar a execução desses contratos de forma remota. Portanto, ante a excepcionalidade da pandemia, o órgão em questão sustenta a viabilidade de se orientar a maneira de execução dos contratos terceirizados, de forma a permitir sua execução remota. Isso, contudo, deverá ser feito por meio da avaliação de pertinência, e com base na singularidade de cada atividade prestada, nos termos das já mencionadas “Recomendações Covid-19 – Contratos de Prestação de Serviços Terceirizados”.
Ademais, o Parecer nº 310/2020 também posicionou-se no sentido de que é possível o trabalho remoto por parte dos empregados terceirizados, assinalando, porém, que serão necessários ajustes na relação trabalhista em questão, devendo ser avaliado pela Administração juntamente com a empresa contratada quais atividades poderão ser exercidas por meio do teletrabalho.
Quais os reflexos salariais decorrentes da “suspensão” de contratos terceirizados e da inserção de trabalhadores em regime de teletrabalho?
Quanto aos reflexos salariais advindos da suspensão dos contratos de trabalho com os empregados terceirizados, o Parecer nº 310/2020 assinala que, no caso do terceirizado que integra grupo de risco, trata-se em verdade de hipótese de interrupção do contrato de trabalho, uma vez que há contagem do tempo de serviço, bem como manutenção dos encargos trabalhistas devidos pelo empregador, visto que os efeitos da interrupção irão atingir apenas a cláusula de prestação obreira de serviços, mantidas em vigência as demais cláusulas contratuais. Nesse caso, não se presta trabalho, tampouco se fica à disposição, mas se computa o tempo de serviço e paga-se o salário.
No âmbito do Parecer nº 106/2020 foi exarado entendimento semelhante, destacando que, conforme recomendação constante do portal de compras governamentais, é possível suspender/reduzir o efetivo de terceirizados, nos termos da Nota Técnica nº 66/2018- Delog/Seges/MP, sendo tal redução ou suspensão, contudo, efetuada sem prejuízo da remuneração. Nesse sentido, as únicas parcelas cujo pagamento pode deixar de ser efetivado são as referentes ao auxílio-alimentação e ao vale-transporte dos dias não trabalhados efetivamente.
É possível a manutenção do pagamento do benefício de vale-transporte e auxílio-alimentação para os terceirizados inseridos em regime de teletrabalho?
Para os terceirizados inseridos em regime de teletrabalho/home office, por sua vez, o Parecer nº 310/2020 dispõe que serão descontadas apenas as parcelas referentes ao vale-transporte, visto que não há custo com deslocamento a ser ressarcido ao empregado. Isso porque, nos termos da Lei nº 7.619/1987, o vale-transporte será concedido “para utilização efetiva em despesas de deslocamento residência-trabalho e vice-versa”, não havendo que se falar em pagamento desta verba no caso de ausência de deslocamento por parte do empregado terceirizado.
Quanto ao vale-alimentação e vale-refeição, uma vez que não há obrigação legal ao fornecimento de nenhum dos dois benefícios, sendo a sua concessão uma liberalidade do empregador, o terceirizado afastado poderá continuar a receber ou ter seu benefício reduzido/cessado, a depender do que estiver previsto na Convenção Coletiva de Trabalho da categoria. Destaca-se que, regra geral, os valores despendidos a título de vale-alimentação ou vale-refeição possuem natureza salarial, motivo pelo qual deve ser mantido seu pagamento em caso de execução de trabalho remoto por parte dos terceirizados.
Por fim, o Parecer nº 63/2020 se manifestou pela viabilidade jurídica de recebimento do benefício de vale-alimentação pelos colaboradores que estejam inseridos em trabalho remoto, uma vez que a prestação do serviço do terceirizado permanece ocorrendo, apenas se dá de forma remota. Nesse sentido, o terceirizado deve receber o que determina a convenção trabalhista firmada pelo sindicato da categoria, ou, caso não haja estipulação específica em convenção de trabalho, mas a empresa ofereça espontaneamente o benefício para todos os seus empregados, cabe a ela manter os benefícios mesmo que em trabalho remoto. Quanto ao vale-transporte, porém, a conclusão foi no sentido de que é incabível, visto que não há deslocamento do trabalhador em questão que enseje o pagamento da benesse.
De quem é a responsabilidade pela gestão contratual?
