A nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) já está em vigor, iniciando um processo de transformação histórico no direito administrativo brasileiro. E você, já sabe o que mudou? Neste texto, separamos três novidades da nova Lei de Licitações que você precisa saber.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) foi publicada em 1º de abril de 2021, após longos anos de debates e espera. Além de incorporar entendimentos já consolidados em Tribunais e conhecimentos provindos da doutrina, o novo diploma legal trouxe inovações que certamente promoverão uma transformação profunda na prática deste campo do direito administrativo brasileiro. Neste texto, selecionamos três novidades que, em breve, devem promover grandes alterações na dinâmica das licitações e dos contratos públicos, e que, por isso, você precisa conhecer.
Modalidades de Licitações
Uma das novidades mais notáveis da Lei nº 14.133/2021 diz respeito às modalidades de licitações previstas (art. 28), a saber: I) pregão; II) concorrência; III) concurso; IV) leilão; V) diálogo competitivo.
Em contraste com a Lei nº 8.666/93, a nova Lei extingue as modalidades de tomada de preços e convite, mantendo a previsão de concorrência, concurso e leilão, incorporando o pregão (antes em lei especial) e criando a modalidade do diálogo competitivo.
Ainda que, à primeira vista, possa parecer que a inovação tenha ocorrido de forma “tímida”, a nova Lei unifica os regimes em apenas um diploma e altera o critério para a definição das modalidades. Diferentemente da Lei nº 8.666/93, agora o valor estimado da contratação não é mais um critério de definição da modalidade, que passa a ser definida precipuamente pela natureza do objeto a ser licitado (conforme a previsão nos artigos 18 a 27). Da mesma forma, a simplificação das modalidades também reflete uma ampliação dos casos de contratação direta, havendo modificações das hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação.
Assim, se de um lado essas modificações parecem introduzir novos ares para a dinâmica das licitações, a novidade stricto sensu ficou a cargo da modalidade de “Diálogo Competitivo”. Segundo o art. 6º da Lei, que traz a definição dos seus principais conceitos, o diálogo competitivo deve ser entendido da seguinte forma:
XLII – diálogo competitivo: modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos.
Como se pode perceber, essa modalidade traz a permissão de que os próprios licitantes, previamente selecionados por critérios objetivos, possam contribuir para o desenvolvimento de alternativas que atendam às necessidades almejadas para uma determinada contratação pública. Dessa forma, a proposta final será apresentada somente após a conclusão dos diálogos e debates, de modo a induzir a criação de uma solução conjunta entre os setores públicos e privados – seguindo uma tendência de “horizontalização” já existente no direito administrativo brasileiro (vide, por exemplo, os Procedimentos de Manifestação de Interesse). As diretrizes gerais de funcionamento do instituto foram previstas no art. 32 da Lei, porém, certamente, haverá ainda muitas dúvidas acerca de sua condução, cabendo à construção doutrinária e jurisprudencial um importante papel para a eficácia dessa novidade.
As expectativas apontam que essa nova modalidade poderá contribuir especialmente para a contratação de objetos complexos, para os quais os antigos modelos de licitação eram insuficientes e resultavam, não raramente, em problemas de execução contratual. Essa é, portanto, uma novidade que possui potencial para beneficiar sobremaneira a qualidade dos contratos da Administração Pública – e que você precisa conhecer.
Inversão de fases: julgamento anterior à habilitação
Outra novidade relevante é a trazida pelo o art. 17 da nova Lei, que prevê, como regra geral, que as licitações deverão seguir uma sequência em que a fase de julgamento antecede a fase de habilitação. Com isso, a ordem “antiga” – em que primeiro ocorria a habilitação e depois o julgamento, conforme a Lei nº 8.666/93 – ainda será possível, porém, somente mediante ato motivado que torne explícitos os benefícios decorrentes de tal sequência (art. 17, §1º, da Lei nº 14.133/2021).
Embora essa chamada “inversão de fases” não chegue a ser uma novidade no ordenamento jurídico, uma vez que já era praticada na Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), a sua generalização afigura-se alvissareira para a desburocratização dos certames públicos. Com a sua extensão, como regra geral, a todas as modalidades de licitação, é possível que a condução de certames licitatórios se torne, na sua maior porção, mais simples e mais célere.
Atualmente um símbolo da burocracia, é consenso que a fase de habilitação representa uma desgastante etapa tanto para os licitantes quanto para as Comissões de Licitação. Com a inversão das fases, o licitante passará a concentrar-se primordialmente na proposta técnica a ser apresentada, deixando as trabalhosas tarefas de reunião e conferência de documentos de habilitação somente para o caso de já ter-se sagrado vencedor da etapa de julgamento. Além disso, a regularidade fiscal, em qualquer caso, somente será exigida “em momento posterior ao julgamento das propostas, e apenas do licitante mais bem classificado” (art. 63, III). Somada à preferência pela realização de modo eletrônico (art. 17, §2º, da Lei nº 14.133/2021), a antecedência da fase de julgamento sobre a fase de habilitação possivelmente irá estabelecer-se como um importante marco da efetividade e da celeridade das licitações brasileiras.
Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP
Com a finalidade de promover a transparência nas contratações públicas e aprofundar o processo de digitalização da Administração, o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) merece destaque como novidade e total atenção da comunidade jurídica.
A nova Lei de Licitações previu o PNCP no Capítulo I do seu Título V – Disposições Gerais, fixando a sua destinação e funcionalidades a serem oferecidas. Assim, com a proposta de ser o site oficial e centralizado das contratações públicas, o PNCP será, sem dúvidas, um arrojado passo de modernização das licitações brasileiras, avançando sobre uma frente já aberta, por exemplo, pelo site “ComprasNet”, de utilização do Governo Federal.
Igualmente em linha com a regra de preferência pela realização eletrônica dos certames, o Portal seguirá o formato de dados abertos, com a obrigatoriedade de manter um repositório de informações e documentos de abrangência nacional, a ser gerido pelo “Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas”, com representantes de todos os entes da Federação (art. 174, § 1º, da Lei nº 14.133/2021). A sua importância, no entanto, vai além de um mero repositório virtual, pois a Lei preceitua que a divulgação no PNCP será “condição indispensável para a eficácia” dos contratos públicos e seus aditamentos (art. 94, caput, da Lei nº 14,133/2021). Assim, se, por um lado, o PNCP é um locus juridicamente relevante para a eficácia dos contratos, por outro, as incertezas sobre o início do seu efetivo funcionamento acende um alerta para a aplicabilidade imediata da própria Lei nº 14.133/2021. Pois, diferentemente de outras previsões legais de implementação imediata, o Portal Nacional de Contratações Públicas ainda depende de sua estruturação no mundo material da Web. Como à eficácia da lei não é dado aguardar a criação do Portal, e como a própria lei não previu alternativas para este “período de transição”, é certo que a aplicação da nova Lei de Licitações terá um início fora do esquadro ideal do dever-ser. Neste sentido, temos que concordar com Schiefler, para quem “a nova Lei de Licitações já vigora entre nós, embora desacompanhada do PNCP”, não sendo este um problema impeditivo de sua aplicabilidade, para o qual se oferecem inúmeras soluções pragmáticas que cumprem o objetivo da lei.
Assim, diante das expectativas de efetivação do Portal Nacional de Contratações Públicas, só nos resta aguardar, com esperança, que essa novidade da nova Lei de Licitações possa, no futuro próximo, cumprir um importante papel de aprimoramento da accountability das contratações públicas. Fato indiscutível, no entanto, é que essa é uma previsão nova e sem precedentes para o direito administrativo brasileiro.
Por fim, apenas a título exemplificativo, poder-se-ia ainda mencionar novidades que aqui não foram contempladas, mas que certamente trarão mudanças nas licitações e contratações públicas, como: i) a criação do “agente de contratação” e da “comissão de contratação”; ii) a alteração nos critérios de julgamento das propostas; iii) a ampliação dos casos de contratação direta; iv) a exigência de programas de integridade para contratações de grande vulto; v) a previsão de novos regimes de execução contratual; vi) as alterações no Código Penal; e vii) a introdução e confirmação de métodos alternativos de solução de conflitos, como o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. Porém, como já dito inicialmente, este não é um texto que se propôs a exaurir todas as novidades da Lei nº 14.133/2021, mas tão somente informar aquelas que o leitor não poderia deixar de conhecer – e que, agora, já conhece.
Read MoreOs argumentos do escritório Schiefler Advocacia foram acolhidos pela decisão liminar em razão da preterição dos aprovados em concurso público por comissionados e terceirizados.
Na última sexta-feira (25/06/2021), a 14ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo (TJSP) determinou à Prefeitura de São Paulo a nomeação de 7 arquitetos aprovados no concurso de QEAG. A decisão foi proferida pelo Juiz Randolfo de Campos que, em sede liminar, acatou os argumentos apresentados pelo escritório Schiefler Advocacia e reconheceu a preterição arbitrária e imotivada dos candidatos aprovados em concurso público em decorrência de contratação sistemática de comissionados e terceirizados para desempenho das funções típicas do cargo de QEAG, na especialidade de arquitetura.
O concurso público foi lançado pela Prefeitura de São Paulo em outubro de 2018 e previa nomeação imediata de 58 arquitetos para o Quadro de Profissionais de Engenharia, Arquitetura, Agronomia e Geologia (QEAG). Ocorre que, mesmo com o andamento regular e homologação do certame em agosto de 2019 e a solicitação de mais de uma centena de nomeações pelas Secretarias Municipais, todas recusadas pela Prefeitura, os candidatos aprovados não foram convocados para assumir o cargo. Diante da evidente demanda por estes profissionais sem as devidas nomeações e de indícios da contratação reiterada de comissionados para desempenho destas funções, o caso tomou repercussão e foi, inclusive, noticiado pela imprensa em fevereiro desde ano.
Diante disto, os candidatos aprovados propuseram ação judicial para ter seu direito à nomeação devidamente reconhecido, uma vez que há provas do preenchimento dos cargos efetivos por comissionados e terceirizados, prática ilícita que configura a preterição dos concursados, nos termos do Tema nº 784 do STF.
A partir da análise da extensa documentação apresentada a fim de provar as irregularidades cometidas pela Prefeitura de São Paulo, a 14ª Vara da Fazenda Pública reconheceu o direito dos autores e determinou a nomeação de sete arquitetos em até 30 dias. Nas palavras do Juiz Randolfo de Campos, “tamanha é a preterição arbitrária e imotivada que vem sendo levada a efeito pelo Município que, numa análise perfunctória, é possível afirmar que a totalidade dos candidatos aprovados dentro do número de vagas para o cargo de arquiteto do QEAG no concurso regido pelo Edital n. 00/2018 têm direito à nomeação imediata.”
A decisão, que determinou a nomeação dos candidatos aprovados dentro do número de vagas, bem como vedou que a Prefeitura de São Paulo nomeie novos comissionados e firme novos contratos cujo objeto contemple as funções do cargo de QEAG, na especialidade de arquitetura, causou nova repercussão na imprensa.
