
O sócio está pedindo documentos sigilosos e confidenciais da empresa, preciso garantir o acesso?
Uma dúvida que muitos administradores (inclusive sócio-administradores) têm quando questionados pelos sócios da empresa sobre a documentação social é se devem garantir o acesso integral e irrestrito às informações, inclusive as consideradas confidenciais e sigilosas.
Geralmente, a dúvida surge quando há algum tipo de tensão na sociedade, e um dos sócios desconfia do administrador ou dos outros sócios, e passa a atuar agressivamente, fazendo pedidos de exibição e elaboração de documentos de forma constante e injustificada.
De todo modo, a resposta a essa pergunta depende do tipo de sociedade adotado pelos sócios. Neste texto, trataremos das mais comuns no cenário brasileiro: sociedades empresariais de responsabilidade limitada (LTDA.) e sociedades anônimas (S/A ou companhias).
O dever de prestação de contas e exibição de documentos nas limitadas
Sempre se deve ter em mente que, regra geral, o acesso às informações e documentos das sociedades limitadas é um direito amplo e irrestrito do sócio. A ideia é que o administrador gerencia bens alheios (da sociedade), dos quais os sócios, por terem aportado valores na empresa, têm legítimo interesse em fiscalizar, inclusive imotivadamente.
Por isso, o Código Civil é bastante claro quando indica a necessidade de disponibilização aos sócios das seguintes informações: balanços patrimoniais e de resultado econômico, inventário anual, contas justificadas (artigo 1.020 do Código Civil), livros e documentos a eles referentes, estado de caixa e carteira da sociedade (artigo 1.021 do Código Civil), atas de assembleia ou reunião de sócios, contrato social, acordo de sócios e todos os demais documentos que devam surtir efeitos perante terceiros.
No entanto, como todo direito, existe a possibilidade do exercício abusivo (artigo 187 do Código Civil) do direito de exigir informações sociais.
E o exercício abusivo dos direitos de fiscalização dos sócios, como adiantado, costuma acontecer por razões políticas internas à sociedade, quando um sócio briga com os demais e passa a exigir documentos injustificadamente apenas para causar intriga, atrapalhar a gestão da empresa, desviar os esforços dos administradores para satisfazer seus pedidos mirabolantes e criar ares de ilegalidade, geralmente esperando alguma negativa dos administradores para fazer-se de vítima perante o Poder Judiciário.
Geralmente, nestes contextos, o sócio insatisfeito, por não ter provas de nenhuma ilegalidade na empresa, passa a exigir acesso a documentos e informações sigilosas, cujo acesso restringe-se à administração executiva da sociedade, apenas para obter uma negativa e ajuizar ação judicial contra os seus desafetos. Tratam-se de documentos relativos a segredos industriais, aqueles que não estão previstos em lei (para além dos listados acima) ou aqueles que sequer existem, e que o sócio exige a confecção por mero capricho.
Este tipo de atitude não deve ser tolerada, e os sócios e administradores que se sentirem ameaçados por atos desta natureza não só podem se recusar a fornecer o acesso aos documentos, como têm o dever de proibir que eles sejam apresentados aos sócios requisitantes.
Isso porque, sendo sigilosos, não deve ser franqueado o acesso amplo e irrestrito às informações que, se vazadas, podem causar dano ao patrimônio da sociedade ou beneficiar indevidamente os concorrentes. Neste sentido, a doutrina corrobora:
“(…) o abuso pode se positivar através de repetitivos e infundados pedidos de informações à administração social, turbando a normal condução da empresa ou exigindo gastos desarrazoados no atendimento de solicitações desprovidas de utilidade ou de escassa utilidade para o solicitante: a hipótese aqui, segundo anota António Menezes Cordeiro, é de desequilíbrio no exercício do direito de informação, pois “o sócio, para uma vantagem mínima, pede elementos que irão provar um esforço máximo à sociedade”. (ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria em direito societário, São Paulo: Malheiros, 2014. pg. 241.)
Portanto, nas sociedades limitadas, cabe fornecimento de acesso apenas aos documentos previstos em Lei, ainda que o sócio não justifique a medida. Todos os demais pedidos devem ser legitimamente fundamentados, sob pena de ser totalmente lícita a negativa de disponibilização irrestrita ao solicitante, se o administrador desconfiar das intenções do sócio.
O dever de prestação de contas e exibição de documentos nas companhias
Tudo o que foi dito sobre abuso de direito de requisição de informação para as sociedades limitadas aplica-se às sociedades anônimas. Mas não apenas, pois neste tipo societário a Lei das S/A (Lei nº 6.404/1976) foi além e criou mecanismos de defesa da sociedade contra o sócio que exige documentos sigilosos de forma infundada.
Nas S/A, regra geral, o acionista não tem direito de, individualmente e por conta própria, exigir dos administradores a apresentação de balanços, inventários, livros e estado de caixa e carteira da empresa a qualquer tempo. Para exigir a entrega de tais informações, deve obedecer ao artigo 105 da Lei das S/A ou aguardar a confecção dos balanços e prestações de contas a serem realizadas anualmente na Assembleia Geral Ordinária.
Diz o artigo 105 da Lei das S/A que o acionista só pode exigir a análise dos livros da companhia a qualquer tempo se, (i) for detentor de ações representativas de 5% ou mais do capital social (sozinho ou em conjunto com outros acionistas), (ii) ajuizar ação judicial neste sentido, e (iii) apoiar o pedido em fundada suspeita de irregularidade ou cometimento de ilícitos por qualquer dos órgãos da companhia.
Ainda que seja o caso de fornecer o acesso ao acionista, cabe ao administrador da S/A ponderar, assim como no caso das limitadas, se o fornecimento da informação é seguro e se não pode causar dano à companhia. Neste sentido:
“O administrador deverá, no entanto, a todo tempo verificar se as informações estão sendo solicitadas no uso das prerrogativas que a LSA confere a essas pessoas, dado que esses poderes de solicitar informação não são ilimitados e algumas vezes são utilizados para razões extrassociais (v. § 298). Nesse sentido, em certos casos, o administrador poderá e mesmo deverá recusar certas informações solicitadas, por estar convicto de que serão utilizadas com desvio ou que sua prestação contrariaria o interesse social (v. § 298)” (AMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias / coordenação – 2. ed., atual. e ref. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. pg. 835.)
Os acionistas interessados, portanto, não podem simplesmente exigir os documentos do administrador como acontece nas sociedades limitadas, pois devem aguardar o momento certo para isso que, via de regra, é na assembleia geral ordinária (deliberação em que poderão inclusive votar para desaprovar as contas, se houver irregularidades).
Conclusões
Principalmente nas sociedades limitadas, mas também em alguns casos nas sociedades anônimas, o dever de prestação de informações e apresentação de documentos é bastante amplo. O sócio requisitante, no entanto, deve exercer seu direito de forma razoável.
Por isso, é sempre recomendável consultar um advogado especialista para analisar, caso a caso, se as informações e os documentos devem ser compartilhados. Além de tudo, certas medidas podem ser tomadas para resguardar os interesses da sociedade.
Em qualquer caso, sempre que a empresa for garantir acesso a informações e documentos confidenciais aos sócios, pode e deve: (i) exigir a assinatura de termo de confidencialidade (ou “non disclosure agreement”, NDA), para poder exigir multas em caso de repasse indevido a terceiros ou de uso em atividade concorrente, (ii) impor restrições ao acesso a fim de evitar o embaraço ao regular funcionamento da empresa e da atividade dos administradores, como definição de horário, local e forma de acompanhamento, e (iii) impor a possibilidade de serem extraídas cópias, mas impedindo que os documentos originais sejam retirados da sede e controle da empresa.
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Tendências jurisprudenciais da responsabilidade civil de sócios: Encerramento irregular de sociedade empresária
No presente texto, discutiremos um pouco mais sobre uma das hipóteses que causam a responsabilização civil de sócios (talvez uma das mais comuns): o encerramento irregular da empresa. Anteriormente, tratamos sobre o caso dos sócios remissos e dos sócios que integralizam o capital social de forma irregular, bem como da responsabilização em caso de distribuição de lucros ilícitos ou fictícios. Vale conferir.
Naquelas oportunidades, diferenciamos duas espécies de responsabilização de sócios: (i) pela responsabilização direta por obrigação própria, quando o sócio infringe dever legal, contratual ou extracontratual por ele pessoalmente assumido no contexto empresarial; e (ii) pela responsabilização indireta, quando alguma exceção legal (geralmente por ato fraudulento) afasta a autonomia patrimonial da sociedade e o sócio passa a responder pessoalmente por dívidas da sociedade.
No caso da responsabilização por encerramento irregular de sociedade empresária, a modalidade tratada é a responsabilização indireta. Quando ocorrida, o sócio passa a responder pelas dívidas contraídas pela empresa.
O encerramento irregular das sociedades empresárias
O ordenamento jurídico brasileiro regula várias formas e procedimentos para encerrar corretamente uma sociedade empresária: (i) pela anulação judicial, quando constituída irregularmente, (ii) pela liquidação, quando solvente a empresa, (iii) pela falência, quando insolvente, e (iv) por operações societárias que extingam a personalidade jurídica, como a fusão, a incorporação e a cisão.
Os motivos para a extinção podem ser vários: exaurimento dos fins, vontade dos sócios, conclusão do objeto social, vencimento do prazo determinado, crise irreversível, dentre vários outros.
De todo modo, o encerramento regular da sociedade deve respeitar as formalidades exigidas em Lei, que busca sempre preservar os interesses dos credores da empresa. Seja na liquidação, na falência ou nas operações de reestruturação societária, o credor tem meios de impugnar a medida e exigir o pagamento de seu crédito antes da distribuição de valores aos sócios da empresa em processo de extinção.
No entanto, é muito comum que os sócios simplesmente abandonem a sociedade, mantendo-a ativa apenas formalmente nos registros estatais (Receita e Juntas Comerciais), em especial quando a empresa tem dívidas relevantes que não podem ser pagas. Por temor ao estigma da falência, o sócio prefere ignorar a sociedade e deixar que o destino tome conta da sua extinção.
No entanto, a jurisprudência vem combatendo este tipo de atitude e, por considerá-la um ato de negligência antijurídica dos sócios para com os credores, acaba por ordenar a execução do patrimônio pessoal dos sócios pelas dívidas sociais. Abaixo, comentaremos alguns entendimentos importantes nesse sentido.
