As duas Ações de Investigação Judicial Eleitoral que pleiteiam a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão foram propostas durante o processo eleitoral de 2018, e passam agora pela análise do Tribunal Superior Eleitoral.
Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
Marcelo John Cota de Araújo Filho[2]
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) está atualmente a se debruçar sobre duas ações judiciais (Ações de Investigação Judicial Eleitoral nº 0601369-44.2018.6.00.000 e nº 0601401-49.2018.6.00.0000) que pleiteiam a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, chapa esta que, como se sabe, saiu vencedora nas eleições de 2018 para os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República.
As ações foram ajuizadas – em meio ao processo eleitoral de 2018 – pelas coligações partidárias lideradas por Guilherme Boulos e Marina Silva e têm por objeto averiguar se a chapa encabeçada pelo atual Presidente da República teria sido beneficiada pelo ataque hacker a um grupo de Facebook nomeado “Mulheres Unidas contra Bolsonaro”, que reunia 2,7 milhões de participantes. Após o ataque, o grupo teve seu nome alterado para “Mulheres COM Bolsonaro #17” e passou a veicular material de apoio ao então candidato. Discute-se, em síntese, se houve um suposto abuso eleitoral, com a participação ativa do beneficiado no ataque hacker.
O relator do caso, Ministro Og Fernandes, havia votado pela improcedência da ação, em novembro de 2019. Na sequência, o Ministro Edson Fachin se posicionou a favor de uma rodada de produção de provas. E, na sessão do dia 09 de junho de 2020, o Ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos, deixando o julgamento em suspenso.
Mas o que aconteceria se as ações fossem procedentes?
O procedimento a ser adotado em caso de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão é definido pelo art. 81 da Constituição Federal:
Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.
§1º Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.
§2º Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.
Da leitura do dispositivo, conclui-se que, em caso de vacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente nos dois primeiros anos do mandato (situação que perdurará, no caso concreto, até dezembro de 2020), seria necessária a realização de novas eleições em até noventa dias após a vacância da última vaga. Por outro lado, caso a vacância ocorresse nos últimos dois anos do atual mandato (de janeiro de 2021 a dezembro de 2022), seria necessária a realização de eleição indireta para ambos os cargos, pelo Congresso Nacional, em até trinta dias após a vacância do último cargo.
Com efeito, o julgamento de procedência das ações ainda no ano de 2020 provocaria um inusitado problema: a dificuldade de realização de eleições em meio à pandemia da Covid-19, algo que já está a ocupar o Congresso Nacional nas últimas semanas, tendo em vista que 2020 é ano de eleições municipais.[3]
Por sua vez, o julgamento de procedência das ações nos dois últimos anos do mandato provocaria a realização de eleições indiretas pelo Congresso Nacional, que se daria da seguinte forma: dentre os cidadãos elegíveis que tenham lançado a sua candidatura para o novo pleito, os 594 parlamentares selecionariam o novo Presidente e Vice-Presidente da República. Embora prevista na Constituição Federal, tal situação seria indesejável em termos democráticos, tendo em vista que, numa eleição desse tipo, o jogo de influências e de interesses poderia prevalecer, em detrimento de uma escolha republicana.
De toda forma, independentemente da modalidade aplicada para o possível preenchimento das vagas, certamente estar-se-á diante de severa turbulência institucional, uma vez que o atual Governo não parece estar receptivo a qualquer resultado que não a sumária improcedência das duas ações.
Nesse sentido, é relevante anotar que, nos últimos tempos, o próprio Presidente da República tem se insurgido contra algumas decisões tomadas pelo Poder Judiciário, chegando a dizer em oportunidade anterior que “ordens absurdas não se cumprem”[4]. E, especificamente sobre as duas ações que tramitam contra ele no TSE, afirmou recentemente que o seu julgamento é inadmissível e que os processos já deveriam ter sido arquivados. Em nítida alusão à fala do Ministro da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos[5], Bolsonaro afirmou que o simples processamento das ações equivale a “começar a esticar a corda”.[6]
Diante desse cenário, o TSE está diante de uma delicada situação, que pode dar ensejo à tentativa de rompimento institucional. Porém, instado a se manifestar sobre tal risco no programa Roda Vida, da TV Cultura, que foi ao ar no último dia 15 de junho[7], o Ministro Barroso foi claro ao expressar o seu posicionamento, no sentido de que o TSE não irá se acovardar: “nós [TSE] faremos o que é certo dentro do Direito, porque nós somos atores institucionais, e não atores políticos. O que tiver que ser feito, vai ser feito”.