Em notícia publicada no portal G1, foi divulgada a determinação de integração dos arquitetos aos quadros da prefeitura e as reconhecida irregularidades cometidas pela municipalidade. Nela, foi destacada a decisão de que “a ocupação precária, por comissão, terceirização, ou contratação temporária, de atribuições próprias do exercício de cargo efetivo vago, para o qual há candidatos aprovados em concurso público vigente, configura ato administrativo eivado de desvio de finalidade” e, por consequência, os candidatos devem ser imediatamente nomeados.
A decisão proferida no processo nº 1033732-58.2021.8.26.0053 representa uma vitória para os candidatos que, desde a aprovação no concurso, constatavam que terceirizados e comissionados atuavam como se arquitetos da Prefeitura fossem, mesmo sem aprovação no concurso. Enquanto isso, eles, que se submeterem a um acirrado certame com milhares de candidatos, tinham a nomeação solicitada pelas Secretarias e recusada pela Prefeitura com o argumento de que não havia recursos orçamentários – embora, como reconheceu o juízo, “a nomeação dos servidores concursados poderá reduzir os gastos que o Município atualmente realiza na contratação de empresas de engenharia e arquitetura”.
Agora se aguarda o cumprimento da decisão pela Prefeitura de São Paulo, que tem 30 dias para realizar a nomeação dos sete autores da ação beneficiados com a decisão liminar.
A Nova Lei de Licitações não representa uma ruptura, mas a continuação do modelo vigente, aprimorado a partir de inovações incrementais, cujo teor visa, principalmente, a reforçar a estabilidade das contratações públicas e a promover um ambiente de confiança na relação público-privada.
Eduardo Martins Pereira[1]
Desde o dia primeiro de abril de 2021, com a publicação da Lei Federal nº 14.133 (ou Nova Lei de Licitações, como vem sendo denominada), a atenção dos especialistas em Direito Público tem-se voltado para discutir o novel regramento e entender de que forma ele impactará a sistemática das contratações públicas.
Tal preocupação, aliás, é de extrema pertinência, haja vista a amplitude da Nova Lei de Licitações, que, ao prescrever a revogação (a acontecer em dois anos) e ocupar o espaço das Leis nº 8.666/1993 (antiga Lei de Licitações e de Contratos Administrativos), nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e nº 12.462/2011 (Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas), se torna a grande referência normativa em matéria de contratações públicas.
Nessa toada, busca-se aqui desvelar o impacto da Nova Lei sobre os contratos administrativos vigentes desde antes da entrada em vigor da nova sistemática (se impacto haverá), e também sobre os contratos administrativos firmados após a sua publicação.
Para tanto, importa inicialmente compreender como se dará o regime de transição entre as leis revogadas e a Nova Lei de Licitações. Isto é, entender se a antiga sistemática já foi integralmente substituída, se ainda continua vigente – seja de forma integral ou parcial –, e em qual medida os novos dispositivos já podem e/ou devem ser observados nos contratos administrativos.[2]
A aplicação e o regime de transição para a Nova Lei de Licitações
Sobre a vigência, o artigo 194 da Nova Lei de Licitações é taxativo:
Art. 194. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Com base neste dispositivo, conclui-se que a Nova Lei está apta a produzir efeitos jurídicos desde a sua publicação, em 01/04/2021, prescindindo-se do período de vacância ao qual a produção legislativa via de regra está sujeita.[3]
No entanto, a partir da leitura do artigo 193 da Nova Lei de Licitações[4], verifica-se que algumas das normas substituídas continuam em vigor, enquanto outras foram imediatamente revogadas.
Nesse sentido, tem-se que o regime de crimes e penas nas contratações públicas foi imediatamente derrogado, com o deslocamento da matéria para o Código Penal. De outro lado, a base normativa da antiga sistemática elencada no inciso II do artigo 193 somente será revogada após decorridos dois anos da publicação da Nova Lei, em 3 de abril de 2023.[5] Assim, do dia 1 de abril de 2021 até 3 de abril de 2023, inclusive, haverá dois regimes normativos para as contratações públicas.
Em atenção a essa circunstância, a Nova Lei de Licitações, no caput do seu artigo 191[6], confere à Administração o poder-dever de adotar a sistemática que melhor convenha aos seus interesses, a cada contratação, desde que o regime escolhido seja expressamente indicado no edital, ou no aviso ou instrumento de contratação direta.
Diante dessa situação, com dois regimes jurídicos para a realização de uma contratação pública, o novo regramento, no parágrafo único do seu artigo 191[7], indica que o regime que vigorará sobre cada contrato administrativo será aquele que regeu a respectiva licitação ou contratação direta.
Isto é, enquanto os dois regimes para contratações continuarem vigentes, o regime a que estará sujeito cada contrato administrativo será aquele eleito pela Administração para orientar o respectivo procedimento licitatório ou contratação direta. Em outras palavras, até que finde a vigência do antigo regime de contratações, sendo o último dia em 3 de abril de 2023, a Administração poderá decidir entre ambos os regimes para realizar a licitação ou a contratação direta. Ao fazê-lo, submeterá também o contrato administrativo à norma eleita, ainda que a vigência contratual se dê em prazo posterior à derrogação da lei, como se conclui da previsão contida no parágrafo único do artigo 191.
No mais, em seu artigo 190[8], a Nova Lei de Licitações limita os seus efeitos para os contratos celebrados após a sua entrada em vigor. É dizer, os contratos celebrados antes do dia 1º de abril de 2021 continuam sendo regidos pelo regime substituído, ainda que venham a ser prorrogados até mesmo após a expiração do referido regime, pois trata-se da mesma relação contratual.
Deste contexto, permite-se concluir que, mesmo após derrogado o antigo regime de contratações públicas, este continuará produzindo efeitos na execução dos contratos firmados sob sua égide.
Assim sendo, ante a ambivalência dos regimes legais, para descobrir qual deles rege determinado contrato administrativo, basta verificar a indicação da escolha do regime pela Administração, que deve ser publicizada no respectivo edital de licitação ou no aviso ou instrumento de contratação direta.
O impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos
Unificando diversas regras constantes em diplomas legais e infralegais, positivando entendimentos do Tribunal de Contas da União e acolhendo lições da doutrina, a Nova Lei de Licitações não representa uma ruptura com o antigo regime jurídico. Pelo contrário, verifica-se que o legislador optou pela continuidade dos institutos existentes com a inclusão de inovações incrementais[9], as quais surgem como propostas de solução para problemas já existentes.
Por si só, tal circunstância reduz o impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos, visto que muito do que já se tinha, ao menos sob a perspectiva pragmática, embora não legislativa, foi mantido. A despeito disso, importa destacar individualmente algumas das principais inovações trazidas, que irão impactar os contratos por ela regidos.
Nesse sentido, o artigo 103 da Nova Lei[10] traz a possibilidade da previsão da matriz de alocação de riscos nos contratos administrativos ordinários. Por meio dela, são previamente identificados os riscos contratuais previstos e presumíveis, alocando-se em cláusula contratual a responsabilidade por eles entre o contratante e contratado. Para a alocação dos riscos, serão consideradas as obrigações atribuídas a cada parte, a natureza dos riscos, o beneficiário das prestações e a capacidade para melhor gerenciá-los.
Vale registrar que a previsão de matriz de riscos já é uma realidade nos contratos de concessão, nos contratos das empresas estatais e nos contratos decorrentes do Regime Diferenciado de Contratações, mas a previsão legal incluída na Lei nº 14.133/2021 é considerada uma inovação na medida em que inclui essa previsão para os contratos comuns, mitigando o entendimento de que qualquer alteração nas circunstâncias originais da pactuação contratual em desfavor do particular geraria a obrigação de reequilíbrio econômico-financeiro pela Administração.
Ademais, conforme artigo 22[11], o próprio edital pode contemplar desde já a matriz de alocação de riscos, bem como mecanismos que afastem a ocorrência de sinistro e mitiguem os seus efeitos. Trata-se de previsão coerente com o regime público e necessária para a organização dos particulares interessados em firmar contratos administrativos, visto que a análise dos riscos que possam comprometer a boa execução do contrato compõe a fase preparatória do processo licitatório[12], e a alocação de riscos deve ser conhecida pelos particulares, pois impactará a proposta a ser apresentada.
Outra importante novidade do novo regramento é a previsão expressa da aplicabilidade de meios alternativos para a resolução de controvérsias. Notadamente, em seu artigo 151[13], reforça-se a possibilidade de que controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis sejam resolvidas mediante conciliação, mediação, comitês de resolução de disputas (dispute boards) e arbitragem – inclusive, em texto recente publicado pela Schiefler Advocacia, o advogado Murillo Preve tratou especificamente da temática da arbitragem na Nova Lei de Licitações.
Acerca dos pagamentos, foi incluída a possibilidade da criação de contas vinculadas para cada contrato[14], bem como o dever de pagamento da parcela incontroversa[15], no caso de conflito sobre o valor do débito. Ainda, permitiu-se expressamente a realização de pagamento antecipado nas hipóteses em que represente economia de recursos ou, ainda, seja condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço, circunstâncias estas que devem ser devidamente justificadas.[16]
Embora seja correto afirmar que as inovações ora mencionadas já existiam no regime jurídico em processo de substituição, é fato que não estavam previstas nas normas gerais de licitações e contratos, e agora estão.
Existem também algumas inovações incrementais que se qualificam como inéditas em relação ao regime anterior. Por exemplo, a Administração deverá, nos termos da Lei nº 14.133/2021, prever no edital a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor quando se tratar de uma licitação de grande vulto (isto é, aquelas cujo valor seja superior a R$ 200.000.000,00, nos termos do inciso XXII do artigo 6o), no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato[17]. O intuito é o estímulo ao desenvolvimento de políticas pautadas na ética, visando à construção de um ambiente saudável e limpo para a realização de negócios com o Poder Público.
Pode-se citar, também, a redução do prazo de inadimplemento para que o contratado tenha direito à extinção do contrato.[18] No antigo regime, o contratado só teria direito à extinção do contrato após três meses do inadimplemento da Administração, enquanto no novo regramento esse prazo passou a ser de dois meses.
Nas contratações de obras e serviços de engenharia, quando o edital exigir a prestação de garantia na modalidade seguro-garantia, passa a ser possível que a Administração estipule cláusula de retomada. Por meio dessa cláusula, em caso de inadimplemento pelo contratado, a seguradora pode assumir a obrigação de executar e concluir o objeto do contrato.[19]
Foi também estipulado o dever de que a Administração emita decisão sobre todas as solicitações e reclamações relacionadas à execução dos contratos, no prazo de um mês.[20]
No caso de alterações contratuais unilaterais pela Administração, seja aumentando ou diminuindo os encargos do contratado, deve também ser restabelecido o equilíbrio econômico-financeiro inicial no mesmo termo aditivo.[21] Nesse ponto, o novo regramento estabelece o reequilíbrio concomitante com a alteração contratual, inovando em relação ao antigo regime, que era omisso sobre o momento em que ela deveria ocorrer (Art. 65, § 6º, da Lei nº 8.666/1993).