Divergência sobre a necessidade de desconsideração da personalidade jurídica
Existe controvérsia jurisprudencial sobre a necessidade de desconsideração da personalidade jurídica para que os sócios de sociedade irregularmente dissolvida sejam chamados a responder pelos débitos da empresa. Em sentido favorável pela dispensa de desconsideração (mero direcionamento da execução):
AGRAVO DE INSTRUMENTO – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – RECURSO DO EXECQUENTE – PEDIDO DE INCLUSÃO DO SÓCIO DA AGRAVADA – PROVAS CABAIS DE ENCERRAMENTO IRREGULAR DA EMPRESA – DESNECESSIDADE DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – MERA SUCESSÃO PROCESSUAL – RESPONSABILIDADE ILIMITADA DOS SÓCIOS Dissolução irregular da sociedade que permite o redirecionamento da execução ao sócio, que passa a responder de forma ilimitada pela obrigação ( CC, arts. 1.080 e 1.110), sem necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, por se tratar de mera sucessão processual ( CPC, art . 110). Precedentes deste E. TJSP. RECURSO PROVIDO. (TJ-SP – AI: 20149427120218260000 SP 2014942-71.2021.8.26 .0000, Relator.: Maria Lúcia Pizzotti, Data de Julgamento: 22/03/2021, 30ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/03/2021.)
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO – TÍTULO EXTRAJUDICIAL – NÃO LOCALIZAÇÃO DE BEM PARA PENHORA –– ENCERRAMENTO IRREGULAR DA PESSOA JURÍDICA – SUCESSÃO PROCESSUAL – RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS SÓCIOS- CABIMENTO. – Execução de título extrajudicial – Tentativas infrutíferas de localização de bens da executada – Empresa encerrada irregularmente – Ocorrência – Responsabilização solidária de seus sócios pela dívida da empresa- Cabimento da sucessão processual – Inteligência dos artigos 110 CPC e 1.080 CC: – Diante da dissolução irregular da pessoa jurídica, cabível a sucessão processual pelos sócios no polo passivo da demanda. Exegese do art . 110 do Código de Processo Civil. Ato irregular que atrai a incidência do art. 1.080 do Código Civil . RECURSO PROVIDO. (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2174304-41.2023.8 .26.0000 São Bernardo do Campo, Relator.: Nelson Jorge Júnior, 13ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 15/12/2023.)
Em sentido contrário, defendendo a inexistência de sucessão processual e impossibilidade de redirecionamento da execução sem prévia desconsideração da personalidade jurídica:
EXECUÇÃO – A extinção da sociedade empresária equivale à morte da pessoa natural prevista no art. 110, do CPC/2015, não havendo impedimento ao prosseguimento da ação mediante a substituição processual e a inclusão dos sócios no polo passivo quando do encerramento regular das atividades da pessoa jurídica – A dissolução irregular da pessoa jurídica, por si só, não enseja a desconsideração da personalidade jurídica relativa à responsabilidade contratual de natureza civil, caso dos autos, regulada pelo disposto no art. 50, do CC, que adotou a teoria maior da desconsideração, o que afasta a aplicação da Súmula 435/STJ, afeta à teoria menor da desconsideração, incidente nas responsabilidades decorrente do direito tributário, ambiental ou do consumidor – Descabida a inclusão dos sócios da devedora no polo passivo da ação de execução de origem, tendo em vista que não houve a dissolução regular da sociedade empresária – Dissolução irregular da pessoa jurídica não autoriza a aplicação do art. 110, CPC . Recurso desprovido. (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 22298192720248260000 Lençóis Paulista, Relator.: Rebello Pinho, Data de Julgamento: 22/08/2024, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/08/2024.)
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – REQUISITOS – EXISTÊNCIA – DISSOLUÇÃO IRREGULAR E AUSÊNCIA DE BENS – REFORMA DA DECISÃO. – Demonstrada a ausência de patrimônio, bem como o encerramento irregular da Pessoa Jurídica, é cabível a desconsideração da personalidade jurídica do Devedor. (TJ-MG – Agravo de Instrumento: 25141640220248130000 1.0000 .23.053523-9/002, Relator.: Des.(a) Roberto Vasconcellos, Data de Julgamento: 24/07/2024, 17ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 25/07/2024.)
Neste último sentido o STJ também já teve a oportunidade de decidir pela necessidade da desconsideração, mas fez o alerta de que a dissolução irregular que acarrete fraude a credores é causa de abuso que atrai o julgamento procedente da desconsideração da personalidade jurídica:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ASSOCIAÇÃO . REQUISITOS. DISSOLUÇÃO IRREGULAR. FRAUDE DE CREDORES. (…) 3 . Na hipótese, a dissolução irregular da associação com o objetivo de fraudar credores é suficiente para presumir o abuso da personalidade jurídica. 4. Agravo interno não provido. (STJ – AgInt no REsp: 1830571 SP 2019/0231047-1, Relator.: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 22/06/2020, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/06/2020.)
Certos ou errados tecnicamente (e entendemos pela necessidade da DPJ antes de atingir os sócios), os entendimentos divergentes apenas reforçam a necessidade de ser regularmente dissolvida a sociedade, sob pena de o sócio sequer ter a segurança de saber de que forma será convocado para responder ao processo (se como réu de incidente ou se como executado por sucessão).
A mera ausência de patrimônio e inaptidão não presume má-fé e dissolução irregular, e a simples dissolução irregular não enseja desconsideração da PJ
Existe entendimento jurisprudencial importante que explica não ser suficiente a classificação como “INAPTA” na Receita Federal ou a mera ausência de bens penhoráveis como provas cabais da dissolução irregular. Segundo o entendimento, a comprovação depende de provas robustas que corroborem os indícios mencionados:
Direito Processual Civil. Agravo de instrumento. Cumprimento de sentença. Decisão que indeferiu pedido de sucessão processual . Recurso da exequente. Recurso não provido. I. Caso em Exame (…). O fato de a empresa executada ter sido declarada inapta não implica, por si só, na possiblidade de aplicar o instituto da sucessão processual, porquanto não há prova da extinção formal ou irregular da sociedade devedora 4. A inexistência de bens penhoráveis não demonstra a extinção da sociedade, nem presume má-fé dos sócios. 5 . O Incidente de desconsideração da personalidade jurídica, na hipótese, é o meio cabível para a substituição do polo passivo da demanda pela sócia da empresa agravada. IV. Dispositivo e Tese 5. Recurso não provido . Tese de julgamento: 1. A mera inaptidão do CNPJ não autoriza a sucessão processual. 2. A inclusão de sócios no polo passivo requer a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica (…).(TJ-SP – Agravo de Instrumento: 20539476120258260000 Araraquara, Relator.: Achile Alesina, Data de Julgamento: 06/03/2025, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/03/2025.)
Em complemento, também há corrente jurisprudencial que demonstra não ser a mera dissolução irregular um fato causador da desconsideração da personalidade jurídica, que depende, ainda, de prova inequívoca do desvio da finalidade ou da confusão patrimonial:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA EMPRESA. ELEMENTOS INSUFICIENTES. 1 . Não discutindo o feito sobre matéria de direito do consumidor ou ambiental, a eventual dissolução irregular da pessoa jurídica não é suficiente para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica. 2. Não tendo sido comprovada a ocorrência de fraude que caracterize o desvio de finalidade societário ou confusão patrimonial entre os sócios e a empresa, nos termos do artigo 50 do Código Civil, incabível o redirecionamento da execução. 3 . Agravo de instrumento improvido. ( TRF-4 – AG: 50414289220184040000 RS, Relator.: CÂNDIDO ALFREDO SILVA LEAL JUNIOR, Data de Julgamento: 27/02/2019, 4ª Turma.)
Assim, ainda que a dissolução irregular seja uma das causas de atribuição de responsabilidades ao sócio pelo débito empresarial, cabe ao interessado na execução dos bens dos sócios desincumbir-se de pesado ônus da prova sobre o abandono real da sociedade (não sendo suficiente para isso o mero cartão CNPJ inapto ou a mera ausência de bens) e do abuso da personalidade jurídica (conforme artigo 50 do Código Civil).
Para os débitos tributários, o risco é mais relevante, mas ainda exige-se prova robusta
A mera ausência de atividade na sociedade e o simples inadimplemento da dívida tributária não atraem a responsabilização imediata do sócio para o pagamento dos débitos fiscais, pois estas atitudes não são consideradas, por si só, provas de dissolução irregular. Neste sentido:
Súmula 430 do STJ: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”.
Ementa: DIREITO TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO CONTRA SÓCIO-GERENTE . DISSOLUÇÃO IRREGULAR NÃO COMPROVADA. INSUFICIÊNCIA DA SIMPLES BAIXA CADASTRAL. RECURSO DESPROVIDO. (…) A responsabilização do sócio-gerente, nos termos do art. 135 do CTN, exige prova de que a dissolução da empresa ocorreu de forma irregular, o que não se comprova apenas com a baixa cadastral ou a extinção por liquidação voluntária. (…) A simples certidão de baixa no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) não constitui prova robusta da dissolução irregular, conforme entendimento deste Tribunal e do STJ, sendo insuficiente para redirecionar a execução fiscal ao sócio-gerente . O inadimplemento da obrigação tributária pela empresa, por si só, não gera a responsabilidade solidária do sócio-gerente, conforme estabelece a Súmula 430 do STJ. IV. DISPOSITIVO E TESE Recurso desprovido. Tese de julgamento: A dissolução irregular da empresa exige prova robusta, sendo insuficiente a mera baixa cadastral ou a devolução de AR . O redirecionamento da execução fiscal ao sócio-gerente depende da demonstração de que a empresa foi dissolvida irregularmente, com a comprovação de esgotamento de todas as tentativas de citação. (…). (TJ-ES – AGRAVO DE INSTRUMENTO: 50042880420238080000, Relator.: SERGIO RICARDO DE SOUZA, 3ª Câmara Cível.)
No entanto, comprovada a dissolução irregular da sociedade, o sócio gerente (administrador) passa a responder solidariamente pelo pagamento do tributo via redirecionamento, sendo desnecessária a utilização do incidente de desconsideração da personalidade jurídica segundo parcela considerável dos tribunais. A questão, no entanto, ainda será pacificada pelo STJ, que afetou o Tema 1209 para fixação de futura tese sobre a obrigatoriedade, ou não, da IDPJ para execuções fiscais.
Tema 630/STJ: “Em execução fiscal de dívida ativa tributária ou não-tributária, dissolvida irregularmente a empresa, está legitimado o redirecionamento ao sócio-gerente.”
