É comum que candidatos autodeclarados negros sejam excluídos de concursos ou vestibulares a partir de decisões administrativas que contêm uma única palavra: "Indeferido"
O Estado Brasileiro promulgou o Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, por meio da Lei Federal nº 12.288. Esta lei foi criada com o objetivo de promoção de igualdade à população negra, especialmente no que tange ao aumento de oportunidades e efetivação de direitos individuais, coletivos e difusos.
Na referida lei, em seu artigo 1º, parágrafo único, inciso IV, define-se que, para efeitos legais, população negra é o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas, conforme o quesito de cor ou raça utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE[1] e, para promoção de igualdade racial, será utilizada a política de ações afirmativas.
Anos depois, com o objetivo de dar concretude ao disposto no Estatuto de Igualdade Racial, editou-se a Lei Federal nº 12.711/2012, que, dentre outras medidas, reservou em universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio o preenchimento de vagas a candidatos autodeclarados pretos e pardos.
Posteriormente, houve a promulgação da Lei Federal nº 12.990/2014, a qual prevê a obrigatoriedade de adoção de ações afirmativas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos ou empregos públicos da administração pública federal e suas respectivas entidades da administração indireta.
As ações afirmativas foram desenhadas na forma de reserva de vagas na proporção de 20% do total das vagas ofertadas no respectivo concurso, conforme disposto no artigo 1º da Lei 12.990/2014[2] e devem estar previstas no edital, onde se deve especificar o número de vagas ofertadas à ampla concorrência e o número aberto a candidatos negros.
Por sua vez, o artigo 2º da Lei 12.990/2014 prevê que tem direito a concorrer à reserva de vagas os candidatos que se autodeclararem pretos ou pardos:
Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
A autodeclaração não é prova absoluta, conforme se constata a partir do parágrafo único acima referido. Isso porque é absolutamente possível que uma pessoa branca, cujos traços sejam típicos de brancos (tez clara, nariz fino, lábios finos, cabelo liso), queira fraudulentamente se autodeclarar preta ou parda com o fim de concorrer às vagas reservadas e obter, indevidamente, vantagem no concurso público – ou mesmo no vestibular. Nesta hipótese, identificado o fato de que o candidato se autodeclarou negro com o objetivo de fraudar as cotas raciais, é absolutamente legítimo e necessário que seja excluído do certame ou anulada sua nomeação, inclusive porque o ingresso de pessoas brancas por meio da reserva de vagas destinadas a pretos e pardos vai de encontro à política pública planejada pela administração pública.
Na sequência da implementação da política de promoção de igualdade racial, verificou-se que seria adequada a organização de um sistema de aferição da veracidade das autodeclarações, a fim de promover a lisura do programa e evitar que possíveis fraudes viessem a ocorrer. Ora, se as vagas são destinadas às pessoas negras, o preenchimento dessas vagas por candidatos brancos se constituiria como verdadeira afronta à promoção de igualdade, considerados os termos da legislação em vigor.
Para isso, foi editada a Orientação Normativa nº 3/2016, pelo Secretário de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho no Serviço Público do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, estabelecendo, sinteticamente, que as bancas deveriam prever e detalhar, em seus editais de concurso, os métodos de verificação da veracidade da autodeclaração, que deve se basear exclusivamente no fenótipo do candidato, ou seja, nos atributos observáveis do candidato, sua aparência, conforme disposto no artigo 2º, inciso II e § 1º da Orientação Normativa nº 3/2016.[3]
A legislação aplicável, em si, não estabelece qualquer critério objetivo em que devam se basear as bancas. Contudo, deve-se interpretar a norma de modo a evitar que as aferições ocorram sem qualquer parâmetro e fundamento, sob pena de submeter os candidatos a subjetivismos e arbitrariedades.
Atualmente, com a falta de qualquer parâmetro normativo, as bancas têm realizado a aferição com base em seus critérios próprios e pouco transparentes, em verdadeira afronta à isonomia.
Não se pretende aqui questionar a legalidade da existência de banca avaliadora que certifique a veracidade da condição do candidato como preenchendo o fenótipo de negro, que é reconhecida normativamente e chancelada pela jurisprudência. O que se quer é que sejam atendidas três exigências: (i) respeito à dignidade da pessoa humana, (ii) respeito à ampla defesa e (iii) respeito ao contraditório. Este é o entendimento pacificado da jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Constitucionalidade nº 41, cuja relatoria ficou ao encargo do Ministro Luís Roberto Barroso.
Na realidade, o que se discute é a insegurança jurídica resultante da ausência de qualquer critério para verificar se a autodeclaração condiz com a realidade. Ora, diversos cidadãos que sempre se identificaram e foram identificados como negros em diversas ocasiões, têm sido excluídos indevidamente da reserva de vagas.
