Como funciona a etapa preparatória de uma licitação pública: definição dos aspectos da contratação
Diferente do que se imagina, as contratações públicas não têm início com a publicação do Edital. O processo licitatório é um procedimento extenso e dividido em fases, que tem início com a chamada etapa preparatória da contratação pública.
Esta etapa preparatória é destinada a identificar a existência de interesse público na contratação pretendida e a planejar as futuras etapas da contratação.
Depois de elaborados os estudos prévios que justificam e fundamentam a necessidade de contratação pública, a Administração também deve definir aspectos práticos do processo licitatório (caso a seleção do particular não ocorra diretamente, por dispensa ou inexigibilidade de licitação pública). São eles: o edital do certame, a modalidade licitatória, a motivação das condições exigidas no edital e a motivação sobre o momento da divulgação do orçamento da licitação (art. 18, V, VIII, IX e XI da Lei 14.133/2021).
A seguir serão apresentadas as regras e novidades trazidas pela Nova Lei de Licitações a respeito dos aspectos práticos definidos na fase preparatória da licitação pública, além de outros instrumentos de preparação disponíveis à administração pública.
Definição dos aspectos da licitação
A elaboração do edital (art. 18, V) é parte essencial do planejamento do processo licitatório. É este instrumento que regulamentará todo o procedimento após encerrada a fase preparatória da licitação e ao qual estarão vinculados tanto os licitantes quanto a própria Administração. Para tanto, o edital da licitação deve conter (art. 25):
- o objeto da licitação;
- as regras relativas à convocação;
- regras relativas ao julgamento;
- regras relativas à habilitação;
- regras relativas aos recursos e às penalidades da licitação;
- regras relativas à fiscalização e à gestão do contrato;
- regras relativas à entrega do objeto;
- regras relativas às condições de pagamento.
Além de prever todas as regras que orientarão a licitação, a etapa de elaboração do Edital na fase preparatória também deve apresentar a motivação circunstanciada das condições do edital (art. 18, IX). Ou seja, devem ser justificadas as exigências do edital, como, por exemplo, requisitos de qualificação técnica, regras de pontuação e julgamento das propostas e regras para participação de consórcios.
Também nesta fase deve ser definida a modalidade de licitação, o critério de julgamento e o modo de disputa que serão adotados na etapa de seleção da proposta vencedora. Indo além, a Lei também exige que seja demonstrada a adequação e eficiência dos parâmetros escolhidos para a seleção da melhor proposta. Conforme a NLLCA, a Administração Pública pode optar pelos seguintes parâmetros:
Além das modalidades de licitação elencadas, a Administração ainda pode se valer dos procedimentos auxiliares: credenciamento, pré-qualificação, procedimento de manifestação de interesse, sistema de registro de preços e registro cadastral (art. 28, § 1º, e art. 78).
E, ainda, é necessário definir o momento de divulgação do orçamento da licitação. A princípio, a NLLCA assegura a publicidade dos atos praticados no processo licitatório (art. 13), incluindo o orçamento da contratação pública. Contudo, o artigo 24 da mesma lei traz exceção, nos seguintes termos:
Art. 24. Desde que justificado, o orçamento estimado da contratação poderá ter caráter sigiloso, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas, e, nesse caso:
I – o sigilo não prevalecerá para os órgãos de controle interno e externo;
Parágrafo único. Na hipótese de licitação em que for adotado o critério de julgamento por maior desconto, o preço estimado ou o máximo aceitável constará do edital da licitação.
Desta forma, a Administração possui discricionariedade para definir se o orçamento da contratação pública será ou não sigiloso, desde que justifique a opção adotada (art. 18, XI).
Definição dos aspectos contratuais
Ainda na fase preparatória, além das regras para a etapa de seleção da melhor proposta, a Administração Pública também deve definir as regras para a execução do contrato administrativo. Nesse sentido, deve ser estabelecido, além de outras particularidades do caso concreto, as seguintes condições:
- de execução e pagamento (art. 18, III);
- das garantias exigidas e ofertadas (art. 18, III);
- das condições de recebimento (art. 18, III); e
- o regime de fornecimento de bens de prestação de serviços ou de execução de obras e serviços de engenharia (art. 18, VII)
A definição dos referidos parâmetros será registrada na minuta contratual, que deve ser anexada ao edital do certame (art. 18, VI) e divulgada em sítio eletrônico oficial (art. 25, § 3º).
Análise de riscos
Buscando a otimização das chances de sucesso nos projetos e ganho de eficiência nas contratações públicas, o gerenciamento de riscos ganhou destaque na Lei nº 14.133/2021. Em seu artigo 18, inciso X, essa lei determina que na fase preparatória de todas as licitações deve haver a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual, com apoio na ideia de accountability pública[1]De acordo com o Referencial Básico de Gestão de Riscos do TCU, accountability pública é a “obrigação que têm as pessoas, físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, às quais se tenha … Continue reading.
A análise ou avaliação de riscos (risk assessment) e a implementação de medidas para diminuir a probabilidade e os impactos dos riscos negativos (ameaças) ou aumentar a probabilidade e o impacto dos riscos positivos (oportunidades) integram a ideia de gerenciamento de riscos (risk management) de todo o sistema de contratação dos órgãos públicos. Trata-se, essencialmente, de uma atividade de planejamento, que permite à Administração identificar e tratar os riscos nas licitações e nos contratos.
Com efeito, a análise de riscos fornece insumos tanto para que a Administração possa melhorar, construir, gerir e fiscalizar a licitação, assim como para construir a matriz de riscos do contrato, sendo esta uma cláusula contratual que distribui riscos e responsabilidades, em relação ao objeto da contratação, entre a Administração e o futuro contratado.