Tema Repetitivo 1209: “Definição acerca da (in)compatibilidade do Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica, previsto no art. 133 e seguintes do Código de Processo Civil, com o rito próprio da Execução Fiscal, disciplinado pela Lei n. 6.830/1980 e, sendo compatível, identificação das hipóteses de imprescindibilidade de sua instauração, considerando o fundamento jurídico do pleito de redirecionamento do feito executório”.
Um caso de presunção de dissolução irregular ocorre, segundo definido pela Súmula 435 do STJ, quando a sociedade deixa de atuar no domicílio fiscal informado aos órgãos competentes, sem realização da devida atualização. A presunção, no entanto, é relativa e admite prova em contrário, bem como robustas provas de que a empresa realmente deixou de funcionar:
Súmula 435 do STJ: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.”
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO FISCAL – EMPRESA NÃO ENCONTRADA EM SEU DOMICÍLIO FISCAL – DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE – REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO AOS SÓCIOS – SÚMULA 435, STJ – COMPROVAÇÃO – RECURSO PROVIDO. (…) A mera devolução de AR de citação postal sem cumprimento com informação “mudou-se” não indica, por si só, a dissolução irregular da empresa, cabendo a utilização de outros meios que certifiquem a dissolução irregular. (TJ-MG – Agravo de Instrumento: 0780254-42 .2024.8.13.0000 1 .0000.24.078024-7/001, Relator.: Des.(a) Magid Nauef Láuar (JD Convocado), Data de Julgamento: 07/05/2024, 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 15/05/2024.)
Ementa: Direito tributário. Agravo de instrumento. Execução fiscal. Icms . Redirecionamento. Presunção relativa quanto à dissolução irregular da empresa executada. Decisão reformada. Recurso provido. (…) A questão em discussão consiste em saber se é cabível o redirecionamento da execução fiscal ao sócio administrador da empresa executada. III. Razões de decidir 3 . É indevido o redirecionamento da execução fiscal quando afastada a presunção de dissolução irregular da empresa, capaz de justificar o pedido de inclusão dos sócios no polo passivo nos termos da Súmula nº 435/STJ. IV. Dispositivo 4. Provimento do recurso (…). (TJ-PR 00794260620248160000 Curitiba, Relator.: Rogério Luis Nielsen Kanayama, Data de Julgamento: 11/11/2024, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 12/11/2024.)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. DECISÃO QUE REJEITOU EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE . REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL AO SÓCIO DA DEVEDORA ORIGINÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. PRESUNÇÃO RELATIVA DA CERTIDÃO DO OFICIAL DE JUSTIÇA QUANTO À DISSOLUÇÃO IRREGULAR. COMPROVAÇÃO DE QUE A EMPRESA ENCONTRA-SE EM ATIVIDADE . ILEGITIMIDADE PASSIVA DO SÓCIO RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO.“(…) Não é o simples fato de a empresa não ser localizada em seu domicílio fiscal que enseja o redirecionamento da execução fiscal, mas, sim, o de ter sido ela dissolvida irregularmente. A circunstância de não ter sido localizada em seu domicílio fiscal é apenas uma presunção desta ocorrência, que é relativa. (…)”. (TJ-PR 00975437920238160000 Curitiba, Relator.: Rogério Luis Nielsen Kanayama, Data de Julgamento: 27/02/2024, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/02/2024.)
Portanto, cabe à autoridade fiscal comprovar, se quiser se valer da presunção, tanto judicial quanto extrajudicialmente (com alguns julgados até mesmo exigindo a presença do fiscal na localidade física informada pela sociedade), a real dissolução irregular da sociedade.
Diante de todos estes riscos, se você é sócio de uma sociedade empresária e pretende encerrar as atividades dela, é muito importante contactar um advogado para analisar os caminhos possíveis para a dissolução regular da sociedade, a fim de evitar redirecionamentos fiscais, cobranças cíveis inesperadas no futuro ou até mesmo a necessidade de enfrentar um processo judicial por um simples descuido.
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Tendências jurisprudenciais da responsabilidade civil de sócios: Reposição de lucros fictícios ou ilegalmente distribuídos.
Neste texto, seguiremos discutindo as hipóteses de responsabilização civil de sócios no Direito brasileiro, bem como o tratamento dado ao tema pela jurisprudência pátria. Anteriormente, debruçamo-nos sobre o caso dos sócios remissos e dos sócios que integralizam o capital social de forma irregular, vale conferir.
Na oportunidade, diferenciamos as duas formas de responsabilização de sócios: (i) pela responsabilização direta por obrigação própria, quando o sócio infringe dever legal, contratual ou extracontratual por ele pessoalmente assumido no contexto empresarial; e (ii) pela responsabilização indireta, quando alguma exceção legal (geralmente por ato fraudulento) afasta a autonomia patrimonial da sociedade e o sócio passa a responder pessoalmente por dívidas da sociedade.
O tema que trataremos hoje faz referência à responsabilidade dos sócios em caso de distribuição irregular de lucros, quando ilegais ou fictícios (aqueles que são rateados em desacordo com os balanços contábeis e com a situação patrimonial real da sociedade). Algumas premissas devem ser estabelecidas antes, no entanto.
Distribuição ilegal de lucros e dividendos
Para situar o tema, já iniciamos com uma possível divergência interpretativa. Nos parece que é possível ler os artigos 1.009 e 1.059 do Código Civil de duas formas diferentes.
Para a primeira interpretação, o artigo 1.009 do Código Civil teria afastado a autonomia patrimonial da sociedade quando os sócios, em conluio com o administrador, recebessem lucros fictícios ou ilícitos. Em outras palavras, distribuído irregularmente os lucros, se este ato causar dano a alguém, os sócios podem ser condenados a ressarcir o prejudicado em conjunto com o administrador e a própria sociedade. Se a ofensa ao dever legal for perpetrada por mais de um sócio em prejuízo ao capital social, eles respondem solidariamente pela reposição da quantia (artigo 1.059 do Código Civil).
Mas como a distribuição de lucros irregularmente pode causar danos a terceiros? Os exemplos mais comuns que se poderia imaginar são: (i) distribuição desproporcional de lucros à participação societária, quando isso for vedado pelo contrato social ou for feito em desacordo com o que estiver estabelecido no documento (não atingir quórum especial, por exemplo); (ii) distribuição de lucros para apenas um ou alguns sócios, excluindo determinados sócios do rateio (artigo 1.008 do Código Civil); e (iii) a distribuição de lucros fictícios como forma de esvaziar o patrimônio social e lesar credores. No primeiro e segundo casos, os lesados são um ou alguns dos sócios, no terceiro, o prejudicado é um credor da sociedade.
Para a segunda interpretação, o artigo 1.009 do Código Civil não teria criado hipótese de suspensão da autonomia patrimonial, e a responsabilidade solidária ali mencionada serviria apenas para que todos os sócios respondessem, em conjunto, pela recomposição do valor ilegalmente distribuído, e não pela solidariedade para com a sociedade pelas obrigações firmadas com terceiros. Esse nos parece o entendimento mais adequado e que se coaduna com uma leitura conjunta com o artigo 1.059 do Código Civil.
Ou seja, caberia apenas à sociedade, como verdadeira prejudicada pela distribuição dos lucros fictícios ou irregulares (pois foi do patrimônio da empresa que os valores foram subtraídos), exigir dos sócios a recomposição patrimonial, sempre no limite do que foi ilegalmente rateado. Não poderiam os sócios ou terceiros prejudicados, com base no artigo 1.009 do Código Civil, exigir a responsabilização solidária dos sócios pelo pagamento dos débitos contraídos pela sociedade.
Na hipótese de distribuição ilegal de lucros que lese demais sócios ou terceiros, entendemos que o caminho correto passa pelo ajuizamento de ação pelo prejudicado, que deverá exigir da sociedade o cumprimento da obrigação ou da lei (distribuição correta de lucros, se for o sócio o prejudicado, ou adimplemento da obrigação, se for o credor). Em sendo o caso, caberia a responsabilização dos sócios apenas se configurados os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, na forma do artigo 50 do Código Civil.
Independentemente da interpretação, a lei exige comportamento culposo, no mínimo, para a configuração do ilícito. Para responder solidariamente pelos danos causados, o sócio que se beneficiou da distribuição só responderá se conhecer, ou devesse conhecer, a sua ilegitimidade.
Em sendo sociedade anônima (S/A), a divergência não parece existir e, regra geral, respondem apenas os administradores pela reposição em caso de distribuição irregular de dividendos, inclusive na seara penal (artigo 177, §1º, inciso VI, do Código Penal), mas os acionistas que receberam os dividendos de má-fé (que restará presumida caso o lucro seja partilhado sem prévio levantamento de balanço ou em desacordo com este) também respondem pela restituição dos valores auferidos (artigo 201, §1º, da Lei das S/A). A diferença da S/A para a LTDA. é que, naquela, não parecer ser possível aplicar a interpretação de suspensão da autonomia patrimonial da sociedade para atingir o sócio.
A questão não é muito tratada na jurisprudência, mas algumas reflexões podem ser extraídas dos poucos julgados que efetivamente enfrentaram o artigo 1.009 do Código Civil.
Aspectos jurisprudenciais: ônus da prova e forma de recomposição
Ajuizada a ação para buscar a responsabilização do sócio que recebeu lucros fictícios ou ilegais, cabe ao autor (acusador) provar o ilícito, sob pena de ver julgado improcedente o pleito e responder pelas custas e honorários sucumbenciais do processo. Neste sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. RECONVENÇÃO FUNDADA EM RETIRADA DE LUCROS ILÍCITOS OU FICTÍCIOS. ÔNUS DA PROVA . RECONVINTE. APURAÇÃO DE HAVERES. FASE DISTINTA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ . MERA PRETENSÃO FUNDADA NO DIREITO. RECURSO DESPROVIDO. 1. O pedido condenatório formulado em reconvenção da sociedade buscando indenização por lucros ilícitos ou fictícios (art . 1.009, do Código Civil) depende da prova produzida após a ordinarização do procedimento (art. 603, § 2º, do CPC). 2 . A apuração de haveres dá início à liquidação da cota social, por meio da verificação do valor real da participação societária, positiva ou negativa, no momento do desligamento. É, portanto, um desdobramento natural da retirada do sócio. Não se presta para apurar as alegações de fato formuladas em reconvenção, que exigem demonstração específica seguindo as regras de distribuição dos ônus de prova ainda na fase de conhecimento (art. 373, do CPC) . 3. A imposição de multa por litigância de má-fé demanda a presença dos requisitos do art. 80, do CPC, não verificados na espécie. 4 . Apelação conhecida e desprovida.
