A Administração Pública deve pagar pelos serviços prestados por empresa contratada, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual, nas hipóteses em que, no momento da execução, havia consentimento da Administração.
A Administração deve pagar por serviços prestados, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual.
Nesta quarta-feira (03/06/2020), a 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) decidiu, por unanimidade, que a Administração Pública deve pagar pelos serviços prestados por empresa contratada, mesmo em caso de extrapolação do objeto contratual, nas hipóteses em que, no momento da execução, havia consentimento da Administração.
No caso concreto, deu-se provimento a recurso de apelação interposto contra sentença que havia julgado improcedente a pretensão de empresa contratada de receber a devida contraprestação por serviços que, segundo a Administração, não estavam previstos em contrato, mas que foram solicitados e autorizados à época da execução contratual. No acórdão, consignou-se que “embora prestado o serviço sem a observância das cláusulas contidas no Contrato Administrativo, bem como fora do seu objeto, sem irresignação oportuna da sociedade de economia mista contratada, é devida a contraprestação, sob pena de enriquecimento sem causa, situação vedada pelo ordenamento jurídico.”[1].
O acórdão prolatado pelo TJDFT segue entendimento consolidado na jurisprudência pátria, no sentido de que a ausência de contraprestação, pela Administração Pública, aos serviços prestados por empresa contratada, ainda que eventualmente em extrapolação do objeto contratual, configura enriquecimento sem causa. Ou seja, trata-se de uma prática ilícita, passível de ser corrigida pelo Poder Judiciário em favor dos particulares que executam serviços ou fornecem bens em favor do Poder público.
O precedente do TJDFT reconheceu o princípio geral de direito que determina a vedação ao enriquecimento sem causa, norma jurídica que inspirou a regra prevista no parágrafo único do artigo 59 da Lei Federal nº 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), que possui o seguinte teor:
Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão jurisdicional responsável por uniformizar os entendimentos das decisões judiciais de todo o Brasil, no que toca à interpretação da legislação federal, também reconhece como devida a contraprestação aos serviços realizados em favor da Administração, mesmo em caso de nulidade do contrato. Trata-se também de um desdobramento da vedação à invocação da própria torpeza em benefício da Administração[2].
Para o advogado Eduardo Schiefler, que atuou na causa julgada pelo TJDFT, o dever de ressarcir a empresa contratada persistiria mesmo se não houvesse o consentimento formal da Administração, bastando que não se opusesse à sua prestação, nos termos da jurisprudência sobre o assunto.
É de se observar, portanto, que o ordenamento jurídico protege as empresas contratadas que prestaram serviços à Administração Pública, garantindo-lhes o direito a pagamento mesmo nas hipóteses em que a realização destes serviços não respeitou as cláusulas ou fugiu ao escopo do contrato administrativo, ou até mesmo nos casos em que a Administração não consentiu formalmente para a prestação das atividades.
[1] TJDFT, Apelação Cível nº 0709122-43.2018.8.07.0018. Relator Desembargador Eustaquio de Castro, 8ª Turma. Julgado em 03/06/2020.
[2] STJ, REsp 1365600/RJ, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/05/2019.
Read MorePor inúmeras potenciais razões, há casos em que o contratado não é capaz de manter ou de comprovar a manutenção de sua regularidade fiscal durante a execução do contrato. E aí surge a questão: qual a consequência jurídica?
O Poder Público pode se recusar a pagar por serviços já prestados em razão de irregularidade fiscal posterior à celebração ou execução do contrato?
A prestação de serviços para a Administração Pública, de maneira geral, pode ser uma estratégia atrativa para empresas privadas que visam a firmar contratos de larga escala e/ou de longo prazo, em busca de lucros ou, ao menos, de fluxo financeiro, em benefício de sua saúde financeira, posicionamento no mercado ou até mesmo de expansão de atividades.
Entretanto, esta oportunidade é acompanhada de uma série de obrigações típicas, que não são comuns às contratações privadas. Ou seja, o processo de contratação pública é permeado de fases burocráticas, as quais demandam a apresentação, pelo particular, de uma grande quantidade de documentos a fim de comprovar, dentre outras coisas, as exigências contidas no inciso IV do artigo 27 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal nº 8.666/93), que estabelece a regularidade fiscal como condicionante para a habilitação da empresa na licitação.
Sobre o tema, é necessário observar as determinações feitas pelo artigo 29 da referida Lei, que consistem, especificamente, na prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei. E essa demonstração de regularidade fiscal deve ocorrer na fase de habilitação da empresa licitante, que se dá, invariavelmente, em momento anterior ao início da execução dos serviços contratados.
Ocorre que, de acordo com o inciso XIII do artigo 55 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o contratado tem a obrigação de “manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. Aplicando-se ao tema em análise, isto significa que o contratado precisa manter, durante a execução do contrato, a sua regularidade fiscal perante a Fazenda Pública.
Por inúmeras potenciais razões, há casos em que o contratado não é capaz de manter ou de comprovar a manutenção de sua regularidade fiscal durante a execução do contrato. E aí surge a questão: qual a consequência jurídica? A Administração Pública pode reter o pagamento por prestações já executadas? Deve-se rescindir o contrato?