E o que mais salta aos olhos é que o resultado da análise destas bancas tem frequentemente sido divulgado com a simples resposta “deferido” ou “indeferido”, sem qualquer especificação dos fundamentos que levaram àquela tomada de decisão. Os motivos que levaram àquela decisão, especialmente no caso de indeferimento, devem constar expressamente na decisão. Os candidatos que tiveram sua autodeclaração negada e, portanto, seu direito a concorrer à reserva de vagas cerceado, têm direito a saber a motivação do ato.
Inclusive porque, importante frisar, a autodeclaração se presume verdadeira. Claro que se trata de uma presunção relativa, a qual pode ser afastada se for demonstrado que é falsa. Incumbe àquele que nega a veracidade da autodeclaração comprovar que ela não condiz com a realidade. Deve-se afirmar e provar por meio das provas disponíveis que o candidato não é preto ou pardo.
Somente com base em uma decisão fundamentada é possível que o candidato exerça o contraditório e a ampla defesa. Não basta que o edital preveja a possibilidade de recurso. É preciso que o espaço para recurso seja exercido com base em contraditar os argumentos apresentados pela comissão.
Vejamos: se na decisão consta apenas a resposta de “indeferimento”, isso impossibilita qualquer tentativa do candidato em defender-se do cerceamento àquele direito que ele acredita pertencer-lhe.
Um dos mais singelos e comezinhos princípios constitucionais é o direito ao exercício do contraditório material. Isso significa, em apertada síntese, que deve-se oportunizar àquele que foi acusado que contradite os termos da acusação.
Contudo, quando decisões desse gênero se limitam a informar que a autodeclaração foi considerada verdadeira ou não, sem qualquer fundamentação, o exercício do contraditório se torna impossível. Indaga-se: qual aspecto da aparência (fenótipo) foi considerado insuficiente para considerar o candidato pardo ou preto? Foi a tez da pele? O nariz? O cabelo? A boca? Levou-se em consideração algum outro atributo físico e, se sim, qual?
O candidato deve ter direito a apresentar, além do recurso escrito, documentos públicos que tenham conferido a ele o reconhecimento de sua cor ao longo da vida. Se o candidato já foi oficialmente reconhecido como preto ou pardo por algum órgão público e isso consta em documento oficial, tal heteroidentificação deve ser respeitada pela banca, sob pena de absoluta insegurança jurídica.
Ou seja, se o Estado, por meio de um agente público, já reconheceu anteriormente que determinado cidadão é preto ou pardo, não pode agora simplesmente negar seu direito de acesso aos cargos públicos por meio do sistema de cotas raciais. Em síntese, o Estado não pode se contradizer a tal ponto que os cidadãos de boa-fé tenham seu reconhecimento negado. O mesmo raciocínio é válido caso comprovado que o candidato se declara como negro desde a sua menor idade, em documentos oficiais que exigiram a sua autoidentificação sem qualquer benefício direto para tanto, como em cadastros escolares, no censo populacional (IBGE), no Sistema Único de Saúde (SUS) ou no Registro Civil.
Conclui-se, portanto, que a existência de comissões que aferem a veracidade da autodeclaração de candidatos pretos ou pardos é juridicamente possível. Além disso, as decisões prolatadas por essas comissões devem ser devidamente fundamentadas e motivadas com base em critérios objetivos, sob pena de ferir a isonomia, o dever de motivação dos atos administrativos e o devido processo legal. Igualmente, deve ser admitido como meio de prova dos candidatos pretos e pardos, em caso de indeferimento da autodeclaração, documentos públicos em que tenham sido reconhecidos como tal. Por fim, quando a decisão administrativa indefere, sem motivação, a autodeclaração de candidato negro, seja em concurso público ou em vestibular, o cidadão tem o direito de recorrer ao Poder Judiciário, que, por sua vez, terá o dever de intervir e reavaliar esse ato administrativo.
[1] Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:
IV – população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;
[2] Art. 1º Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei.
[3] Art. 2º Nos editais de concurso público para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União deverão ser abordados os seguintes aspectos:
I – especificar que as informações prestadas no momento da inscrição são de inteira responsabilidade do candidato; II – prever e detalhar os métodos de verificação da veracidade da autodeclaração, com a indicação de comissão designada para tal fim, com competência deliberativa;
III – informar em que momento, obrigatoriamente antes da homologação do resultado final do concurso público, se dará a verificação da veracidade da autodeclaração; e
IV – prever a possibilidade de recurso para candidatos não considerados pretos ou pardos após decisão da comissão. § 1º As formas e critérios de verificação da veracidade da autodeclaração deverão considerar, tão somente, os aspectos.
Escrito por Giovanna Gamba
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