Do particular contratado pela Administração. Quanto à gestão do contrato, o Parecer nº 63/2020 apresentou conclusão no sentido de que cabe à Administração Pública orientar a sua execução, nos termos dos do §§ 1º e 2º do art. 67 da Lei nº 8.666/1993, cabendo ao particular, contudo, a execução propriamente dita da gestão do trabalho remoto por parte dos terceirizados, sob pena de ocorrer indevida assunção por parte da Administração da relação trabalhista entre a empresa terceirizada e seus colaboradores. Dessa forma, a gestão efetiva do trabalho remoto deve ser realizada pelo encarregado dos contratos, e não pela Administração, no intuito de não configurar a gestão direta contratual por parte desta.
É possível realizar ajustes contratuais sem a devida formalização dos termos aditivos?
Sim. No que tange à formalização dos ajustes contratuais necessários para permitir a execução do teletrabalho pelos empregados terceirizados, o parecer aduziu, ainda, acerca da possibilidade de que sejam encaminhados às empresas comunicados de ajustes contratuais, mediante justificativa no bojo do processo administrativo que evidencie o interesse público envolvido na alteração contratual, ressaltando que as alterações que gerem economicidade e melhoria na gestão e alocação de recursos não caracterizam ingerência, tendo em vista o interesse público em se evitar gastos indiretos à Administração.
O Parecer nº 106/2020, na mesma linha, apresentou conclusão no sentido de que, tendo em vista a situação excepcionalíssima e emergencial enfrentada, caso não haja tempo hábil para a formalização do termo aditivo contratual sem ampliação do risco a vidas humanas, a área competente deve juntar a devida justificativa de impossibilidade ao processo administrativo. Contudo, uma vez que a suspensão/redução constitui modificação das cláusulas contratuais, nos termos da Nota Técnica nº 66 – 2018 – Delog/Seges/MP, impõe-se a posterior formalização em termo aditivo.
A empresa prestadora de serviços terceirizados tem direito ao reequilíbrio financeiro do contrato?
Nos termos do Parecer nº 106/2020, havendo negativa da empresa quanto à determinação de suspensão/redução dos contratos por conta de questões econômico-financeiras (por exemplo, sob a alegação de que a planilha de formação de preços somente contém previsão de afastamentos legais), esta pode ter direito ao reequilíbrio financeiro do contrato. Se, comprovados, in casu, os requisitos legais necessários à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro fundada na ocorrência de álea extraordinária, nos termos do art. 65, inciso II, alínea “d” da Lei nº 8.666/93, e da Orientação Normativa nº 22/2009, da AGU, assistirá tal direito à empresa.
O Parecer nº 310/2020 apresentou posição semelhante, frisando que, uma vez comprovado o atendimento aos requisitos legais para cada hipótese de recomposição da equação econômico-financeira contratual, quais sejam, reajuste, revisão ou repactuação, assistirá tal direito à empresa terceirizada ou à própria Administração, salientando, porém, que não há como ser feita análise jurídica geral sobre a presença dos pressupostos para o restabelecimento da equação econômico-financeira do contrato administrativo, a qual deverá ser feita pela Administração em cada contrato que tenha mão de obra terceirizada, respeitadas as singularidades de cada caso.
Qual o procedimento a ser adotado para os terceirizados que se enquadram em algum grupo de risco e para aqueles que não integram grupos de risco?
Sintetizando a diferenciação de tratamento entre os empregados terceirizados que integram algum grupo de risco e aqueles que não integram, o Parecer nº 310/2020 trouxe as seguintes conclusões:
[1] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente cursando a oitava fase. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET Direito UFSC de 2017 a 2019, e atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica no campo do Direito Ambiental do Trabalho como bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC.
[2] Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46764-coronavirus-43-079-casos-e-2-741-mortes. Acesso em 12 jun. 2020.
[3] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-DAJI-terceirizados.pdf.pdf.pdf. Acesso em 12 jun. 2020.
[4] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/noticias/1264-recomendcoes-covid-19-terceirizados. Acesso em 12 jun. 2020.
[5] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-Consulta-SAA-Liberao-dos-Terceirizados.pdf. Acesso em 14 jun. 2020.
[6] Disponível em: https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/covid19/Parecer-63—COVID-19.pdf. Acesso em 14 jun. 2020.
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A emergência nacional é mais urgente do que a local?