Resta, então, aguardar os desdobramentos dos fatos.
[1] Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[2] Estagiário de Direito no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Foi Assessor da Presidência e consultor de Negócios da Magna Empresa Júnior, além de representante discente do Conselho da Faculdade de Direito (CONFADIR), da UFU.
[3] Como se sabe, o atual Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luís Roberto Barroso, já iniciou conversas no sentido de adiar as eleições municipais que estavam originalmente marcadas para o mês de outubro de 2020. Em sua conta oficial na rede social twitter, o Ministro informou que o Senado começará a votar na data de hoje (23/06/2020) a PEC sobre o adiamento das eleições. Acesso em 23 de junho de 2020.
[4] A declaração foi dada um dia depois da deflagração de operação realizada pela Polícia Federal contra a disseminação de Fake News, cujo alvo foram vários de seus apoiadores políticos. A propósito, cf. Acesso em 22 de junho de 2020.
[5] Em resposta a um questionamento da Revista Veja, sobre um possível golpe militar no Brasil, o General Luiz Eduardo Ramos declarou que o Governo não considera tal hipótese, mas que, por outro lado, é importante a oposição “não esticar a corda”. Acesso em 22 de junho de 2020.
[6] Disponível em: Bolsonaro diz que processo no TSE que pode cassar chapa presidencial é ‘começar a esticar a corda’. Acesso em 22 de junho de 2020.
[7] A íntegra da entrevista está disponível no canal do programa Roda Viva no YouTube. Acesso em 22 de junho de 2020.
Read MoreMesmo no caso de reconhecimento de vício que impeça o Congresso Nacional de apreciar o seu mérito, isso deve ser feito sempre de forma colegiada, e nunca por meio da atuação individualizada do Presidente do Congresso Nacional.
Eduardo de Carvalho Rêgo[1]
Matheus Lopes Dezan[2]
No último dia 12 de junho, o Presidente do Congresso Nacional, Senador Davi Alcolumbre, devolveu à Presidência da República a Medida Provisória n° 979/2020, que conferiu ao Ministro da Educação a prerrogativa de nomear livremente, em caráter pro tempore, os Reitores de instituições do Sistema Federal de Ensino, pelo período em que durar a pandemia da Covid-19. A MP em questão relativizou a norma anteriormente em vigor, que limitava a escolha, a ser sempre realizada pelo Presidente da República, aos nomes constantes em listas tríplices elaboradas pelos colegiados máximos de cada instituição.
Ao justificar a sua decisão, o Senador Alcolumbre publicou mensagem na rede social twitter, destacando que o texto da MP nº 979/2020 violaria os princípios constitucionais da autonomia e da gestão democrática das universidades (art. 207 da Constituição Federal), de modo que não mereceria ser processado pelo Congresso Nacional mediante o rito previsto no art. 62, CF.
De fato, o texto enviado pela Presidência da República possuía problemas no que se refere à democracia universitária. Porém, a devolução de medidas provisórias à Presidência da República não está contemplada no aludido art. 62. Ao contrário, a Constituição é explícita no sentido de conferir eficácia ao ato normativo editado monocraticamente pelo Presidente da República desde a sua origem, exceto se não forem convertidos em lei no devido prazo e desde que o Congresso Nacional edite decreto legislativo disciplinando as relações jurídicas deles decorrentes (§ 3º c/c § 11 do art. 62 da CF).
Há ainda uma outra possibilidade de “rejeição” preliminar de medidas provisórias, isto é, sem a análise do seu mérito. O § 5º do art. 62 determina que “A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais”. Tal regra deve ser lida em conjunto com a previsão constante no § 9º do mesmo art. 62: “Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional”.
A regulamentação de tais dispositivos está contemplada na Resolução nº 01/2002, do Congresso Nacional, que “Dispõe sobre a apreciação, pelo Congresso Nacional, das Medidas Provisórias a que se refere o art. 62 da Constituição Federal, e dá outras providências”.
