A LGPD, agora em parcial vigor, institui regime jurídico devotado à disciplina das operações de tratamento de dados realizadas por entes que compõem o poder público, dos quais se espera que envidem esforços para garantir efetivas prestações estatais para concretizar as normas de proteção de dados pessoais.
Matheus Lopes Dezan[i]
Em 18 de setembro de 2020, sexta-feira, iniciou-se a parcial[ii] produção de vigor pela Lei Federal nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, usualmente denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)[iii]. Cessa o período de vacatio legis da LGPD após extenso processo legislativo. Isso porque, em 29 de abril de 2020, fora adiada a vigência parcial da LGPD para 03 de maio de 2021, por força do 4º artigo da Medida Provisória nº 959[iv]. Contudo, o Congresso Nacional, em 26 de agosto de 2020, optou pela remoção do artigo 4º da MP nº 959/2020 durante votação acerca da conversão dessa MP em Lei Ordinária Federal nº 14.058, sancionada pela Casa Civil na última sexta-feira, 18 de setembro.
Em face do exposto, vigora parcialmente a LGPD, lei que serve de eixo ao sistema normativo brasileiro de proteção de dados pessoais, provocando importantes alterações para as relações público-privadas[v], sobretudo em face do contexto de uma administração pública eletronizada[vi].
A LGPD E A ORDEM CONSTITUCIONAL
A LGPD regula as operações de tratamento de dados pessoais realizadas por agentes públicos e privados, isto é, regula operações tais quais as de acesso, de coleta, de armazenamento, de processamento e de compartilhamento de dados pessoais (informações que versam sobre atributos da pessoa natural identificada ou identificável – artigo 5º, I, LGPD). Instituem-se, pois, garantias normativas postas em defesa do titular de dados tratados.
Nesse sentido, a fim de tornar efetiva a proteção que confere à categoria de dados pessoais, a LGPD busca dar concreção a normas constitucionais fundamentais. Para isso, afirma como fundamentos seus o respeito à privacidade, ao livre desenvolvimento da personalidade (corolário lógico-jurídico do respeito à dignidade humana, positivado pelo inciso III do artigo 1º da CF/88), aos direitos de autonomia informacional da personalidade, às liberdades de expressão, de informação e de comunicação, à intimidade, à honra, à imagem e a outros direitos fundamentais que servem de axioma à nova lei de proteção de dados (artigos 1º e 2º, LGPD).
Do mesmo modo, operações de tratamento de dados pessoais devem observar, em regra, diretrizes normativas de finalidade, de adequação, de necessidade, de livre acesso, de qualidade de dados, de transparência, de segurança, de não discriminação e outras diretrizes afirmadas pela doutrina estudiosa de temas afeitos à proteção de dados pessoais e positivadas pela LGPD (artigo 6º, LGPD).
Precisamente, no que concerne a operações de tratamento de dados pessoais realizadas pelo poder público, importa a observância das diretrizes positivadas em lei para que haja adequação das relações público-privadas às premissas de um Estado efetivamente Democrático e de Direito, que age em atenção à proteção de direitos fundamentais individuais e coletivos e em prol do interesse público.
Há, no entanto, especificidades próprias do regime jurídico criado pela LGPD e devotado aos órgãos e entidades administrativas, que merecem mais profunda abordagem em tópico apartado.
O TRATAMENTO DE DADOS PELO PODER PÚBLICO
O capítulo IV da LGPD é dedicado à instituição de novo regime normativo para a regulação das operações tratamento de dados pessoais executadas pelo poder público. Trata-se de regime jurídico distinto daquele por meio dos quais são disciplinadas as pessoas jurídicas de direito privado, o que se justifica em razão das particularidades de prerrogativa que a administração pública ostenta.
De pronto, pode-se destacar que o tratamento de dados pelo poder público deve atender a finalidades públicas, com respaldo no interesse público, a fim de que seja possível a execução das atribuições legais do poder público, tais como a execução de políticas públicas, a prestação de serviços públicos e administração da res publica (artigo 23, LGPD). Em todos os casos, deve-se lembrar, observam-se os fundamentos e princípios da LGPD e resguardam-se os direitos do titular dos dados tratos, que deve ser informado sobre os usos que se fazem dos dados tratados por entidades administrativas, bem como deve ter acesso a essas informações em veículos de fácil acesso, sobretudo em portais governamentais em sites da internet (artigo 23, I, LGPD). Ainda, o exercício dos direitos do titular de dados deve ocorrer com amparo no remédio constitucional do Habeas Data, nas disposições da Lei Geral do Processo Administrativo e, ainda, na Lei de Acesso à Informação, todos integrantes do sistema normativo de proteção de dados pessoais ordenado pela LGPD (artigo 23, § 3º, LGPD).
