
Obrigatoriedade de diligência prévia na desclassificação de propostas inexequíveis, conforme a Lei 14.133/2021
Introdução
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) trouxe importantes inovações, dentre elas um critério objetivo para identificar propostas possivelmente inexequíveis (ou seja, de valor tão baixo que seriam inexequíveis na prática).
No entanto, longe de permitir a desclassificação automática dessas propostas, a lei e a jurisprudência exigem que a Administração Pública realize uma diligência prévia antes de inabilitar (desclassificar) uma proposta por inexequibilidade. Em recente decisão (Acórdão 803/2024 do Tribunal de Contas da União – TCU), essa obrigatoriedade foi reforçada, consolidando o entendimento de que o órgão licitante deve oportunizar ao licitante a chance de comprovar a viabilidade de sua oferta.
Neste artigo, será explorado o contexto legal e jurisprudencial desse tema, as implicações práticas para as empresas licitantes e exemplos de como a atuação jurídica especializada pode proteger os interesses do licitante. Veremos a definição de proposta inexequível, a análise do §4º do art. 59 da Lei 14.133/21, o papel da diligência prévia, os riscos da desclassificação automática e boas práticas para licitantes.
Proposta inexequível: conceito e critério legal na Lei 14.133/2021
Em licitações públicas, considera-se inexequível a proposta cujo preço é tão baixo que não permitiria a execução satisfatória do objeto licitado. Em outras palavras, é uma oferta antieconômica ou inviável, que levanta suspeitas de que o licitante não conseguirá cumprir o contrato por aquele valor.
A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 59, traz parâmetros objetivos para identificar possíveis propostas inexequíveis, especialmente em contratos de obras e serviços de engenharia. O §4º do art. 59 estabelece que, “No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”. Ou seja, a nova lei fixa um limite percentual (75% do orçamento estimado) abaixo do qual a proposta deve ser tratada com suspeita de inexequibilidade.
Exemplo prático: Suponha que a Administração estime que determinada obra de engenharia custe R$ 1.000.000,00. Se um licitante apresentar proposta de valor inferior a R$ 750.000,00 (75% do orçamento), essa oferta se enquadrará como potencialmente inexequível segundo o critério legal. Nessa situação, a proposta não pode ser simplesmente descartada de imediato, mas sim avaliada com maior cuidado mediante diligências.
Importante destacar que esse critério objetivo não significa que qualquer proposta abaixo de 75% do orçamento seja inexequível em termos absolutos, mas apenas que presume-se sua inexequibilidade até prova em contrário. A experiência prática demonstra que podem existir justificativas legítimas para um preço significativamente inferior, como tecnologias inovadoras que reduzem custos, condições comerciais vantajosas, estoque de materiais a preços baixos, estratégia empresarial de menor margem de lucro para entrar no mercado, entre outros. Por isso, é necessário analisar caso a caso se aquela oferta pode, de fato, ser executada pelo proponente.
Essa compreensão de que o parâmetro numérico gera apenas uma presunção relativa não é nova. A antiga Lei nº 8.666/1993 (agora revogada) já previa critério semelhante (70% em obras de engenharia, conforme seu art. 48, §1º, alínea a e b) e, naquela época, o TCU firmou entendimento de que esse era um indicador relativo, não uma regra absoluta.
Esse entendimento foi consolidado na Súmula 262 do TCU, a qual enuncia que “o critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta”. Em suma, já na vigência da lei antiga ficou assente que a Administração deve permitir que o proponente com preço suspeito demonstre que, apesar de baixo, seu preço é viável.
A Lei 14.133/2021 seguiu filosofia semelhante: embora tenha fixado um critério objetivo (75% do orçamento) para alertar sobre possível inexequibilidade, ela contém dispositivos que asseguram a possibilidade de o licitante provar a exequibilidade da sua proposta. Esses dispositivos impõem, como veremos a seguir, um verdadeiro dever de diligência prévia por parte do órgão público antes de efetivar a desclassificação.