Nesta sexta-feira (22 de maio de 2020), a advogada Giovanna Gamba publicou, juntamente com o Prof. Dr. Guilherme Jardim Jurksaitis, o artigo “Contratações públicas em tempos de pandemia” no Portal Jurídico JOTA, o qual pode ser visualizado neste link. Em razão da relevância do tema, vamos republicá-lo na íntegra, com a autorização da autora:
Contratações públicas em tempos de pandemia: A emergência nacional é mais urgente do que a local?
Por Giovanna Gamba e Guilherme Jardim Jurksaitis
A lei federal nº 13.979/2020 foi editada para viabilizar medidas de resposta e contenção à pandemia do covid-19. Seus dispositivos sobre contratações públicas são indicativos claros da insuficiência do regime habitual de licitações para atender às necessidades reais da administração pública, sobretudo em período de crise.
Todos conhecemos as críticas à lei de licitações. Para ficar nas mais frequentes: excesso de burocracia, que torna o procedimento lento e custoso; apego ao menor preço, com baixa preocupação com a qualidade do que se quer adquirir; complexidade de regras, que cria ambiente propício à concentração de mercado e à corrupção[1].
Essas críticas valem tanto para aquisições corriqueiras de itens de escritório como para a construção de um hospital de referência. A lei de licitações não parece distinguir prioridades e se preocupa demais com minúcias pouco relevantes para qualificar o contratante e o objeto contratado.
Em situações de emergência, a inadequação desse regime é bem maior. Não há como aguardar o prazo mínimo entre a publicação do edital e a sessão de abertura dos envelopes. E há ainda o risco de uma decisão judicial ou administrativa paralisar o certame. É preciso agir rápido e com precisão.
Para esses casos, a lei de licitações prevê a contratação direta por emergência ou calamidade pública (art. 24, IV). Essa medida está na legislação desde o decreto-lei 200, de 1967 (art. 126, § 2º, h). Apesar disso, contratações sem licitação para atender emergências são alvo de intensa desconfiança. Se, de um lado, há desvios no uso desse instrumento, de outro, parece haver predisposição para considerá-lo irregular. A literatura oferece exemplos a respeito desse debate[2] e há jurisprudência dos órgãos de controle sobre o tema[3].
A impressão é que os órgãos de controle tendem a minimizar as situações de emergência, que, em tese, poderiam ensejar a dispensa de licitação. É comum atribuir comportamento desidioso ao gestor público por não ter adotado medidas preventivas à situação excepcional; ou questionar a própria ocorrência da situação emergencial. Em ambos os casos, o que se verifica é uma tendência à idealização, distante do mundo real e das dificuldades da administração pública.
Não surpreende que a lei federal nº 13.979/2020 tenha se preocupado em criar regime especial para as contratações emergenciais durante a crise do covid-19. Ela estabeleceu a presunção de emergência para todas as contratações destinadas “ao enfrentamento da emergência de saúde pública” (art. 4º-B), diminuindo o ônus do gestor ao motivar contratações sem licitação.
Precisou-se de uma pandemia global para que se buscasse diminuir a desconfiança contra as contratações diretas por emergência. E os fatos não foram suficientes: sem a edição de uma nova lei nacional os gestores não teriam segurança.
A ampla aceitação da dispensa presumida da lei 13.979/2020 sugere que a emergência nacional é mais real do que a vivenciada cotidianamente pelas administrações subnacionais, com escassos recursos humanos e financeiros. No entanto, a emergência que mata cidadãos da pequena cidade do interior de Sergipe, o menor da Federação, também é importante e grave. E, portanto, igualmente impossível de ser enfrentada pelos procedimentos da lei 8.666/93. A reforçar este ponto, o Congresso Nacional promulgou recentemente a emenda constitucional número 106, que autoriza o poder executivo federal a adotar procedimento simplificados de contratações públicas, sem mencionar os demais poderes e as entidades subnacionais.
A emergência presumida da lei 13.979/2020 é uma resposta à sacralidade do regime atual de licitações e à visão utópica de que é possível planejar tudo. Os deveres da licitação e de planejamento não podem, nas situações de emergência, serem usados como armas apontadas para o gestor público. Licitações são importantes, claro. E planejar também. Mas é preciso ter olhos para a realidade. É difícil, da perspectiva do ambiente controlado dos gabinetes e escritórios, levar a sério a emergência que está longe.