Neste ponto, é válido o destaque de que a análise de riscos de que trata o artigo 18, inciso X, não se confunde com a matriz de riscos[2]NIEBUHR, Joel de Menezes. Fase preparatória das licitações. In: NIEBUHR, Joel de Menezes (Coord.). Nova lei de licitações e contratos administrativos. 2. ed. Curitiba: Zênite, 2021. p. 80-95.. A análise está em um plano mais amplo e envolve todos os riscos da licitação e da contratação, sendo uma atividade de planejamento e gerenciamento da organização (órgão ou entidade) e dos projetos. A matriz de riscos é um documento/cláusula contratual, decorrente da análise de riscos que distribui riscos apenas do contrato e define o seu equilíbrio econômico-financeiro inicial.
Para exemplificar essa distinção, imagine-se que na etapa de análise de riscos, a Administração verifique, entre outros, estes três riscos:
- risco de que empresas de um determinado ramo com número reduzido de agentes econômicos (players) atuem em conjunto (conluio) para frustrar a competição;
- risco de que ocorra perda de informações em razão de diversas substituições do fiscal do contrato em longo da execução contratual; e
- risco de furto dos materiais da obra durante a execução contratual.
Neste cenário hipotético, o primeiro risco levará a Administração a elaborar regras no instrumento convocatório para coibir atos colusivos contra a licitação pelos futuros licitantes. O segundo risco fará a Administração estabelecer diretrizes internas para que os fiscais do contrato documentem adequadamente as ocorrências durante a execução contratual, evitando a perda de informações. Já o terceiro risco levará a Administração a fixar, na matriz de riscos do contrato, quem será a parte (contratante ou contratada) responsável por garantir a segurança dos materiais da obra, e se haverá direito ao reequilíbrio contratual na ocorrência de furtos[3]O critério de eficiência na alocação de riscos, de acordo com o advogado Lucas Hellmann, do escritório Schiefler Advocacia, tem como primeiro parâmetro alocar o risco “à parte que tem … Continue reading. Veja-se que todos os riscos foram levantados na fase de análise de riscos, mas somente o terceiro é um risco contratual a ser previsto na matriz de riscos do contrato.
Por fim, destaca-se que, embora a análise de riscos seja obrigatória para todas as contratações, a elaboração da matriz de riscos é obrigatória apenas para os contratos estimados de grande vulto (acima de R$ 200 milhões) e para as contratações integradas e semi-integradas (art. 22, § 3º) sendo, portanto, facultativa para os demais contratos. Esse instrumento será detidamente analisado posteriormente.
Audiência e consulta pública
Na fase de planejamento a Administração poderá convocar audiência pública, presencial ou a distância, sobre a licitação que pretende realizar, com disponibilização prévia de informações pertinentes, inclusive de estudo técnico preliminar e elementos do edital de licitação, e com possibilidade de manifestação de todos os interessados.
De igual modo, a Administração também poderá submeter a licitação a prévia consulta pública, mediante a disponibilização de seus elementos a todos os interessados, que poderão formular sugestões, por escrito, no prazo fixado.
O traço distintivo entre a audiência pública e a consulta pública é que, na primeira, os participantes podem se manifestar oralmente em relação ao processo licitatório, enquanto que, na segunda, as manifestações ocorrem por escrito e de modo assíncrono. De acordo com a Nova Lei de Licitações, nenhuma das duas formas de interação entre a Administração e os particulares é obrigatória.
Análise jurídica e publicidade da contratação
A fase de planejamento tem encerramento com o encaminhamento do processo ao órgão de assessoramento jurídico da Administração, que realizará controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação (art. 53), seja para as licitações assim como para as contratações diretas, acordos, termos de cooperação, convênios, ajustes, adesões a atas de registro de preços, outros instrumentos congêneres e de seus termos aditivos (art. 53, § 4º).
Essa análise jurídica é dispensada apenas nas hipóteses previamente definidas pela autoridade jurídica máxima competente, que deverá considerar o baixo valor, a baixa complexidade da contratação, a entrega imediata do bem ou a utilização de minutas de editais e instrumentos contratuais padronizados pelo órgão de assessoramento jurídico (art. 53, § 5º).
Por fim, encerrada a instrução do processo sob os aspectos técnico e jurídico, é feita a publicidade do edital de licitação, em seu inteiro teor e com todos os seus anexos, no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), conforme determina o artigo 54 da NLLCA. Além da publicação do edital no PNCP, sendo facultada a publicação no site oficial do órgão ou entidade, é obrigatória a publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, bem como em jornal diário de grande circulação (art. 54, § 1º).
Catálogo eletrônico de padronização
Uma inovação trazida pela Nova Lei de Licitação e Contratos Administrativos é a previsão de criação do catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras pelos órgãos do Poder Público, instrumento que deverá ser utilizado em licitações cujo critério de julgamento seja o de menor preço ou o de maior desconto e conterá a documentação e os procedimentos próprios da fase interna de licitações, assim como as especificações dos respectivos objetos (art. 19, § 1º). A não utilização do catálogo só é permitida quando devidamente justificada (art. 19, § 2º).
Desta forma, se forem utilizadas as informações do catálogo para subsidiar a licitação, a Administração é dispensada de produzir nova documentação na fase de preparação da licitação. A existência e o efetivo uso de um catálogo eletrônico de padronização leva potencial disruptivo em relação à sistemática anterior, uma vez que a pretensão é que toda a fase de preparatória da licitação seja, no que for possível, padronizada, diminuindo significativamente os esforços casuísticos de planejamento.
Ponto de atenção é que, embora o artigo 19, § 1º, da NLLCA genericamente afirme que o catálogo conterá “toda a documentação e os procedimentos próprios da fase interna de licitações”, é indispensável que a Administração descreva detalhadamente, em todos os processos de contratação (com ou sem a utilização do Catálogo), a necessidade da contratação, considerado o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público (elemento integrante do estudo técnico preliminar), uma vez que essa é uma informação própria de cada caso e processo.
No âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, o catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras é regulamentado pela Portaria SEGES/ME nº 938/2022.
Plano de contratações anual
De acordo com o caput do artigo 18 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual (PAC), sempre que elaborado[4]Instrumento cuja origem remonta à Instrução Normativa nº 1/2018 (já revogada), da Secretaria de Gestão do extinto Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, posteriormente … Continue reading.
Na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o plano de contratações anual foi incorporado em seu artigo 12, inciso VII, mas é o artigo 5º do Decreto Federal nº 10.947/2022 – diploma que regulamenta o instrumento no âmbito federal – que melhor aponta os objetivos do PAC. São eles:
- racionalizar as contratações das unidades administrativas de sua competência, por meio da promoção de contratações centralizadas e compartilhadas, a fim de obter economia de escala, padronização de produtos e serviços e redução de custos processuais;
- garantir o alinhamento com o planejamento estratégico, o plano diretor de logística sustentável e outros instrumentos de governança existentes;
- subsidiar a elaboração das leis orçamentárias;
- evitar o fracionamento de despesas; e
- sinalizar intenções ao mercado fornecedor, de forma a aumentar o diálogo potencial com o mercado e incrementar a competitividade.
Assim, o plano de contratações anual se afigura como um instrumento que busca concretizar, a um só tempo, diversos princípios das licitações e contratos públicos, como o do planejamento, da eficiência, da transparência, da segurança jurídica, da eficácia, da competitividade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, todos encartados no artigo 5º da Lei nº 14.133/2021.
Neste sentido, ainda que o artigo 12, inciso VII, da NLLCA afirme que “a partir de documentos de formalização de demandas, os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual”, a elaboração do plano se trata “de um ‘poder-dever’, na medida em que prestigia toda a principiologia afeta às contratações públicas, compreendendo mecanismo estratégico importante para a eficiência administrativa”[5]Consultoria Zênite. Plano de Contratações Anual: mecanismo estratégico das contratações públicas, agora regulamentado pelo Decreto nº 10.947/2022. Curitiba: 2022. Disponível em: … Continue reading, como pontua a Consultoria Zênite.
Ademais, de acordo com o mesmo inciso VII do artigo 12 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, cabe aos entes federativos regulamentarem o plano de contratações anual, de acordo com as características e peculiaridades locais.
Na esfera federal, essa regulamentação foi feita pelo supramencionado Decreto Federal nº 10.947/2022, que estabelece requisitos, diretrizes e regras para a elaboração do PAC, com destaque para a obrigatoriedade da elaboração do plano no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, inclusive para as contratações diretas e com recursos oriundos de empréstimos e doações (art. 6º, I e II), excetuando-se as contratações elencadas no art. 7º; e a fixação de uma data limite para a realização do plano (até a primeira quinzena de maio de cada exercício, em relação às contratações pretendidas para o exercício subsequente).
Conclusão
Conhecer a etapa preparatória de uma licitação é essencial para qualquer licitante que busque ingressar no mercado de vendas públicas com segurança e garantir o sucesso do negócio.
O conhecimento das diretrizes planejadas pelo poder público garantem também a organização e o planejamento da empresa licitante para atender ao futuro contrato administrativo, além de permitir a verificação da legalidade do processo licitatório.
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Referências[+]
↑1 | De acordo com o Referencial Básico de Gestão de Riscos do TCU, accountability pública é a “obrigação que têm as pessoas, físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, às quais se tenha confiado recursos públicos, de assumir as responsabilidades de ordem fiscal, gerencial e programática que lhes foram conferidas, e de informar a sociedade e a quem lhes delegou essas responsabilidades sobre o cumprimento de objetivos e metas e o desempenho alcançado na gestão dos recursos públicos. É, ainda, obrigação imposta a uma pessoa ou entidade auditada de demonstrar que administrou ou controlou os recursos que lhe foram confiados em conformidade com os termos segundo os quais eles lhe foram entregues” (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de gestão de riscos. Brasília: Tribunal de Contas da União, 2018). |
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↑2 | NIEBUHR, Joel de Menezes. Fase preparatória das licitações. In: NIEBUHR, Joel de Menezes (Coord.). Nova lei de licitações e contratos administrativos. 2. ed. Curitiba: Zênite, 2021. p. 80-95. |
↑3 | O critério de eficiência na alocação de riscos, de acordo com o advogado Lucas Hellmann, do escritório Schiefler Advocacia, tem como primeiro parâmetro alocar o risco “à parte que tem capacidade de, a um menor custo, prevenir a ocorrência do evento indesejado ou de promover o evento desejável ou, ainda, de controlar as consequências da sua materialização”. Sendo assim, no caso de furtos em obras, esse risco deve ser, via de regra, alocado ao particular, pois “é a parte que, a custo mais baixo, pode implementar medidas para evitar a ocorrência desses eventos” (HELLMANN, Lucas. A alocação eficiente de riscos contratuais conforme a Lei nº 14.133/2021: por um método de repartição de responsabilidades com a manutenção do equilíbrio econômico financeiro dos contratos administrativos. 2021. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/228676. Acesso em 21 mar. 2022). |
↑4 | Instrumento cuja origem remonta à Instrução Normativa nº 1/2018 (já revogada), da Secretaria de Gestão do extinto Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, posteriormente substituída pela Instrução Normativa nº 1/2019, da Secretaria de Gestão do Ministério da Economia. |
↑5 | Consultoria Zênite. Plano de Contratações Anual: mecanismo estratégico das contratações públicas, agora regulamentado pelo Decreto nº 10.947/2022. Curitiba: 2022. Disponível em: https://zenite.blog.br/plano-de-contratacoes-anual-mecanismo-estrategico-das-contratacoes-publicas-agora-regulamentado-pelo-decreto-no-10-947-2022/. Acesso em: 21 mar. 2022. |
Como funciona a etapa preparatória de uma licitação pública: estudos preliminares
A licitação é o processo administrativo típico por meio do qual a Administração Pública seleciona o particular com quem celebrará um contrato administrativo. Por meio deste contrato, a Administração Pública obriga-se a adquirir ou vender um bem, ou a receber a prestação de um serviço, ou então a promover a delegação de uma atividade de utilidade pública. Trata-se de um processo complexo e dividido em fases, que tem início com a fase preparatória.
