A presença de falha técnica no projeto básico autoriza o aditamento do contrato administrativo?
A Lei nº 8.666/1993 – Lei de Licitações e Contratos Administrativos – prevê como dever da Administração Pública a apresentação, no processo licitatório, de todos os elementos e informações necessários à elaboração das propostas pelos licitantes, o que se dá pelo projeto básico[1] ou pelo termo de referência[2].
Ou seja, a Administração Pública possui a responsabilidade de elaborar um projeto básico ou um termo de referência que possua todas as diretrizes necessárias à elaboração, pelos licitantes, das propostas. Dessa forma, os particulares que desejam contratar com o Poder Público conhecerão completamente o objeto da licitação, de modo a permitir a devida orçamentação de preços e a avaliação de riscos.
Isso é evidente, pois que, se a licitação é processo ótimo e isonômico de contratação pública, que almeja à contratação do concorrente mais qualificado e apto ao exercício do serviço público, conclui-se por ser imprescindível o cumprimento de tais requisitos pela Administração; conforme devidamente explicitado no artigo 47 da Lei Federal nº 8.666/1993, in verbis:
Art. 47. Nas licitações para a execução de obras e serviços, quando for adotada a modalidade de execução de empreitada por preço global, a Administração deverá fornecer obrigatoriamente, junto com o edital, todos os elementos e informações necessários para que os licitantes possam elaborar suas propostas de preços com total e completo conhecimento do objeto da licitação.
Sobre essa disposição, Marçal Justen Filho assevera que “O art. 47 formulou disposição de cristalina obviedade e teoricamente dispensável. Em qualquer caso, a Administração tem o dever de detalhar o objeto da licitação e fornecer aos interessados informações completas, que permitam a formulação de propostas perfeitas. Isso se verifica não apenas no caso da empreitada por preço global, tema que foi examinado por ocasião da exposição acerca dos arts. 6.º, VIII, e 10 […]”[3].
E é ao se fitar essa escritura que se pode questionar o seguinte: caso o contrato administrativo, firmado com o vencedor do processo licitatório, tenha de ser aditado por necessidade de adequação do projeto inicial causada por falha técnica da própria Administração pública no projeto, será tal aditamento juridicamente válido, e trará ele prejuízo ao contratado?
É certo que, nesse caso, em sendo o erro da Administração, não pode o contratado prejudicar-se, pois o ônus concernente à elaboração de edital e projeto escorreitos é daquela, conforme preleciona, novamente, Marçal Justen Filho:
O art. 47 é obstáculo à elaboração de editais introduzindo fatores aleatórios em licitações de obras e serviços, mesmo quando a execução se deva fazer sob empreitada por preço global. A Administração tem o dever de apurar todas as circunstâncias que possam influenciar na execução do futuro contrato, especialmente quando a empreitada for por preço global. É nulo o edital que albergue fatores ocultos ou aleatórios acerca da execução do objeto licitado.[4]
Assim, deve a Administração zelar pela clareza no que concerne ao edital e também às cláusulas essenciais pertinentes ao objeto. Afinal, os licitantes só poderão concorrer isonomicamente se souberem pelo que estão concorrendo e quais devem ser os parâmetros de suas propostas.
Motivo outro não há, portanto, para que se entenda a questão de outra forma, no que toca à possibilidade do aditamento de contrato decorrente de falha da Administração, que não desta: se a falha, por parte da Administração Pública, efetivamente ocorreu, e se persiste o interesse na execução do objeto contratual, não há outra conduta a ser praticada que não a de aditar o contrato para corrigir todas as consequências decorrentes do erro da Administração. Ou então, que se promova a rescisão contratual, indenizando-se o particular contratado pelas perdas e danos.
Aliás, não é outro o entendimento da jurisprudência. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) já reconheceu que pode ser “impossível a execução de contrato por falha no projeto desenvolvido pela contratante”[5]. Além disso, em outro julgado, também decidiu que a presença de falha técnica no projeto apresentado pela Administração Pública autoriza o aditamento do objeto do contrato. Veja-se a ementa do acórdão:
RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO DE PROCEDIMENTO COMUM – DIREITO ADMINISTRAÇÃO – LICITAÇÃO – CONTRATO ADMINISTRATIVO – INADIMPLEMENTO – REQUERIMENTO DE DESISTÊNCIA OFERECIDO PELA LICITANTE VENCEDORA – RECUSA MANIFESTADA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – RESCISÃO CONTRATUAL – IMPOSIÇÃO DA MULTA PREVISTA NO CONTRATO – PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO DA NULIDADE DA REFERIDA SANÇÃO PECUNIÁRIA – POSSIBILIDADE.