Aplicação da IN nº 73/2022 na Inexequibilidade de Propostas para Bens e Serviços Comuns
A Instrução Normativa SEGES/MGI nº 73/2022 trouxe, no âmbito das licitações de bens e serviços comuns, um critério objetivo para identificar propostas presumivelmente inexequíveis. De acordo com o art. 34 dessa IN, considera-se indício de inexequibilidade qualquer proposta cujo valor seja inferior a 50% do valor estimado (orçado) pela Administração.
Em outras palavras, uma oferta abaixo de metade do preço de referência do edital é automaticamente sinalizada como possivelmente inviável.
Importa destacar que a IN 73/2022 adota o termo indício, indicando que esse critério de 50% serve como uma presunção relativa – um alerta inicial, não uma desclassificação automática. Tanto é que a própria norma exige, no parágrafo único do art. 34, a realização de diligência antes de confirmar a inexequibilidade, a fim de verificar objetivamente a capacidade de execução daquela proposta de baixo valor.
Nesse procedimento, o agente de contratação (pregoeiro) deverá averiguar se os custos do licitante ultrapassam o valor ofertado e se inexistem ganhos ou fatores compensatórios (custos de oportunidade) que justifiquem o preço tão reduzido. Somente se a diligência comprovar que o licitante não teria como cumprir o contrato sem incorrer em prejuízo (ou sem um motivo econômico válido para ofertar tão abaixo do mercado) é que a proposta será formalmente declarada inexequível e desclassificada.
É importante comparar esse critério dos 50% da IN 73/2022 com o parâmetro estabelecido na Lei nº 14.133/2021, especificamente no §4º do art. 59, que trata da inexequibilidade em obras e serviços de engenharia.
A Lei 14.133/21 determina que, no caso de contratos de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas com valores inferiores a 75% do valor orçado pelo órgão público. Ou seja, para obras e serviços de engenharia, a própria lei fixou um limite de 75% do orçamento como piso de viabilidade – qualquer proposta abaixo disso é presumida inexequível de acordo com a legislação.
Trata-se de um parâmetro mais rigoroso do que o aplicado a bens e serviços comuns (75% contra 50%), refletindo a natureza distinta desses objetos.
Bens e serviços comuns geralmente permitem margens de desconto maiores devido à padronização e competitividade de mercado, de modo que preços muito baixos (até certa medida) podem ainda ser exequíveis.
Já obras e serviços de engenharia envolvem custos fixos significativos, riscos e complexidades que tornam impraticáveis descontos tão expressivos – daí o limite mais elevado de 75%.
Em síntese, conforme o tipo de objeto licitado, aplica-se um critério distinto de inexequibilidade: nas licitações de itens comuns vale a regra dos 50% do estimado (conforme a IN 73/2022), ao passo que nas contratações de obras/engenharia vigora a regra dos 75% do estimado (conforme a Lei 14.133).
Vale lembrar ainda que a Lei 14.133/2021 não estipulou um percentual fixo para bens e serviços em geral, lacuna essa preenchida, no âmbito federal, pela IN 73/2022. Assim, cada modalidade de objeto possui sua faixa de alerta: abaixo de 50% para itens comuns, abaixo de 75% para engenharia – sempre exigindo a análise adequada da viabilidade antes de qualquer decisão definitiva.
Exemplo prático: Considere uma licitação para fornecimento de 100 unidades de determinado equipamento, com valor estimado oficial de R$ 100.000,00. Suponha que o Licitante A apresente uma proposta de R$ 48.000,00, equivalente a 48% do valor orçado. Segundo o critério da IN 73/2022, essa oferta está abaixo do limite de 50%, configurando um forte indício de inexequibilidade. Nessa situação, o pregoeiro (agente de contratação) deve instaurar diligência para que o Licitante A comprove como será possível executar o objeto por esse preço extraordinariamente baixo. O licitante poderá, por exemplo, apresentar uma planilha detalhada de custos, demonstrando que obteve preços excepcionais de insumos ou que dispõe de estoque e logística eficiente, de forma que seus custos totais fiquem dentro do valor proposto. Poderá ainda alegar alguma estratégia comercial específica – como vender sem margem de lucro imediata visando benefícios futuros (ganhar mercado, publicidade, etc.) – o que se enquadraria em “custos de oportunidade” justificadores da oferta atípica. Caso o Licitante A comprove satisfatoriamente a exequibilidade (viabilidade) da proposta nesse procedimento de diligência, sua oferta deverá ser mantida na disputa. Por outro lado, se não conseguir demonstrar de forma convincente que executará o contrato por R$ 48 mil sem prejuízo ou quebra da qualidade, a administração desclassificará a proposta por inexequibilidade. Note que, sem esse rito de verificação, a proposta poderia ser sumariamente excluída por estar abaixo de 50%, mas a IN 73/2022 garante ao licitante essa oportunidade de esclarecimento antes da desclassificação.