A fase preparatória é caracterizada pelo planejamento da contratação pretendida pelo órgão ou entidade pública. É a pedra fundamental de qualquer processo licitatório (ou processo de contratação direta, que ocorre por meio de dispensa ou inexigibilidade de licitação) e a maior responsável pelo sucesso do futuro contrato. Afinal de contas, é durante o planejamento da licitação pública que são levantadas e definidas as informações técnicas e financeiras essenciais para que a execução contratual ocorra conforme o esperado.
Inclusive, uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2019[1]BRASIL. Tribunal de Contas da União. Auditoria Operacional Sobre Obras Paralisadas. Brasília: Tribunal de Contas da União, 2018. Disponível em: … Continue reading, a partir de um levantamento de mais de 38 mil contratos de obras públicas financiadas com recursos federais, verificou-se que o Brasil possuía mais de 14 mil obras paralisadas ou inacabadas, o que representava cerca de 37,5% de todas as obras contratadas e ainda não concluídas. O mesmo estudo apontou que 47% das paralisações (dentre os contratos do Programa de Aceleração do Crescimento) foram motivadas por problemas técnicos, e 10% por problemas financeiros. Ou seja, mais da metade das obras estava paralisada diretamente em razão de deficiências no planejamento (técnico e/ou financeiro) das contratações.
Tais dados demonstram a importância da fase preparatória das contratações públicas e os grandes impactos negativos que um planejamento deficitário gera à própria Administração, assim como aos contratados e, principalmente, à sociedade, que paga por um produto, serviço ou obra que não é entregue adequadamente.
A Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitação e Contratos Administrativos) parte desse diagnóstico e, diferentemente da Lei nº 8.666/1993, dá grande atenção à fase preparatória da licitação, elevando a etapa de planejamento ao patamar de princípio jurídico (embora se qualifique, em verdade, como uma diretriz) e estabelecendo procedimentos mínimos que devem ser realizados pelos gestores públicos, notadamente a partir do seu artigo 18.
Neste texto, veremos os principais aspectos e os estudos preliminares exigidos na fase preparatória da licitação de acordo com a Nova Lei de Licitação e Contratos Administrativos.
ESTUDO TÉCNICO PRELIMINAR
Um processo de contratação pública, seja ele com ou sem uma licitação, tem sua origem quando a Administração identifica uma necessidade, interna (em relação à infraestrutura do órgão/entidade) ou externa (em relação aos cidadãos e à comunidade), e constata que possivelmente deverá firmar um contrato com algum particular para suprir essa necessidade.
Para descobrir a melhor solução técnica e jurídica para suprir essa necessidade verificada, a Administração precisa analisá-la e detalhá–la pormenorizadamente, o que é feito com o estudo técnico preliminar (ETP). Este documento se destina à investigação e ao levantamento de informações sobre a melhor solução contratual para o caso concreto, podendo levar a uma conclusão positiva ou negativa sobre a contratação.
O estudo técnico preliminar é, portanto, o ponto de partida da contratação, sendo conceituado pelo artigo 6º, XX, da NLLCA como o “documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução e dá base ao anteprojeto, ao termo de referência ou ao projeto básico a serem elaborados caso se conclua pela viabilidade da contratação”. Contudo, é no artigo 18 da mesma lei em que estão regulamentadas as suas características e conteúdo.
O objetivo do ETP é formalizar, em documento integrante e obrigatório do processo licitatório, as conclusões obtidas na fase de planejamento da licitação. O documento deve conter o problema identificado pela Administração pública que se pretende resolver com a licitação e a possível solução que se deseja alcançar com a contração pública. Estes insumos permitem avaliar a viabilidade técnica e econômica da contratação com maior concretude.
Conforme o parágrafo 1º do artigo 18, para que se atinja o objetivo desejado, o estudo técnico preliminar deve conter:
- descrição da necessidade da contratação, considerado o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público;
- demonstração da previsão da contratação no plano de contratações anual – instrumento que será melhor analisado a seguir -, sempre que elaborado, de modo a indicar o seu alinhamento com o planejamento da Administração;
- requisitos da contratação;
- estimativas das quantidades para a contratação, acompanhadas das memórias de cálculo e dos documentos que lhes dão suporte, que considerem interdependências com outras contratações, de modo a possibilitar economia de escala;
- levantamento de mercado, que consiste na análise das alternativas possíveis, e justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar;
- estimativa do valor da contratação, acompanhada dos preços unitários referenciais, das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, que poderão constar de anexo classificado, se a Administração optar por preservar o seu sigilo até a conclusão da licitação;
- descrição da solução como um todo, inclusive das exigências relacionadas à manutenção e à assistência técnica, quando for o caso;
- justificativas para o parcelamento ou não da contratação;
- demonstrativo dos resultados pretendidos em termos de economicidade e de melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais e financeiros disponíveis;
- providências a serem adotadas pela Administração previamente à celebração do contrato, inclusive quanto à capacitação de servidores ou de empregados para fiscalização e gestão contratual;
- contratações correlatas e/ou interdependentes;
- descrição de possíveis impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras, incluídos requisitos de baixo consumo de energia e de outros recursos, bem como logística reversa para desfazimento e reciclagem de bens e refugos, quando aplicável;
- posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade a que se destina.