[…]
2. No mérito, presença de falha técnica no projeto apresentado pela Administração Pública, reconhecida por meio da prova pericial produzida nos autos, durante a instrução do processo, sob o crivo do contraditório.
3. Tal situação autorizava o aditamento do objeto do contrato.
4. Violação do disposto no artigo 47 da Lei Federal nº 8.666/93.
5. Inexistência de culpa da licitante no inadimplemento do contrato. […][6]
Também não destoa dessa razão de decidir a jurisprudência do notório Tribunal de Contas da União (TCU), mais eminente órgão de controle dos processos de contratação pública.
No Acórdão 1.847/2005 – Plenário, o TCU asseverava a importância do projeto básico como forma de “representar uma projeção detalhada do futuro contrato, com elementos suficientes para caracterizar a obra ou serviço a ser executado”, de sorte que sua insuficiência acarretaria necessidade de “alterações contratuais supervenientes”. Leia-se trecho:
Acórdão 1847/2005 Plenário (Voto do Ministro Relator)
Na realidade, o projeto básico de um certame licitatório, nos moldes preconizados na Lei de Licitações, não é exigência meramente formal, para que se proceda a licitações de obras, nos termos do inciso I do § 2º do art. 7º da mesma lei. A meu ver, a minúcia do inciso IX do art. 6º do Estatuto Licitatório revela a importância do tema para uma contratação, no sentido de que o projeto básico deve representar uma projeção detalhada do futuro contrato, com elementos suficientes para caracterizar a obra ou serviço a ser executado e informações relevantes sobre a viabilidade e a conveniência técnica e econômica do empreendimento examinado.
Vícios de imprecisão no projeto básico de uma licitação podem ensejar não apenas violação aos princípios da isonomia e da obtenção da melhor proposta, mas também distorções no planejamento físico e financeiro inicialmente previsto, com alterações contratuais supervenientes, que, em muitos casos, apenas aumentam a necessidade de aporte de recursos orçamentários e retardam a conclusão dos serviços. […].
Contudo, se acaso restava ainda alguma centelha de dúvida sobre a (i)legalidade tocante ao ato de culpar-se o contratado no caso de aditamento contratual decorrente de falha no projeto básico, foi aquela totalmente dirimida pela TC 044.312/2012 do TCU, que culminou no Acórdão nº 1.977/2013 – Plenário, de seguinte texto:
VOTO
[…]
44. A dicotomia em questão está em balancear a idealização da empreitada global com a vedação do enriquecimento sem causa. Não seria concebível que falhas na elaboração do edital redundem, com justa causa, em um superfaturamento. Tampouco a Administração poderia se beneficiar de erro que ela própria cometeu, pagando por um produto preço relevantemente inferior que o seu justo preço de mercado. Erro preliminar da própria Administração, independentemente do tipo de empreitada, não pode redundar em ganhos ilícitos; porque se ilícito for, o enriquecimento de uma parte, em detrimento de outra, sem causa jurídica válida, faz-se vedado.
[…]
55. Na realidade, aquele erro, se constatado tempestivamente antes da abertura dos envelopes, levaria à alteração compulsória da planilha orçamentária, com reabertura de prazo aos concorrentes, em poder de autotutela, para reavaliarem o seu preço (art. 53 da Lei 9.784/99 e art. 21, § 4º c/c art. 49 da Lei de Licitações). Quando identificado, durante a execução contratual, para convalidação desse vício, um aditivo contratual faz-se cabível (art. 55 da Lei 9.784/99).
56. Pequenos lapsos na quantificação dos serviços (até certo ponto comum, visto que cada orçamentista não apresentaria, nas vírgulas, quantidades idênticas), levando em conta a característica das empreitadas globais – em estabelecer imprecisões quantitativas como álea ordinária da contratada –, não conduzem à mácula no procedimento licitatório, tanto por não afetar essa “livre manifestação de vontade”, como, principalmente, por não inviabilizarem a obtenção da “melhor proposta”.
57. Tal visão também se harmoniza com a teoria administrativa, em sobrelevar o que pode ser chamado de “fato novo”, legítimo para ensejar a revisão contratual, capaz de sanear – ou convalidar – aquela anulabilidade. Se aquele erro praticado pela Administração não podia ser percebido pela empresa média, pode-se classificá-lo como evento posterior, em álea extraordinária, não derivado de conduta culposa do particular, em congruência com a teoria de imprevisão. A aplicação do art. 65 da Lei de Licitações, em densificação ao disposto no art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, faz-se compulsória.
