A consolidação do entendimento por meio de enunciado foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
Enunciado 5 – O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A Lei nº 13.019/2014, também conhecida como o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, é a norma legal que dispõe sobre as relações de parceria entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil – OSC e que estabelece os parâmetros que devem ser observados pelos entes públicos e privados, em prol de atribuir às parcerias uma maior transparência, eficiência e controle.
Como se vê do seu artigo 1º, esta Lei se presta a instituir “normas gerais para as parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação.”.
Do artigo 2º da norma, é possível observar uma série de conceitos atinentes à matéria, buscando delimitar com acurácia as definições e institutos que são legalmente regulados. Por exemplo, o conceito de organização da sociedade civil: que é fundamental para a compreensão deste texto e que está previsto no inciso I do artigo 2º, in verbis:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
I – organização da sociedade civil: (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999 ; as integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à pobreza e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social. (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
Acontece que, como é comum no Direito brasileiro, muitos conceitos constantes de dispositivos normativos, pela amplitude semântica de sua redação, são responsáveis por causar debates jurisprudenciais e acadêmicos sobre a forma considerada correta de interpretá-los.
Não é diferente com a definição trazida pelo artigo 2º, inciso IV, sobre quem deve ser considerado “dirigente” de uma OSC:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
IV – dirigente: pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil, habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
Veja-se que o atual conceito trazido pela Lei nº 13.019/2014 é aquele definido pela alteração imposta pela Lei nº 13.204/2015. Anteriormente, quando da edição do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, o inciso IV do artigo 2º era simplório, prevendo apenas que é considerado dirigente a “pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil”.
Ou seja, com a adição textual da alteração normativa, detalhou-se o conceito para evidenciar que dirigente é a pessoa que, tendo poderes de administração, gestão ou controle, está “habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros”.
Contudo, a controvérsia conceitual ainda persistiu, residindo principalmente na possibilidade de se considerar membros de alguns órgãos específicos das organizações da sociedade civil (como os Conselhos Consultivo, Fiscal ou Curador) como “dirigentes” para fins da Lei nº 13.019/2014. Esta tese, inclusive, tornava-se ainda mais forte nas hipóteses em que o próprio estatuto social da OSC define como “dirigentes” os membros desses conselhos.
Em razão da importância do assunto, este tema foi proposto para discussão no âmbito da 1ª Jornada de Direito Administrativo do Conselho de Justiça Federal, tendo sido aprovado e publicado como o Enunciado 5:
Enunciado 5
O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
O texto enunciativo foi aprovado após intensos debates por especialistas em Direito Administrativo provenientes de todo o Brasil, de forma que entrou-se em consenso de que a definição de “dirigentes de organização da sociedade civil, estabelecido pelo artigo 2º, inciso IV, da Lei nº 13.019/2014, diz respeito àqueles profissionais com atuação efetiva na gestão executiva da entidade, não abarcando profissionais que exerçam funções meramente fiscalizadoras ou consultivas, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A consolidação do entendimento por meio de enunciado aprovado na 1ª Jornada de Direito Administrativo foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
A importância da segurança jurídica, especificamente quanto ao que versa o Enunciado 5, pode ser aferida dos ensinamentos de Marçal Justen Filho, segundo o qual a atuação das OSC deve ser regulada pelas regras do Direito Administrativo:
As atividades administrativas desenvolvidas fora dos limites da estrutura estatal devem ser disciplinadas pelo direito. A generosidade inerente à atuação não estatal de interesse coletivo não dispensa controle jurídico. A relevância da função não produz imunidade ao direito.
Existindo organizações estruturadas de modo estável e permanente para promover a satisfação de interesses coletivos e os direitos fundamentais, haverá a aplicação de princípios do direito administrativo.
Lembre-se, ademais, que as organizações da sociedade civil desenvolvem atuação que, muitas vezes, é onerosa – mas não na acepção de refletir uma organização empresarial privada. Trata-se da percepção de vantagens provenientes de cofres públicos, de recebimento de doações e assim por diante. Ainda que essas entidades não visem ao lucro, sua atuação é custeada por recursos públicos e privados. A gestão desses recursos se sujeita aos mesmos instrumentos de controle aplicáveis à atuação estatal.
Até é possível que, no futuro, a atividade administrativa não estatal seja disciplinada por um ramo especial do direito. Até que tal se configure, é necessário estender o direito administrativo para esse relevante segmento de atividades de interesse coletivo.[1]
A exata delimitação dos indivíduos que pertencem ao quadro das organizações da sociedade civil é relevante, também, porque a própria Lei nº 13.019/2014 prevê impedimentos de celebração de parceria entre Administração e OSC nos casos em que a entidade possuir, como dirigente, pessoa que ocupa determinados cargos ou que foi condenada pela prática de determinados atos. É o que dispõe o artigo 39:
Art. 39. Ficará impedida de celebrar qualquer modalidade de parceria prevista nesta Lei a organização da sociedade civil que: […]
III – tenha como dirigente membro de Poder ou do Ministério Público, ou dirigente de órgão ou entidade da administração pública da mesma esfera governamental na qual será celebrado o termo de colaboração ou de fomento, estendendo-se a vedação aos respectivos cônjuges ou companheiros, bem como parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o segundo grau; […]
VII – tenha entre seus dirigentes pessoa:
a) cujas contas relativas a parcerias tenham sido julgadas irregulares ou rejeitadas por Tribunal ou Conselho de Contas de qualquer esfera da Federação, em decisão irrecorrível, nos últimos 8 (oito) anos;
b) julgada responsável por falta grave e inabilitada para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, enquanto durar a inabilitação;
c) considerada responsável por ato de improbidade, enquanto durarem os prazos estabelecidos nos incisos I, II e III do art. 12 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.