O ideal é que a Administração busque elaborar o estudo técnico preliminar com o maior nível de detalhamento possível. Contudo, dos requisitos elencados acima, são obrigatórios: a descrição da necessidade de contratação, as estimativas de quantidades a serem contratadas, a estimativa de valor da contratação, a justificativa para parcelamento ou não do valor total e o posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade (alíneas ‘a’, ‘d’, ‘f’, ‘h’ e ‘m’), conforme previsto pelo artigo 18, § 2º, devendo a Administração justificar a impossibilidade de explicitar as demais informações.
De forma adicional, a Instrução Normativa SEGES nº 58/2022[2]Disponível em: … Continue reading regulamenta a elaboração do ETP em nível federal e traz esclarecimentos sobre o disposto na Nova Lei de Licitações.
Em outras palavras, o ETP é o documento em que a Administração realiza uma investigação sobre as diferentes alternativas disponíveis para a contratação, sendo que, ao final, elegerá uma delas, a qual servirá como base para a elaboração do termo de referência, anteprojeto, projeto básico e/ou projeto executivo, conforme o caso. Além disso, o estudo técnico preliminar é o documento que servirá como base para a elaboração do anteprojeto, do termo de referência e/ou do projeto básico.
TERMO DE REFERÊNCIA, ANTEPROJETO, PROJETO BÁSICO E PROJETO EXECUTIVO
Ainda na fase de planejamento, a partir do estudo técnico preliminar (ETP), a Administração deve definir exatamente qual o objeto a ser contratado para atender as necessidades encontradas. Isto será detalhado no termo de referência, anteprojeto, projeto básico e/ou projeto executivo. A definição de qual(is) documento(s) será(ão) elaborado(s) depende da natureza do objeto a ser licitado.
Para a contratação de bens e serviços, o termo de referência é o documento necessário, cujo conteúdo deve abarcar, no mínimo, os seguintes elementos (art. 6, XXIII):
- definição do objeto, incluídos sua natureza, os quantitativos, o prazo do contrato e, se for o caso, a possibilidade de sua prorrogação;
- fundamentação da contratação, que consiste na referência aos estudos técnicos preliminares correspondentes ou, quando não for possível divulgar esses estudos, no extrato das partes que não contiverem informações sigilosas;
- descrição da solução como um todo, considerado todo o ciclo de vida do objeto;
- requisitos da contratação;
- modelo de execução do objeto, que consiste na definição de como o contrato deverá produzir os resultados pretendidos desde o seu início até o seu encerramento;
- modelo de gestão do contrato, que descreve como a execução do objeto será acompanhada e fiscalizada pelo órgão ou entidade;
- critérios de medição e de pagamento;
- forma e critérios de seleção do fornecedor;
- estimativas do valor da contratação, acompanhadas dos preços unitários referenciais, das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, com os parâmetros utilizados para a obtenção dos preços e para os respectivos cálculos, que devem constar de documento separado e classificado;
- adequação orçamentária.
Em se tratando de aquisição de bens, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos estabelece que os itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade comum, isto é, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam, vedada a aquisição de artigos de luxo (art. 20). A definição do que são os “artigos de luxo” é delegada aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de cada ente federativo, por meio de regulamento próprio – no âmbito do Poder Executivo Federal, a regulamentação é feita pelo Decreto nº 10.818/2021.
Ademais, buscando dar concretude ao princípio do desenvolvimento nacional sustentável, o artigo 26 da NLLCA autoriza a Administração a estabelecer margem de preferência para bens manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras (ou para bens manufaturados e serviços originários de Estados Partes do Mercado Comum do Sul – Mercosul, desde que haja reciprocidade com o país de origem) e bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis, conforme regulamento. Tal margem de preferência poderá ser de até 10% sobre o preço dos bens e serviços que não se enquadrem nessa qualidade (art. 26, § 1º, II) e de até 20% se os bens manufaturados nacionais e serviços nacionais forem resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no País, definidos conforme regulamento do Poder Executivo federal (art. 26, § 2º).
Vale destacar, contudo, que, embora a fixação de margens de preferência em relação à procedência dos objetos já fosse prevista na Lei nº 8.666/1993, a sua adoção é bastante rara nas licitações, sobretudo porque implica a possibilidade de contratação mais custosa aos órgãos e entidades.
Já para a contratação de obras e serviços de engenharia, a NLCCA prevê que o processo de contratação deve ser instruído, alternativa ou cumulativamente, pelos projetos básico e executivo e pelo anteprojeto. A necessidade de elaboração de cada documento dependerá do regime de execução eleito pela Administração.
O projeto básico é o documento que apresenta o conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para definir e dimensionar a(s) obra(s) ou o(s) serviço(s) objeto(s) da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares. Seu objetivo é assegurar a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento e possibilitar a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução. Tal documento deve conter, no mínimo, os seguintes elementos (art. 6º, XXV):
- levantamentos topográficos e cadastrais, sondagens e ensaios geotécnicos, ensaios e análises laboratoriais, estudos socioambientais e demais dados e levantamentos necessários para execução da solução escolhida;
- soluções técnicas globais e localizadas, suficientemente detalhadas, de forma a evitar, por ocasião da elaboração do projeto executivo e da realização das obras e montagem, a necessidade de reformulações ou variantes quanto à qualidade, ao preço e ao prazo inicialmente definidos;
- identificação dos tipos de serviços a executar e dos materiais e equipamentos a incorporar à obra, bem como das suas especificações, de modo a assegurar os melhores resultados para o empreendimento e a segurança executiva na utilização do objeto, para os fins a que se destina, considerados os riscos e os perigos identificáveis, sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução;
- informações que possibilitem o estudo e a definição de métodos construtivos, de instalações provisórias e de condições organizacionais para a obra, sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução;
- subsídios para montagem do plano de licitação e gestão da obra, compreendidos a sua programação, a estratégia de suprimentos, as normas de fiscalização e outros dados necessários em cada caso;
- orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado em quantitativos de serviços e fornecimentos propriamente avaliados, não sendo obrigatório para os regimes de execução integrada e semi-integrada, e obrigatório para os demais.