[…]
59. De toda essa digressão, resume-se que, de pequenos erros quantitativos, não decorrerão termos aditivos em empreitadas globais, por se tratarem de erros acidentais, incapazes de interferir na formação de vontades e, principalmente, na formação de proposta a ser ofertada, a ser tida como a mais vantajosa. Indicação contrária também tornaria o regime de empreitada global em desuso, posto que, na prática, toda obra seria executada como se preço unitário fosse.
60. Erros de materialidade relevante (por erros substanciais) sujeitam-se a um juízo acurado de valor, que envolverá, também, além das consequências financeiras – em termos de materialidade – a avaliação culposa da contratante, em um juízo de boa-fé objetiva.
61. Na realidade, quando a Administração erra ao subestimar consideravelmente as quantidades (e consequentemente, preços), a ponderação acerca da nulidade da relação contratual – a ser eventualmente convalidada via termo aditivo – deve se pautar pela exigibilidade da percepção da falha pela parte lesada (a contratada); até mesmo para evitar um dolo negativo do particular, com o objetivo de obter proveito próprio.
62. Não significa dizer, em paralelismo, que se detectadas superestimativas relevantes, consideradas imperceptíveis às licitantes – e, portanto, com ausência de culpa do particular – não estaria evidenciada nulidade (a “autorizar o superfaturamento”). Nesses casos, aplicam-se imperativamente outros princípios fundamentais do direito público (como o da economicidade e o da obtenção da maior vantagem). O erro do agente da Administração pode ser considerado inescusável, em seu dever de moderar a contratação sob os preços de mercado. Nesta situação, o contrato superfaturado seria uma nulidade a ser corrigida de forma imediata.
[…]
ACÓRDÃO Nº 1977/2013 – TCU – Plenário
[…]
9. Acórdão:
[…]
9.1.8. excepcionalmente, de maneira a evitar o enriquecimento sem causa de qualquer das partes, como também para garantia do valor fundamental da melhor proposta e da isonomia, caso, por erro ou omissão no orçamento, se encontrarem subestimativas ou superestimativas relevantes nos quantitativos da planilha orçamentária, poderão ser ajustados termos aditivos para restabelecer a equação econômico-financeira da avença, situação em que se tomarão os seguintes cuidados:
9.1.8.1. observar se a alteração contratual decorrente não supera ao estabelecido no art. 13, inciso II, do Decreto 7.983/2013, cumulativamente com o respeito aos limites previstos nos §§ 1º e 2º do art. 65 da Lei 8.666/93, estes últimos, relativos a todos acréscimos e supressões contratuais;
9.1.8.2. examinar se a modificação do ajuste não ensejará a ocorrência do “jogo de planilhas”, com redução injustificada do desconto inicialmente ofertado em relação ao preço base do certame no ato da assinatura do contrato, em prol do que estabelece o art. 14 do Decreto 7.983/2013, como também do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal;
9.1.8.3. avaliar se a correção de quantitativos, bem como a inclusão de serviço omitido, não está compensada por distorções em outros itens contratuais que tornem o valor global da avença compatível com o de mercado;
9.1.8.4. verificar, nas superestimativas relevantes, a redundarem no eventual pagamento do objeto acima do preço de mercado e, consequentemente, em um superfaturamento, se houve a retificação do acordo mediante termo aditivo, em prol do princípio guardado nos arts. 3º, caput c/c art. 6º, inciso IX, alínea “f”; art. 15, § 6º; e art. 43, inciso IV, todos da Lei 8.666/93;
9.1.8.5. verificar, nas subestimativas relevantes, em cada caso concreto, a justeza na prolação do termo aditivo firmado, considerando a envergadura do erro em relação ao valor global da avença, em comparação do que seria exigível incluir como risco/contingência no BDI para o regime de empreitada global, como também da exigibilidade de identificação prévia da falha pelas licitantes – atenuada pelo erro cometido pela própria Administração –, à luz, ainda, dos princípios da vedação ao enriquecimento sem causa, da isonomia, da vinculação ao instrumento convocatório, do dever de licitar, da autotutela, da proporcionalidade, da economicidade, da moralidade, do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e do interesse público primário; […]
Apesar de existirem esforços infralegais em sentido contrário, tal como ocorre na previsão contida no inciso II do artigo 13 do Decreto Federal nº 7.983/2013[7], é seguro concluir que erros na documentação que serve como base para a apresentação das propostas na licitação não podem ter as suas consequências financeiras negativas atribuídas ao contratado. A atribuição do risco pelas eventuais falhas no projeto básico ao particular, além de proporcionar o enriquecimento sem causa do contratante, ocasionaria o indesejado efeito de aumento dos preços praticados nessas licitações, dada a necessidade de precificação do risco.