O dever de diligência prévia no art. 59 da Lei 14.133/2021
A nova Lei de Licitações também deixou claro nos seus próprios termos que a Administração Pública tem o dever de verificar a exequibilidade das propostas suspeitas, em vez de simplesmente desclassificá-las de plano. Duas previsões do art. 59 são centrais aqui:
- Art. 59, inciso IV: determina a desclassificação das propostas que “não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração”. Ou seja, a Administração pode exigir que o licitante demonstre a viabilidade de sua oferta; se ele não conseguir demonstrar quando exigido, aí sim sua proposta será desclassificada como inexequível.
- Art. 59, §2º: dispõe que “a Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo”. Em outras palavras, a lei faculta (e implicitamente obriga, diante do interesse público) que a equipe de licitação realize todas as verificações necessárias junto ao licitante para confirmar se a proposta é exequível.
Essas regras deixam claro que o critério de 75% do §4º não implica uma desclassificação imediata. Trata-se de uma presunção relativa de inexequibilidade que aciona o dever de verificação.
Portanto, cabe à Administração promover diligências quando se deparar com uma proposta abaixo do patamar indicativo. Na prática, essa diligência prévia envolve medidas como:
- Solicitação formal de esclarecimentos e documentos ao licitante, referentes à formação de seu preço. Por exemplo, pedir planilhas de composição de custos, notas fiscais de insumos, comprovantes de que o licitante possui condições especiais (descontos de fornecedores, estrutura própria, menor carga tributária etc.) que justifiquem o preço ofertado.
- Análise técnica detalhada dos elementos apresentados. A comissão de licitação deve verificar se os custos alegados são compatíveis com os de mercado, se as quantidades e produtividade estimadas pelo licitante são razoáveis, e se a margem de lucro (se houver) está dentro de um patamar realista.
- Comparação com parâmetros externos, quando possível. A Administração pode confrontar os dados do licitante com referências de preços em bancos de dados públicos, contratos similares já executados, tabelas oficiais (por exemplo, SINAPI para construção civil, em se tratando de obras) etc., para aferir a coerência da proposta.
- Decisão fundamentada: Após a análise, se ficar demonstrado que, apesar de estar abaixo de 75% do orçamento, a proposta é exequível, a empresa não poderá ser desclassificada por preço inexequível. Por outro lado, se o licitante não conseguir comprovar de forma satisfatória a viabilidade ou se ficar claro que os números não fecham (por exemplo, o custo dos insumos básicos já supera o valor proposto), aí sim a desclassificação por inexequibilidade estará amparada, devendo ser formalizada com a devida justificativa.
Resumidamente, a diligência prévia é a etapa em que se verifica, de maneira transparente e técnica, se a oferta aparentemente muito baixa pode ser sustentada na execução do contrato. Essa exigência não é apenas uma opção da Administração, mas configura um verdadeiro dever, visto que decorre do princípio do procedimento formal correto, do estímulo à competitividade e, até mesmo, dos direitos ao contraditório e ampla defesa do licitante.
Afinal, desclassificar um concorrente sem lhe dar chance de explicar seu preço equivaleria a uma sanção prematura e poderia eliminar indevidamente a proposta possivelmente mais vantajosa para a Administração.
Jurisprudência do TCU
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem se mostrado alinhada com essa leitura da lei, reforçando que o limite de 75% é uma presunção relativa e que a diligência prévia é obrigatória.