Essas são algumas das inovações incrementais positivadas na Nova Lei de Licitações e que impactarão diretamente a execução dos contratos administrativos firmados sob a sua regência. Não obstante, para além desses contratos, não se pode negar a possibilidade de que a Nova Lei de Licitações seja considerada, por analogia, como uma diretriz também para as contratações subordinadas ao antigo regime normativo.
Isso porque, como visto, a Lei Federal nº 14.133/2021, em uma parcela significativa de suas disposições, nada mais faz do que estabilizar e positivar a jurisprudência, orientações e entendimentos já aceitos e existentes, registrando em lei inúmeras soluções pontuais e pragmáticas, criadas para as lacunas da Lei Federal nº 8.666/1993 e surgidas ao longo dos seus 28 anos de vigência. Nesse caso, necessário registrar, eventual aplicação em analogia deve se restringir às lacunas do antigo regime normativo, até mesmo para manter conformidade com a vedação contida no final do artigo 191 da Nova Lei.
Considerações finais
Dito isso, para compreensão do impacto da Nova Lei de Licitações nos contratos administrativos, é necessário inicialmente entender a forma como eles estarão sujeitos ao novo regime.
Nesse sentido, viu-se que as novas licitações, bem como as contratações diretas firmadas desde 1o de abril de 2021 com indicação expressa da submissão ao novo regime, seguirão as previsões contidas na Lei nº 14.133/2021. Por outro lado, os contratos vigentes antes da promulgação da Nova Lei de Licitações, bem como as novas licitações e contratações diretas firmadas com base no regime antigo se manterão submetidos ao regramento antigo, ainda que após a derrogação da legislação passada. Isso porque, na sistemática adotada, os contratos seguirão os regimes nele originalmente previstos ao longo de toda sua vigência, de modo que, apesar de revogada, a antiga sistemática continuará produzindo efeitos por muitos anos no âmbito das contratações públicas.
Além disso, naqueles contratos submetidos ao novo regime, apesar da repercussão gerada pela promulgação da Lei Federal nº 14.133, com a opção legislativa de continuar com um regime já incorporado na cultura jurídica das contratações públicas, a tendência é que seu impacto seja restringido às inovações incrementais apresentadas pela norma, as quais visam, principalmente, a reforçar a estabilidade das contratações públicas e promover um ambiente de confiança na relação público-privada.
Nesse contexto, malgrado a regra geral seja de que um regime normativo não interfere nos contratos regidos pelo outro, haja vista a leitura do artigo 191 do novo regramento, não se exclui a hipótese em que as inovações trazidas pela Nova Lei de Licitações sejam consideradas por analogia nos contratos submetidos à antiga sistemática. Dessa forma, a Lei Federal nº 14.133/2021 impactaria também a execução dos contratos administrativos firmados antes mesmo da sua promulgação, bem como aqueles firmados após e seguindo o regime substituído.
[1] Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estagiário em Direito na Schiefler Advocacia. Membro do Laboratório de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Eleitoral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Contato: eduardomartins@schiefler.adv.br.
[2] Para além do presente texto, a equipe da Schiefler Advocacia elaborou um material exclusivo para explicar o regime de transição da Nova Lei de Licitações.
[3] Decreto-Lei nº 4.657/1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Art. 1º Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.
[4] Art. 193. Revogam-se:
I – os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;
II – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei;
[5] O prazo de dois anos se encerraria no dia 1 de abril de 2023, inclusive. No entanto, tratando-se de um sábado, com base no § 2º do artigo 183 da Nova Lei de Licitações, o último dia de vigência será prorrogado para o primeiro dia útil subsequente, de modo que a vigência das antigas normas se estenderá até o dia 3 de abril de 2023 (segunda-feira), inclusive, sendo este o seu último dia de vigência e também o dia de sua revogação.
[6] Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
[7] Art. 191. Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
[8] Art. 190. O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada.
[9] O termo inovação incremental foi cunhado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, e ajuda a entender como a Nova Lei de Licitações pretende solucionar algumas problemáticas já conhecidas nas contratações públicas. Em 1939, no livro intitulado Business Cycles, o economista diferencia os conceitos de inovação incremental e radical. O primeiro se pretende um progresso sobre algo preexistente, enquanto o segundo é acompanhado de rupturas.
[10] Art. 103. O contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, alocando-os entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados
1º A alocação de riscos de que trata o caput deste artigo considerará, em compatibilidade com as obrigações e os encargos atribuídos às partes no contrato, a natureza do risco, o beneficiário das prestações a que se vincula e a capacidade de cada setor para melhor gerenciá-lo.
[11] Art. 22. O edital poderá contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo.
[12] Art. 18. Inciso X – a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual;
[13] Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
[14] Art. 142. Disposição expressa no edital ou no contrato poderá prever pagamento em conta vinculada ou pagamento pela efetiva comprovação do fato gerador.
[15] Art. 143. No caso de controvérsia sobre a execução do objeto, quanto a dimensão, qualidade e quantidade, a parcela incontroversa deverá ser liberada no prazo previsto para pagamento.
[16] Art. 145. § 1º A antecipação de pagamento somente será permitida se propiciar sensível economia de recursos ou se representar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço, hipótese que deverá ser previamente justificada no processo licitatório e expressamente prevista no edital de licitação ou instrumento formal de contratação direta.
[17] Art. 25. § 4º Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.
[18] Art. 137. Inciso IV – atraso superior a 2 (dois) meses, contado da emissão da nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos pela Administração por despesas de obras, serviços ou fornecimentos;
[19] Art. 102. Na contratação de obras e serviços de engenharia, o edital poderá exigir a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia e prever a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato, hipótese em que: […]
[20] Art. 123. A Administração terá o dever de explicitamente emitir decisão sobre todas as solicitações e reclamações relacionadas à execução dos contratos regidos por esta Lei, ressalvados os requerimentos manifestamente impertinentes, meramente protelatórios ou de nenhum interesse para a boa execução do contrato.
Parágrafo único. Salvo disposição legal ou cláusula contratual que estabeleça prazo específico, concluída a instrução do requerimento, a Administração terá o prazo de 1 (um) mês para decidir, admitida a prorrogação motivada por igual período.
[21] Art. 130. Caso haja alteração unilateral do contrato que aumente ou diminua os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, no mesmo termo aditivo, o equilíbrio econômico-financeiro inicial.
Read MoreA abrangência da norma diz respeito a quem deverá respeitá-la e aplicá-la, sendo que, no caso da Nova Lei de Licitações, sujeitam-se a ela, em grau variado de vinculação, entes públicos e privados, que podem ser submetidos à sua aplicação integral ou parcial, inclusive, mediante regras especiais.
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) foi publicada em 1º de abril de 2021 e, desde então, teve início o período de transição entre a legislação antiga e a nova. Nesse sentido, existem dois pontos principais a serem compreendidos sobre a aplicação da nova lei: a sua vigência e a sua abrangência subjetiva, isto é, os destinatários da norma.
Quando se fala na vigência de uma norma, trata-se de discutir a partir de quando passam a valer as regras da nova legislação. Já a sua abrangência diz respeito a quem deverá respeitá-la. No caso da Nova Lei de Licitações, a sua abrangência é estabelecida já no seu artigo 1º, nos seguintes termos:
Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange:
I – os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa;
II – os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.
§1º Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.
§2º As contratações realizadas no âmbito das repartições públicas sediadas no exterior obedecerão às peculiaridades locais e aos princípios básicos estabelecidos nesta Lei, na forma de regulamentação específica a ser editada por ministro de Estado.
§3º Nas licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, podem ser admitidas:
I – condições decorrentes de acordos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República;
II – condições peculiares à seleção e à contratação constantes de normas e procedimentos das agências ou dos organismos, desde que:
a) sejam exigidas para a obtenção do empréstimo ou doação;
b) não conflitem com os princípios constitucionais em vigor;
c) sejam indicadas no respectivo contrato de empréstimo ou doação e tenham sido objeto de parecer favorável do órgão jurídico do contratante do financiamento previamente à celebração do referido contrato;
d) (VETADO).
§4º A documentação encaminhada ao Senado Federal para autorização do empréstimo de que trata o § 3º deste artigo deverá fazer referência às condições contratuais que incidam na hipótese do referido parágrafo.
§5º As contratações relativas à gestão, direta e indireta, das reservas internacionais do País, inclusive as de serviços conexos ou acessórios a essa atividade, serão disciplinadas em ato normativo próprio do Banco Central do Brasil, assegurada a observância dos princípios estabelecidos no caput do art. 37 da Constituição Federal.
Percebe-se que a Nova Lei de Licitações estabelece normas para as contratações públicas de entidades e órgãos da administração pública brasileira, especialmente a direta, autárquica e fundacional, sendo possível dividir a sua abrangência em aplicação integral e aplicação parcial da Lei. Vejamos.
A abrangência da Nova Lei de Licitações com aplicação integral
A Lei nº 14.133/2021 abrange integralmente todos os entes da administração pública direta da União e de todos os Estados e Municípios brasileiros, bem como do Distrito Federal. Ou seja, todos os órgãos do Poder Executivo destes entes federativos estarão sujeitos à Nova Lei de Licitações e deverão respeitar a totalidade dos dispositivos e regulamentações trazidas pela norma, que se propõe a unificar as disposições legais sobre licitações e contratos administrativos, que, antes, constavam apenas de forma esparsa no ordenamento jurídico brasileiro (como é o caso da Lei do Pregão e da Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC).
É importante observar, contudo, que a abrangência da Nova Lei de Licitações não se restringe ao Poder Executivo, tendo em vista não ser sinônimo de “Administração Pública”, a qual também pode representar os órgãos dos Poderes Judiciário e Legislativo, do Tribunal de Contas e do Ministério Público, especialmente quando do desempenho de funções administrativas (como visto no inciso I do artigo 1º da nova lei). Nessas situações, todos eles se sujeitam à Lei nº 14.133/2021, mesmo não pertencendo ao Poder Executivo da União, dos Estados, dos Municípios ou do Distrito Federal.
Além disso, apesar de a abrangência se estender a todos os municípios, enquanto entes federativos integrantes da administração direta, os municípios com até 20.000 habitantes possuem algumas regras especiais para a aplicação da Nova Lei de Licitações.