No art. 2º, a Resolução determina que, após a publicação de medida provisória, a primeira providência a ser tomada pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional é a designação de comissão mista para emitir parecer sobre ela. E, no art. 8º, resta claro que, preliminarmente ao exame de mérito da MP (do qual trata o § 5º do art. 62 da CF), os Plenários do Senado e da Câmara dos Deputados deverão empreender análise sobre “o atendimento ou não dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência de Medida Provisória ou de sua inadequação financeira ou orçamentária […] para, ato contínuo, se for o caso, deliberar sobre o mérito”.
Ou seja: mesmo no caso de rejeição preliminar de medida provisória, isto é, do reconhecimento de vício que impeça o Congresso Nacional de apreciar o seu mérito, isso deve ser feito sempre de forma colegiada, e nunca por meio da atuação individualizada do Presidente do Congresso Nacional.
No caso da devolução da Medida Provisória nº 979/2020, não houve rejeição preliminar (portanto, sem análise de mérito) por parte dos Plenários do Senado e da Câmara dos Deputados. Houve, ao contrário, uma iniciativa pessoal do Presidente do Congresso Nacional e com base em análise de mérito, já que ficou assentado por ele a ofensa ao art. 207 da Constituição Federal.
Ao fundamentar a devolução, o Presidente do Congresso Nacional fez alusão ao art. 48, II e XI, do Regimento Interno do Senado, que assim dispõem:
Art. 48. Ao Presidente compete:
[…]
II – velar pelo respeito às prerrogativas do Senado e às imunidades dos Senadores;
[…]
XI – impugnar as proposições que lhe pareçam contrárias à Constituição, às leis, ou a este Regimento, ressalvado ao autor recurso para o Plenário, que decidirá após audiência da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania;
Com fulcro nos mesmos dispositivos, o expediente da devolução de Medida Provisória já havia sido utilizado por outros Presidentes do Congresso Nacional. O Senador José Ignácio Ferreira devolveu a MP nº 33/1989, que dispensava servidores e que extinguia cargos públicos, ao Presidente José Sarney. A justificativa utilizada pelo Presidente do Congresso Nacional foi a de que a normatização da matéria em comento era de competência exclusiva do chefe do Poder Executivo, de modo a não incidir o mandamento constitucional de apreciação pelo Poder Legislativo.
Na sequência, o Senador Garibaldi Alves Filho devolveu à Presidência da República a MP n° 446/2008, que “Dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social, regula os procedimentos de isenção de contribuição para a seguridade social, e dá outras providências”. Na ocasião, o Senador alegou que era inconstitucional a MP por não atender aos requisitos fundamentais de relevância e de urgência.
Mais recentemente, o Senador Renan Calheiros devolveu a MP n° 669/2015 à Presidente Dilma Rousseff. Sua motivação foi um suposto abuso, por parte do Poder Executivo, de edição de medidas provisórias sem relevância e urgência. Conforme deixou salientado em manifestação posterior, a edição de MPs deve ser medida excepcional e de uso comedido.
No ano passado, mais precisamente em junho de 2019, o próprio Senador Alcolumbre já havia devolvido ao Presidente da República parte da MP nº 886/2019, também com base nos incisos II e XI do art. 48 do Regimento Interno do Senado.
Embora engenhosa, a interpretação adotada pelo atual Presidente do Congresso Nacional, sobretudo no que se refere ao inciso XI do art. 48 do Regimento Interno do Senado, parece colidir frontalmente com a Constituição Federal, por duas razões: (i) trata as medidas provisórias como meras proposições legislativas; e (ii) cria a extravagante possibilidade de um controle abstrato de constitucionalidade simplificado e não previsto na Constituição Federal.
No que diz respeito à primeira razão, convém destacar que as medidas provisórias são instrumentos com força de lei postos à disposição do Presidente da República para tratar de matérias relevantes e urgentes, que não podem aguardar o desenrolar do processo legislativo ordinário. Em certo sentido, a edição de medidas provisórias é uma prerrogativa do Presidente da República, que, em casos excepcionais, exerce temporariamente a função legislativa no lugar do Congresso Nacional.
Por ser assim, é equivocado interpretar as medidas provisórias como meras proposições legislativas, eis que estas não possuem força de lei. A medida provisória, como dito, é lei para todos os efeitos, somente podendo ser rejeitada nas hipóteses previstas no art. 62 da Constituição Federal. E, ainda assim, há hipóteses em que a sua rejeição não significa a sua invalidade desde a origem, nos termos do § 11 do art. 62 da CF: “Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”.