No contexto de desigualdade federativa, em que a imensa maioria dos municípios sequer tem receitas próprias para suas estruturas administrativas, é injusto e ingênuo impor a todos os gestores o mesmo dever de bem planejar. Na escassez, o gestor público tem de escolher entre prover a merenda escolar, única fonte de alimentação para muitas crianças, ou construir o muro de arrimo para suportar chuvas torrenciais futuras. Ou decidir entre o abastecimento de remédios para o posto de saúde e a campanha de prevenção contra a dengue. É claro que tanto as chuvas de verão quanto as doenças sazonais são previsíveis. Mas ambas disputam lugar com demandas presentes e, por vezes, mais urgentes.
Importantes líderes mundiais, como Barack Obama[4] e Bill Gates[5], alertaram para uma pandemia global e ninguém fez nada no Brasil. Essa falha de planejamento não impede que se faça agora a dispensa das licitações. A lei 13.979/2020 reconhece que, se a emergência chegou, é preciso enfrentá-la com eficiência e rapidez, sem exageros formais e sem questionar o passado.
A experiência pela qual estamos passando oferece a oportunidade para refletir seriamente sobre o sistema brasileiro de contratações públicas. Que ele possa oferecer soluções céleres e efetivas, para atender às necessidades diárias e às excepcionais da administração e da coletividade, em âmbito nacional e local. Menos idealização e preconceitos – e mais resultado. O dever de reformar o regime habitual de contratações públicas é premente. Passada a pandemia, que se retome a tarefa.
Até lá, fique em casa.
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[1] Sobre o tema, conferir André Rosilho, Licitação no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013.
[2] Por todos, conferir Carlos Ari Sundfeld, “Dispensa de licitação por emergência. Condições de validade e o problema da responsabilidade do contratado” in Pareceres, Vol. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, pp.: 21-34.
[3] Como mostra Juliana Bonacorsi de Palma, em coluna neste Jota, disponível em [https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/o-controle-em-tempos-de-coronavirus-25032020], acesso em 1/5/2020.
[4] Now This News, “Obama warned the U.S. to prepare for a pandemic back in 2014”, Youtube, 9/4/2020. Disponível em [https://www.youtube.com/watch?v=pBVAnaHxHbM], acesso em 1/5/2020.
[5] Bill Gates, “A better response to the next pandemic”, Gates Notes, 18/1/2010. Disponível em [https://www.gatesnotes.com/Health/A-Better-Response-to-the-Next-Pandemic], acesso em 1/5/2020.
Read MoreExceto nos casos em que houver alguma regulamentação específica e própria, a Administração terá liberdade para empreender uma pesquisa de mercado com os potenciais particulares a serem contratados, estabelecendo diálogos público-privados com esses potenciais fornecedores, devidamente registrados no processo administrativo. A partir de uma análise discricionária e motivada das diferentes opções, elegerá o particular a ser contratado diretamente, justificando tal seleção.
Como deve ser selecionado o particular no processo de contratação direta por dispensa de licitação regida pela Lei nº 8.666/1993?
Apesar das diversas modalidades de licitação que visam à seleção, pela Administração, do particular mais qualificado para a execução de um contrato público, a Lei Federal nº 8.666/1993 também permite, em alguns casos excepcionais, a contratação direta por dispensa de licitação. Estas hipóteses estão previstas no rol taxativo dos incisos do artigo 24.
Nessa categoria de contratação que não depende de licitação, encontram-se as situações em que o legislador optou que, embora fosse tecnicamente possível, a realização do certame seria indesejada. Nesse cenário, em vez de proceder à licitação pública, o legislador entendeu que seria mais adequado contratar diretamente a empresa contratada.
Antes de tudo, é preciso salientar que a opção pela contratação direta, seja por dispensa ou inexigibilidade de licitação, deve ser feita em razão da necessidade administrativa observada pela Administração quando do planejamento da contratação pública. É dizer: durante a fase interna do processo de contratação, a Administração identifica a sua necessidade e elege a solução que mais bem atende a essa necessidade. Se essa solução estiver enquadrada na hipótese de dispensa, ela será válida.
Seguindo a análise, tem-se que o rol de hipóteses, contido no artigo 24 da Lei Federal nº 8.666/1993, é taxativo. Isto é, as hipóteses de dispensa de licitação estão dispostas nos incisos do artigo 24 e o administrador está permitido a contratar diretamente, por dispensa, apenas quando o caso se enquadrar na descrição da hipótese.