O julgado acima também traz entendimento processual interessante: o procedimento de apuração de haveres em caso de dissolução parcial não se presta à análise das provas da distribuição ilícita de dividendos. Se quiser discutir o tema, cabe ao interessado apresentar reconvenção ou ajuizar nova ação para que o contraditório seja exercido na fase de conhecimento, e não de liquidação ou execução.
Entendimento relevante foi apresentado no julgado a seguir. Apesar de não vislumbrar provas aptas à subsidiar o pleito de responsabilização solidária, compreendeu-se que, caso fosse provada a distribuição fictícia por adiantamento geral de dividendos proporcionalmente à participação do capital social, não apenas os sócios acusados deveriam recompor o rateio irregular, mas também o sócio acusador. Veja-se:
(…) 8. Está correta a sentença em julgar improcedente o pedido de restituição de lucros formulado pelos autores, pois não há prova efetiva da distribuição de lucros fictícios por antecipação, e restou efetivamente comprovado nos autos que a distribuição de recurso da empresa autora sempre observou a proporção das cotas sociais, de modo que não houve recebimento de valores a maior pelo réu, com relação aos outros sócios. 8.1. Caso fosse comprovada a distribuição de lucros fictício para os sócios, por antecipação, mas de forma proporcional ao número de cotas, caberia a todos os sócios, e não apenas ao réu, a restituição de eventuais valores recebidos indevidamente, de modo a reintegrar o capital social da empresa para fins de apuração de haveres, por imperativo legal disposto no artigo 1009, do CC.
Apesar de as reflexões acima aplicarem-se em âmbito judicial, podemos citar efeitos práticos extrajudiciais do entendimento: se um dos sócios acusa, extrajudicialmente, o outro de distribuir ou receber lucros ilícitos, deve apresentar provas de sua acusação. Se for infundada, o sócio acusador pode até mesmo responder por danos materiais, morais, calúnia, difamação ou injúria, a depender das circunstâncias em que a afirmação for proferida. Se for fundada, os sócios deverão devolver a parcela irregular dos lucros, mas o sócio acusador também deverá fazê-lo, caso tenha recebido dividendos fictícios, e não se eximirá deste dever pelo simples fato de ter sido o sujeito que descortinou a fraude.
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Escolhendo a estrutura jurídica certa: por que isso importa? (MEI, SLU, LTDA, SA)
O Direito Empresarial brasileiro percorreu um longo caminho evolutivo até a sua configuração contemporânea e, embora o Código Civil de 2002 tenha definido apenas a figura do empresário em seu artigo 996, a doutrina brasileira preencheu a lacuna deixada pela legislação quanto ao conceito de empresa. No entendimento doutrinário do professor Sérgio Campinho, a empresa “manifesta-se como uma organização técnico-econômica, ordenando o emprego de capital e trabalho para a exploração, com fins lucrativos, de uma atividade produtiva”. Essa organização de fatores, para atuar licitamente, demanda uma estrutura jurídica que a personalize perante o Estado e o mercado.
A escolha dessa estrutura representa, portanto, um dos atos constitutivos mais cruciais para o empreendedor, cujas implicações transcendem a mera formalidade registral. O enquadramento jurídico do negócio irá definir aspectos fundamentais da existência empresarial, como o nível da responsabilidade patrimonial do titular ou dos sócios, o regime tributário aplicável, a capacidade de captação de investimentos e a complexidade da governança corporativa. Uma escolha inadequada pode gerar riscos empresariais, expor os bens pessoais a dívidas empresariais ou resultar em uma carga tributária desnecessariamente elevada.
Diante da relevância estratégica dessa decisão e dos riscos associados, o presente artigo busca analisar as principais estruturas jurídicas disponíveis no Brasil: o Microempreendedor Individual (MEI), a Sociedade Limitada Unipessoal (SLU), a Sociedade Limitada (LTDA) e a Sociedade Anônima (SA), destacando seus atributos, requisitos e o cenário ideal para a aplicação de cada modalidade.
1. Estruturas jurídicas para empreendedores individuais
1.1. Microempreendedor Individual (MEI)
O MEI foi instituído pela Lei Complementar nº 123/2006 e detalhado pela Lei Complementar nº 128/2008, com o objetivo principal de combater a informalidade de profissionais que trabalham por conta própria. Trata-se de um modelo empresarial simplificado, com processo de formalização online e gratuito através do Portal do Empreendedor. Sua principal característica é o regime tributário extremamente simplificado, com o recolhimento de impostos em valores mensais fixos por meio do Documento de Arrecadação do Simples Nacional (DAS). A contribuição unifica valores destinados à Previdência Social (INSS), ao ICMS (para comércio e indústria) e/ou ao ISS (para serviços).
Apesar da simplicidade, o MEI possui restrições significativas. O faturamento anual atual é limitado a R$ 81.000,00 e só é permitida a contratação de um único empregado, que deve receber o salário-mínimo ou o piso salarial da categoria profissional.
Além disso, o titular de um MEI não pode ter participação como sócio, administrador ou titular em outra empresa, e a modalidade é restrita a um rol específico de atividades permitidas, não contemplando profissões regulamentadas. Em resumo, “o MEI nada mais é do que um empresário individual qualificado como microempresário e que goza de vantagens tributárias e previdenciárias”.
A estrutura é ideal para negócios em estágio inicial, como prestadores de serviços e pequenos comerciantes, mas a expansão do faturamento ou a necessidade de mais colaboradores exige a migração para outro formato jurídico, de modo que o MEI funciona mesmo apenas como um “modelo de transição”.
1.2. Sociedade Limitada Unipessoal (SLU)
A Sociedade Limitada Unipessoal (SLU) representa um dos avanços mais significativos para o empreendedor individual no Brasil. Instituída pela Medida Provisória nº 881/2019 e posteriormente convertida na Lei nº 13.874/2019, a SLU alterou o artigo 1.052 do Código Civil para permitir que a sociedade limitada pudesse ser constituída por uma única pessoa. Essa inovação foi consolidada pela Lei nº 14.195/2021, que extinguiu a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) e determinou a transformação automática de todas as empresas desse tipo em SLUs, independentemente de qualquer alteração em seus atos constitutivos
A principal vantagem da SLU, e o que a tornou sucessora natural da EIRELI, é a separação entre o patrimônio pessoal do empreendedor e o patrimônio da empresa, conferindo responsabilidade limitada sem a exigência de um capital social mínimo para sua constituição. Esse fato eliminou duas grandes barreiras de entrada, uma vez que a EIRELI exigia a integralização de um capital de, no mínimo, 100 vezes o valor do salário-mínimo vigente na época, e a sociedade limitada tradicional exigia pluralidade de sócios.
Outro benefício relevante é que a legislação não impõe um limite para a quantidade de SLUs que uma mesma pessoa pode constituir, eliminando a restrição que existia na EIRELI. Essa modalidade é, portanto, fortemente indicada para profissionais liberais e empreendedores que não se enquadram no MEI, mas desejam a proteção de seus bens pessoais sem a necessidade de um sócio ou de um alto investimento inicial.
De todo modo, as SLU são, no final das contas, sociedades limitadas (LTDA.) como quaisquer outras.
2. Estruturas jurídicas societárias
2.1. Sociedade Limitada (LTDA)
No Brasil, a Sociedade Limitada, regida pelos artigos 1.052 a 1.087 do Código Civil, é o tipo jurídico mais utilizado para sociedades constituídas por dois ou mais sócios, sua popularidade deriva da principal característica: a responsabilidade de cada sócio é limitada ao valor não integralizado de suas quotas (artigo 1.052 do Código Civil).
Contudo, cabe ressaltar que todos os sócios são solidariamente responsáveis pela integralização total do capital subscrito. Isso significa que, se um sócio não pagar o valor prometido por suas quotas, os demais podem ser chamados a cobrir a diferença. Uma vez que o capital social esteja totalmente integralizado, o patrimônio pessoal dos sócios fica, em regra, protegido de dívidas da empresa.
A constituição dessa estrutura societária ocorre por meio de um contrato social, que deve ser registrado na Junta Comercial. Este documento é a “certidão de nascimento” da sociedade e é fundamental, pois estabelece as regras de funcionamento, a participação de cada sócio, a forma de administração, a distribuição de lucros e as condições para a entrada ou saída de membros.
Como observado, a Sociedade Limitada (LTDA) é mais simples e flexível dentre as estruturas jurídicas, sendo uma opção atraente para sociedades de pequeno, médio e grande porte que buscam um modelo que permita a entrada de novos sócios e se adapte a futuras rodadas de investimento.
2.2. Sociedade Anônima (SA)
A Sociedade Anônima, também conhecida como “companhia”, é regida pela Lei nº 6.404/76 e adota uma estrutura jurídica mais complexa e robusta, adequada para grandes empreendimentos e para empresas que planejam captar recursos no mercado de capitais. Seu capital social não é dividido em quotas, mas sim em ações, e a responsabilidade dos sócios, aqui denominados acionistas, é estritamente limitada ao preço de emissão das ações que subscreveram ou adquiriram. Isto é, uma vez integralizado o capital social correspondente às suas ações, o sócio não responderá (subsidiária ou solidariamente) pelas obrigações da sociedade, nem nos casos em que os demais acionistas deixarem de integralizar a sua parte.
As SAs podem ser de capital fechado, quando as ações não são negociadas publicamente e sua circulação é restrita, ou de capital aberto, caso em que suas ações são admitidas à negociação na bolsa de valores ou no mercado de balcão, com autorização da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Esta modalidade exige uma estrutura de governança mais elaborada e onerosa, composta por órgãos como a Assembleia Geral, o Conselho de Administração (em alguns casos obrigatório), a Diretoria e o Conselho Fiscal.
A complexidade e os custos de manutenção de uma SA são mais elevados, tornando-a uma opção para negócios já consolidados ou com alto potencial de crescimento que demandam vultosos investimentos externos, se comparada às LTDAs.
Conclusão
A análise aprofundada das diferentes estruturas jurídicas no Brasil evidencia que a escolha ideal é multifatorial e casuística, não havendo um formato universalmente superior. O MEI serve como uma porta de entrada para a formalização, caracterizado pela simplicidade e baixo custo, mas contido por limites de faturamento e expansão. A SLU, por sua vez, representa uma solução moderna para o empreendedorismo individual, oferecendo a crucial proteção da responsabilidade limitada sem a barreira do capital social mínimo, o que a torna uma opção extremamente atrativa.