Quanto à segunda razão, que decorre do equívoco interpretativo acima mencionado, destaca-se a possível usurpação do exercício do controle abstrato de constitucionalidade, cuja competência, na hipótese, seria exclusivamente do Supremo Tribunal Federal.
Como dito, as medidas provisórias editadas pelo Presidente da República possuem força de lei (art. 62, caput, CF). Sendo assim, o método adequado para a sua impugnação é a ação direta de inconstitucionalidade, prevista no art. 102, I, a, da Constituição Federal: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.
Na prática, ao devolver a MP nº 979/2020 à Presidência da República, o Presidente do Congresso Nacional encampou nova modalidade de controle abstrato de constitucionalidade, não judicial (eis que exercida pelo Parlamento), simplificada (uma vez que veiculada por meio de ato declaratório com apenas um parágrafo) e monocrática (assinada pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional).
E, uma vez que o Presidente da República optou por revogar o ato normativo após a sua devolução pelo Presidente do Congresso Nacional, retirou-se do Supremo Tribunal Federal a última palavra sobre a interpretação constitucional da MP nº 979/2020, o que seria de direito.
Agora, dado que o tema foi aparentemente superado, paira no ar a sensação de que tudo foi resolvido no âmbito da política e não necessariamente no âmbito do Direito. Dadas as inconstitucionalidades presentes no texto da MP nº 979/2020, perdeu-se a oportunidade de ver o Supremo Tribunal Federal fixar o entendimento sobre a autonomia e a gestão democrática das universidades, no exercício de sua competência constitucional de guarda da Constituição.
No fim das contas, não deixa de ser irônico que, com vistas ao combate de um ato notoriamente antidemocrático e inconstitucional, o Presidente do Congresso Nacional tenha atuado por meio de expediente eivado dos mesmos vícios, isto é, igualmente antidemocrático e inconstitucional.
[1] Eduardo de Carvalho Rêgo – Advogado. Coordenador das Unidades de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Doutor em Direito, Política e Sociedade e Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
[2] Matheus Lopes Dezan – Estagiário de Direito no Escritório Schiefler Advocacia (www.schiefler.adv.br). Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do “Laboratório de Políticas Públicas e Internet” (LAPIN). Membro do Grupo de Pesquisa “Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial” (DRIA). Membro do Grupo de Pesquisa “Bioethik: estudos em bioética” (UFES).
Read MoreO principal questionamento veio por intermédio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas no STF, nas quais se argumentou que a MP poderia significar uma espécie de salvo-conduto aos agentes públicos.
STF encerra polêmica sobre a MP nº 966/2020
Fernando Coelho[1]
A recente Medida Provisória nº 966/2020, editada no último dia 13 de maio, suscitou muita discussão ao tratar do tema da responsabilização dos agentes públicos no contexto das medidas de combate aos efeitos da pandemia da Covid-19. Um dos primeiros questionamentos suscitados pela MP é como ela se relaciona com as normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro que tratam do tema, bem como a sua necessidade e constitucionalidade.
A MP nº 966/2020 estabelece que a responsabilização civil e administrativa dos agentes públicos é possível somente se a sua ação ou omissão, no enfrentamento às emergências sanitárias e no combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da Covid-19, se derem por dolo ou erro grosseiro (art. 1º), eximindo da responsabilidade o agente público que tiver agido (ou deixado de agir) com base em opinião técnica alheia se não estiverem presentes elementos suficientes para que ele pudesse aferir o dolo ou o erro grosseiro dessa opinião técnica, ou se houve conluio entre os agentes (art. 1º, § 1º, I-II). Além disso, no § 2º, dispõe-se que a responsabilidade civil em caso de resultado danoso não recai sobre o agente público.
Finalmente, a MP define erro grosseiro como “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” (art. 2º), que deve ser aferido considerando-se: i) os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; ii) a complexidade da matéria e das atribuições do agente; iii) a incompletude das informações; iv) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e v) o contexto da incerteza das medidas mais adequadas no contexto e suas consequências inclusive econômicas (art. 3º).