Alguns exemplos comumente vistos na prática administrativa são as situações que, em razão de um caso de emergência, possuem urgência na resolução de uma demanda administrativa, de modo que a realização de licitação pública seria imprópria pela demora na obtenção do contrato (inciso IV do artigo 24 da Lei Federal nº 8.666/1993), e as hipóteses de contratação de pequeno valor (incisos I e II do artigo 24), em que a realização do procedimento licitatório produziria um custo desproporcional ao valor do contrato administrativo pretendido.
A título de informação, menciona-se que a Lei Federal nº 13.979/2020, editada para auxiliar no enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, previu uma nova hipótese de dispensa de licitação: nas situações em que a Administração pretende contratar bens, serviços (inclusive de engenharia) e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia de COVID-19 (artigo 4º da Lei Federal nº 13.979/2020[1]).
Sobre o procedimento a ser empreendido para a contratação direta por dispensa de licitação, é importante salientar o que dispõe o artigo 26 da Lei nº 8.666/1993[2]. Este dispositivo determina que as dispensas previstas nos §§ 2º e 4º do artigo 17 e, para o que interessa a este texto, no inciso III e seguintes do artigo 24 devem ser comunicadas, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos.
Vale ressaltar, ainda, o parágrafo único do mesmo artigo 26, segundo o qual:
Parágrafo único. O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I – caracterização da situação emergencial, calamitosa ou de grave e iminente risco à segurança pública que justifique a dispensa, quando for o caso;
II – razão da escolha do fornecedor ou executante;
III – justificativa do preço.
IV – documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados;
Mas, afinal, como devem ser interpretados tais regramentos?
Pois bem. Em relação à dúvida sobre a necessidade de que a Administração estabeleça regras objetivas no que toca à quantidade de empresas chamadas a apresentarem propostas e no que toca à forma de seleção da contratada, antecipa-se que não há qualquer previsão legal que determine, de forma objetiva, o número mínimo de empresas a serem chamadas para apresentação de proposta, tampouco há regramento para com os critérios a serem utilizados pela Administração para selecionar a empresa contratada.
Em outras palavras, não há qualquer impedimento legal, ou regulamentação em nível de lei, sobre o número de empresas que devem apresentar proposta e nem sobre os critérios que a Administração precisaria avaliar para selecionar o contratado. Estas questões dizem respeito às licitações, não à dispensa. Ou seja, a Lei Federal nº 8.666/1993 permite o ato de dispensar a licitação, mas não o delimita.
A regulamentação do procedimento para seleção do particular a ser contratado diretamente pode, eventualmente, ocorrer no âmbito infralegal de cada ente federado – tal como no âmbito federal, em que se prevê a dispensa eletrônica (artigo 51 do Decreto Federal nº 10.024/2019), ainda não regulamentada, que deverá substituir a cotação eletrônica (Portaria MPOG nº 306/01), ambos mecanismos destinados à seleção simplificada de fornecedor que apresente o menor preço para contratações de bens de pequeno valor.
Agora, esta ausência de critérios legais objetivos para a seleção da licitante não significa que se está em ambiente de plena liberalidade do agente público. Não. A escolha é discricionária, sim, porém devidamente – e tecnicamente – motivada. E afirma-se isto com tamanha categoria porquanto o próprio artigo 26 da Lei de Licitações e Contratos, em seu parágrafo único, supracitado, impõe que as seleções feitas pela Administração, ainda que em caso de dispensa de licitação, sejam devidamente justificadas.
Obrigatoriamente, o agente público deve apresentar a razão da escolha do fornecedor ou executante (artigo 26, parágrafo único, inciso II) e, também, a justificativa do preço (artigo, parágrafo único, inciso III). Sendo tais requisitos preteridos, impõe-se a anulação do ato administrativo que selecionar a empresa, ou mesmo do contrato.
A propósito, o Tribunal de Conta da União (TCU) possui jurisprudência pacífica a qual caminha na mesma direção: é preciso justificar a escolha da empresa contratada. Tanto o é, que o ministro Marcos Bemquerer Costa, relator do Acórdão nº 2186/2019, postulou que “a legislação, no caso de dispensa de licitação, não impõe regras objetivas quanto à quantidade e à forma de seleção do contratado, mas determina que essa escolha seja justificada”[3].