Como mencionado, a Súmula 262/TCU (editada em 2010 sob a égide da Lei 8.666) já estabelecia expressamente que a Administração deve oportunizar ao licitante a prova da exequibilidade da proposta suspeita. Com a vigência da Lei 14.133/2021, o TCU passou a enfrentar casos práticos envolvendo o novo critério de 75%, e suas decisões reafirmaram essa compreensão.
Destaca-se, em especial, o Acórdão 803/2024 – Plenário do TCU (relatado pelo Min. Benjamin Zymler, julgado em 24/04/2024), que abordou diretamente a interpretação do art. 59, §4º da Lei 14.133/21. Nesse caso, discutia-se uma possível contradição entre a lei e uma norma infralegal (Instrução Normativa Seges/MGI 2/2023) que autorizava a realização de diligências quando houvesse proposta inferior a 75% do orçamento. Alegava-se que a lei teria criado um critério absoluto (ou seja, abaixo de 75% seria inexequível sem discussão), de modo que a previsão de diligência na IN seria ilegal.
O TCU, contudo, afastou essa interpretação literal rígida do §4º. O plenário do Tribunal fez observações importantes: uma leitura inflexível do limite de 75% poderia, na verdade, prejudicar a competição e até contrariar princípios constitucionais. Isso porque, se todos soubessem que ofertas abaixo de 75% seriam desclassificadas automaticamente, os licitantes tenderiam a não ofertar descontos além desse patamar – na prática, congelando o desconto máximo em 25%. Isso eliminaria a disputa por preços melhores, pois nenhum concorrente iria abaixo disso com medo de ser eliminado. Como resultado, muitos certames poderiam acabar empatados justamente nesse limite, forçando o uso de critérios de desempate. Segundo o TCU, tal cenário frustraria o objetivo da licitação de obter a proposta mais vantajosa e poderia até afrontar o princípio da economicidade e o dever de licitar previstos na Constituição.
Além disso, o Acórdão 803/2024 salientou que não cabe ao Estado uma tutela excessiva dos licitantes a ponto de fixar um corte absoluto para preços. Cada empresa conhece sua estrutura de custos e suas estratégias. Um critério legal fixo não consegue abarcar todas as nuances da atividade econômica. Citou-se, por exemplo, a situação de uma empresa que deliberadamente faz uma proposta muito barata visando obter experiência ou um atestado técnico, mesmo arcando com pouco ou nenhum lucro – uma decisão empresarial válida em certos contextos. Se a Administração impuser um paternalismo exagerado, poderia estar interferindo indevidamente na liberdade do setor privado assumir riscos calculados.
Por outro lado, o TCU reconheceu que propostas excessivamente baixas podem ocultar intenções prejudiciais, aludindo ao chamado “risco moral”. Esse risco ocorre quando o licitante assume postura irresponsável por saber que, se não conseguir cumprir o contrato, as consequências podem recair em parte sobre a Administração (por exemplo, ele abandona a obra após executar a parte mais lucrativa, deixando o restante para ser contratado de emergência, ou então ganha a licitação barato já contando em pedir aditivos ilegais posteriormente para aumentar o valor). Porém, conforme frisou o Acórdão 803/2024, a solução para coibir esse risco moral não é fixar um critério inflexível de preço, mas sim aprimorar os procedimentos de análise e fiscalização. Ou seja, cabe à Administração, no momento da licitação e da execução contratual, ser rigorosa na avaliação das propostas (incluindo exigência de demonstração de exequibilidade) e no acompanhamento do contrato, de modo a evitar comportamentos oportunistas.
Em conclusão, o TCU julgou improcedente a representação que alegava a ilegalidade das diligências e afirmou, em caráter pedagógico, que o §4º do art. 59 da Lei 14.133 deve ser interpretado à luz do §2º do mesmo artigo. Não se trata de uma presunção absoluta de inexequibilidade, mas relativa. O resultado prático desse entendimento é: sempre que uma proposta estiver abaixo do referencial de 75%, a Administração deve acionar o mecanismo da diligência, dando oportunidade ao licitante de comprovar a exequibilidade da sua oferta, em atenção ao que determinam o inciso IV e o §2º do art. 59.