Com base em todas as informações coletadas nos estudos e no projeto básico, é elaborado o projeto executivo, compreendido como o conjunto de elementos necessários e suficientes à execução completa da obra, com o detalhamento das soluções previstas no projeto básico, a identificação de serviços, de materiais e de equipamentos a serem incorporados à obra, bem como suas especificações técnicas, de acordo com as normas técnicas pertinentes (art. 6º, XXVI).
Contudo, que a elaboração dos projetos básico e executivo pode ser dispensada ou transferida da Administração ao particular futuro contratado, a depender da natureza do objeto e do regime de execução contratual eleito. Isso porque, se no estudo técnico preliminar for constatado que a necessidade pode ser atendida pela contratação de obras e serviços comuns de engenharia[3]De acordo com a alínea “a” do inciso XXI do artigo 6º da NLLCA, serviço comum de engenharia é “todo serviço de engenharia que tem por objeto ações, objetivamente padronizáveis em termos … Continue reading, a especificação do objeto poderá ser realizada apenas em termo de referência ou em projeto básico, dispensada a descrição detalhada da solução no ETP ou a elaboração de outros projetos – e desde que seja demonstrada a inexistência de prejuízo para a aferição dos padrões de desempenho e qualidade almejados (art. 18, § 3º).
Além disso, se for adotado o regime de execução semi-integrada, a Administração também é dispensada de elaborar o projeto executivo, o qual ficará à cargo do futuro contratado – sendo permitida a alteração de determinados pontos do projeto básico, previamente identificados pela Administração.
Por outro lado, se o regime adotado for o de execução integrada, ambos os projetos básico e executivo serão de responsabilidade do futuro contratado. Neste caso, a Administração deve disponibilizar o anteprojeto, que é, de acordo com a definição trazida pelo artigo 6º, inciso XXIV, a peça técnica com todos os subsídios necessários à elaboração do projeto básico, devendo conter, no mínimo, os seguintes elementos:
- demonstração e justificativa do programa de necessidades, avaliação de demanda do público-alvo, motivação técnico-econômico-social do empreendimento, visão global dos investimentos e definições relacionadas ao nível de serviço desejado;
- condições de solidez, de segurança e de durabilidade;
- prazo de entrega;
- estética do projeto arquitetônico, traçado geométrico e/ou projeto da área de influência, quando cabível;
- parâmetros de adequação ao interesse público, de economia na utilização, de facilidade na execução, de impacto ambiental e de acessibilidade;
- proposta de concepção da obra ou do serviço de engenharia;
- projetos anteriores ou estudos preliminares que embasaram a concepção proposta;
- levantamento topográfico e cadastral;
- pareceres de sondagem;
- memorial descritivo dos elementos da edificação, dos componentes construtivos e dos materiais de construção, de forma a estabelecer padrões mínimos para a contratação.
Destaca-se, por fim, que nas contratações integradas e semi-integradas, os riscos decorrentes de fatos supervenientes à contratação associados à escolha da solução de projeto pelo contratado deverão ser alocados como de sua responsabilidade na matriz de riscos (art. 22, § 4º).
Ou seja, na contratação semi-integrada, o contratado é responsável pelas soluções técnicas que ele mesmo definiu no projeto executivo, ficando a Administração responsável, via de regra, pelas soluções definidas no projeto básico. Já na contratação integrada, o particular é responsável pelas soluções dos projetos básico e executivo, restando a Administração responsável pelos riscos decorrentes das soluções por ela fixadas no anteprojeto. A lógica aqui é que “a parte que elabora o projeto e define as soluções a serem adotadas deve arcar com os riscos associados, pois ela é, em primeira análise, a parte capaz de evitar esses riscos, elaborando adequadamente os estudos técnicos”[4]HELLMANN, Lucas. A alocação eficiente de riscos contratuais conforme a Lei nº 14.133/2021: por um método de repartição de responsabilidades com a manutenção do equilíbrio econômico … Continue reading.
CONCLUSÃO
Dando diretrizes práticas ao planejamento da licitação, a Lei nº 14.133/2021 prevê com maior riqueza de detalhes que a lei anterior (Lei nº 8.666/1993) a fase preparatória da licitação, trazendo definições e regramentos específicos para os diversos tipos de estudos preparatórios para a contratação pública.
As referidas etapas preparatórias são de extrema importância não apenas para a Administração Pública, mas também para as empresas que pretendem realizar contratos administrativos. A adequação com as diretrizes planejadas pelo poder público e o conhecimento integral do planejamento da contratação são fatores essenciais para o sucesso do negócio.
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Referências[+]
↑1 | BRASIL. Tribunal de Contas da União. Auditoria Operacional Sobre Obras Paralisadas. Brasília: Tribunal de Contas da União, 2018. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-sobre-obras-paralisadas.htm. Acesso em: 9 mar. 2022. |
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↑2 | Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/instrucoes-normativas/instrucao-normativa-seges-no-58-de-8-de-agosto-de-2022#:~:text=AGOSTO%20DE%202022-,INSTRU%C3%87%C3%83O%20NORMATIVA%20SEGES%20N%C2%BA%2058%2C%20DE%208%20DE%20AGOSTO%20DE,sobre%20o%20Sistema%20ETP%20digital |
↑3 | De acordo com a alínea “a” do inciso XXI do artigo 6º da NLLCA, serviço comum de engenharia é “todo serviço de engenharia que tem por objeto ações, objetivamente padronizáveis em termos de desempenho e qualidade, de manutenção, de adequação e de adaptação de bens móveis e imóveis, com preservação das características originais dos bens”. |
↑4 | HELLMANN, Lucas. A alocação eficiente de riscos contratuais conforme a Lei nº 14.133/2021: por um método de repartição de responsabilidades com a manutenção do equilíbrio econômico financeiro dos contratos administrativos. 2021. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/228676. Acesso em: 21 mar. 2022. |
Se o campo geral das licitações e contratações públicas pode(e deve) se modificar com as interpretações sobre a Lei nº 14.133/2021, é possível que o microssistema especial das estatais também possa sofrer uma influência reflexa - abrindo-se aqui, possivelmente, o espaço para a aplicação subsidiária ou para analogia nos casos de lacunas a serem preenchidas na aplicação.