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) trilha o mesmo rumo. Em sede de Agravo em Recurso Especial[4], afirmou o relator, ministro João Otávio de Noronha, ser “incontroverso que a falta de justificativa (pautada no interesse público) levada a efeito no caso em exame, impõe a nulidade do ato. Ademais, não houve sequer procedimento prévio acerca da dispensa da licitação com suas justificativas, como exige o artigo 26 da Lei 8666/93 […]”.
Exceto nos casos em que houver alguma regulamentação específica e própria, a Administração terá liberdade para empreender uma pesquisa de mercado com os potenciais particulares a serem contratados, estabelecendo diálogos público-privados com esses potenciais fornecedores, devidamente registrados no processo administrativo. A partir de uma análise discricionária e motivada das diferentes opções, elegerá o particular a ser contratado diretamente, justificando tal seleção.
Portanto, conclui-se que, embora não haja regras concretas e objetivas no atinente à quantidade e à forma de seleção do contratado, deve a Administração, necessariamente, e em atenção ao parágrafo único do artigo 26 da Lei Federal nº 8.666/93, apresentar a razão da escolha do contratado e a justificativa do preço, sob pena de nulidade do ato.
[1] Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
[2] Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2o e 4o do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8o desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos
[3] TCU – RP: 00174720185, Relator: MARCOS BEMQUERER, Data de Julgamento: 11/09/2019, Plenário.
[4] STJ – AREsp: 1610192 MS 2019/0323149-7, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Publicação: DJ 03/02/2020.
Read MorePor inúmeras potenciais razões, há casos em que o contratado não é capaz de manter ou de comprovar a manutenção de sua regularidade fiscal durante a execução do contrato. E aí surge a questão: qual a consequência jurídica?
O Poder Público pode se recusar a pagar por serviços já prestados em razão de irregularidade fiscal posterior à celebração ou execução do contrato?
A prestação de serviços para a Administração Pública, de maneira geral, pode ser uma estratégia atrativa para empresas privadas que visam a firmar contratos de larga escala e/ou de longo prazo, em busca de lucros ou, ao menos, de fluxo financeiro, em benefício de sua saúde financeira, posicionamento no mercado ou até mesmo de expansão de atividades.
Entretanto, esta oportunidade é acompanhada de uma série de obrigações típicas, que não são comuns às contratações privadas. Ou seja, o processo de contratação pública é permeado de fases burocráticas, as quais demandam a apresentação, pelo particular, de uma grande quantidade de documentos a fim de comprovar, dentre outras coisas, as exigências contidas no inciso IV do artigo 27 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal nº 8.666/93), que estabelece a regularidade fiscal como condicionante para a habilitação da empresa na licitação.
Sobre o tema, é necessário observar as determinações feitas pelo artigo 29 da referida Lei, que consistem, especificamente, na prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei. E essa demonstração de regularidade fiscal deve ocorrer na fase de habilitação da empresa licitante, que se dá, invariavelmente, em momento anterior ao início da execução dos serviços contratados.
Ocorre que, de acordo com o inciso XIII do artigo 55 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o contratado tem a obrigação de “manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. Aplicando-se ao tema em análise, isto significa que o contratado precisa manter, durante a execução do contrato, a sua regularidade fiscal perante a Fazenda Pública.
Por inúmeras potenciais razões, há casos em que o contratado não é capaz de manter ou de comprovar a manutenção de sua regularidade fiscal durante a execução do contrato. E aí surge a questão: qual a consequência jurídica? A Administração Pública pode reter o pagamento por prestações já executadas? Deve-se rescindir o contrato?
Conforme se comprova a partir de inúmeros casos levados à análise do Poder Judiciário, há casos em que a Administração Pública retém repasses financeiros a empresas contratadas, após o início da execução dos serviços, em razão de irregularidades fiscais surgidas posteriormente à celebração ou execução do contrato.
No entanto, como não existe previsão legal que possibilite a imposição desta prática, tampouco isto se caracteriza como uma possibilidade de penalidade administrativa, os Tribunais possuem decisões reconhecendo a ilegalidade desta conduta administrativa.
Este entendimento é evidenciado em decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de maio de 2019, proferida pela Segunda Turma de Direito Público, segundo a qual, “apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência” (STJ, AgInt no REsp 1742457/CE).
De acordo com o voto do Relator Ministro Francisco Falcão, acolhido por unanimidade, a imposição de regularidade fiscal como condição para pagamento de serviços já prestados implicaria em afronta aos princípios norteadores da atividade administrativa, uma vez que não se revela razoável “que a comprovação de regularidade fiscal seja imposta como condição para a liberação do pagamento pelos serviços prestados”.
