A dificuldade de precisar os requisitos e a extensão da aplicabilidade pode levar à utilização equivocada de ambos os institutos.
Victoria Magnani[1]
Diante do contexto de pandemia vivenciado atualmente, bem como da alteração substancial na situação econômico-financeira de diversos empregadores decorrente dos impactos da Covid-19, uma leva de rescisões de contratos de trabalho vem sendo justificada por meio dos institutos da força maior e do fato do príncipe. Essa aplicação demonstrou ser, na maioria das vezes, equivocada, sobretudo devido à dificuldade de precisar os requisitos e a extensão da aplicabilidade dos dois institutos.
Tendo em vista o cenário de controvérsias que circunda a caracterização e aplicação da força maior e do fato do príncipe trabalhista, bem como da ausência de consenso acerca da possibilidade, ou não, de justificar eventual rescisão de contrato de trabalho no atual cenário pandêmico, com fundamento nos arts. 486, 501 e 502 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), traz-se aqui uma sistematização dos requisitos definidores de uma e outra situação, bem como dos reflexos práticos que uma dispensa por força maior ou fato do príncipe pode ocasionar.
A Força Maior
Acerca do instituto da força maior, tem-se que o estado de calamidade decorrente da pandemia da Covid-19 foi equiparado, por meio da edição da Medida Provisória nº 927, à hipótese de força maior, conforme se depreende do art. 1º, parágrafo único, do texto normativo. Ainda que posteriormente a referida Medida tenha perdido sua eficácia, a discussão em torno do instituto permanece, visto que a definição desta depende, eminentemente, da interpretação do caso concreto.
A força maior, definida no art. 501 da CLT como “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente”, constitui-se como hipótese de extinção contratual ocasionada por fatores tidos como excepcionais, que independem da conduta das partes[2]. Dessa maneira, cumpre destacar que a imprevidência do empregador tem o condão de excluir a razão de força maior, nos termos do § 1º do art. 501 da CLT, além de não serem aplicados os reflexos decorrentes do referido instituto aos acontecimentos que não afetem substancialmente a situação econômico-financeira da empresa (art. 501, § 2º).
Especificamente no que tange à rescisão contratual decorrente de motivo de força maior, a CLT dispõe no seu artigo 502 que, ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, será assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma do supracitado artigo, que será distinta em se tratando de trabalhador estável, não estável e com contrato por prazo determinado.
Cumpre ressaltar que a sistemática indenizatória celetista sofreu grandes modificações com o advento da Constituição Federal de 1988, que instituiu a obrigatoriedade do sistema indenizatório do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). Nos termos da Súmula nº 98 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que atesta a equivalência jurídica dos dois sistemas indenizatórios, é possível concluir que a redução da indenização prevista nos incisos do art. 502 da CLT equivale, dentro da sistemática atual, ao percentual rescisório pago sobre os depósitos contratuais do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Dessa forma, nos termos do art. 18, §§ 1º e 2º, da Lei Federal nº 8.036/90, que dispõe sobre o regime do FGTS, quando a dispensa ocorrer por força maior a multa indenizatória decai de 40% (quarenta por cento) para 20% (vinte por cento) sobre o valor total dos depósitos realizados na conta vinculada do FGTS durante a vigência do contrato de trabalho.
Especificamente no contexto da pandemia de Covid-19, em um primeiro momento parece que a rescisão contratual fundada em motivo de força maior geraria dois efeitos principais, sendo eles a redução da indenização do FGTS de 40% (quarenta por cento) para 20% (vinte por cento) e a perda do direito ao aviso-prévio indenizado, uma vez que se trata de situação imprevisível e inevitável, da qual foi vítima não apenas o trabalhador, mas, também, a empresa.
No que tange à redução da indenização rescisória, cabe destacar que o art. 502 da CLT, que trata especificamente da força maior enquanto motivo de rescisão de contrato de trabalho, estabelece, já no seu caput, um requisito essencial para viabilizar sua aplicação: o motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado.