Somente após essa apuração, e caso o proponente não consiga dissipar as dúvidas sobre sua capacidade de executar pelo preço proposto, é que a desclassificação por inexequibilidade estará juridicamente respaldada.
Vale mencionar que esse posicionamento do Acórdão 803/2024 não é isolado. Outros precedentes do TCU, também já sob a vigência da Lei 14.133, seguem na mesma linha. Por exemplo, o Acórdão 465/2024-Plenário igualmente registrou que a regra do art. 59, §4º gera presunção relativa e impõe o dever de dar ao licitante a chance de demonstrar a viabilidade de sua proposta.
Para as empresas licitantes, essa jurisprudência é uma garantia de que seus direitos serão respeitados: se oferecerem um preço agressivo (baixo), não poderão ser eliminadas sumariamente sem chance de se defender. Contudo, também traz responsabilidades, pois caberá a elas reunir e apresentar elementos técnicos convincentes quando forem chamadas a justificar seus preços.
Jurisprudência do TCU: reforço à presunção relativa e à obrigatoriedade de diligência
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tem se consolidado no sentido de que o limite de 75% do valor estimado, previsto no §4º do art. 59 da Lei nº 14.133/2021, bem como o de 50% previsto no art. 34 da Instrução Normativa SEGES/MGI nº 73/2022, configuram apenas uma presunção relativa de inexequibilidade, e não uma presunção absoluta. Assim, impõe-se à Administração Pública o dever de realizar diligência prévia, sempre que a proposta apresentar indícios de inexequibilidade com base nesse parâmetro.
Essa orientação encontra respaldo desde a Súmula 262/TCU, editada sob a égide da antiga Lei nº 8.666/1993, que já reconhecia a necessidade de oportunizar ao licitante a demonstração da exequibilidade da proposta suspeita. Com a vigência da nova lei, o TCU reafirmou esse entendimento em diversas decisões relevantes.
Dentre elas, merece destaque o Acórdão nº 803/2024 – Plenário do TCU (rel. Min. Benjamin Zymler), que enfrentou diretamente o tema da interpretação do §4º do art. 59. Na ocasião, afastou-se a tese de que a norma teria criado um critério absoluto de desclassificação automática, ao reconhecer que a realização de diligência para apuração da viabilidade econômica da proposta é obrigatória, mesmo quando esta se encontrar abaixo do limite de 75%.
O Tribunal ressaltou que uma leitura inflexível do dispositivo legal poderia restringir indevidamente a competitividade, ao desencorajar propostas com descontos mais agressivos. Além disso, apontou que o papel do Estado não é exercer tutela paternalista sobre os licitantes, mas sim assegurar que propostas exequíveis e vantajosas tenham a oportunidade de prevalecer — desde que o proponente consiga comprovar tecnicamente sua capacidade de execução.
Mais recentemente, essa jurisprudência foi reforçada com ainda mais clareza pelo Acórdão nº 214/2025 – Plenário do TCU, que deve ser considerado como o precedente mais atual e contundente sobre o tema. Nesse julgamento, o Tribunal reiterou que a Administração não pode desclassificar proposta com fundamento exclusivo no §4º do art. 59 da Lei 14.133/2021, sem antes oportunizar ao licitante a demonstração da exequibilidade por meio de diligência, sob pena de violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da busca pela proposta mais vantajosa.
O acórdão foi categórico ao afirmar que a interpretação sistemática dos §§2º e 4º do art. 59 conduz à obrigatoriedade de diligência sempre que houver dúvida quanto à exequibilidade da proposta. Ressaltou-se, inclusive, que essa etapa é condição de validade da própria desclassificação, sob pena de nulidade do ato.
Para as empresas licitantes, essa jurisprudência representa uma dupla garantia: o direito de defender propostas competitivas e o dever de estar preparadas para justificar, com base técnica, a viabilidade econômica da sua oferta.