De se concluir então que, salvo nos casos em que a falha constante do projeto básico, ou termo de referência, seja plenamente detectável pelo licitante vencedor do certame, o erro da Administração faz exsurgir, nos casos em que a contratada não opta pela rescisão contratual, o direito ao aditamento do contrato administrativo, com vistas a evitar enriquecimento ilícito da parte contratante, e, por conseguinte, com vistas a sanar a irregularidade oriunda desse ato administrativo maculado.
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[1] Lei Federal nº 8.666/93, Art. 6º […] IX – Projeto Básico – conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução, devendo conter os seguintes elementos: […]
[2] Decreto nº 3.555/2000, Art. 8º […] II – o termo de referência é o documento que deverá conter elementos capazes de propiciar a avaliação do custo pela Administração, diante de orçamento detalhado, considerando os preços praticados no mercado, a definição dos métodos, a estratégia de suprimento e o prazo de execução do contrato;
[3] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 8.666/93. ed 16., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 849.
[4] FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 8.666/93. ed 16., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 849.
[5] TJSP; Remessa Necessária Cível nº 0016580-34.2009.8.26.0053; Rel. o Des. José Maria Câmara Junior; 8ª Câmara de Direito Público; j. 14.6.17.
[6] TJ-SP – AC: 00014286320158260431 SP 0001428-63.2015.8.26.0431, Relator: Francisco Bianco, Data de Julgamento: 05/06/2019, 5ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 05/06/2019.
[7] Art. 13. Em caso de adoção dos regimes de empreitada por preço global e de empreitada integral, deverão ser observadas as seguintes disposições para formação e aceitabilidade dos preços: […] II – deverá constar do edital e do contrato cláusula expressa de concordância do contratado com a adequação do projeto que integrar o edital de licitação e as alterações contratuais sob alegação de falhas ou omissões em qualquer das peças, orçamentos, plantas, especificações, memoriais e estudos técnicos preliminares do projeto não poderão ultrapassar, no seu conjunto, dez por cento do valor total do contrato, computando-se esse percentual para verificação do limite previsto no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993.
Read MoreO Tribunal de Contas do Distrito Federal acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame.
O Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) suspendeu cautelarmente, no fim de maio, licitação de serviços de publicidade lançada por empresa estatal do Distrito Federal, pois vislumbrou indícios de irregularidade na pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes[1].
Especificamente, o TCDF acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame. Segundo a decisão, confirmada por unanimidade pelo Plenário da Corte de Contas, “não houve manifestação técnica quanto aos casos de pontuação cuja diferença fosse superior a 20%, caracterizando a existência da fumaça do bom direito na representação tratada nos autos, frente, principalmente, à previsão legal constante do art. 6º, inc. VII, da Lei nº 12.232/2010”.
Para entender melhor o caso analisado pelo TCDF, é importante levar em conta que, com a publicação da Lei Federal nº 12.232/2010, as licitações para a contratação de agências de propaganda receberam um regulamento especial, motivo pelo qual a Lei Federal nº 8666/1993 passou a ser aplicada apenas subsidiariamente nesses casos. O motivo da existência de uma lei especial, com evidente procedimento mais rigoroso para o julgamento das pontuações técnicas, se deve ao fato de que as licitações para serviços de publicidade são naturalmente mais suscetíveis a direcionamentos e favorecimentos indevidos, sobretudo em razão da natureza do julgamento das propostas técnicas.