Ressalta-se que não se trata de um entendimento isolado da Segunda Turma. Conforme se depreende do acórdão RMS 53.467/SE, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, que seguiu exatamente na mesma linha de que é “vedada a retenção do pagamento pelos serviços prestados”.
Inclusive, o Tribunal de Contas da União (TCU) compartilha do entendimento do STJ, como se verifica do Acórdão 964/2012, do Plenário, cujo relator foi o Ministro Walton Alencar Rodrigues. O posicionamento do TCU nesse caso gerou o seguinte enunciado:
Enunciado
A perda da regularidade fiscal, inclusive quanto à seguridade social, no curso de contratos de execução continuada ou parcelada justifica a imposição de sanções à contratada, mas não autoriza a retenção de pagamentos por serviços prestados. (TCU, Acórdão 964/2012, Plenário. Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues. Julgado em 25/04/2012)
Abaixo estão as ementas dos acórdãos da Segunda Turma do STJ mencionados:
AGRAVO INTERNO. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE. CONTRATAÇÃO COM A MUNICIPALIDADE. SERVIÇOS JÁ REALIZADOS. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. RETENÇÃO DO PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
I – Na origem, a Associação Beneficente Cearense de Reabilitação – ABCR impetrou mandado de segurança contra ato do Secretario de Saúde do Município de Fortaleza, pretendendo receber o repasse financeiro relativo a serviços por ela prestados, decorrente de contrato entabulado entre as partes, sem a necessidade de apresentação de certidão negativa expedida pela Fazenda Pública Nacional.
II – O Tribunal a quo manteve a decisão concessiva da ordem.
III – Ao recurso especial interposto pela municipalidade foi negado provimento, com base na Súmula 568/STJ, em razão da jurisprudência da Corte encontrar-se pacificada no mesmo sentido da decisão recorrida: apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência. Precedentes: REsp n. 1.173.735/RN, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 9/5/2014, RMS n. 53.467/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 27/06/2017, dentre outros.
IV – Os argumentos trazidos pelo agravante não são suficientes para alterar o entendimento prestigiado pela decisão atacada.
V – Agravo interno improvido. [grifo acrescido]
(STJ, AgInt no REsp 1742457/CE, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 23/05/2019, DJe 07/06/2019).
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. ILEGALIDADE NÃO CONFIGURADA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO DEMONSTRADO.
[…] 2. O Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe concedeu parcialmente a ordem, para determinar à autoridade impetrada, exclusivamente, que se abstenha de condicionar o pagamento relativo às faturas das notas fiscais referentes aos serviços executados, decorrentes do contrato administrativo 55/2013, à apresentação de certidões negativas de débitos e/ou de regularidade fiscal (fls. 121-129, e-STJ).
- A decisão impugnada não merece reforma, pois cabe à recorrente cumprir com sua obrigação de apresentar a comprovação de sua regularidade fiscal, sob pena de ver rescindido o contrato com o Município pelo descumprimento de cláusula contratual, em que pese ser vedada a retenção do pagamento pelos serviços prestados, como ocorreu na espécie, no que tange às notas fiscais apresentadas na petição inicial. […]
- A recorrente não trouxe argumento capaz de infirmar os fundamentos da decisão recorrida e demonstrar a ofensa ao direito líquido e certo.
- Recurso Ordinário não provido. [grifo acrescido]
(STJ, RMS 53.467/SE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 30/06/2017)
Portanto, o entendimento que prevalece na Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Tribunal de Contas da União (TCU) é de que, embora seja dever da empresa contratada comprovar a sua regularidade fiscal, inclusive durante a execução do contrato, o Poder Público não pode se recusar a pagar pelos serviços já prestados, sob pena de cometer um ato administrativo ilegal e passível de reforma pelos órgãos de controle. As exceções existentes a este entendimento são bastante pontuais e estão relacionadas a casos em que a Administração Pública corre o risco de ser responsabilizada pelo débito fiscal pendente e inadimplido por parte do contratado.
Read MoreExiste o entendimento de que a suspensão do direito de licitar não se aplica a todas os processos licitatórios, ou seja, de que essa suspensão é válida apenas para as licitações lançadas pelo órgão ou entidade que aplicou a penalidade. Foi o que decidiu o Tribunal de Contas da União (TCU).