No campo societário, a LTDA firma-se como o modelo mais flexível e difundido, proporcionando um equilíbrio eficaz entre proteção patrimonial e simplicidade administrativa, sendo ideal para a vasta maioria das startups e PMEs com múltiplos fundadores. Em contraste, a SA posiciona-se como a estrutura jurídica para grandes corporações e para a captação de investimentos em larga escala, exigindo em contrapartida uma governança mais complexa e custos de conformidade mais elevados.
A decisão sobre a estrutura jurídica transcende o mero cumprimento de uma formalidade legal, e é um pilar estratégico que moldará o futuro da empresa. Portanto, entende-se como necessário que o empreendedor, antes de registrar sua empresa, realize um planejamento detalhado e busque a orientação de profissionais especializados, como advogados e contadores, para garantir que a estrutura escolhida esteja perfeitamente alinhada às suas aspirações, ao seu modelo de negócio e à sua realidade operacional.O escritório Schiefler Advocacia conta com uma equipe experiente em direito societário e empresarial, prestando orientação estratégica na escolha e estruturação do tipo jurídico mais adequado a cada modelo de negócio. Atuamos na análise de riscos, elaboração de instrumentos constitutivos e planejamento societário, com foco na segurança jurídica e no crescimento sustentável das empresas. Nossa assessoria busca alinhar as decisões jurídicas às particularidades e aos objetivos de cada cliente, contribuindo para a consolidação de bases sólidas e eficientes desde a constituição do empreendimento.
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O sócio de sociedade limitada responde por dívidas da empresa?
A sociedade empresária de responsabilidade limitada (limitada ou “LTDA.”) é o tipo societário mais comum no Brasil, e um dos seus principais atrativos está ligado diretamente ao princípio da separação patrimonial. Conforme estabelece o artigo 1.052 do Código Civil, a responsabilidade de cada sócio é, em regra, restrita ao valor integralizado após a aquisição das quotas. Isso significa que, em geral, os sócios desse tipo de sociedade não respondem com seus bens pessoais pelas dívidas da pessoa jurídica.
Na prática, é assim que acontece: o sócio de sociedade limitada subscreve, por exemplo 10.000 (dez mil) quotas, cada uma de R$ 1,00, e posteriormente as integraliza. Nesse caso, após a transferência dos R$ 10.000,00 (dez mil reais), ele não está mais obrigado a aportar valores, sendo este o valor limite de seu investimento e o risco que deseja correr. Ainda que a sociedade apure prejuízos de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), por exemplo, os credores não poderão fazer com que o sócio tenha que pagar R$ 10.000,00 adicionais ao que já aportou.
Essa proteção é o que faz com que este seja o modelo societário mais comum, visto que a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios garante uma segurança jurídica para o exercício da atividade empresarial, segregando riscos. No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro admite algumas hipóteses em que essa separação pode ser relativizada, ensejando a responsabilização pessoal dos sócios por obrigações assumidas pela sociedade.
Diríamos até que as “exceções” à separação patrimonial acabaram se tornando extremamente comuns, visto que são numerosas no mundo dos fatos as relações jurídicas mantidas pela sociedade com trabalhadores, consumidores e Fazenda pública, situações que atraem a chamada “teoria menor” da desconsideração da personalidade jurídica.
Neste artigo, analisamos tais hipóteses, à luz da legislação civil, trabalhista e tributária, com apoio na jurisprudência consolidada dos tribunais brasileiros.
A RESPONSABILIDADE LIMITADA E SUAS EXCEÇÕES
A limitação da responsabilidade do sócio é a regra no regime das sociedades limitadas. Isso significa que, uma vez cumprida a integralização do capital social, os sócios não devem responder com seu patrimônio pessoal pelas dívidas da sociedade.
Essa autonomia patrimonial, no entanto, pode ser superada quando a pessoa jurídica é utilizada de forma abusiva, com desvio de finalidade ou confusão patrimonial — o que autoriza a chamada desconsideração da personalidade jurídica, prevista no artigo 50 do Código Civil, pela “teoria maior”.
No entanto, outras normas legais, como o Código Tributário Nacional, a Consolidação das Leis do Trabalho e o Código de Defesa do Consumidor, estabelecem hipóteses específicas de responsabilização de sócios e administradores, especialmente quando há gestão irregular ou cometimento de ilícitos que prejudiquem credores, trabalhadores, consumidores ou o Fisco.
Estes grupos de credores, quando possuem um crédito contra a sociedade empresária, atraem a “teoria menor”, antes apresentada, que dispensa os requisitos do artigo 50 do Código Civil (abuso da personalidade jurídica). A ideia por trás desta teoria é de que o legislador, em alguns casos, prefere alocar os riscos da insolvência da sociedade empresária aos sócios, e não aos credores, como é o caso da regra geral limitativa.
Portanto, embora a responsabilidade limitada represente um dos pilares estruturantes das sociedades empresárias, especialmente nas sociedades limitadas, ela não é uma blindagem absoluta contra a responsabilização pessoal dos sócios, conforme se buscará demonstrar a seguir.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
No caso geral (teoria maior), o artigo 50 do Código Civil estabelece que, na hipótese de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, o juiz pode determinar que os efeitos de determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos sócios ou administradores. Aplica-se esta teoria para as relações civis, empresariais, administrativas e para todas aquelas nas quais inexiste previsão expressa de aplicação da teoria menor.
Um exemplo de desvio de finalidade é a utilização da sociedade para o cometimento de ilícitos, nos casos em que o sócio constitui a sociedade apenas para que as ilegalidades sejam cometidas sem que seu patrimônio seja atingido. Para a confusão patrimonial, os casos mais comuns são os de utilização do caixa da sociedade para pagamento de contas dos sócios, ou o inverso (caso em que pode acarretar a desconsideração inversa da personalidade jurídica), a utilização reiterada de bens da sociedade pelos sócios e a transferência de bens do patrimônio do sócio para a pessoa jurídica, a fim de frustrar credores pessoais do sócio (ou vice-versa).
É importante esclarecer que a doutrina e a jurisprudência têm interpretado o instituto com parcimônia, reforçando que a desconsideração é medida excepcional, aplicável somente quando demonstrada a utilização indevida da estrutura societária para frustrar a eficácia do direito de outrem.
AGRAVO DE INSTRUMENTO DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE INDEFERIU A INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PARA INCLUSÃO DE PESSOAS INTEGRANTES DE GRUPO ECONÔMICO NO POLO PASSIVO, SEM QUE TIVESSEM SIDO ESGOTADOS TODOS OS MEIOS PARA LOCALIZAÇÃO DE BENS. INADMISSIBILIDADE. O INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO CONSTITUI MEDIDA EXCEPCIONAL QUE REQUER PRÉVIA ADOÇÃO DE TODAS AS MEDIDAS AO ALCANCE DO CREDOR PARA O ENCONTRO DE BENS APTOS A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO, ALÉM DE TRAZER A CONHECIMENTO DO JUÍZO INDÍCIOS CONTUNDENTES DE GESTÃO FRAUDULENTA, ANTES DE SE PROPUGNAR PELA INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO DESPROVIDO.
Portanto, a desconsideração é um mecanismo importante para coibir abusos, mas deve ser aplicada com cautela, respeitando os limites legais e os direitos dos sócios que atuam de forma regular e de boa-fé. Em razão da interpretação restritiva, não se pode considerar a mera existência de grupo econômico empresarial como fator de “confusão patrimonial”, nem mesmo entender que houve “desvio de finalidade” pelo simples fato de a sociedade praticar ato lícito fora dos limites de seu objeto social.
Por fim, esse instituto ganhou disciplina processual com os artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil de 2015, os quais estabeleceram o regramento de desconsideração da personalidade jurídica, assegurando contraditório e ampla defesa ao sócio ou administrador a ser atingido. A desconsideração pode ser requerida tanto de forma principal (mediante processamento na própria ação, desde o seu início), quanto de forma incidental (por meio de incidente apartado no processo, requerido após proposta a ação principal).
RESPONSABILIDADE POR DÍVIDAS TRABALHISTAS
Na seara trabalhista, que também disciplina a desconsideração (art. 855-A), a jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho tem adotado a chamada teoria menor, com fundamento no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e nos princípios protetivos do direito do trabalho.
Nesse contexto, tem-se admitido a responsabilização do sócio quando a pessoa jurídica não possui patrimônio suficiente para satisfazer os créditos trabalhistas reconhecidos em juízo, ainda que ausente demonstração cabal de desvio de finalidade ou confusão patrimonial (artigo 50 do Código Civil), sob o fundamento de que os sócios se beneficiam do trabalho dos empregados. É o que se extrai, por exemplo, de decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região:
REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO CONTRA OS SÓCIOS DA SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. Mesmo constando apenas a pessoa jurídica no título executivo judicial, é possível o redirecionamento da execução contra os sócios da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, desde que esteja comprovada nos autos sua participação no quadro social da empresa executada. […] Frisa-se que o redirecionamento da execução contra os sócios da empresa devedora insolvente é medida que atende aos ditames do ordenamento jurídico, sinalando-se que, no processo do trabalho, não se admite que os créditos do trabalhador fiquem a descoberto enquanto os sócios da empresa empregadora livram seus bens pessoais da execução, mesmo se tratando de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, quando é indiscutível que se beneficiaram da força de trabalho despendida pelo empregado. Assim, a insuficiência de recursos e bens da empresa para garantia da execução autoriza o redirecionamento dos atos executórios contra os sócios da empresa devedora à época da vigência do contrato de trabalho do exequente.
A partir do julgado acima (que representa apenas um exemplo de uma verdadeira jurisprudência consolidada e reiterada), compreende-se que a responsabilidade dos sócios por dívidas trabalhistas se pauta na proteção ao crédito de natureza alimentar e no princípio da alteridade, segundo o qual os riscos da atividade econômica não devem ser transferidos ao credor (trabalhador). Entendimento muito parecido a este é utilizado nos casos de Direito do Consumidor, com fundamentos basicamente idênticos.
RESPONSABILIDADE POR DÍVIDAS TRIBUTÁRIAS
No campo tributário, a responsabilidade dos sócios e administradores é regida principalmente pelo Código Tributário Nacional (CTN), que prevê hipóteses taxativas de responsabilidade pessoal de terceiros.
Em regra, a pessoa jurídica (sociedade limitada) é a contribuinte obrigada ao pagamento do tributo, e o simples inadimplemento fiscal por parte da sociedade não gera automaticamente responsabilidade do sócio-gerente. Essa orientação, consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça na Súmula nº 430, enfatiza que o sócio não responde apenas porque a sociedade deixou de pagar um tributo – é indispensável que tenha havido por parte dele alguma conduta qualificada, como ato com excesso de poderes ou infração à lei.