Com a publicação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, promulgada no dia 1º de abril de 2021 sob o número 14.133, significativas mudanças são realizadas neste campo do direito administrativo brasileiro, em todos os âmbitos das Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, positivando entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, mas também trazendo inovações práticas que deverão ser levadas em consideração pelos gestores públicos e pelos particulares interessados em contratar com o Poder Público (confira aqui as três novidades que você precisa conhecer sobre a Lei nº 14.133/2021).
Dada a sua vasta abrangência, é legítimo que surja a dúvida se o novo diploma se aplica às estatais e, em caso afirmativo, de que modo afetaria suas licitações e seus contratos administrativos.
Antes de se buscar a resposta, é preciso entender o que são as chamadas estatais e a que regime jurídico estão submetidas no direito administrativo pátrio. Atualmente, a expressão [empresas] estatais é utilizada na doutrina para se referir de modo geral a qualquer das entidades empresariais regidas pela Lei nº 13.303/2016. Conforme o caput do seu art. 1º, estas entidades são as empresas públicas e as sociedade de economia mista e suas subsidiárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos. Não é por outra razão que a Lei nº 13.303/2016 é a chamada de Lei das Estatais e, desde a sua promulgação, tem regido, na condição de estatuto especial, as licitações e os contratos administrativos realizados por essas entidades.
Assim, considerando a preexistência do regime jurídico específico da Lei nº 13.303/2016, a Lei nº 14.133/2021 oferece à questão que serve de título a este artigo uma resposta preliminar já no seu art. 1º, § 1º, o qual determina que “Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.”
O fato de a nova Lei de Licitações ter distinguido o regime jurídico das estatais encontra, de certo modo, explicação no caráter da Lei nº 13.303/2016. Como se percebe, a Lei das Estatais é especial, isto é, prescreve regime próprio de licitações e contratos para estas entidades, que já se sobrepunha ao regime tradicional de licitações, anteriormente baseado na Lei nº 8.666/93 (normas para licitações e contratos administrativos), na Lei nº 10.520/02 (modalidade pregão) e na Lei nº 12.462/12 (Regime Diferenciado de Contratações – RDC). A nova Lei de Licitações, neste sentido, respeitou a especialidade da Lei nº 13.303/2016.
Contudo, em que pese o seu caráter especial, a Lei das Estatais prevê, explicitamente, três casos de aplicação de dispositivos normativos que devem ser encontrados alhures. Com efeito, o art. 32, inciso IV, da Lei nº 13.303/2016 estabelece que:
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes:
[…]IV – adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.
Por meio do artigo e inciso supracitados, a Lei das Estatais determina que, para a aquisição de bens e serviços comuns, deve-se adotar preferencialmente o pregão como modalidade de licitação. Contudo, destaca-se o entendimento doutrinário predominante segundo o qual a adoção da modalidade pregão pelas estatais se limita aos aspectos procedimentais, não excluindo a observância da Lei nº 13.303/2016 no que diz respeito aos demais aspectos substanciais do rito licitatório e do contrato.
Ao revogar expressamente a Lei nº 10.520/2002 (após decorridos dois anos da sua publicação oficial), a nova Lei de Licitações substitui a Lei do Pregão na regência desta modalidade, determinando, pelo comando do seu art. 189, que a Lei nº 14.133/2021 seja aplicada às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002, e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011. Como consequência, sendo o caso da adoção do pregão como modalidade de licitação pelas estatais, o regime a ser aplicado será o da nova Lei de Licitações. Essa circunstância faz surgir a questão de saber qual será o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o alcance da sua aplicabilidade, isto é, permanecerá limitado ao procedimento? Tal questão, provavelmente, será objeto de debates nos tribunais.
O segundo caso em que se vê mitigada a especialidade da Lei das Estatais é o previsto no seu art. 55, inciso III, que determina a adoção de critérios de desempate estabelecidos na Lei nº 8.666/1993. Veja-se:
Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate:
[…]III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Como a Lei nº 8.666/1993 também será revogada pela nova Lei de Licitações após decorridos dois anos da sua publicação oficial, os seus critérios de desempate se tornarão inaplicáveis e serão tacitamente substituídos pelos que são estabelecidos no § 1º do art. 60 da Lei nº 14.133/2021. Esta substituição promoverá algumas mudanças, notadamente em razão dos incisos I e IV do referido parágrafo, a saber: dar-se-á preferência para empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante ou, no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no território do Estado em que este se localize (inciso I); e para empresas que comprovem a prática de mitigação relativa à Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC, nos termos da Lei nº 12.187/2009 (inciso IV). Além disso, o inciso V do § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993, que assegurava preferência aos bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação, não é reproduzido na nova Lei de Licitações como critério de desempate, mas como exigência da fase de habilitação (art. 63, inciso IV).
A terceira remissão da Lei das Estatais encontra-se em seu art. 41, segundo o qual “Aplicam-se às licitações e contratos regidos por esta Lei as normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”.