Entretanto, se comparada aos artigos 22 e 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (os artigos 20 a 30 foram inseridos pela Lei nº 13.655/2018) e ao artigo 12 do Decreto nº 9.830/2019, que tratam do tema da responsabilização dos agentes públicos, a MP nº 966/2020, apesar de ter sido concebida no contexto do enfrentamento dos efeitos da pandemia da Covid-19, parece ter trazido bem pouca novidade. Para uma melhor comparação, apresentamos no quadro abaixo os dispositivos da MP ao lado dos artigos análogos da LINDB e do Decreto nº 9.830/2019:
Após cotejamento, verifica-se que as novidades dispositivas se resumem às seguintes:
a) O caput do art. 1º da MP é mais explícito e mais genérico. Refere-se aos agentes públicos nas suas ações ou omissões, e não às suas decisões ou opiniões técnicas, além de mencionar que a responsabilização se dará nas esferas civil e administrativa. Além disso, dispõe que a responsabilização é devida somente se se configurar erro grosseiro ou dolo na prática de atos no contexto da pandemia da Covid-19;
b) O art. 3º elenca mais fatores, além dos já existentes, a serem considerados para a aferição do erro grosseiro: i) os obstáculos e as dificuldades reais do agente público, as circunstâncias de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; ii) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; iii) e o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.
Contudo, no que diz respeito àqueles dispositivos da MP e do Decreto nº 9.830/2019 que são análogos, a sua positivação em forma de lei, que se verificará caso o Congresso aprove o texto da MP, trará maior segurança jurídica aos agentes públicos interessados. Afora a maior legitimidade de um texto aprovado pelo Poder Legislativo e a sua capacidade de inovar o ordenamento, criando direitos antes inexistentes, a consagração desses elementos em lei nacional abrange expressamente os demais entes federados, não se restringindo à União Federal. Além disso, na esteira do que já escreveu Gustavo Schiefler, “novas leis que estabelecem novos institutos são seguidas frequentemente de um sem número de obras doutrinárias e da ampla divulgação pelos meios de comunicação”[2].
Embora a Medida Provisória nº 966/2020 não tenha uma carga significativa de inovação normativa, pois, como visto, se caracteriza como um detalhamento maior de regras preexistentes, a sua publicação em um período sensível como o pandêmico trouxe questionamentos por parte da sociedade.
O principal questionamento veio por intermédio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade[3] ajuizadas no STF por partidos políticos e pela Associação Brasileira de Imprensa, nas quais se argumentou que a MP poderia significar uma espécie de salvo-conduto, anistiando os agentes públicos por quaisquer ações ou omissões relacionadas direta ou indiretamente com a pandemia de Covid-19 que não fossem caracterizadas por dolo ou erro grosseiro.
No julgamento das ADIs, o plenário do STF decidiu no dia 21/05/2020 que a MP nº 966/2020 é constitucional, salvaguardando assim as disposições análogas da LINDB e do Decreto nº 9.830/2019, e firmou as duas seguintes teses.
Em primeiro lugar, o erro grosseiro no âmbito da MP consiste na violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou nos impactos adversos à economia, quando resultarem da inobservância de normas e critérios técnicos ou dos princípios constitucionais da precaução ou da prevenção. Em segundo lugar, a autoridade incumbida de decidir, sob pena de se tornar corresponsável por eventuais violações a direitos, deve exigir que as opiniões técnicas que utilizará como base para a sua decisão tratem expressamente “(i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.”
[1] Doutor em Estudos da Tradução (PPGET/UFSC/2018) com tese sobre a tradução do direito romano (Digesto de Justiniano). Estágio de pós-doutorado na Universidade Sorbonne (Paris, 2019). Mestre em Estudos da Tradução. Bacharel e licenciado em Filosofia (UFSC/2005). Licenciado em Letras/Francês (UFSC/2008). Bacharel em Letras/Italiano (UFSC/2014). Atualmente graduando matriculado na 6ª fase de Direito (UFSC, 2017-), tendo realizado intercâmbio no Universidade Nanterre (Paris X) no segundo semestre de 2019.
[2] SCHIEFLER, Gustavo H. C. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): Solicitação e Apresentação de Estudos e Projetos para a Estruturação de Concessões Comuns e Parcerias Público-Privadas. Tese de Doutorado. UFSC, Florianópolis, 2013.
[3] São sete ações: ADIs: 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431.
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