Em razão das diversas obrigações e adaptações trazidas pelo novo diploma legal, o artigo 176[1]Art. 176. Os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitantes terão o prazo de 6 (seis) anos, contado da data de publicação desta Lei, para cumprimento: I – dos requisitos estabelecidos no … Continue reading da Lei concedeu o prazo de 6 anos para que estes municípios cumpram algumas destas obrigações. Especificamente, os municípios com até 20.000 habitantes possuem prazo especial para a realização da licitação sob a forma eletrônica (sendo este o formato padrão estabelecido pela Nova Lei de Licitações), o atendimento às regras de divulgação em sítio eletrônico oficial, assim como para determinados requisitos de seleção e segregação de funções dos agentes públicos que colocarão em prática a nova lei.
A aplicação integral também se estende à administração pública indireta, mas tão somente às autarquias e fundações públicas (caput do artigo 1º). As empresas públicas e sociedades de economia mista estão apenas parcialmente sujeitas à Lei nº 14.133/2021, assim como estavam perante a Lei nº 8.666/1993, o que se verá a seguir.
A abrangência da Nova Lei de Licitações com aplicação parcial
As empresas públicas e as sociedades de economia mista, bem como as suas subsidiárias, estão sujeitas à Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais), que traz disposições sobre licitações e contratos administrativos para estas empresas. Ainda assim, as sociedades de economia mista e as empresas públicas estão sujeitas à Nova Lei de Licitações nos seguintes pontos:
- Critérios de desempate entre duas propostas (art. 60 da NLL[2]Nova Lei de Licitações:Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: I – disputa final, hipótese em que os … Continue readinge art. 55 da Lei das Estatais[3]Lei das Estatais: Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate: I – disputa final, em … Continue reading);
- Adoção da modalidade pregão para licitações (art. 32, IV, da Lei das Estatais[4]Lei das Estatais: Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes: […] IV – adoção preferencial da modalidade de licitação … Continue reading);
- Disposições penais (art. 178 da NLL e Título XI da Parte Especial do Código Penal).
Esta aplicação subsidiária se dá em razão do disposto no artigo 189 da Nova Lei de Licitações, que dispõe que as suas normas serão aplicadas nas hipóteses em que a legislação faz referência expressa à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (Lei do RCD)[5]Nova Lei de Licitações: Art. 189. Aplica-se esta Lei às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, à Lei nº 10.520, de 17 de … Continue reading.
Além destes, apesar de não haver previsão expressa na Lei nº 14.133/2021, também sofrem aplicação parcial os Serviços Sociais Autônomos – integrantes do chamado Sistema S. Estes entes não pertencem à Administração Direta nem à Administração Indireta, sendo considerados “instituições privadas, com característica paraestatal, criadas para atuar ao lado do Estado na persecução de interesses sociais relevantes”[6]Direito administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 1139.. Estas entidades não estão sujeitas às regras procedimentais da Nova Lei de Licitações, porquanto não fazem parte da administração pública, mas estão sujeitas aos princípios licitatórios previstos no artigo 5º do novo marco jurídico de contratações.
Isto porque, embora sejam consideradas pessoas de direito privado, atuam ao lado do Estado para atingir fins de interesse público[7]Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 252, p. 186-189, fev. 2015, seção Orientação Prática.. Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem o entendimento de que, apesar da necessidade de regulamentos próprios para contratações públicas, a utilização de recursos parafiscais pelas entidades do Sistema S impõe a necessidade da obediência aos princípios da legislação pertinente (Decisão nº 907/97 – Plenário)[8]TC-011.777/96-6. Decisão nº 907/97 – Plenário. Denúncia procedente, em parte. Inspeção realizada no local, objetivando apuração dos fatos constantes da peça acusatória relacionados com … Continue reading – notadamente a Lei nº 8.666/1993 e, agora, a Lei nº 14.133/2021.
Casos especiais de aplicação da Nova Lei de Licitações
Os §§ 2º a 5º do artigo 1º da Lei nº 14.133/2021 tratam da aplicação das regras da Nova Lei de Licitações em alguns casos especiais, que não se enquadram nas hipóteses mencionadas anteriormente. Vejamos.
As repartições públicas sediadas no exterior estão sujeitas aos princípios da Lei 14.133/2021, mas devem obedecer às peculiaridades legislativas do local em que estão sediadas e seguir regulamentações próprias a serem editadas pelo Ministro de Estado (art. 1º, § 2º).
Já nos casos de licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, são admitidas regras além da legislação brasileira, como tratados internacionais ou aplicação de normas ou procedimentos das próprias agências ou organismos internacionais (art.1º, § 3º).
As contratações relativas à gestão das reservas internacionais do país terão regulamentação própria, a ser editada pelo Banco Central do Brasil (art. 1º, § 5º). Estas reservas, também chamadas de reservas cambiais, “são os ativos do Brasil em moeda estrangeira e funcionam como uma espécie de seguro para o país fazer frente às suas obrigações no exterior”, conforme definição do próprio Banco Central[9]Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/reservasinternacionais. Acesso em 15/06/2021.. Ainda assim, a regulamentação do Banco Central do Brasil estará sujeita aos princípios norteadores da administração pública (art. 37, caput, da Constituição Federal) e da Lei nº 14.133/2021.
Por fim, não se aplicam as disposições da Nova Lei de Licitações aos “contratos que tenham por objeto operação de crédito, interno ou externo, e gestão de dívida pública”, inclusive as eventuais “contratações de agente financeiro e a concessão de garantia relacionadas a esses contratos” (vide art. 3º, I). Estão fora do âmbito de aplicação da Lei Federal nº 14.133/2021, igualmente, as contratações sujeitas a normas previstas em legislação própria (art. 3º, II).
Resumindo…
A abrangência da Nova Lei de Licitações atinge tanto a administração pública direta quanto a administração pública indireta, e, entre os entes abrangidos pela norma, a aplicação se dá conforme o seguinte:
Aplicação integral da nova Lei de Licitações
- Administração direta;
- Autarquias;
- Fundações públicas.
Aplicação parcial da nova Lei de Licitações
- Empresas públicas (aplicação primária da Lei nº 13.303/2016);
- Sociedades de Economia Mista (aplicação primária da Lei nº 13.303/2016);
- Sistema S (sujeito a regulamentos próprios para licitações e contratações públicas, com aplicação dos princípios da Nova Lei de Licitações);
Casos especiais
- Repartições Públicas sediadas no exterior;
- Licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira;
- Contratações relativas à gestão das reservas internacionais.
- Contratos para operação de crédito, interno ou externo, e gestão de dívida pública
Referências[+]
↑1 | Art. 176. Os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitantes terão o prazo de 6 (seis) anos, contado da data de publicação desta Lei, para cumprimento:
I – dos requisitos estabelecidos no art. 7º e no caput do art. 8º desta Lei; II – da obrigatoriedade de realização da licitação sob a forma eletrônica a que se refere o § 2º do art. 17 desta Lei; III – das regras relativas à divulgação em sítio eletrônico oficial. Parágrafo único. Enquanto não adotarem o PNCP, os Municípios a que se refere o caput deste artigo deverão: I – publicar, em diário oficial, as informações que esta Lei exige que sejam divulgadas em sítio eletrônico oficial, admitida a publicação de extrato; II – disponibilizar a versão física dos documentos em suas repartições, vedada a cobrança de qualquer valor, salvo o referente ao fornecimento de edital ou de cópia de documento, que não será superior ao custo de sua reprodução gráfica. |
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↑2 | Nova Lei de Licitações:Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:
I – disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação; II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei; III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento; IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle. […] |
↑3 | Lei das Estatais:
Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate: I – disputa final, em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta fechada, em ato contínuo ao encerramento da etapa de julgamento; II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, desde que exista sistema objetivo de avaliação instituído; III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991 , e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 ; IV – sorteio. |
↑4 | Lei das Estatais:
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes: […] IV – adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002 , para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado; |
↑5 | Nova Lei de Licitações:
Art. 189. Aplica-se esta Lei às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, à Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e aos arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011. |
↑6 | Direito administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 1139. |
↑7 | Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 252, p. 186-189, fev. 2015, seção Orientação Prática. |
↑8 | TC-011.777/96-6. Decisão nº 907/97 – Plenário. Denúncia procedente, em parte. Inspeção realizada no local, objetivando apuração dos fatos constantes da peça acusatória relacionados com problemas em processos licitatórios e contratação de pessoal. Natureza jurídica dos serviços sociais autônomos. Inaplicabilidade dos procedimentos estritos da Lei 8.666 ao Sistema “S”. Necessidade de seus regulamentos próprios. Uso de recursos parafiscais impõe necessidade de obediência aos princípios gerais da legislação federal pertinente. Importância da Auditoria Operacional. Determinações. |
↑9 | Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/reservasinternacionais. Acesso em 15/06/2021. |
A nova Lei de Licitações surge como um verdadeiro Código Nacional de Contratações Públicas e dedicou o Capítulo XII ao tema dos meios alternativos de resolução de controvérsias, entre seus artigos 151 a 154.
O ano de 2021 começou movimentado no mundo do Direito Administrativo. Depois de tanta espera – afinal, o projeto da nova Lei de Licitações teve seu início em 1995 -, a notícia de que a Lei nº 14.133/2021 seria sancionada no dia 01/04/2021 mais parecia uma daquelas costumeiras pegadinhas do dia da mentira. Por sorte, não era. Publicada em edição extra do Diário Oficial da União, a Lei nº 14.133/2021 surge como um verdadeiro Código Nacional de Contratações Públicas, isso porque unifica, em um único instrumento normativo, diversas regras constantes em diplomas legais e infralegais que serviam para regulamentar os procedimentos licitatórios e os contratos administrativos.
De todo modo, e embora se reconheçam seus méritos, para muitos administrativistas a nova Lei de Licitações deixou a desejar. Reproduz o mesmo DNA burocrático e demasiadamente formalista da Lei nº 8.666/93, e chega a soar, em alguns momentos, muito mais uma atualização da antiga Lei do que propriamente uma nova Lei de Licitações.
No que se refere aos meios alternativos de resolução de controvérsias, a nova Lei de Licitações dedicou o Capítulo XII ao tema, entre seus artigos 151 a 154. De maneira geral, não apresenta nenhuma grande inovação. Reproduz instrumentos tradicionais de autocomposição e heterocomposição no âmbito privado e já previstos em outras regulamentações administrativas. Ainda assim, é inegável o seu mérito ao positivar, enfim, uma cláusula geral autorizativa dos meios alternativos de resolução de controvérsias, deixando expressamente previsto que a administração pública pode valer-se desses mecanismos.
No seu artigo 151 a Lei nº 14.133/2021 menciona alguns dos meios alternativos de resolução de controvérsias que poderão ser utilizados:
Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
Como se pode perceber, a Lei nº 14.133/2021 exemplificou os seguintes mecanismos de resolução de conflitos: a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas (dispute boards) e – tema deste breve artigo de opinião – a arbitragem. A grande questão é que sobre este último mecanismo, a arbitragem, a nova Lei de Licitações o previu de maneira genérica, sendo insuficiente em vários aspectos e perdendo a chance de regulamentar inúmeros pontos importantes.