Riscos da desclassificação automática sem diligência
Desconsiderar esse dever de diligência prévia e partir para a desclassificação automática de uma proposta suspeita de inexequível representa um grave risco jurídico e prático tanto para a Administração quanto para os licitantes envolvidos. Dentre os principais problemas de uma inabilitação sumária sem observância do procedimento adequado, destacam-se:
- Nulidade do ato e do certame: Uma desclassificação feita em desacordo com a Lei 14.133/21 e a jurisprudência do TCU pode ser declarada inválida. O licitante prejudicado tem o direito de apresentar recurso administrativo no próprio processo licitatório, alegando a irregularidade (violação do art. 59, §2º e inc. IV). Caso a comissão de licitação mantenha a decisão ilegal, é possível buscar a anulação do ato via representação aos órgãos de controle (como o TCU ou os Tribunais de Contas estaduais/municipais) ou mesmo por ação judicial.
- Violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa: A Constituição Federal (art. 5º, LV) assegura o direito ao contraditório e à ampla defesa nos processos administrativos. Embora um julgamento de propostas não seja um “processo sancionador” típico, a exclusão de uma proposta legítima sem chance de defesa fere o senso de justiça procedimental. Os órgãos de controle e o Poder Judiciário têm reconhecido que o licitante deve ser ouvido quanto à viabilidade de sua proposta antes de ser afastado, sob pena de ofensa a princípios basilares do Direito Administrativo.
- Prejuízo à competitividade e à economicidade: Como apontado pelo TCU, eliminar automaticamente propostas abaixo de certo patamar pode distorcer o jogo competitivo. Em vez de incentivar descontos maiores (beneficiando a Administração com preços mais baixos), um critério rígido desestimula propostas ousadas. Isso significa que a Administração pode acabar pagando mais caro por contratar uma proposta “segura” (acima de 75%) quando poderia ter obtido uma oferta válida de menor valor. Ou seja, a falta de diligência pode levar à contratação de uma proposta menos vantajosa economicamente, contrariando o princípio da busca da proposta mais vantajosa.
- Risco de responsabilização do agente público: Os agentes da comissão de licitação ou o pregoeiro que deixarem de realizar diligência e efetuarem uma desclassificação indevida podem ser responsabilizados. O TCU já qualificou a desclassificação sem diligência como irregularidade passível de apontamento em auditorias. Em casos graves, isso pode levar a sanções aos responsáveis, como multas ou determinações de correção do procedimento.
- Imagem e confiança no processo licitatório: Para os licitantes, ver propostas descartadas sem análise gera desconfiança na lisura do certame. Empresas idôneas podem se sentir desestimuladas a participar de futuras licitações daquele órgão, receosas de arbitrariedades. A longo prazo, isso reduz a competição nos certames, o que também prejudica a Administração.
Em face desses riscos, fica evidente que não compensa “queimar etapas”. O procedimento correto – isto é, investigar a exequibilidade por meio de diligência – não é burocracia excessiva, mas sim uma garantia de segurança jurídica e de decisão acertada. Inclusive, a diligência bem conduzida não tende a alongar demasiadamente o certame; pelo contrário, pode evitar impugnações e atrasos futuros. Muitas vezes, basta conceder ao licitante um prazo curto (24 ou 48 horas) para apresentar esclarecimentos/documentos, analisar rapidamente em seguida, e então tomar a decisão fundamentada. Esse pequeno investimento de tempo previne uma série de problemas maiores adiante.
Do ponto de vista do licitante, caso ele seja vítima de uma inabilitação por inexequibilidade sem ter havido diligência, é crucial que saiba que pode e deve reagir. Os caminhos incluem interpor recurso administrativo contra a desclassificação, juntando toda a documentação que comprove a exequibilidade e citando a legislação e precedentes do TCU favoráveis. Se mesmo assim não for revertido, buscar a via judicial ou representação ao TCU são alternativas. Nessas horas, contar com assessoria jurídica especializada, como a do Schiefler Advocacia, faz a diferença para reverter o quadro com rapidez e efetividade.