Resta averiguar, então, o efeito do disposto no art. 178 Lei nº 14.133/2021. Este artigo acrescenta ao Código Penal os artigos 337-E a 337-P, sob o Capítulo II-B – Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos, transferindo para o códex próprio os dispositivos penais que integravam a Lei nº 8.666/1993, porquanto revogou expressa e imediatamente os seus artigos 89 a 108. Como consequência, o regime disciplinar penal aplicável à Lei das Estatais se encontra doravante no Código Penal, perdendo efeito o art. 41 da Lei nº 13.303/2016, o qual determinava a aplicação às licitações e contratos regidos por esta lei das normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666/1993. A mudança, porém, não se limita a este aspecto formal, pois este regime disciplinar sofreu algumas alterações de natureza material.
Isto se evidencia pela comparação dos novos tipos penais criados no Código Penal pela Lei nº 14.133/2021 com os correspondentes dispositivos revogados na Lei nº 8.666/1993, que revela, à primeira vista, uma continuidade normativo-típica, porém, com alterações nos preceitos secundários, mediante cominações mais gravosas e a substituição do regime de detenção pelo de reclusão.
A mudança mais vistosa consiste, portanto, no aumento do rigor punitivo, que tem consequências relevantes. Vejamos, por exemplo, os novos artigos 337-E e 337-L do Código Penal. Eles correspondem respectivamente aos revogados artigos 89 e 96 da Lei nº 8.666/1993, e previam penas de detenção de 3 (três) a 5 (cinco) anos e multa, e de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa, respectivamente. Além de promoverem mudanças na tipificação para ampliar a sua abrangência, os novos artigos mudaram a sua cominação, não somente substituindo a detenção pela reclusão, mas também majorando em um ano o tempo mínimo da pena de privação de liberdade, que passou a ser, para ambos os tipos penais, 4 (quatro) anos.
As consequências são relevantes. Em primeiro lugar, verifica-se o recrudescimento da punição, pois a pena de reclusão é reservada para condenações mais severas, sendo geralmente cumprida em estabelecimentos de segurança média ou máxima, permitindo o início do seu cumprimento em regime fechado. Em segundo lugar, com o aumento da pena mínima para 4 (quatro) anos, os artigos 337-E e 337-L impedem a celebração de acordos de não persecução penal, uma vez que o art. 28-A do Código de Processo Penal autoriza o Ministério Público a propor tal medida despenalizadora apenas em casos de “prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”.
Outra alteração digna de atenção no regime disciplinar penal doravante aplicável automaticamente a todas as licitações e contratos administrativos afeta diretamente o sistema de cálculo das multas cominadas. De fato, revogou-se o art. 99 da Lei nº 8.666/1993, que determinava o pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base devia corresponder ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente. Estes índices, porém, estavam limitados pelo disposto no parágrafo 1º, não podendo ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. Já o novo art. 337-P do Código Penal estabelece que a multa cominada aos crimes em licitações e contratos administrativos seguirá a metodologia de cálculo prevista neste Código, mantendo-se o limiar de 2% (dois por cento) sobre o valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta, sem, contudo, estipular um teto próprio, aplicando-se, porém, o limite máximo previsto no art. 49 do Códex Criminal.
Nem tudo, porém, é releitura do sistema disciplinar penal precedente. Há um tipo penal completamente novo, introduzido pelo artigo 337-O, que visa coibir a frustração do caráter competitivo da licitação ou da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Atente-se para o dispositivo do § 2º, que determina que a pena prevista no caput do artigo se aplica em dobro se o crime for praticado com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem.
Estas considerações nos permitem afirmar, por fim, que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos afeta as estatais, pelo menos, de três modos. Em primeiro lugar, sendo o caso da adoção do pregão como modalidade de licitação pelas estatais, a lei de regência para este procedimento passa a ser a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Em segundo lugar, os critérios de desempate que devem ser observados nos procedimentos licitatórios das empresas estatais estabelecidos § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993 serão substituídos pelos do § 1º do art. 60 da Lei nº 14.133/2021, com inovações referentes ao local de estabelecimento das concorrentes e à observância da Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC. E em terceiro lugar, o sistema disciplinar penal aplicável às estatais, que antes da publicação da Lei nº 14.133/2021, se encontravam, com remissão expressa, na Lei nº 8.666/1993, a partir de 1º de abril de 2021 se integram ao Código Penal, aplicando-se indiscriminadamente às licitações e contratos administrativos, pouco importando o seu regime jurídico. Além dessa alteração de cunho formal, verifica-se que, do ponto de vista material, ao proceder à sua transferência para o Código Penal, a Lei nº 14.133/2021 promoveu, de modo geral, um endurecimento do regime disciplinar penal, buscando, ao que tudo indica, responder a um anseio social de combate à corrupção.
Embora essas sejam as três únicas remissões expressas da Lei das Estatais aos antigos diplomas gerais de licitações, há que se ponderar que sendo a Lei nº 14.133/2021 um novo diploma geral, todo o léxico de licitações e contratações públicas passa a encontrar um novo fundamento legal “de base” neste mais recente diploma. Assim, há que se cogitar que a interpretação da Lei das Estatais poderá sofrer influência das interpretações futuras da Lei nº 14.133/2021. Em outras palavras, se o campo geral das licitações e contratações públicas pode (e deve) se modificar com as interpretações sobre a Lei nº 14.133/2021, é possível que o microssistema especial das estatais também possa sofrer uma influência reflexa – abrindo-se aqui, possivelmente, o espaço para a aplicação subsidiária ou para analogia nos casos de lacunas a serem preenchidas na aplicação.
Afora essas três modificações que possuem previsão de eficácia ou imediata ou para daqui a dois anos, portanto, resta ainda saber se e como a nova Lei de Licitações influenciará o regime especial de licitações e contratações das estatais. Essas, no entanto, são questões que serão respondidas pela doutrina, pelos tribunais e pelos operadores do Direito em geral – todos no seu devido tempo.
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