A Lei nº 14.133/2021, no parágrafo único do artigo 151, no artigo 152 e no artigo 154, trata o tema da arbitragem nos seguintes termos:
Art. 151 […]
Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.
Art. 152. A arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade.
[…]
Art. 154. O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.
Da redação acima, conclui-se que a Lei nº 14.133/2021 enfrenta, em resumo, três temas atinentes à arbitragem no âmbito da Administração Pública: (i) a questão da arbitrabilidade objetiva e dos direitos disponíveis; (ii) o princípio da publicidade vinculado ao procedimento arbitral; e (iii) a necessidade de que a arbitragem seja de direito. Ocorre que se trata de previsões insuficientes para a procedimentalização desses aspectos. Como já adianta o título deste artigo, muito mais do que dizer, no que se refere ao tema da arbitragem, a Lei nº 14.133/2021 infelizmente se destaca por aquilo que silenciou.
Nesse ponto são válidas as reflexões realizadas por mim ao abordar a Nova Lei de Licitações, quando esta ainda era o Projeto de Lei nº 4253/2020 do Senado Federal. Naquela ocasião destaquei:
Apesar de o Projeto de Lei nº 4253/2020 trazer que as questões passíveis de serem resolvidas serão as que envolvem direitos patrimoniais disponíveis e, até mesmo, ilustrar algumas dessas situações, não apresenta qualquer definição mais específica do que deve ser considerado como um “direito disponível”. Da mesma forma, embora o Projeto de Lei nº 4253/2020 destaque que a arbitragem observará o princípio da publicidade, não apresenta qualquer indicativo de que maneira essa publicidade deve se dar na prática. O ponto envolvendo a escolha dos árbitros segue o mesmo caminho. Ainda que o projeto da nova lei de licitações apresente que precisam ser observados critérios “isonômicos”, “técnicos” e “transparentes”, não se tem qualquer explicação adicional do que o Legislador entende por um processo de escolha com essas características[1].
Sem qualquer pretensão de exaurir o tema, mas sim possibilitar discussões sobre o assunto, neste breve texto faz-se um exercício oposto ao usual: pontua-se abaixo não aquilo que a nova Lei de Licitações disse sobre a Arbitragem, mas sim o que ela não disse (mas deveria ter dito).
A Lei nº 14.133/2021 não especificou quais as matérias que se enquadram dentro da categoria de direitos disponíveis. Embora preveja no parágrafo único do seu artigo 151 que “Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações”, chegando a exemplificar algumas matérias passíveis de serem resolvidas pela via arbitral, essa exemplificação é insuficiente. Ao apresentar previsões genéricas, a Lei nº 14.133/2021 perde a chance de, se não colocar fim nelas, pelo menos diminuir em muito as controvérsias que se originam de discussões envolvendo a arbitrabilidade objetiva.
Mais do que isso, não é como se a nova Lei de Licitações surgisse em um cenário em que outras leis ou mesmo administrativistas estudiosos da arbitragem já não tivessem enfrentado o tema e, por sua vez, apresentado listas muito mais robustas com as matérias passíveis de serem arbitradas e que poderiam ser utilizadas como exemplo pela Lei nº 14.133/2021.
Em âmbito normativo, por exemplo, tem-se o Decreto Federal nº 10.025/2019, que no seu artigo 2º estabeleceu que, entre outras, consideram-se controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis as que envolvam: (i) questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; (ii) o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de parceria; e (iii) o inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes.
Em âmbito doutrinário, por sua vez, retira-se da obra Curso Prático de arbitragem e administração pública, dos autores Gustavo Justino de Oliveira e Felipe Faiwichow Estefam, outra lista com matérias que seriam passíveis de serem resolvidas por meio da arbitragem. Para os autores, seriam arbitráveis:
- os termos sacramentados no contrato administrativo, pelas cláusulas regulamentares que são aquelas que disciplinam o modo e a forma da prestação do serviço;
- as cláusulas econômico-financeiras e monetárias que são aquelas que tratam da equação econômico-financeira do contrato;
- as hipóteses em que se assegura a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, pois dizem respeito ao aspecto econômico do contrato;
- as consequências patrimoniais advindas do uso das prerrogativas administrativas determinadas em cláusulas exorbitantes que afetem direitos do particular, especialmente as relacionadas ao dever de indenizar e recompor o equilíbrio econômico-financeiro.[2]
Como se pode observar, tanto o exemplo legislativo do Decreto Federal nº 10.025/2019, como o apresentado pelos autores supramencionados, trazem listas mais robustas, caminho que poderia ter sido adotado pela nova Lei de Licitações e que daria maior segurança jurídica ao instituto. Não foi, porém, o que aconteceu. Nesse ponto, a Lei nº 14.133/21 se omitiu.
Dando sequência à análise daquilo que a nova Lei de Licitações não disse, também se perdeu a oportunidade de procedimentalizar a aplicação do princípio da publicidade dos atos da Administração Pública vinculado ao instituto da arbitragem. Isso porque, há muito, quando se trata do princípio da publicidade no âmbito dos procedimentos arbitrais, a discussão deixou de ser sobre a necessidade da publicidade em arbitragens que envolvam a Administração Pública – é consenso que os processos arbitrais que envolvam ente estatal não podem ser sigilosos -, mas, sim, sobre como essa publicidade pode e deve se perfectibilizar na prática. Também sobre esse aspecto a Lei nº 14.133/21 deixa de se pronunciar.
A nova Lei de Licitações perde a oportunidade de responder uma série de questionamentos, tais como: (i) quais documentos do processo arbitral deverão ser públicos? (ii) quais atos do procedimento arbitral se submeteriam à exigência da publicidade? e, mais importante, (iii) as câmaras arbitrais e os seus regulamentos também devem ser públicos quando envolverem a Administração Pública? Igualmente nesse caso, tanto a doutrina, quanto leis anteriores, incluindo-se, regulamentos de câmaras, já enfrentaram essas discussões e poderiam ter servido de inspiração para a Lei nº 14.133/21.
Gustavo da Rocha Schmidt, em sua obra Arbitragem na Administração Pública traz à tona a discussão sobre aquele a quem compete o dever de publicidade, ou seja, se seria este um dever exclusivamente estatal ou uma previsão a ser seguida também pelos árbitros e entidades responsáveis por gerir o procedimento arbitral[3]. O autor informa que, no começo, o entendimento predominante era que esse dever de publicidade devia recair unicamente sobre o Poder Público, em razão de a câmara arbitral configurar-se como uma mera prestadora de serviços. No entanto, a partir das normativas mais recentes, como a da Lei nº 13.129/15, houve alteração desse cenário[4]. Atualmente, o entendimento é de que o Poder Público, árbitros e câmaras arbitrais devem trabalhar em conjunto para dar efetividade a essa transparência que é exigida em processos arbitrais que envolvam o Poder Público[5].
Atualmente também já se vislumbra o surgimento de previsões em decretos e regulamentos de câmaras que determinam como essas entidades devem se comportar em relação ao dever de publicidade. Em pesquisa realizada pelos já citados autores Gustavo Justino de Oliveira e Felipe Faiwichow Estefam, os pesquisadores levantaram que o Decreto nº 46.245/2018 do estado do Rio de Janeiro, no § 3º do seu artigo 13, estabelece que são públicas “as petições, os laudos periciais e as decisões dos árbitros de qualquer natureza”. Por sua vez, a Lei nº 19.477/2011 do estado de Minas Gerais, que dispõe sobre a adoção do juízo arbitral para a solução de litígio em que o Estado seja parte, determina em seu artigo 6º que a arbitragem deverá ser “instaurada mediante processo público”. Tem-se ainda a previsão do Decreto nº 10.025/2019, que prescreve, no inciso IV do seu artigo 3º, que “as informações sobre o processo de arbitragem serão públicas, ressalvadas aquelas necessárias à preservação de segredo industrial ou comercial e aquelas consideradas sigilosas pela legislação brasileira”.[6] [7] [8]
Perfilhando os mesmos entendimentos acima, vários regulamentos de câmaras arbitrais brasileiras já trazem previsão para a publicidade efetivar-se na prática. A título de exemplo, citam-se os artigos 12.1, 12.2 e 12.3 da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial – CAMARB; a Resolução nº 3/2018 da Fiesp/Ciesp; e a Resolução Administrativa nº 15/2016 da Câmara de Comércio Brasil-Canadá – CCBC[9].
Como se pode observar, a forma como a publicidade deve se dar nos procedimentos arbitrais envolvendo a Administração Pública ainda exige inúmeras regulamentações. É por essa razão que se destaca que a Lei nº 14.133/2021 falhou ao apresentar previsão tão superficial, e sem especificar a forma pela qual se deve perfectibilizar a publicidade na prática.
Igualmente, nada disse a Lei nº 14.133/21 sobre as Convenções Arbitrais. Temas como a escolha dos árbitros e das Câmaras arbitrais foram ignorados pela nova Lei. Embora todos esses assuntos sejam questões que estão intimamente ligadas à autonomia das partes, em um contexto de arbitragem com entes públicos, e muito em razão do dever de motivação dos atos administrativos, a nova Lei de Licitações perdeu a chance de apresentar, pelo menos, orientações sobre a forma como se deve dar a escolha dos árbitros e das câmaras arbitrais, o que inclusive traria maior segurança jurídica às partes.
Veja que também nesse caso não se trata de temas inéditos. O já citado Decreto Federal nº 10.025/2019 dedica todo o seu capítulo VII a abordar os critérios que devem ser levados em conta pela Administração ao definir a escolha da câmara arbitral[10], e já no capítulo seguinte (capítulo VIII) faz o mesmo quanto à escolha dos árbitros.[11]
A Doutrina também já enfrentou os assuntos acima.
Gustavo da Rocha Schmidt, tendo por base as previsões do Decreto nº 8.546/2015 e da Lei Mineira de Arbitragem, no que se refere à escolha de câmaras arbitrais pelos entes públicos, aborda a possibilidade de indicar parâmetros mínimos que devem ser observados nessa escolha. Lista o autor como critérios mínimos: (i) comprovação de prévia e efetiva experiência na gestão de procedimentos arbitrais; (ii) que a instituição arbitral possua a infraestrutura necessária para a gestão de procedimentos arbitrais, como sala de audiência com tecnologia e salas de apoio para testemunhas e peritos[12]. Por fim, relata como muito bem equilibrada a disciplina contida no artigo 14 do Decreto Estadual nº 46.245/2018 do estado do Rio de Janeiro:
DO CADASTRAMENTO DO ÓRGÃO ARBITRAL INSTITUCIONAL
Art. 14 – O órgão arbitral institucional, nacional ou estrangeiro, deverá ser previamente cadastrado junto ao Estado do Rio de Janeiro e atender aos seguintes requisitos:
I – disponibilidade de representação no Estado do Rio de Janeiro;
II – estar regularmente constituído há, pelo menos, cinco anos;
III – estar em regular funcionamento como instituição arbitral;
IV – ter reconhecida idoneidade, competência e experiência na administração de procedimentos arbitrais, com a comprovação na condução de, no mínimo, quinze arbitragens no ano calendário anterior ao cadastramento.