Em outras palavras, se o sócio-administrador (que pode ser um sócio-gerente, um diretor, etc.) cometeu alguma ilegalidade ou abuso – por exemplo, ocultando bens, cometendo fraudes fiscais, violando a lei societária ou os estatutos – ele pode ser responsabilizado pessoalmente pela dívida tributária decorrente desses atos (artigo 135, inciso III, do CTN).
Já o artigo 134, inciso VII, do CTN prevê uma responsabilidade solidária dos sócios em caso de liquidação da sociedade de pessoas: se a sociedade é liquidada e não paga seus tributos, os sócios que intervieram nesse processo de liquidação podem responder, desde que esgotados os meios contra a pessoa jurídica. Essa última hipótese (art. 134) tem aplicação mais restrita e, de todo modo, também não dispensa a tentativa prévia de cobrança do devedor principal.
Os tribunais possuem interpretação extensiva neste caso, estendendo a responsabilidade aos sócios nos casos de liquidação irregular da sociedade, assim considerada aquela em que, apesar de não ser dada baixa na sociedade, os sócios simplesmente abandonam a pessoa jurídica, deixando-a inoperante no mundo dos fatos.
Em conclusão, o patrimônio dos sócios/administradores pode ser alcançado em execuções fiscais quando houver comportamento ilícito ou irregularidade na gestão fiscal da sociedade. Por outro lado, se a pessoa jurídica simplesmente não consegue pagar tributos por dificuldade financeira, mas os sócios-administradores agiram de boa-fé e mantiveram a regularidade formal, não se deve redirecionar a cobrança aos sócios.
A PROTEÇÃO DO SÓCIO
Apesar de existirem diversas peculiaridades na desconsideração da personalidade jurídica, é importante deixar claro que o ato não é (e nem pode ser) uma arbitrariedade do juiz. Trata-se de instituto que possui requisitos próprios (tanto na teoria maior, quanto na menor) e procedimento próprio para ser seguido antes da decretação.
Infelizmente, tem se visto um movimento de desconsiderar a personalidade jurídica de sócios sem o devido processo legal, em que bloqueios de contas bancárias de sócios e administradores são ordenados sem que tenha ocorrido instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ou demonstrados os pressupostos para concessão de tutela de urgência e, consequentemente, sem que o atingido pudesse ter se defendido contra a medida pedida pelo credor.
Este tipo de comportamento viola o princípio mais básico do contraditório, pois impede que o sócio demandado possa influir no debate sobre o (des)cumprimento dos requisitos para aplicação da DPJ, seja na teoria maior, seja na menor. O instituto também é criticado de forma bastante contundente no que se refere à extensão dos efeitos da coisa julgada ao sócio, sem que ele tenha participado do contraditório na fase de conhecimento, bem como à inexistência de quaisquer limitações temporais para a sua invocação pelo credor. Debater esses temas junto ao Poder Judiciário tem sido uma das principais missões do contencioso societário.
Com ampla experiência em direito societário, o escritório Schiefler Advocacia atua de forma consultiva e contenciosa na orientação estratégica de sócios, administradores e sociedades empresárias, contribuindo para a adoção de boas práticas de governança e a mitigação de riscos legais. Nossa equipe está preparada para auxiliar na prevenção de litígios, na estruturação societária e na defesa de interesses em processos que envolvam responsabilização de sócios e administradores, sempre com foco na segurança jurídica e na sustentabilidade dos negócios.
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Os credores de empresa em recuperação judicial se vinculam a cláusula arbitral entre acionistas?
EXISTE RISCO REAL DE SE TORNAR CREDOR DE EMPRESA EM RECUPERAÇÃO?
Você já parou para pensar quão diversas são as relações que podem tornar uma pessoa credora de uma empresa? Não só apenas os negócios intra-empresariais de fornecimento de produtos e serviços geram obrigações com débitos, mas também as situações mais cotidianas possíveis, como: consumeristas (tanto para recebimento do objeto comprado, como para cobrar os direitos por seus vícios), trabalhistas, de investimentos (debenturistas) e até mesmo de responsabilidade civil (por danos causados).
Todas as relações acima descritas geram uma obrigação (crédito) em favor do sujeito e em desfavor da empresa, devendo o prejudicado, a depender do caso, cobrá-lo extrajudicialmente. Mas pode acontecer de, neste meio tempo, a companhia, percebendo que está prestes a entrar em crise financeira interna, solicitar a abertura de procedimento de recuperação judicial.
E o que acontecerá com os créditos que os sujeitos detinham? Neste caso, cada credor deverá se habilitar na recuperação judicial através da apresentação de sua dívida ao administrador judicial[1]Art. 7º, §1º da Lei nº 11.101/2005 prescreve que: “§ 1º Publicado o edital previsto no art. 52, § 1º, ou no parágrafo único do art. 99 desta Lei, os credores terão o prazo de 15 (quinze) … Continue reading e, a depender do valor de seus haveres, se tornará quotista de uma parte da dívida global, podendo usar seu poder de voto na assembleia-geral de credores (AGC) para aprovação/negação do plano de recuperação judicial.
Neste plano, a empresa geralmente apresentará todas as suas estratégias para sair da crise econômica, podendo se utilizar das mais diversas atitudes previstas no rol do artigo 50 da Lei de Recuperação e Falência, como a concessão de novos prazos para pagamento das dívidas, venda de bens, aumento de capital social, fusão e incorporação, dentre diversos outros. Sendo credor, será aqui o momento de se manifestar e exercer o seu direito de voto, respeitado o valor proporcional de seu crédito (Art. 38) e de sua classe (Art. 41).
Aprovado o plano, estarão vinculados todos os credores, bem como a sociedade e seus acionistas, ao respeito integral do que foi deliberado.
E SE HOUVER CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ARBITRAL NO ESTATUTO SOCIAL
Não é incomum que, em estatutos de companhias de capital aberto (sociedades anônimas, por ação negociável em bolsa), exista cláusula compromissória arbitral que remeta às discussões do quadro de acionistas para uma câmara privada de solução de conflitos (arbitragem)[2]DE ARAÚJO, Gilvandro Vasconcelos Coelho; DE ARAÚJO, Rodrigo Vasconcelos Coelho. Arbitragem e Recuperação Judicial – A convivência harmônica em litígio societário à luz do Conflito de … Continue reading, principalmente quando se trata de assuntos mais sensíveis como a emissão de bônus de subscrição, debêntures, reforma do estatuto e deliberação sobre fusão e aquisições, todas estas atitudes de competência privativa da assembleia-geral de acionistas (Art. 122 da Lei das S.A.).
E essas cláusulas não só são ferramentas para se afastar da morosidade judiciária e garantir um julgamento mais técnico, como são, em alguns segmentos da Bolsa de valores do Brasil (B3), dispositivos obrigatórios para participação nos balcões Novo Mercado, Bovespa Mais, Bovespa Mais Nível 2 e Nível 2, só havendo facultatividade nas listagens Nível 1 e Básico. A depender do investidor-alvo, porte e tempo de mercado, a presença da cláusula compromissória será imprescindível para o crescimento saudável da empresa.
Mas como o leitor pode perceber, diversas das previsões do Art. 122 da Lei das S.A. são, também, meios de reerguimento da empresa presentes no plano de recuperação (Art. 50 da Lei de Falência), o que pode causar conflito entre os acionistas e os credores.
Havendo discordância de um acionista, por exemplo, quanto ao aumento ou ao modo de subscrição do capital social previsto no plano de recuperação judicial, à qual jurisdição caberá a resolução do conflito: ao juiz da recuperação ou ao árbitro?
Foi exatamente isso que teve de resolver o Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência nº 157.099-RJ, do Rio de Janeiro[3]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, S2 – Segunda Seção. Conflito de Competência nº 157.099-RJ. Suscitante: Oi S.A. em recuperação judicial. Suscitado: Juízo de Direito da 7ª vara … Continue reading. No julgado, ficou decidido que, havendo previsão, no plano de recuperação, de aumento de capital social sem que tal deliberação tivesse passado por anterior assembleia-geral de acionistas, a competência para dirimir a contenda é do árbitro, pois:
A questão submetida ao juízo arbitral diz respeito à análise da higidez da formação da vontade da devedora quanto a disposições expressas no plano de soerguimento. As deliberações da assembleia de credores – apesar de sua soberania – estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral.
No fim das contas, o que essa decisão fez foi vincular todos os credores da empresa à cláusula arbitral do qual sequer participaram da criação, haja vista que, para votarem plano de recuperação eficaz, estarão submetidos à espera e aceitação de algumas medidas pela assembleia-geral de acionistas.
A SUBVERSÃO DE VALORES CAUSADA PELA DECISÃO
O que se busca com a recuperação judicial é exatamente o reerguimento da empresa, evitando que todos os seus credores, colaboradores, trabalhadores e clientes se vejam submetidos à futura execução universal (falência), em que seus créditos, com quase toda certeza, não serão pagos integralmente pela devedora. É um passo a ser tomado para que a devedora não se torne inadimplente, ou seja, é uma verdadeira ferramenta de proteção ao crédito.
A interpretação da recuperação judicial, em consonância com a mentalidade trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, deve estar voltada à tutela adequada dos interesses do credor em detrimento da superproteção ao direito de propriedade do devedor (antiga visão do CPC de 1973)[4]ZANETI JR, Hermes. O processo de execução no Código de Processo Civil brasileiro de 2015 e o direito fundamental à tutela do crédito. In: O processo civil entre a técnica processual e a tutela … Continue reading. Isso porque, instalada a recuperação, faz-se prova de que, talvez, os interesses da companhia devedora não tenham sido administrados da melhor forma, devendo ser aberta a decisão dos rumos da sociedade para a assembleia-geral de credores (e não só dos acionistas).
É inegável que, em condições normais, a cláusula arbitral é totalmente possível de ser pactuada entre os acionistas, acontece que, instaurado processo de recuperação, a validade do plano não estará vinculada apenas à vontade dos acionistas, mas também à de todas as classes de credores. A feitura do plano transcende a aplicação da arbitragem intrassocietária, pois adiciona sujeitos que a ela nunca foram ligados.
Perceba-se que, enquanto adimplente, os credores não têm direito a interferir na gestão patrimonial da empresa, mas, havendo risco de insolvência, ganham acesso de influência no gerenciamento da devedora. Tanto é assim que a Lei da Recuperação e Falência os divide em classes e lhes dá direito de voto para aprovação do plano.