Cumpre fazer, aqui, um parêntese: apesar da redação do art. 502 condicionar a hipótese de força maior à extinção da empresa ou de um de seus estabelecimentos, tem-se que, devido ao amplo processo de setorização decorrente do modelo de produção globalizado, não é aconselhável uma interpretação literal do dispositivo em questão. Em virtude do fenômeno crescente de setorização das empresas, que implica em uma divisão destas em unidades quase que autônomas (os “setores”), condicionar a aplicação da força maior à extinção da empresa como um todo, ou mesmo de um estabelecimento inteiro, seria medida contraproducente, uma vez que tal restrição não corresponde à realidade atual. Isso porque, em verdade, é muito mais plausível que ocorra a extinção de um único setor produtivo em decorrência de episódio de força maior do que a completa extinção da empresa em questão.
Dessa forma, recomenda-se uma interpretação mais ampla do art. 502 da CLT, que abranja também, para caracterização da força maior, a noção de “extinção do setor produtivo” no qual laborava o empregado.
Sob essa perspectiva, se o motivo de força maior for suficiente para ocasionar a extinção da empresa ou de um de seus setores, caberá a aplicação do art. 18, § 2º, da Lei Federal nº 8.036/90, segundo o qual, quando ocorrer despedida decorrente de força maior, o empregador deverá depositar na conta vinculada do trabalhador no FGTS importância igual a 20% (vinte por cento) do montante de todos os depósitos realizados durante a vigência do contrato de trabalho, em oposição aos 40% (quarenta por cento) exigidos para a rescisão sem justa causa.
O aviso-prévio indenizado, por sua vez, possui natureza jurídica de uma indenização substitutiva pelo descumprimento da obrigação de concessão do período desse aviso, cuja função é a de evitar rescisões abruptas[3]. Tendo em vista que se trata de uma indenização que decorre da rescisão contratual, no caso específico da rescisão de contrato de trabalho motivada por força maior, é o caso de aplicação do sistema indenizatório regulado pelo art. 502 da CLT e art. 18, § 2º, da Lei Federal nº 8.036/90, segundo o qual a indenização rescisória decorrente de força maior seria reduzida pela metade.
Isso porque, apesar da imprevisibilidade da situação não vitimar somente o trabalhador, mas também a empresa, não seria razoável privar o empregado do direito ao aviso-prévio indenizado, uma vez que este subsiste até mesmo na hipótese de culpa recíproca, ainda que reduzido à metade, nos termos do art. 484 da CLT e da Súmula nº 14 do Tribunal Superior do Trabalho. Logo, não seria coerente que a força maior fosse mais prejudicial ao trabalhador do que um cometimento de falta grave por parte desse, como o que ocorre na hipótese de culpa recíproca[4].
Do mesmo modo não seria justificável, sob o ponto de vista do cenário de calamidade atual, que o aviso prévio fosse indenizado de forma integral, uma vez que a empresa foi igualmente vítima das circunstâncias, também fazendo jus à medida protetiva que resguarde seus direitos. Assim, a solução mais adequada parece ser a do cabimento do aviso prévio indenizado, reduzido, porém, à metade.
Portanto, em caso de extinção da empresa ou de setor produtivo desta, requisito inafastável para aplicação do art. 502 da CLT, conclui-se que, se o contrato for rescindido com base na força maior, deverá o empregador depositar na conta vinculada do trabalhador no FGTS importância igual a 20% (vinte por cento) do montante de todos os depósitos realizados durante a vigência do contrato de trabalho, a título de indenização rescisória, além de ser cabível o aviso-prévio indenizado para rescisão fundada em força maior, sendo este, contudo, reduzido à metade.
Por outro lado, caso não haja a extinção da empresa (ou de um de seus setores), o entendimento aplicável parece se aproximar muito mais da solução proposta pela Lei nº 14.020/2020 (originada da Medida Provisória nº 936/2020), norma esta que regula as possibilidades de redução proporcional da jornada de trabalho e de salário, bem como de suspensão temporária do contrato de trabalho durante o período de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus.