Esse mesmo regime jurídico de direito público disciplina a prestação de serviços notariais e de registros, do mesmo modo que disciplina a execução, por empresas públicas e por sociedades de economia mista, de serviços e políticas públicos (artigo 23, §§ 4º e 5º e artigo 24, parágrafo único, LGPD). Nesses casos, os dados tratados devem ser armazenados em formato interoperável, de modo que seja possível o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos da administração pública, para a execução de políticas públicas. O compartilhamento de dados entre entidades administrativas e empresas privadas é estritamente vedado pela LGPD, salvo em casos excepcionais, sendo sempre devida comunicação acerca do compartilhamento à autoridade nacional e ao titular dos dados (artigos 24 e 25, LGPD).
Sem embargos, empresas públicas e sociedades de economia mista que atuam em regime privado de concorrência devem observar a disciplina normativa própria de entidades privadas (artigo 24, caput, LGPD).
Não se aplicam as normas da LGPD quando o tratamento de dados pessoais ocorrer para fins de segurança nacional, de defesa nacional e de segurança do Estado, bem como para fins investigação e de repressão de infrações penais. Dessa forma, em caso de a administração pública tratar dados pessoais para uma das finalidades elencadas, não é devida a aplicação das normas da LGPD.
Similarmente, a LGPD concebe a possibilidade de a administração pública tratar dados pessoais sem o consentimento do titular dos dados tratados para a execução de políticas públicas previstas em lei, em regulamentos ou em contratos, convênios e outros, bem como a para fins de proteção da saúde pela autoridade sanitária, mesmo que sem consentimento do titular de dados (artigo 7º, III e IX, LGPD). De todo modo, é necessário assegurar ao titular dos dados tratados acesso facilitado às informações sobre essas operações de tratamento de dados, tais como informações sobre as formas de tratamento, sobre a identidade dos agentes de tratamento, sobre a finalidade do tratamento e sobre os direitos do titular (artigo 9º, LGPD).
A AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
Para fiscalizar o cumprimento das normas positivadas pela LGPD, previu-se a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), criada sem aumento de despesas e vinculada à Presidência da República (artigo 55-A, LGPD). A despeito dessa vinculação, em torno da qual pairam inesgotáveis debates, garante-se à ANPD autonomia técnico-decisória. Do mesmo modo, a autoridade nacional instituída por lei possui natureza jurídica transitória, sendo possível, em momento posterior, que a ANPD seja transformada em entidade da administração pública federal indireta, disciplinada por regime autárquico e especial (artigos 55-A, § 1º, e 55-B, LGPD).
Figuram dentre as competências da ANPD aquelas de zelar pela proteção de dados pessoais e pelo respeito aos segredos comerciais e industriais – sobretudo em caso de haver necessidade de auditar operações de tratamento de dados, como provê o artigo 20 da LGPD – de elaborar diretrizes da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade e de aplicar sanções em caso de descumprimento das ordens legais (artigo 55-J, LGPD). Ademais, editou-se recentemente o Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020, que regulamenta com maior especificidade a estrutura e as atribuições da ANPD[vii].
Nada obstante, as sanções de multa previstas pela LGPD, e passíveis de serem aplicadas pela ANPD, apenas vigoram a partir de 1º de agosto de 2021, período reservado à estruturação da ANPD, o que apenas recentemente se iniciou.
UM PANORAMA GERAL
Em suma, a LGPD, agora em parcial vigor, institui regime jurídico devotado à disciplina das operações de tratamento de dados realizadas por entes que compõem o poder público. Consequentemente, espera-se que a administração pública, imergida no contexto de eletronização de seus atos, envide esforços, como o tem feito desde 2018, no sentido de convergir a sua estrutura interna para as disposições inauguradas pela LGPD, de modo que seja possível garantir efetivas prestações estatais em consonância com a ordem constitucional, concretizada pelas normas de proteção de dados pessoais.
QUADRO COMPARATIVO
Notas de fim de página
[i] Estagiário de Direito em Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN). Membro do Grupo de Pesquisa certificado pelo CNPq Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB). Membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia (GEDE/UnB/IDP). Membro do Grupo de Pesquisa em Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (HDAPP/UniCeub). Membro do Grupo Bioethik: Grupo de Pesquisas em Bioética.
[ii] Por força do inciso I do artigo 65 da LGPD, os artigos 55-A, 55-B, 55-C, 55-D, 55-E, 55-F, 55-G, 55-H, 55-I, 55-J, 55-K, 55-L, 58-A e 58-B vigoram desde 28 de dezembro de 2018, e os artigos 52, 53 e 54, que versam acerca das sanções administrativas a serem aplicadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados a infratores da Lei, por força do inciso I-A do artigo 65 da LGPD, vigoram apenas a partir de 1º de agosto de 2021. A redação da MP 959/2020, portanto, apenas modificou a redação do inciso II do artigo 65 da LGPD, que cuida da vigência dos demais artigos da lei.