A penalidade de suspensão temporária do direito de licitar é válida apenas para o órgão/entidade que aplicou a sanção?
O descumprimento de contratos decorrentes de processos licitatórios pode trazer graves prejuízos para a Administração Pública, colocando em risco a segurança e a efetividade desta forma de contratação. Por este motivo, a Lei Federal nº 8.666/1993[1]Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm estabelece diversas penalidades a serem aplicadas às empresas contratadas que descumprirem com a execução dos contratos administrativos firmados.
Exemplo disso é a suspensão temporária do direito de licitar, sanção prevista no artigo 87, inciso III, da Lei Federal nº 8.666/1993[2]Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: […] III – suspensão … Continue reading. Esta medida impede que determinada empresa volte a participar de processo licitatório e firme contratos com a Administração por até dois anos, em decorrência de descumprimento do objeto contratual anteriormente pactuado.
Entretanto, existe divergência a respeito da amplitude desta penalidade. Por um lado, há o entendimento de que a suspensão do direito de licitar não se aplica a todas os processos licitatórios, ou seja, de que essa suspensão é válida apenas para as licitações lançadas pelo órgão ou entidade que aplicou a penalidade.
Foi o que decidiu o Tribunal de Contas da União (TCU), em decisão de fevereiro de 2019, que acolheu a manifestação da unidade técnica. Confira-se:
3. Por outro lado, o Diretor da unidade técnica especializada manifestou concordância parcial com a proposta de mérito, divergindo apenas quanto ao juízo sobre o procedimento da DPU ao inabilitar a representante em face de sanção pretérita de suspensão do direito de participar de licitações e de impedimento de contratar com a Administração (art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993), aplicada por outro órgão promotor, em afronta ao entendimento do TCU de que a abrangência dessa penalidade se restringe ao órgão/entidade sancionadora.[3]TCU, Acórdão nº 266/2019, TC 042.073/2018-9, Plenário, Relator Aroldo Cedraz, julgado em 13/02/2019.
Este entendimento adota o entendimento de que a mesma Lei que estabelece esta penalidade também conceitua importante diferença semântica entre as expressões “Administração Pública” e “Administração”. Por Administração Pública, tem-se o conjunto de órgãos e entidades do poder público através dos quais se exerce a administração direta e indireta da União. Já a Administração diz respeito a uma unidade administrativa isolada, através da qual a Administração Pública opera.
Note-se que, para o Tribunal de Contas da União (TCU), o conceito de Administração faz parte do conjunto da Administração Pública, mas não se confunde com ela. Apesar de, à primeira vista, se tratar de uma diferença conceitual sutil, na prática estes dois conceitos fazem toda a diferença. A penalidade disposta no artigo 87, inciso III da Lei de Licitações expressa claramente que haverá “suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração”, ou seja, que a parte penalizada não poderá firmar contrato com o órgão individual que aplicou a penalidade citada.
Por outro lado, existe o entendimento sustentado, ao menos até o momento, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Veja-se um exemplo:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE PARTICIPAR DE LICITAÇÃO E IMPEDIMENTO DE CONTRATAR. ALCANCE DA PENALIDADE. TODA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. […] 2. De acordo com a jurisprudência do STJ, a penalidade prevista no art. 87, III, da Lei n. 8.666/1993 não produz efeitos apenas em relação ao ente federativo sancionador, mas alcança toda a Administração Pública […][4]STJ, AIRESP 201301345226, GURGEL DE FARIA, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:31/03/2017.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) adota um conceito ampliado de Administração, que enfatiza o princípio da unidade administrativa, assumindo que os efeitos da conduta que inabilita o sujeito para a contratação devem se estender a qualquer órgão ou entidade da Administração Pública.
Por fim, registre-se que a Lei Federal nº 13.979/2020 permitiu, excepcionalmente, a contratação de particular que esteja com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, desde que, comprovadamente, seja o único fornecedor do bem ou serviço necessário ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da COVID-19 (art. 4º, § 3º).
Referências[+]
↑1 | Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm |
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↑2 | Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: […]
III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos. |
↑3 | TCU, Acórdão nº 266/2019, TC 042.073/2018-9, Plenário, Relator Aroldo Cedraz, julgado em 13/02/2019. |
↑4 | STJ, AIRESP 201301345226, GURGEL DE FARIA, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:31/03/2017. |