O Fato do Príncipe
Outro instituto tornado relevante em função da situação atual é o factum principis, ou fato do príncipe. No âmbito trabalhista, o fato do príncipe diz respeito a uma situação excepcional disposta no art. 486 da CLT, na qual há “paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade”.
O instituto é uma espécie do gênero força maior, também denominado de “força maior imprópria”. Na seara trabalhista, o fato do príncipe possui como requisitos para sua caracterização, além dos inerentes à força maior própria, que são a imprevisibilidade, a inevitabilidade e a ausência de concurso do empregador para a ocorrência do evento; a existência de ato da administração que cause dano específico, de impacto direto e significativo à condição econômica da empresa[5].
Reconhecida a ocorrência de fato do príncipe trabalhista, o pagamento da indenização rescisória devida ficará a cargo do governo responsável pela paralisação do trabalho, seja ele municipal, estadual ou federal. Destaca-se que são raras as alegações de fato do príncipe no âmbito trabalhista, e ainda mais rara a procedência de tais alegações.
Contudo, caso reste caracterizada a hipótese de fato do príncipe, cumpre ressaltar que a sua abrangência restringe-se à indenização rescisória prevista no regime do FGTS, não sendo possível transmitir os demais encargos trabalhistas ao governo responsável pela paralisação do trabalho. Assim, não será toda e qualquer verba rescisória devida pelo empregador no momento da rescisão contratual que será repassada à autoridade administrativa que emitiu o ato de paralisação, mas tão somente a multa rescisória prevista na Lei Federal nº 8.036/90.
Especificamente quanto à possibilidade de aplicação do instituto do fato do príncipe no contexto de crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19, frisa-se que tal possibilidade foi expressamente vedada pela já mencionada Lei nº 14.020/20 que, em seu art. 29, dispõe:
Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT […] na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus […].
Ademais, para além de dispositivo expresso de lei, a aplicação do factum principis no contexto de pandemia esbarra no necessário caráter específico do dano causado, uma vez que, apesar de direto e significativo, o prejuízo ocasionado pelo ato administrativo que determina a paralisação das atividades não é direcionado a um ou outro grupo em particular. Pelo contrário, observa-se que as determinações emanadas pelas autoridades administrativas visando a contenção do vírus Sars-Cov-2 possuem um caráter generalista, atingindo os mais diversos setores econômicos e sociais.
Conclui-se, assim, acerca da (im)possibilidade de aplicação dos institutos da força maior e do fato do príncipe como justificativas à rescisão de contratos de trabalho no cenário da pandemia da Covid-19, que a força maior só poderá ser aplicada, com todas as ressalvas expostas e mediante evidente caracterização de todos os seus requisitos essenciais, para casos em que haja extinção da empresa, de estabelecimento desta ou de um de seus setores produtivos. Quanto ao fato do príncipe, destaca-se a sua inaplicabilidade, tendo em vista a vedação expressa introduzida pela Lei nº 14.020/20, que obsta a aplicação do instituto enquanto justificativa para rescisão do contrato de trabalho.
[1] Victoria Magnani – Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC no campo do Direito Ambiental do Trabalho. Membro do Grupo de Pesquisa em Meio Ambiente, Trabalho e Sustentabilidade – GP METAS.
[2] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18 ed. rev. e amp. – São Paulo: LTr, 2019.
[3]JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do Trabalho. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
[4] FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa; MARANHÃO, Ney. Covid-19: Força Maior e Fato do Príncipe. Editora RTM, 2020. Acesso em: 26 de jun. de 2020.
[5] GASIOLA, Gustavo Gil. O fato do príncipe no sistema de tutela dos contratos administrativos. In Revista digital de direito administrativo, v. 1, n. 1, p.69-84, 2014. Acesso em: 22 jun. 2020.
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