A decisão do STJ, se transportada para todas as demais modalidades previstas simultaneamente no Art. 50 da Lei de Recuperação e Falência e no Art. 122 da Lei das S.A., poderá fazer com que um plano de recuperação aprovado pelos credores perca toda a sua eficiência por discordância dos acionistas, subvertendo os valores presentes no Art. 47 da Lei n.º 11.101/05, ou seja, fazendo prevalecer a vontade da devedora (acionistas, muitas vezes até minoritários) em prejuízo dos credores.
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Os acionistas que desejarem obstar o plano de recuperação aprovado pelos credores e homologado pelo juiz ainda deverão ter em mente que o Art. 61, § 1º, da LRF permite ao julgador que, percebendo que a empresa está descumprindo as obrigações assumidas, convole (transforme) o reerguimento societário em falência. Se comprovado que o inadimplemento se deu por culpa ou dolo dos acionistas dissidentes, a massa falida poderá buscar a reparação civil pelo prejuízo causado por tais investidores.
Sendo o juiz da recuperação o juízo competente para as matérias relativas ao plano de soerguimento, deveria ser deste órgão a atribuição para exame da legalidade e da adequação das estratégias de superação da crise apresentado pela empresa e aprovado pelos credores[5]BASILIO, Ana Tereza; ALÓ, Nicole. Reflexões sobre conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e juízo arbitral, a respeito de disposição do plano de recuperação judicial, … Continue reading. Nada impede, entretanto, que a jurisdição arbitral seja respeitada durante a elaboração do plano (para controvérsias surgidas antes de sua votação pela AGC) ou nas recuperações extrajudiciais.
A instauração de arbitragem, nos casos que já estão judicializados, retira a voz dos credores e da própria pessoa jurídica (verdadeiros prejudicados) e dá demasiada importância aos interesses lucrativos dos acionistas enquanto a empresa caminha para a autodestruição.
Essa mentalidade é tão forte que, na própria Lei da Recuperação e Falência, existe a previsão de que, havendo afastamento do devedor, é de atribuição da assembleia-geral de credores a votação para nomeação do novo gestor judicial, bem como, havendo previsão no plano, da consideração sobre novo administrador em caso de afastamento do anterior, mesmo que o Art. 122, II, da Lei nº 6.404/76 atribua à assembleia-geral de acionistas a deliberação sobre a eleição/destituição de administradores da companhia (quando a sociedade não está em crise).
Sendo assim, dada a importância da cláusula arbitral (até mesmo pela sua obrigatoriedade em alguns casos), é imprescindível o estudo e conhecimento de seus efeitos. Seja você empresário, administrador, investidor ou credor da empresa, previna-se quanto aos problemas que poderão surgir dessa disposição contratual que, com a recente decisão do STJ, poderá ser usada como forte ferramenta de defesa dos puros interesses dos acionistas, e não do soerguimento da sociedade.
Referências[+]
| ↑1 | Art. 7º, §1º da Lei nº 11.101/2005 prescreve que: “§ 1º Publicado o edital previsto no art. 52, § 1º, ou no parágrafo único do art. 99 desta Lei, os credores terão o prazo de 15 (quinze) dias para apresentar ao administrador judicial suas habilitações ou suas divergências quanto aos créditos relacionados.” |
|---|---|
| ↑2 | DE ARAÚJO, Gilvandro Vasconcelos Coelho; DE ARAÚJO, Rodrigo Vasconcelos Coelho. Arbitragem e Recuperação Judicial – A convivência harmônica em litígio societário à luz do Conflito de Competência nº 157.099/RJ. In: DIDIER JR. Fredie: Processo Civil Empresarial e o Superior Tribunal de Justiça. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2021. p. 33. |
| ↑3 | BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, S2 – Segunda Seção. Conflito de Competência nº 157.099-RJ. Suscitante: Oi S.A. em recuperação judicial. Suscitado: Juízo de Direito da 7ª vara empresarial do Rio de Janeiro; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; Juízo Arbitral da Câmara de Arbitragem do Mercado de São Paulo – SP. Relatora p/ Acórdão: Min. Nancy Andrighi. Brasília, 10 de outubro de 2018. DJe 30/10/2018. |
| ↑4 | ZANETI JR, Hermes. O processo de execução no Código de Processo Civil brasileiro de 2015 e o direito fundamental à tutela do crédito. In: O processo civil entre a técnica processual e a tutela dos direitos: estudos em homenagem a Luiz Guilherme Marinoni. Coord: Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidieiro. Org: Rogéria Dotti. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 591. |
| ↑5 | BASILIO, Ana Tereza; ALÓ, Nicole. Reflexões sobre conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e juízo arbitral, a respeito de disposição do plano de recuperação judicial, no âmbito do julgamento do CC nº 157.099/RJ. In: DIDIER JR. Fredie: Processo Civil Empresarial e o Superior Tribunal de Justiça. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2021. p. 25. |
A empresa estatal é uma pessoa jurídica de direito privado, que precisa atender à finalidade pública para a qual foi criada, ao mesmo tempo em que também precisa acompanhar os padrões de eficiência impostos pelo mercado.
Enunciado 8 – O exercício da função social das empresas estatais é condicionado ao atendimento da sua finalidade pública específica e deve levar em conta os padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado, conforme delimitações e orientações dos §§1º a 3º do art. 27 da Lei 13.303/2016.
As empresas denominadas estatais, abrangidas nesse conceito as empresas públicas e as sociedades de economia mista, assim como as suas subsidiárias, exigem, para sua criação, autorização legislativa, nos termos do artigo 37, inciso XIX, da Constituição de 1988.
Para que seja viabilizada a criação de uma empresa estatal, para além de lei específica que a autorize, a Constituição de 1988 determina que a referida exploração direta da atividade econômica em questão por parte do Estado deverá ser necessária aos imperativos da segurança nacional ou atender a relevante interesse coletivo[1], motivo pelo qual o artigo 173, § 1º, inciso I, exige que o estatuto jurídico da estatal disponha sobre “sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade”.
A Lei nº 13.303/2016 (conhecida como “Lei das Estatais”), por sua vez, em seu artigo 2º, § 1º, reforça a necessidade de que haja, na lei que autoriza a criação de uma determinada estatal, a indicação clara do relevante interesse coletivo ou do imperativo de segurança nacional que se insere entre os seus fins institucionais, sendo precisamente essa a conceituação de “função social” trazida pelo diploma legal no caput do artigo 27.
Contudo, cumpre destacar que as estatais não exercem função social em razão da Lei nº 13.303/2016, mas, sim, das próprias particularidades que envolvem esse grupo de entidades da Administração Pública indireta. As empresas estatais devem estar voltadas à consecução da finalidade social relevante e ao atendimento da função social, uma vez que são esses objetivos que levaram o Estado a exercer atividade econômica de forma direta em primeiro lugar[2].
A Lei das Estatais, portanto, ao apresentar um conceito preciso para a “função social”, não fez mais do que explicitar de forma inequívoca uma concepção que já estava presente no texto constitucional. Da leitura dos dispositivos citados, observa-se que a Lei nº 13.303/2016 está em perfeita consonância com o disposto na Constituição Federal acerca da função social das estatais:
Lei nº 13.303/2016
Art. 27. A empresa pública e a sociedade de economia mista terão a função social de realização do interesse coletivo ou de atendimento a imperativo da segurança nacional expressa no instrumento de autorização legal para a sua criação.
Constituição Federal
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
Além disso, o artigo 27 da Lei nº 13.303/2016 traz, em seus parágrafos[3], orientações gerais sobre como a função social das empresas estatais deve ser atingida. Nos termos do § 1º, a realização do interesse coletivo a que se dedica a estatal deverá visar ao alcance do bem-estar econômico e à alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela empresa, orientando-se de maneira economicamente justificada.
O § 2º do artigo 27, por sua vez, impõe às estatais o dever de adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam, enquanto o § 3º autoriza a sua atuação em atividades culturais, sociais, esportivas, educacionais e de inovação tecnológica, desde que comprovadamente vinculadas ao fortalecimento de sua marca e observando, no que couber, as normas de licitação e contratos da Lei nº 13.303/2016.
Todas as orientações trazidas pelos parágrafos, contudo, devem respeitar a delimitação do caput do artigo 27: o interesse público que deu origem à estatal.
Nesse sentido, ressalta-se que, ao mesmo tempo em que as empresas estatais estão condicionadas pela sua função social, havendo subordinação desta à finalidade pública que ensejou a criação da estatal, não é possível ampliar ou estender de forma irrestrita a função social para abranger objetivos públicos distintos daqueles que justificaram a própria constituição da empresa pública ou sociedade de economia mista em questão.
Explica-se: a empresa estatal está integralmente condicionada à sua função social. Ao mesmo tempo em que não é possível ignorar ou desviar-se da função social imposta pela lei que autorizou a criação da estatal, tampouco é possível que a função social extrapole o objetivo ou a finalidade pública que ensejou a criação dessa empresa.
Ademais, é preciso ter em conta que a adstrição da atuação das estatais à sua função social não decorre apenas do disposto no artigo 27 da Lei nº 13.303/2016, mas, antes, deriva da própria natureza da empresa estatal. Sendo necessário a presença de interesse público relevante para permitir ao Estado o exercício da atividade econômica de forma direta, o atendimento à função social é imperioso para que seja possível concretizar esse interesse. Ao mesmo tempo, não é possível expandir a função social da empresa estatal de forma a extrapolar o objetivo ou a finalidade pública que ensejou sua criação, visto que seria incompatível com o texto constitucional uma ampliação irrestrita da função social, que abrangesse objetivos públicos distintos daqueles que motivaram a criação da empresa estatal.
Dessa forma, observa-se que, mesmo sendo a empresa estatal uma pessoa jurídica de direito privado (e, portanto, pertencente ao mercado), existem circunstâncias que a diferenciam das demais. A estatal possui finalidades públicas específicas previstas na lei que autorizou a sua criação, as quais devem ser atendidas, não sendo possível ter o seu escopo ampliado para além da finalidade que motivou a sua criação.
Ou seja, a empresa estatal é uma pessoa jurídica de direito privado, que precisa atender à finalidade pública para a qual foi criada, ao mesmo tempo em que, evidentemente, também precisa acompanhar os padrões de eficiência impostos pelo mercado. A empresa estatal, portanto, é uma organização que é impactada, concomitantemente, pelo Direito Público e pelo Direito Privado.