[iii] BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 21 ago. 2020.
[iv] BRASIL. Medida Provisória nº 959, de 29 de abril de 2020. Estabelece a operacionalização do pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda e do benefício emergencial mensal de que trata a Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, e prorroga a vacatio legis da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, que estabelece a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2250977. Acesso em: 21 ago. 2020.
[v] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
[vi] SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho. Processo administrativo eletrônico. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
[vii] BRASIL. Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e remaneja e transforma cargos em comissão e funções de confiança. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.474-de-26-de-agosto-de-2020-274389226. Acesso em: 21 ago. 2020.
Read MoreA Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça uniformizou o entendimento da Corte sobre a polêmica extensão da penalidade de perda da função pública em virtude de ato de improbidade administrativa, prevista no artigo 12 da Lei nº 8.429/1992.
Recentemente, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) uniformizou o entendimento da Corte sobre a polêmica extensão da penalidade de perda da função pública em virtude de ato de improbidade administrativa, prevista no artigo 12 da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa).
Em Embargos de Divergência opostos em sede do Recurso Especial nº 1701967/RO[1], o Superior Tribunal de Justiça definiu que a penalidade em questão atinge não só o cargo ocupado pelo infrator no momento da prática da conduta ímproba, mas também se estende ao cargo público eventualmente ocupado por este no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória (artigo 20 da Lei de Improbidade Administrativa[2]).
A controvérsia foi julgada por maioria pelo colegiado dos órgãos especializados em Direito Público, tendo sido analisada em razão de divergência existente entre a Primeira e Segunda Turmas da Corte. No voto vencedor, o Ministro Francisco Falcão afirma que a sanção de perda do cargo tem por objetivo afastar dos quadros da Administração Pública o agente que apresentou conduta ímproba e carência ética para o exercício da função pública. Por essa lógica, defendeu que a penalidade em questão deve abranger toda e qualquer atividade que o agente esteja exercendo no momento do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Considerando que o objetivo da perda do cargo é o de salvaguardar a Administração de agentes que demonstrem “pouco ou nenhum apreço pelos princípios regentes da atividade administrativa”[3], a penalidade deve atingir não só o cargo ocupado no momento da prática do ato ímprobo, como também eventual outra função pública que esteja sendo exercida, uma vez que a improbidade não está ligada ao cargo em si, mas à própria atuação desse agente na Administração Pública.
Portanto, prevaleceu o entendimento que vinha sendo adotado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, que pode ser representado pelo seguinte julgado:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. COBRANÇA DE PROPINA. […] PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. ART. 12 DA LEI 8.429/1992. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. SÚMULA 7/STJ. […]
5. A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e afastar da atividade pública todos os agentes que demonstraram pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida.
6. A sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível.
7. Não havendo violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, modificar o quantitativo da sanção aplicada pela instância de origem, no caso concreto, enseja reapreciação dos fatos e provas, obstado nesta instância especial (Súmula 7/STJ).
8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.[4]
No caso analisado e julgado, discute-se a extensão da sanção de perda da função pública à ex-policial federal que se encontrava exercendo o cargo de Defensor Público ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória.
De toda forma, embora se trate de uma uniformização da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível que, em algum momento, a questão seja levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para análise da constitucionalidade da extensão da penalidade.
Vale ressaltar, ainda, que a prática de ato de improbidade administrativa não acarreta, automaticamente, a necessidade de aplicação da penalidade de perda da função pública, uma vez que a própria Lei nº 8.429/1992 determina que o juiz deverá, na fixação das penas, levar em conta “a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”.
Nesse sentido, considerando que o acórdão prolatado pela Primeira Seção do STJ ainda não foi disponibilizado (em 16/9/2020), ainda não está claro se o entendimento que prevaleceu, além de confirmar a abrangência da perda de função pública atualmente ocupada, também veda a hipótese de que um juiz, com base nos elementos do caso concreto e em atenção à razoabilidade e proporcionalidade entre conduta e sanção, restrinja a condenação ao cargo que serviu como instrumento para a prática do ato de improbidade.
[1] Informações obtidas por meio de notícia veiculada no site do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Cf. http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16092020-Perda-de-funcao-publica-por-improbidade-atinge-qualquer-outro-cargo-ocupado-no-momento-da-condenacao-definitiva.aspx. Acesso em 16 set. 2020.
[2] Art. 20. A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Parágrafo único. A autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual.
[3] ANDRADE, Landolfo. Aplicabilidade da sanção de perda da função pública sobre qualquer função exercida pelo agente ímprobo ao tempo do trânsito em julgado da decisão condenatória. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/07/23/sancao-perda-da-funcao-publica/.
[4] STJ, REsp 1297021/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/11/2013.
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