Boas práticas para licitantes: preparando-se para comprovar a exequibilidade
Para as empresas que participam de licitações, especialmente em setores de obras e engenharia (onde o critério de 75% se aplica), seguem algumas boas práticas a adotar visando prevenir problemas com alegações de inexequibilidade e se proteger caso elas surjam:
- Elaboração cuidadosa da proposta: Antes de tudo, o licitante deve montar sua proposta de preço com base em uma planilha de custos realista. Identifique todos os custos diretos (materiais, mão de obra, equipamentos, logística) e indiretos, tributos incidentes, margens etc. Se o preço final ofertado for muito baixo em relação ao orçamento público, certifique-se de que internamente você consegue justificar cada cifra. Isso já serve de preparação para uma eventual diligência.
- Documentação de suporte pronta: Tenha à mão documentos que possam comprovar condições vantajosas da sua empresa. Por exemplo: cotações de fornecedores com valores menores que os usuais, demonstrações de eficiência produtiva, comprovantes de estoque próprio de material, contratos anteriores em que executou serviço similar por preço equivalente, enfim, qualquer evidência de que você consegue realizar pelo valor proposto. Essa documentação poderá ser apresentada rapidamente se a comissão solicitar esclarecimentos.
- Atenção ao edital e comunicações da licitação: O edital pode prever expressamente como será avaliada a exequibilidade e quais documentos podem ser exigidos. Siga essas regras. Além disso, fique atento durante a sessão ou fase de julgamento: se o pregoeiro/comissão mencionar suspeita de inexequibilidade, esteja pronto para requerer a oportunidade de demonstrar sua exequibilidade (caso não seja automaticamente concedida). Faça constar em ata, se possível, seu compromisso de apresentar justificativas.
- Responda prontamente às diligências: Se a Administração abrir diligência para comprovação de exequibilidade, observe rigorosamente o prazo concedido e responda de forma completa. Entregue todos os documentos solicitados e, se cabível, acrescente uma explicação por escrito, clara e objetiva, indicando como chegou àquele preço e porque ele é exequível. Essa resposta bem fundamentada frequentemente é suficiente para convencer a comissão e evitar a desclassificação.
- Recurso bem fundamentado em caso de desclassificação indevida: Caso, apesar de tudo, sua proposta seja desclassificada sem chance de esclarecimento (ou você julgue que a avaliação foi equivocada), interponha recurso administrativo. Demonstrar conhecimento técnico-jurídico firme pode fazer a própria Administração reconsiderar a decisão, evitando escalonar o conflito.
- Assessoria jurídica especializada: Conte com apoio de advogados experientes em licitações antes, durante e depois do certame. Essa parceria preventiva pode evitar que o problema de inexequibilidade sequer aconteça, ou tratar rapidamente dele se surgir, protegendo sua posição no certame.
Adotando essas boas práticas, o licitante minimiza consideravelmente o risco de ser surpreendido por uma inabilitação por inexequibilidade. E mesmo que seus preços agressivos despertem questionamentos, estará bem aparelhado para demonstrar a viabilidade e assegurar sua vitória legítima na licitação.
A participação em licitações públicas envolve desafios técnicos e jurídicos significativos, sobretudo diante da possibilidade de desclassificação por inexequibilidade. Nesse contexto, contar com uma assessoria jurídica especializada, como a oferecida pelo Schiefler Advocacia, é fundamental para proteger os interesses das empresas licitantes. Atuamos desde a análise preventiva dos editais e elaboração estratégica das propostas, passando pelo acompanhamento criterioso do certame e intervenções técnicas imediatas, até a apresentação robusta de justificativas técnicas e recursos administrativos contra decisões indevidas.
Além disso, nossa equipe está preparada para representar empresas perante Tribunais de Contas e Poder Judiciário, sempre embasada em sólida argumentação jurídica e técnica, amparada pela mais recente jurisprudência do TCU. Nossa atuação continua na fase contratual, garantindo apoio jurídico em situações que demandem reequilíbrio econômico-financeiro e renegociações, assegurando, assim, a execução sustentável e vantajosa dos contratos administrativos.
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