1º – Caberá à Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro cadastrar os órgãos arbitrais institucionais, observados os requisitos previstos neste artigo.
2º – O cadastramento a que se refere o caput não se sujeita a prazo certo e determinado, podendo qualquer órgão arbitral institucional, a qualquer tempo, postular o seu cadastramento perante o Estado do Rio de Janeiro.
3º – Considera-se representação a existência de local apropriado, que funcione como protocolo para recebimento de peças e documentos da arbitragem.
4º – A disponibilidade da representação compreende o oferecimento, sem custo adicional para as partes, dos serviços operacionais necessários para o regular desenvolvimento da arbitragem, tais como local para realização de audiências, e secretariado.
Já Bruno Lopes Mega, ao abordar o assunto da escolha dos árbitros, inclusive comentando as leis existentes sobre o tema, destaca que:
alguns critérios objetivos podem orientar essa escolha, como fazem expressamente, por exemplo, os Estados de Minas Gerais e de Pernambuco, ao exigirem que o árbitro deve ‘deter conhecimento técnico compatível com a natureza do contrato’ (art. 5º, II, da Lei nº 12.477/2011 de Minas Gerais e art. 4º, II da Lei nº 15.627/2015 de Pernambuco) e o Estado de São Paulo, ao exigir que, nas parcerias público-privadas, ‘os árbitros deverão ser escolhidos dentre os vinculados a instituições especializadas na matéria e de reconhecida idoneidade’ (art. 11, parágrafo único, da Lei nº 11.688/2004 do Estado de São Paulo)[13].
Prossegue o autor que, além dos critérios objetivos, deveriam ser incorporados critérios subjetivos, como o da imparcialidade e o da ausência de impedimentos, bem como o dispositivo para limitar a indicação a grupos de árbitros com certas características, como, segundo o exemplo do autor, o de ser professor universitário[14] ou profissional com alguma especialização naquele assunto que será arbitrado.
Como se pode ver, também no que tange à escolha das câmaras arbitrais e dos árbitros, havia muito a ser dito pela nova Lei de Licitações. Esta, contudo, ficou em silêncio.
Existe um ditado popular que diz que “o peixe morre pela boca”. Uma das interpretações desse ditado é que devemos ter cuidado com aquilo que falamos porque podemos acabar engolindo um anzol que nos lançaram. A nova Lei de Licitações, no que tange ao tema da arbitragem, não corre esse risco. Como pouco fala, é muito improvável que acabe engolindo qualquer anzol. O problema é que o silêncio foi tanto, que existe o risco de ela nem mesmo chegar a ser lançada no mar. Aguardemos os próximos capítulos!
[1] PREVE, Murillo. Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias. In: Joel de Menezes Niebuhr (org). (Org.). Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 1ª ed. Curitiba: Zênite, 2020, p. 130.
[2] OLIVEIRA, G. J. de; ESTEFAM, F. F. Curso prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 61.
[3] ROCHA SCHMIDT, Gustavo. Arbitragem na Administração Pública. Curitiba, Juruá, 2018, p. 59.
[4] Idem, ibidem, p. 59-60.
[5] Trecho retirado de capítulo escrito por este mesmo autor na obra PREVE, Murillo. Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias. In: Joel de Menezes Niebuhr (org). Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 1ª ed. Curitiba: Zênite, 2020, p. 126-139.
[6] Informações retiradas de pesquisa realizada por: OLIVEIRA, G. J. de; ESTEFAM, F. F. Curso prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 61.
[7] Sobre esse tema, ainda apresentam Gustavo Justino de Oliveira e Felipe Faiwichow Estefam que “Para evitar controvérsias acerca do grau de publicidade, é prudente que no início do processo arbitral seja determinado o que será publicado pela Administração, à luz do regime jurídico aplicável. Surgindo conflitos entre as partes quanto a tal tema, ante o princípio da competência-competência (art. 8º, parágrafo único, da LA) e o art. 13 da LA, a controvérsia deve ser resolvida pelo árbitro”. (OLIVEIRA, G. J. de; ESTEFAM, F. F. Curso prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 61).
[8] Trecho extraído de capítulo escrito por este autor na obra PREVE, Murillo. Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias. In: Joel de Menezes Niebuhr (org). (Org.). Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 1ª ed. Curitiba: Zênite, 2020, p. 126-139.
[9] Idem.
[10] CAPÍTULO VII
DO CREDENCIAMENTO E DA ESCOLHA DA CÂMARA ARBITRAL
Art. 10. O credenciamento da câmara arbitral será realizado pela Advocacia-Geral da União e dependerá do atendimento aos seguintes requisitos mínimos:
I – estar em funcionamento regular como câmara arbitral há, no mínimo, três anos;
II – ter reconhecidas idoneidade, competência e experiência na condução de procedimentos arbitrais; e
III – possuir regulamento próprio, disponível em língua portuguesa.
- 1º O credenciamento de que trata o caput consiste em cadastro das câmaras arbitrais para eventual indicação futura em convenções de arbitragem e não caracteriza vínculo contratual entre o Poder Público e as câmaras arbitrais credenciadas.
- 2º A Advocacia-Geral da União disciplinará a forma de comprovação dos requisitos estabelecidos no caput e poderá estabelecer outros para o credenciamento das câmaras arbitrais.
Art. 11. A convenção de arbitragem poderá estipular que a indicação da câmara arbitral que administrará o procedimento arbitral será feita pelo contratado, dentre as câmaras credenciadas na forma prevista no art. 10.
- 1º A administração pública federal poderá, no prazo de quinze dias, manifestar objeção à câmara escolhida, hipótese em que a parte que solicitou a instauração da arbitragem indicará outra câmara credenciada, no prazo de quinze dias, contado da data da comunicação da objeção.
- 2º A indicação da câmara arbitral escolhida e a sua eventual objeção serão feitas por correspondência dirigida à outra parte, ainda que a cláusula compromissória estabeleça que esta escolha será promovida logo após a celebração do contrato de parceria.
- 3º A câmara arbitral indicada poderá ser substituída antes do início da arbitragem, desde que com a anuência de ambas as partes, independentemente da celebração de termo aditivo ao contrato de parceria.
[11] CAPÍTULO VIII
DA ESCOLHA DOS ÁRBITROS
Art. 12. Os árbitros serão escolhidos nos termos estabelecidos na convenção de arbitragem, observados os seguintes requisitos mínimos:
I – estar no gozo de plena capacidade civil;
II – deter conhecimento compatível com a natureza do litígio; e
III – não ter, com as partes ou com o litígio que lhe for submetido, relações que caracterizem as hipóteses de impedimento ou suspeição de juízes, conforme previsto na Lei nº 13.105, de 2015 – Código de Processo Civil, ou outras situações de conflito de interesses previstas em lei ou reconhecidas em diretrizes internacionalmente aceitas ou nas regras da instituição arbitral escolhida.
Parágrafo único. O ingresso no País de árbitros e equipes de apoio residentes no exterior, exclusivamente para participação em audiências de procedimentos arbitrais com sede no País, é hipótese de visita de negócios, nos termos do disposto no § 3º do art. 29 do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017, respeitados os prazos de estada e as demais condições da legislação de imigração aplicável.
[12]ROCHA SCHMIDT, Gustavo. Arbitragem na Administração Pública. Curitiba, Juruá, 2018, p. 70-72.
[13] MEGAN, Bruno Lopes. Arbitragem e Administração Pública. Fundamentos Teóricos e Soluções Práticas. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 220.
[14] Idem.
Read MoreO ANPC consolida uma nova perspectiva no Direito Público brasileiro, superando-se o entendimento de que a resolução de conflitos por meio de soluções negociais seria contrária ao interesse público, e estabelecendo a consensualidade como uma diretriz válida também no âmbito do Direito Sancionador.
Eduardo Martins Pereira[1]
A resolução de conflitos pela via consensual não é um fenômeno recente no contexto jurídico brasileiro. Trata-se, em verdade, de realidade concreta, que, na medida em que é eleita por instrumentos normativos e incorporada na prática forense, apresenta resultados que reforçam as razões para o seu emprego.[2]
Neste contexto, por iniciativa do Governo Federal, e com participação ativa do Congresso Nacional, foi promulgada a Lei nº 13.964/2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”, que, entre outras mudanças com o intuito de fortalecer o viés negocial no Direito Sancionador, institucionaliza a possibilidade de realização do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC) nas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa.
No caso, a referida alteração atingiu de forma específica o § 1º do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), não apenas retirando a antiga vedação à realização de transação, acordo ou conciliação nas ações que versem sobre atos de improbidade administrativa, mas também prevendo expressamente tal possibilidade, mediante a “celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei”.
Contudo, na proposta legislativa enviada para a sanção presidencial, além da mudança no § 1º do artigo 17, constava a inclusão do artigo 17-A, o qual regulamentava a competência e o procedimento a ser adotado para a sua firmatura. Essa inclusão, no entanto, foi integralmente vetada pelo Presidente da República[3], de modo que o Acordo de Não Persecução Cível foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro sem a devida delimitação normativa, circunstância que naturalmente implica dúvidas sobre a sua amplitude, funcionalidade e consequências, algumas das quais se pretende aqui abordar.
Questões sobre a competência para celebração do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
É interessante notar que o artigo vetado previa a competência exclusiva ao Ministério Público para a celebração do Acordo de Não Persecução Cível, de modo que a pessoa jurídica interessada, que também possui legitimidade para propositura de ação por ato de improbidade administrativa, nos termos do caput do artigo 17 da LIA[4], não poderia se valer deste instituto.
No entanto, a própria justificativa apresentada para o veto do artigo 17-A argumenta que tal distinção entre Ministério Público e pessoa jurídica interessada seria contrária ao interesse público e provocaria insegurança jurídica. Dessa forma, nos moldes atuais da Lei de Improbidade Administrativa, é possível inferir que a pessoa jurídica interessada pode também firmar Acordo de Não Persecução Cível, além de ter legitimidade ativa para a propositura de ação civil pública.
Em razão disso, a sistemática do ANPC deve ser compreendida a partir da dupla competência dos entes legitimados para a propositura de ação por ato de improbidade, em procedimento que harmonize a atuação do Ministério Público e da pessoa jurídica interessada, e que proteja a segurança jurídica do agente público ou particular com o qual se firme o Acordo de Não Persecução Cível.