Conforme se comprova a partir de inúmeros casos levados à análise do Poder Judiciário, há casos em que a Administração Pública retém repasses financeiros a empresas contratadas, após o início da execução dos serviços, em razão de irregularidades fiscais surgidas posteriormente à celebração ou execução do contrato.
No entanto, como não existe previsão legal que possibilite a imposição desta prática, tampouco isto se caracteriza como uma possibilidade de penalidade administrativa, os Tribunais possuem decisões reconhecendo a ilegalidade desta conduta administrativa.
Este entendimento é evidenciado em decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de maio de 2019, proferida pela Segunda Turma de Direito Público, segundo a qual, “apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência” (STJ, AgInt no REsp 1742457/CE).
De acordo com o voto do Relator Ministro Francisco Falcão, acolhido por unanimidade, a imposição de regularidade fiscal como condição para pagamento de serviços já prestados implicaria em afronta aos princípios norteadores da atividade administrativa, uma vez que não se revela razoável “que a comprovação de regularidade fiscal seja imposta como condição para a liberação do pagamento pelos serviços prestados”.
Ressalta-se que não se trata de um entendimento isolado da Segunda Turma. Conforme se depreende do acórdão RMS 53.467/SE, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, que seguiu exatamente na mesma linha de que é “vedada a retenção do pagamento pelos serviços prestados”.
Inclusive, o Tribunal de Contas da União (TCU) compartilha do entendimento do STJ, como se verifica do Acórdão 964/2012, do Plenário, cujo relator foi o Ministro Walton Alencar Rodrigues. O posicionamento do TCU nesse caso gerou o seguinte enunciado:
Enunciado
A perda da regularidade fiscal, inclusive quanto à seguridade social, no curso de contratos de execução continuada ou parcelada justifica a imposição de sanções à contratada, mas não autoriza a retenção de pagamentos por serviços prestados. (TCU, Acórdão 964/2012, Plenário. Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues. Julgado em 25/04/2012)
Abaixo estão as ementas dos acórdãos da Segunda Turma do STJ mencionados:
AGRAVO INTERNO. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE. CONTRATAÇÃO COM A MUNICIPALIDADE. SERVIÇOS JÁ REALIZADOS. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. RETENÇÃO DO PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
I – Na origem, a Associação Beneficente Cearense de Reabilitação – ABCR impetrou mandado de segurança contra ato do Secretario de Saúde do Município de Fortaleza, pretendendo receber o repasse financeiro relativo a serviços por ela prestados, decorrente de contrato entabulado entre as partes, sem a necessidade de apresentação de certidão negativa expedida pela Fazenda Pública Nacional.
II – O Tribunal a quo manteve a decisão concessiva da ordem.
III – Ao recurso especial interposto pela municipalidade foi negado provimento, com base na Súmula 568/STJ, em razão da jurisprudência da Corte encontrar-se pacificada no mesmo sentido da decisão recorrida: apesar de ser exigível a Certidão de Regularidade Fiscal para a contratação com o Poder Público, não é possível a retenção do pagamento de serviços já prestados, em razão de eventual descumprimento da referida exigência. Precedentes: REsp n. 1.173.735/RN, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 9/5/2014, RMS n. 53.467/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 27/06/2017, dentre outros.
IV – Os argumentos trazidos pelo agravante não são suficientes para alterar o entendimento prestigiado pela decisão atacada.
V – Agravo interno improvido. [grifo acrescido]
(STJ, AgInt no REsp 1742457/CE, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 23/05/2019, DJe 07/06/2019).
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. ILEGALIDADE NÃO CONFIGURADA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO DEMONSTRADO.
[…] 2. O Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe concedeu parcialmente a ordem, para determinar à autoridade impetrada, exclusivamente, que se abstenha de condicionar o pagamento relativo às faturas das notas fiscais referentes aos serviços executados, decorrentes do contrato administrativo 55/2013, à apresentação de certidões negativas de débitos e/ou de regularidade fiscal (fls. 121-129, e-STJ).
- A decisão impugnada não merece reforma, pois cabe à recorrente cumprir com sua obrigação de apresentar a comprovação de sua regularidade fiscal, sob pena de ver rescindido o contrato com o Município pelo descumprimento de cláusula contratual, em que pese ser vedada a retenção do pagamento pelos serviços prestados, como ocorreu na espécie, no que tange às notas fiscais apresentadas na petição inicial. […]
- A recorrente não trouxe argumento capaz de infirmar os fundamentos da decisão recorrida e demonstrar a ofensa ao direito líquido e certo.
- Recurso Ordinário não provido. [grifo acrescido]
(STJ, RMS 53.467/SE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 30/06/2017)
Portanto, o entendimento que prevalece na Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Tribunal de Contas da União (TCU) é de que, embora seja dever da empresa contratada comprovar a sua regularidade fiscal, inclusive durante a execução do contrato, o Poder Público não pode se recusar a pagar pelos serviços já prestados, sob pena de cometer um ato administrativo ilegal e passível de reforma pelos órgãos de controle. As exceções existentes a este entendimento são bastante pontuais e estão relacionadas a casos em que a Administração Pública corre o risco de ser responsabilizada pelo débito fiscal pendente e inadimplido por parte do contratado.
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