§ 1º Nas hipóteses deste artigo, é igualmente vedada a transferência de novos recursos no âmbito de parcerias em execução, excetuando-se os casos de serviços essenciais que não podem ser adiados sob pena de prejuízo ao erário ou à população, desde que precedida de expressa e fundamentada autorização do dirigente máximo do órgão ou entidade da administração pública, sob pena de responsabilidade solidária.
§ 2º Em qualquer das hipóteses previstas no caput, persiste o impedimento para celebrar parceria enquanto não houver o ressarcimento do dano ao erário, pelo qual seja responsável a organização da sociedade civil ou seu dirigente. […]
§ 5º A vedação prevista no inciso III não se aplica à celebração de parcerias com entidades que, pela sua própria natureza, sejam constituídas pelas autoridades referidas naquele inciso, sendo vedado que a mesma pessoa figure no termo de colaboração, no termo de fomento ou no acordo de cooperação simultaneamente como dirigente e administrador público
O tema se torna ainda mais essencial quando se verifica que o Tribunal de Contas da União (TCU) possui entendimento consolidado de que é plenamente válida a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. É o que se verifica do Acórdão nº 1908/2019 do Plenário:
2. A tomada de contas especial foi instaurada em razão da omissão no dever de prestar contas da aplicação dos recursos que lhe foram repassados pelo Incra por força do Convênio CRT/RN/40.000/2006, que teve por objeto a prestação de assessoria social, técnica e jurídica a famílias acampadas, com vistas ao alcance das metas propostas no Plano Regional de Reforma Agrária para o Rio Grande do Norte.
3. Em sua peça recursal, o recorrente alega, em suma, a prescrição da pretensão de ressarcimento, questiona a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil e apresenta elementos novos com o objetivo de prestar contas e comprovar a execução das despesas (peças 62/73). […]
14. Da mesma forma, não merece prosperar o argumento de que é inconstitucional a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. Esta Corte de Contas já firmou entendimento contrário por meio da Súmula TCU 286, que assim se pronuncia: “A pessoa jurídica de direito privado destinatária de transferências voluntárias de recursos federais feitas com vistas à consecução de uma finalidade pública responde solidariamente com seus administradores pelos danos causados o erário na aplicação desses recursos”.[2]
Voltando-se ao conteúdo Enunciado 5, é de se notar que a sua redação repete como elemento caracterizador da figura do “dirigente” o exercício de atividades de administração, gestão e controle da organização, além dos poderes de representação da pessoa jurídica perante terceiros, exigindo que o profissional possua esses poderes para que lhe seja atribuído a roupagem da referida figura legal.
Nesse sentido, é ínsito apontar que a Lei decidiu por caracterizar o dirigente a partir do escopo das funções executivas a que esse se dedica, esclarecendo que o dirigente da OSC, nos termos da Lei, corresponde àquele profissional que é responsável pela administração, gestão e controle executivo da entidade, não abrangendo outros cargos que exerçam funções substancialmente distintas.
Essa definição, inclusive, está em conformidade com o entendimento da Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP e com o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), que definem, respectivamente, o dirigente como “pessoa física que detenha poderes de administração, gestão e controle da organização da sociedade civil”[3] e “pessoas que serão responsáveis pela direção da associação”[4].
Logo, conclui-se que quaisquer cargos de órgãos das organizações de sociedades civis que não exerçam atividades de gestão executiva estão fora do espectro conceitual de “dirigentes”, ainda que essa seja a designação atribuída pelo estatuto dessas entidades.
Como a Lei escolheu definir o dirigente pelo escopo das funções que este realiza, pouco importa o nome atribuído pelo estatuto a algum cargo de um órgão meramente fiscalizador ou consultivo, sendo determinante, para fins legais, apenas a capacidade de poder executivo e de representação que determinado cargo atribui, na prática, a um profissional dentro da estrutura da organização da sociedade civil.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 129-130.
[2] TCU, Acórdão nº 1908/2019, Plenário. Relator: ANA ARRAES, Data de Julgamento: 14/08/2019.
[3] OAB/SP, Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor. Guia Prático da Lei de Parcerias: Lei nº 13.019/2014. Outubro de 2017. p. 13.
[4] TCE/SP. Manual Básico de Repasses Públicos ao Terceiro Setor. Ano 2016. p. 20. Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/publicacoes/repasses_publicos_terceiro_setor.pdf. Acesso em 23 out. 2020.
Read More