Para ilustrar essa necessidade, imagine-se uma situação em que o Ministério Público celebre Acordo de Não Persecução Cível com determinado agente público ou particular, investigado ou acusado pela prática de ato ímprobo, sem comunicar a pessoa jurídica interessada – e, portanto, sem a anuência desta aos termos convencionados. Nesse caso, por óbvio, não se pode admitir que a pessoa jurídica interessada, posteriormente, proponha ação em face deste agente pelo mesmo ato ímprobo que já fora objeto do ANPC, mesmo que ela não tenha consentido com este e venha a discordar do seu teor.
Questões sobre a necessidade de homologação do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Deste mesmo contexto de (in)segurança jurídica no procedimento de formalização do ANPC surge a controvérsia sobre a necessidade de homologação judicial. Aliás, vale mencionar que o referendo do ANPC pelo Poder Judiciário constava na gênese deste instituto, pois era prevista no § 5º do artigo 17-A, que foi vetado.
Sobre isso, apesar da ausência de previsão normativa vigente, entende-se que, quando a ação civil pública por ato de improbidade administrativa já foi proposta, faz-se necessária a submissão do Acordo de Não Persecução Cível ao crivo do juízo competente, o qual deverá intimar o outro ente legitimado, seja ele o Ministério Público ou a pessoa jurídica interessada, para que tome ciência dos termos avençados e possa se manifestar. Dessa forma, mitiga-se o risco de uma dupla persecução pelos entes legitimados, outorgando-se maior segurança jurídica às partes.
Para mais, ressalta-se que, conforme disposto no caput do artigo 20 da LIA, as espécies sancionatórias de perda de função pública e suspensão de direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado de sentença condenatória. Assim sendo, no caso de ANPC que disponha sobre tais espécies de sanções, eventual ausência do crivo judicial poderia representar uma problemática no que diz respeito à sua legalidade.
De outro lado, se o Acordo de Não Persecução Cível foi celebrado durante o curso do inquérito civil público, antes da propositura da ação por ato de improbidade administrativa e, portanto, extrajudicialmente, a sua eficácia prescinde de homologação judicial. Nesse sentido, as orientações internas do Ministério Público têm sustentado apenas a necessidade de homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público.[5]
Questões sobre o momento processual em que pode ser celebrado o Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Dito isso, merece atenção também a questão sobre a delimitação do momento processual em que pode ser celebrado o Acordo de Não Persecução Cível. Nesse ponto, embora a redação original do Pacote Anticrime assegurasse a possibilidade de que o acordo fosse firmado também no curso da ação de improbidade, tal dispositivo foi vetado, ao argumento de que seria contrário ao interesse público, uma vez que o agente acusado de ato ímprobo estaria sendo incentivado a continuar no trâmite da ação judicial, visando à possível transação.
Em contrapartida, o Pacote Anticrime traz a inclusão do § 10-A ao artigo 17 da LIA, o qual permite que as partes solicitem ao juízo a interrupção do prazo para a apresentação de contestação em até 90 dias a fim de buscarem uma solução consensual. No entanto, entende-se que a possibilidade incluída no § 10-A não implica qualquer forma de preclusão da solução consensual, até mesmo porque a evidente finalidade do dispositivo é promover a resolução de conflitos pela via negocial, e não restringi-la.
Assim sendo, em que pese o veto do dispositivo que regulava esta matéria na Lei Federal nº 13.964/2019, e mesmo que não haja previsão legal assertiva sobre tal possibilidade, entende-se admissível a celebração de ANPC em qualquer momento processual, desde que anterior ao trânsito em julgado da ação que versa sobre o referido ato de improbidade. Em outras palavras, o ANPC pode ser firmado tanto na fase pré-processual, antes mesmo de finalizada a investigação, contanto que presentes os elementos que compõem a justa causa, quanto na fase processual e recursal, inclusive após a condenação em 2ª instância. Inclusive, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já abordou a controvérsia, reconhecendo expressamente essa possibilidade em decisão paradigmática prolatada no Agravo em Recurso Especial nº 1.314.581.
Haveria um direito à celebração do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC)?
Como bem lecionam Gustavo Justino e Wilson Accioli Filho, a partir dos dogmas da eficiência e da racionalidade, é possível afirmar que a análise a ser realizada na fase pré-processual, em sede de Inquérito Civil Público, já não se restringe à existência de justa causa para a persecução sancionatória, limitando-se à demonstração de indícios de autoria e provas de materialidade do ato ímprobo, mas passa a abranger desde já a análise da possibilidade de resolução da demanda pela via consensual.[6] Essa possibilidade se evidencia, por exemplo, pelo fato de ser possível até mesmo o trancamento judicial do Inquérito Civil Público, ao argumento de que não foi oportunizado o diálogo entre as partes para a obtenção de uma solução negociada.
Nesse ponto, cumpre distinguir, o que se afirma não é a existência de um direito subjetivo à proposta de acordo por parte do agente público ou beneficiário do ato ímprobo, como poderia se entender no caso do instituto da transação penal, vigente no âmbito do direito criminal, mas, pelo menos, a garantia de um canal de diálogo com o ente legitimado para a propositura da ação por improbidade administrativa, de modo que este não poderia dispensar arbitrária e unilateralmente a solução negocial.
Sigilo das negociações.
Convém dizer que, independentemente do resultado das tratativas para a celebração do ANPC, as informações e documentos compartilhados entre as partes devem ser mantidos em sigilo até a sua homologação judicial, em respeito aos deveres éticos da negociação. Dessa forma, e traçando-se o paralelo com o caput do artigo 35 do Decreto Federal nº 8.420/2015 (que dispõe sobre os Acordos de Leniência), caso o ANPC não se concretize, os dados compartilhados devem ser devolvidos aos proprietários, sendo vedado o seu uso para fins de responsabilização, exceto quando o ente legitimado já tenha conhecimento de tais dados independentemente da negociação.
Conteúdo do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Doutro norte, é oportuno destacar que o Acordo de Não Persecução Cível pode assumir tanto natureza de pura reprimenda, de modo semelhante aos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, em que se negocia a aplicação imediata de determinada sanção sem a necessidade de que o agente ofereça algo em troca; quanto natureza colaborativa, com a troca de informações úteis ao interesse público visando a redução da sanção a ser aplicada, como ocorre nos Acordos de Leniência, instituídos pela Lei nº 12.846/2013.
Por tais características, o Acordo de Não Persecução Cível apresenta-se como um instrumento processual flexível, capaz de adaptar-se, caso a caso, às necessidades das partes e do interesse público.
Em outra perspectiva, tem-se a controvérsia sobre a necessidade de confissão formal da prática do ato ímprobo pelo agente investigado ou já acusado como pressuposto para a celebração do Acordo de Não Persecução Cível. Nessa questão, costuma-se traçar um paralelo com o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), do qual se originou o instituto ora abordado, e também com o Acordo de Leniência, para sustentar tal necessidade. Inclusive, essa é a posição que vem sendo adotada nas orientações internas do Ministério Público.[7]
Todavia, nesse ponto, observa-se que a legislação não traz essa exigência de forma expressa como condicionante da celebração do Acordo de Não Persecução Cível – diversamente das disposições normativas sobre o ANPP e o Acordo de Leniência. Diante disso, impor a condição de confissão ao investigado ou acusado é incorrer em interpretação extensiva em seu desfavor, ou em analogia in malam partem, devendo ser, portanto, interpretação vedada em decorrência do princípio da reserva legal vigente no sistema jurídico-penal, o qual deve também ser observado no âmbito do Direito Sancionador lato sensu.[8]
Outrossim, sob um viés pragmático, pode-se questionar a utilidade, para o interesse público, de uma confissão formal pelo agente ímprobo, e acrescentar que tal exigência tem o condão de repercutir numa série de distorções, na medida em que o agente pode simplesmente confessar a prática do ato para se livrar de uma investigação ou condenação com efeitos mais graves. Não por outro motivo, a exigência de confissão formal vem sendo questionada no âmbito do ANPP.[9]
Dessa forma, em privilégio ao livre arbítrio das partes para manejar o ANPC, entende-se que cabe a elas dispor sobre a questão da confissão no plano negocial, inexistindo óbice à celebração de acordo sem confissão formal pelo agente investigado ou acusado de improbidade – com a ressalva de que tal posicionamento não corresponde ao entendimento dominante desta matéria.
Por fim, no tocante às sanções a serem convencionadas entre as partes no âmbito do ANPC, novamente em privilégio à liberdade de transigência no campo negocial, entende-se possível a inclusão de outras medidas não previstas no rol de sanções trazido no artigo 12 da LIA[11], desde que adequadas à proteção da probidade administrativa, proporcionais à gravidade do ato ímprobo e, por óbvio, não defesas por lei.
Não obstante, convém mencionar que, havendo dano ao erário e/ou enriquecimento ilícito pelo agente ímprobo, impõe-se necessariamente a reparação integral do dano e/ou o ressarcimento dos valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio do agente acusado como desdobramentos inevitáveis do Acordo de Não Persecução Cível.
Considerações finais.
Isto posto, verifica-se que a ausência de disciplina legal para o procedimento a ser adotado na formalização do Acordo de Não Persecução Cível pode ser positiva, na medida em que a flexibilidade privilegia o livre arbítrio das partes em manejar o instituto processual, e eventualmente negativa, haja vista os questionamentos que surgem sobre a sua segurança jurídica e a sua legalidade.
Em conclusão, pode-se dizer que o Acordo de Não Persecução Cível consolida uma nova perspectiva no Direito Público brasileiro, superando-se o entendimento de que a resolução dos conflitos por meio de soluções negociais seria contrária ao interesse público, e estabelecendo a consensualidade como uma diretriz válida também no âmbito do Direito Sancionador.
[1] Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estagiário em Direito em Schiefler Advocacia. Membro do Laboratório de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Eleitoral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Contato: eduardomartins@schiefler.adv.br.
[2] O mais recente relatório do CNJ intitulado “Justiça em Números”, publicado em 2020, relativo aos dados colhidos no ano de 2019, indica a ocorrência de 3,9 milhões de acordos firmados por conciliação e homologados judicialmente no Brasil, número que representa 12,5% do total de processos daquele ano e que, apesar de expressivo, se considerado em conjunto com os custos financeiros e logísticos, tem potencial para crescer ainda mais. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf>. Acesso em 21 de maio de 2021.
[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-726.htm. Acesso em 21 de maio de 2021.
[4] Lei nº 8.349/1992. Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.
[5] Resolução nº 1.193/2020 do Colégio dos Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Artigo 5º, inciso V: Art. 5º – O instrumento que formalizar o acordo deverá conter obrigatoriamente os seguintes itens, inseridos separadamente: (…)
XII – Advertência de que a eficácia do acordo extrajudicial estará condicionada a sua homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público.
[6] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-06/opiniao-trancamento-judicial-inquerito-civil-publico>. Acesso em 17/05/2021.