A preocupação acentuada com a etapa de julgamento das propostas técnicas para contratações desse objeto está expressa na justificativa da proposta legislativa que gerou a Lei Federal nº 12.232/2010. Leia-se o seguinte excerto da exposição de motivos do PL nº 3305/2008:
Tem a nossa experiência recente nos mostrado que a ausência de um tratamento normativo específico para essa matéria possibilita que, nesse campo, grandes arbitrariedades ocorram em todo o país. Empresas de publicidade contratadas com óbvio favorecimento, com base em critérios de julgamento subjetivos, contratos que encobrem a possibilidade de novos ajustes imorais com terceiros, pagamentos indevidos, desvios de verbas públicas destinadas à publicidade com fins patrimoniais privados ou para custeio de campanhas eleitorais são apenas alguns exemplos de transgressões que compõem um cenário já bem conhecido nos dias em que vivemos. [2]
Entre as exigências específicas da Lei Federal nº 12.232/2010, encontra-se a obrigação de a subcomissão técnica (aquela que julga as propostas técnicas dos licitantes) reavaliar a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% da pontuação máxima deste quesito. Como visto, a reavaliação da pontuação fica a cargo de uma subcomissão técnica, prevista no § 1º do artigo 10 da Lei, e deve ser realizada em conformidade com os critérios objetivos estabelecidos no edital de licitação. Confira-se o dispositivo:
Art. 6º A elaboração do instrumento convocatório das licitações previstas nesta Lei obedecerá às exigências do art. 40 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com exceção das previstas nos incisos I e II do seu § 2º, e às seguintes:
[…]
VII – a subcomissão técnica prevista no § 1º do art. 10 desta Lei reavaliará a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% (vinte por cento) da pontuação máxima do quesito, com o fim de restabelecer o equilíbrio das pontuações atribuídas, de conformidade com os critérios objetivos postos no instrumento convocatório.
Nessas hipóteses, dever-se-á igualmente observar o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010, que prevê o envio das planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso à comissão permanente ou especial de licitação. Esta é considerada uma condição essencial do julgamento nas licitações de serviços de publicidade, uma vez que a ausência de motivação para as pontuações pode impedir o controle sobre o seu mérito, facilitando eventuais direcionamentos.
Desse modo, as razões das pontuações devem ser registradas por escrito pela subcomissão técnica e encaminhadas à comissão permanente ou especial, quer incida na hipótese regulada pelo inciso VII do artigo 6º, quer não. Veja-se como a exigência de manifestação escrita é expressa na Lei nº 12.232/2010:
Art. 11. Os invólucros com as propostas técnicas e de preços serão entregues à comissão permanente ou especial na data, local e horário determinados no instrumento convocatório. […]
§ 4º O processamento e o julgamento da licitação obedecerão ao seguinte procedimento: […]
V – análise individualizada e julgamento dos quesitos referentes às informações de que trata o art. 8º desta Lei, desclassificando-se as que desatenderem quaisquer das exigências legais ou estabelecidas no instrumento convocatório;
VI – elaboração de ata de julgamento dos quesitos mencionados no inciso V deste artigo e encaminhamento à comissão permanente ou especial, juntamente com as propostas, as planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso.
Ou seja, a subcomissão técnica precisa justificar expressamente os motivos que justificam a atribuição da nota, sob pena de violar diversas regras que regem a atividade administrativa e que permeiam todos os processos de contratação pública, em especial os deveres de motivação dos atos administrativos e do tratamento isonômico, além dos princípios da publicidade e da impessoalidade.
É preciso que os licitantes saibam os motivos que levaram à pontuação dos quesitos quando da análise da sua proposta técnica, caso contrário serão impedidos de, se necessário, exercer o seu direito constitucional de defesa. Neste sentido, encontra-se a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), segundo a qual “a ausência de justificativa escrita acerca das pontuações e das razões que as fundamentam em cada caso, nos procedimentos licitatórios para oferta de serviços de publicidade, afronta o que dispõe o art. 11, § 4º, inciso IV, da Lei 12.232/2010”[3].
Acontece que, não obstante a clareza das determinações legais, nem sempre a subcomissão técnica registra por escrito a justificativa das razões que basearam a avaliação ou a reavaliação de determinada pontuação, descumprindo assim o inciso VII do artigo 6º e/ou o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010. No caso noticiado, pela violação do inciso VII do artigo 6º da referida lei, como salientado, o Tribunal confirmou a necessidade de realizar a sobredita reavaliação e, por unanimidade, dada a ausência de tal procedimento, suspendeu cautelarmente o certame.
A decisão noticiada confirma a competência legítima dos Tribunais de Contas em intervir cautelarmente para evitar irregularidade no curso da licitação pública, assim como o entendimento de que, nas licitações submetidas à Lei Federal nº 12.232/2020, configura ilegalidade a ausência de reavaliação da pontuação concedida a um quesito de um determinado licitante, quando a diferença entre a maior e a menor pontuação, atribuída pelos integrantes da subcomissão técnica, for superior a 20% da pontuação máxima do quesito.
[1] TCDF – Decisão nº 1798/2020, Plenário. Relator: Antônio Renato Alves Rainha. Data de Julgamento: 27/05/2020.
[2] Projeto de Lei nº 3305/2008, Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=391688 Acesso em 29 jun. 2020.
[3] TCU – Acórdão nº 2813/2017, Plenário. Relator: AROLDO CEDRAZ, Data de Julgamento: 06/12/2017.
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