[7] Resolução nº 1.193/2020 do Colégio dos Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Artigo 5º, inciso V: Art. 5º – O instrumento que formalizar o acordo deverá conter obrigatoriamente os seguintes itens, inseridos separadamente: (…)
V – Assunção por parte do pactuante da responsabilidade pelo ato ilícito praticado;
[8] Nesse sentido, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) estabelece, no paradigmático caso Oztürk, um conceito amplo de direito penal, que reconhece o direito administrativo sancionador como um “autêntico subsistema” da ordem jurídico-penal. A partir disso, determinados princípios jurídico-penais se estenderiam para o âmbito do direito administrativo sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato. (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. p. 128)
[9] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-23/cnmp-analisar-exigencia-confissao-acordo-nao-persecucao>. Acesso em 20/05/2021.
Read MoreA CAEMP é uma competição realizada pela Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e é uma simulação de corte arbitral nos moldes da prática internacional de moot court.
No último final de semana o Advogado Murillo Preve atuou como árbitro na VI CAEMP (Competição de Arbitragem Empresarial). Murillo arbitrou os times da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PUC-RS e Universidade Federal Fluminense.
A CAEMP é uma competição realizada pela Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e é uma simulação de corte arbitral nos moldes da prática internacional de moot court, na qual as equipes inscritas devem apresentar, escrita e oralmente, defesas para os requerimentos de ambas as partes diante de um caso hipotético, disponibilizado pela Comissão Organizadora.
Além disso, o advogado Murillo também atuou como Coach do time da Universidade Federal de Santa Catarina. O Time da UFSC, além de ter se consagrado como campeão da Preparatória Norte, foi a 3º equipe na classificação geral e 4º melhor memorial requerente na VI CAEMP.
Read MoreO texto versa sobre o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e os principais pontos que permeiam a dificuldade na sua aplicabilidade.
O advogado Gustavo Schiefler estreou, no último domingo (23/05/2021), na nova coluna do site Conjur: Público & Pragmático. O seu primeiro texto, intitulado “É recomendável aplicar a nova Lei de Licitações na pendência do PNCP?”, versa sobre o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e os principais pontos que permeiam a dificuldade na sua aplicabilidade, oferecendo diretrizes e soluções aos impasses. Acesse em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-23/publico-pragmatico-recomendavel-aplicar-lei-licitacoes-pendencia-pncp
A coluna Público & Pragmático recebe textos aos domingos e segue sob a curadoria do Prof. Gustavo Justino de Oliveira (USP e IDP).
Read MoreSaiba desde quando a Nova Lei de Licitações (Lei n.º 14.133/2021) está vigente e quando deixarão de ter vigência e vigor as normas substituídas
Em 1º de abril de 2021, foi sancionada e publicada, com vetos, a Lei n.º 14.133, usualmente denominada de a nova Lei de Licitações e de Contratos Administrativos. A nova Lei de Licitações e de Contratos Administrativos promove um sem-número de alterações sobre as normas jurídicas que concernem a licitações e a contratos públicos, instituindo um novo regime jurídico.
Para o propósito deste artigo, importa saber desde quando a Lei n.º 14.133/2021 está vigente, e quando deixarão de ter vigência e vigor as normas substituídas[1]. Assim prescreve a Lei:
Art. 190. O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada.
Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
[…]
Art. 193. Revogam-se:
I – os arts. 89 a 108 da Lei nº. 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;
II – a Lei nº. 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº. 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº. 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.
Art. 194. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Por força do seu artigo 194, a nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos vigora desde a data em que for publicada. A Lei, desse modo, vigora desde 1º de abril de 2021, data em que foi sancionada e publicada.
Em atenção à finalidade de substituição de regime jurídico que se depreende da nova Lei de Licitações e de Contratos Administrativos, que ocupará o espaço historicamente ocupado pelas Leis n.º 8.666 (antiga Lei de Licitações e de Contratos Administrativos), n.º 10.520 (Lei do Pregão) e n.º 12.462/2011 (Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas), o artigo 193 da Lei, com amparo dos artigos 190 e 191 do mesmo diploma, cuida de revogar as leis do regime em processo de substituição de forma expressa por derrogação (revogação parcial) e por ab-rogação (revogação total)[2].
Os artigos 89 a 108 da Lei n.º 8.666/1993, que versam sobre Direito Penal, foram revogados na data em que foi publicada a nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos, em razão do seu artigo 193, inciso I.
Diferentemente, os demais artigos da Lei n.º 8.666/1993, a Lei n.º 10.520/2002 e os artigos 1º a 47-A da Lei n.º 12.462/2011 serão revogados após o transcurso de dois anos contados a partir da data de publicação da nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos, em razão do seu artigo 193, inciso II.
Como corolário, à exceção dos artigos 89 a 108 da Lei n.º 8.666/1993, revogados em 1º de abril de 2021, os demais artigos da Lei n.º 8.666/1993, a Lei n.º 10.520/2002 e os artigos 1º a 47-A da Lei n.º 12.462/2011 serão revogados em 3 de abril de 2023.
A data correta de revogação é 3 de abril de 2023 porque i) os prazos a que se refere a nova Lei devem ser contados com a exclusão do dia do começo e inclusão do dia do vencimento, ii) os prazos expressos em anos serão computados de data a data e iii) considera-se a data de vencimento do prazo prorrogada até o primeiro dia útil seguinte em caso de não haver expediente, de o expediente ser encerrado antes da hora normal ou de haver indisponibilidade da comunicação eletrônica no dia do vencimento do prazo (artigo 183, II, § 2º, da nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos).
Assim, a Lei n.º 14.133/2021, publicada em 1.º de abril de 2021, vige desde então, mas, derradeiramente, considerando que não há expediente no dia 2 de abril de 2023, dia de domingo, os artigos 89 a 108 da Lei n.º 8.666/1993, a Lei n.º 10.520/2002 e os artigos 1.º a 47-A da Lei n.º 12.462/2011 deixarão de viger em concomitância com a Lei n.º 14.133/2021 no dia no dia 3 de abril de 2023, segunda-feira, primeiro dia útil subsequente ao dia 2 de abril de 2023.
Durante esses dois anos, a Lei n.º 14.133/2021 vigorará em conjunto com a Lei n.º 8.666/1993, com a Lei n.º 10.520/2002 e com Lei n.º 12.462/2011, de modo que competirá à Administração Pública optar, discricionariamente, a cada licitação ou contratação direta, por aquela lei ou por estas, de acordo com o artigo 191 da nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos. Para tanto, a Administração Pública deve registrar, de forma expressa no instrumento convocatório ou de contratação direta, a opção pela Lei n.º 14.133/2021 ou pelas Leis n.º 8.666/1993, n.º 10.520/2002 e n.º 12.462/2011, sendo vedado combinar a aplicação daquela lei com estas.
De todo modo, os contratos administrativos disciplinados por lei diversa da Lei n.º 14.133/2021 serão regidos por essas leis durante toda a sua vigência, mesmo em caso de prorrogação contratual após 3 de abril de 2023, em acordo com os artigos 190 e 191, parágrafo único, da nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos. Manifesta-se, então, o fenômeno da ultratividade da lei revogada, de acordo com o qual a lei revogada produz efeitos, isto é, vigora, ainda que não vija.
Assim, tem-se que: i) a nova Lei de Licitações vige e vigora desde 1º de abril de 2021 (art. 194); ii) revogaram-se em 1º de abril de 2021 os artigos 89 a 108 da Lei n.º 8.666/1993 (art. 193, I); iii) as Leis n.º 8.666/1993, n.º 10.520/2002 e n.º 12.462/2011 (artigos 1º a 47-A) serão revogadas em 3 de abril de 2023 (artigos 193, II); iv) de 1º de abril de 2021 a 3 de abril de 2023, compete à Administração Pública optar expressamente, no instrumento convocatório, pela nova Lei de Licitações e de Contratos Públicos ou pelas Leis n.º 8.666/1993, n.º 10.520/2002 e n.º 12.462/2011 (artigo 191); v) após a revogação das Leis n.º 8.666/1993, n.º 10.520/2002 e n.º 12.462/2011, em 3 de abril de 2023, os contratos que tenham sido assinados enquanto elas estavam vigentes permanecerão regidos por elas, em vigor póstumo à sua vigência, por incidência do fenômeno da ultratividade.
Veja-se, por fim, o seguinte quadro comparativo:
[1] O fenômeno da ultratividade de normas jurídicas é aquele em acordo com o qual a norma jurídica, ainda que revogada (não vigente, portanto), produz vigor, isto é, é aplicada. Assim, como se verá, se determinado contrato público é regido pela Lei n.º 8.666/1993, mesmo após 3 de abril de 2023, quando a Lei n.º 8.666/1993 será revogada, a esse contrato deve ser aplicada a Lei n.º 8.666/1993, que não mais vigerá, mas vigorará. Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018, p. 212.
[2] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018, p. 215.
[3] Matheus Lopes Dezan: Estagiário de Direito em Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD|UnB). Estagiário de Direito em Schiefler Advocacia. Membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia da Universidade de Brasília e do Instituto de Direito Público (GEDE/UnB/IDP). Membro do Grupo de Pesquisa em Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas do Centro Universitário de Brasília (HDAPP/UniCeub). Membro do Grupo de Pesquisa certificado pelo CNPq Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial da Universidade de Brasília (DRIA/UnB). Editor Executivo Assistente da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB). Contato: matheus@schiefler.adv.br.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, Seção 1, 01 abr. 2021, p. 1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 1 maio 2021.
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.
Read MoreA exposição ocorreu no evento Judiciário Exponencial.
O advogado Gustavo Schiefler participou, hoje (13/5/2021), do evento Judiciário Exponencial, proferindo palestra sobre a contratação direta de Encomenda Tecnológica (art. 19, §2º-A, V, da Lei da Inovação). Em sua apresentação, Gustavo Schiefler enfatizou o potencial disruptivo desta modelagem contratual, vocacionada a resolver problemas concretos da Administração Pública que dependam de um desenvolvimento tecnológico ainda inexistente ou indisponível, em que exista risco tecnológico.
Contando com a participação de mais de 40 integrantes de Tribunais brasileiros, Schiefler destacou a existência de um importante precedente contratual, que pode servir como referência para novas contratações semelhantes: a encomenda tecnológica realizada pelo Supremo Tribunal Federal em 2019, para o desenvolvimento de um módulo integrante do PJe com inteligência artificial. Para quem se interessa pelo tema, Gustavo Schiefler recomendou a obra “Contratação de Inovação na Justiça – com os avanços do Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação” (2020), da qual é autor de dois capítulos, onde trata não somente da Encomenda Tecnológica como também de outras formas de contratar tecnologia.
Participaram também do evento, como expositores, os Drs. Ademir Piccoli (organizador do Judiciário Exponencial), Nathália Domingues Oliveira Barbosa (assessora do NIT/UFMG), Thiago de Andrade Vieira (Diretor de Tecnologia da Informação do CNJ) e Rafael Bitencourt (Líder de Práticas de Contratação de Nuvem em Governo da AWS).
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