É nessa linha que se insere o Enunciado 8, aprovado na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, que dispõe o seguinte:
Enunciado 8
O exercício da função social das empresas estatais é condicionado ao atendimento da sua finalidade pública específica e deve levar em conta os padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado, conforme delimitações e orientações dos §§1º a 3º do art. 27 da Lei 13.303/2016.
O enunciado aprovado, que traduz precisamente o objetivo e alcance da função social das empresas estatais, reforça o conteúdo dos dispositivos legais presentes na Constituição Federal e na chamada Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) que versam sobre o tema. Concomitantemente, destaca-se que, ainda que haja uma finalidade pública específica, inerente à condição de estatal, estas empresas não podem furtar-se do atendimento aos padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado.
Conclui-se, assim, que as empresas estatais devem ter sua atuação sempre pautada pela função social definida em seus estatutos, bem como pela finalidade pública que lhes deu origem, sendo por esta limitadas e orientadas, mas sem esquecer, também, dos padrões de eficiência exigidos pelo mercado – os quais, naturalmente, fazem parte da rotina de uma empresa privada.
[1] Art. 173, caput, da Constituição de 1988.
[2] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 553.
[3] Art. 27. […] § 1º A realização do interesse coletivo de que trata este artigo deverá ser orientada para o alcance do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela empresa pública e pela sociedade de economia mista, bem como para o seguinte:
I – ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e serviços da empresa pública ou da sociedade de economia mista;
II – desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira para produção e oferta de produtos e serviços da empresa pública ou da sociedade de economia mista, sempre de maneira economicamente justificada.
§ 2º A empresa pública e a sociedade de economia mista deverão, nos termos da lei, adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam.
Read MoreAquele que deseja empreender sozinho, sem sócios, no Brasil, possui basicamente três opções: tornar-se empresário individual, abrir uma EIRELI ou constituir uma sociedade limitada unipessoal.
Marcelo John Cota de Araújo Filho[1]
O risco inerente ao exercício de uma atividade empresarial é algo que causa muita preocupação àqueles que se sentem inseguros em empreender com um sócio. A possibilidade de discordância sobre alguma estratégia de negócios específica e o receio da formação de desavenças pessoais pela diferença de ideias são exemplos que levam muitos a optarem por desenvolver um empreendimento sem a participação de outras pessoas.
Aquele que deseja empreender sozinho, sem sócios, no Brasil, possui basicamente três opções: tornar-se empresário individual, abrir uma Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) ou constituir uma sociedade limitada unipessoal. Cada uma das alternativas possui especificidades que podem ser vistas como vantagens ou como desvantagens, cabendo ao empreendedor decidir qual a melhor solução para o modelo de negócio que deseja desenvolver.
Essas especificidades serão abordadas a seguir, por meio do detalhamento das características de cada alternativa e das considerações pertinentes que devem orientar a decisão do empreendedor.
O EMPRESÁRIO INDIVIDUAL
Empresário individual é a pessoa física que exerce, em nome próprio, uma atividade empresarial. Isto é, empresário individual é a pessoa natural que desenvolve, com seus próprios recursos, seu empreendimento.
Uma característica marcante dessa modalidade é a responsabilidade ilimitada e direta do empresário individual, que responde por todas as dívidas contraídas com o seu patrimônio pessoal. Como não há uma pessoa jurídica à frente da atividade desenvolvida, não existe a hipótese de separação patrimonial, de forma que o patrimônio da pessoa física responde direta e ilimitadamente por quaisquer dívidas oriundas do exercício da empresa.
Apesar de essa característica ser vista como uma grande desvantagem, essa modalidade de empresário possui uma característica vantajosa para pequenos empreendimentos: a possibilidade de enquadramento como MEI (Microempreendedor Individual), que tem um procedimento de registro simples e um regime de tributação muito mais brando se comparado às outras modalidades de empresário.
Com efeito, o Microempreendedor Individual é isento de tributos fiscais federais (Imposto de Renda, PIS, Cofins, IPI e CSLL), devendo pagar apenas um valor fixo mensal, que corresponde a uma contribuição para o INSS e ao pagamento do ICMS ou ISS. Esse valor mensal, para o ano de 2020, equivale à quantia de R$ 53,25 para atividades relacionadas ao comércio e indústria, R$ 57,25 para atividades relacionadas a serviços e R$ 58,25 para atividades relacionadas ao comércio e serviços. No entanto, cumpre ressaltar que o MEI é uma categoria que se restringe a atividades mais simples, sobretudo por possuir um limite de faturamento bruto anual baixo, no valor de R$ 81 mil.
Embora seja comum confundir a figura do empresário individual com a do microempreendedor individual, eles são institutos distintos. Ser empresário individual é um requisito necessário para configurar-se como MEI, mas esse enquadramento só é possível se o empresário individual não ultrapassar o limite de faturamento anual de R$ 81 mil.
Diante do exposto, conclui-se que a opção de empreender sozinho através da roupagem de empresário individual só é conveniente para pequenos negócios. A grande vantagem para o empreendedor dessa modalidade reside na possibilidade de enquadrar-se como MEI, mas, caso esse enquadramento não seja possível, a responsabilidade direta e ilimitada do empresário individual, que faz com que seus bens pessoais possam responder pelas dívidas oriundas do exercício da empresa, é um motivo mais que suficiente para que o empreendedor busque outra alternativa para iniciar sua empresa.
A EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (EIRELI)
Integrada ao ordenamento jurídico brasileiro com a Lei nº 12.411/11, por muito tempo a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) foi a única alternativa para aqueles que desejavam exercer atividade empresarial sozinhos e, ao mesmo tempo, gozar do instituto da separação patrimonial entre pessoa física e pessoa jurídica.
A EIRELI é uma pessoa jurídica tutelada pelo artigo 980-A do Código Civil e rege-se, no que couber, pelas mesmas regras aplicadas às sociedades limitadas[2]. Isso significa que a EIRELI proporciona ao seu titular a mesma blindagem patrimonial que uma sociedade limitada oferece ao seu sócio, ou seja, existe uma separação patrimonial, de maneira que o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com o patrimônio da pessoa física.
Dessa forma, é certo dizer que a pessoa física que constituiu uma EIRELI limita sua responsabilidade ao capital investido para a formação da pessoa jurídica.
Ocorre que, no caso da EIRELI, há a imposição de um capital social mínimo de 100 salários mínimos para a sua constituição. Esse requisito mínimo pode ser visto como uma desvantagem principalmente para empreendedores iniciantes e que não possuem grande poder econômico, pois necessitariam de um investimento inicial elevado para poder exercer sua atividade empresarial devidamente.
Além disso, outra grande ressalva a se fazer sobre a EIRELI é que a pessoa natural que a constitui só pode ser titular de uma única pessoa jurídica desse tipo. Isso representa uma barreira principalmente para empreendedores mais dinâmicos e ousados, que têm o desejo de exercer atividades empresariais em mais de um ramo econômico, pois só poderiam ser titulares de uma única EIRELI, inviabilizando a constituição de outra pessoa jurídica desse tipo para desenvolver empresas distintas.
Assim, em que pese a EIRELI proporcionar a separação patrimonial, de forma que, ressalvados os casos de fraude[3], somente o patrimônio da pessoa jurídica será responsável pelas dívidas decorrentes do exercício da atividade empresarial, as restrições ligadas à constituição dessa pessoa jurídica podem estabelecer entraves a determinados empreendedores, sobretudo àqueles que não possuem condições de fazer um investimento inicial na monta de 100 salários mínimos e àqueles que possuem a pretensão de exercer diversas empresas.
SOCIEDADE LIMITADA UNIPESSOAL
Possibilidade existente desde a promulgação da Lei nº 13.874/2019, também conhecida como Lei da Liberdade Econômica, a Sociedade Limitada Unipessoal também representa uma alternativa para quem deseja empreender sozinho no Brasil.
Tratando-se de pessoa jurídica, a sociedade limitada unipessoal também promove a separação patrimonial entre o patrimônio da sociedade (pessoa jurídica) e o patrimônio pessoal do sócio (pessoa física), isto é, os bens pessoais do sócio não responderão pelas dívidas contraídas pela sociedade.
Como os patrimônios da pessoa física e da pessoa jurídica não se comunicam, é possível dizer que o sócio responderá de forma subsidiária[4] e limitada pelas obrigações sociais. Ou seja, quem responde por essas obrigações é a própria sociedade, com seus próprios bens, de forma que os bens particulares do sócio estão, em princípio, resguardados.
Vale ressaltar que essa blindagem patrimonial não é absoluta, existindo a possibilidade de responsabilização pessoal do sócio em caso de abuso da personalidade jurídica, hipótese configurada quando o sócio utiliza a sociedade para cometer irregularidades envolvendo o desvio de finalidade da pessoa jurídica ou para promover uma confusão patrimonial com o intuito de ocultar os próprios bens. Nesses casos, pode ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica, responsabilizando-se diretamente o patrimônio do sócio pelas irregularidades cometidas[5].
Portanto, ressalvados os casos de abuso, a sociedade limitada unipessoal retrata uma opção viável para a proteção patrimonial da pessoa que deseja empreender de forma a diminuir os riscos inerentes ao exercício da atividade empresarial no Brasil. Fornecendo blindagem patrimonial mas não se prendendo a restrições como ocorre no caso da EIRELI, a sociedade limitada unipessoal representa um grande avanço legislativo pátrio na área do Direito Empresarial, possibilitando aos mais diversos tipos de empreendedores o exercício adequado da atividade empresarial.
CONCLUSÃO
O desejo de empreender é latente a muitos cidadãos brasileiros, independente das condições de vida e esfera social em que estão inseridos. Do pequeno ao grande empreendedor, a possibilidade de exercer uma atividade empresarial sozinho deve ser avaliada em conformidade com as condições concretas do empreendedor e com a expressividade da atividade que ele pretende desenvolver, cabendo-lhe, assim, selecionar a alternativa mais viável entre as existentes para o seu modelo de negócios.
[1] Estagiário de Direito no escritório Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do grupo de extensão Inteligência Jurídica (UFU). Ex-assessor de presidência e ex-consultor de Negócios da Magna Empresa Júnior, além de ex-representante discente do Conselho da Faculdade de Direito (CONFADIR) da UFU.
[2] Art. 980-A. […] § 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
[3] Art. 980-A. […] § 7º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.
[4] A responsabilidade subsidiária surge na hipótese em que o sócio ainda não integralizou todo o capital social subscrito, estando limitada a esse valor subscrito mas ainda não integralizado.
[5] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Read MoreA Locus Iuris é uma das maiores empresas juniores de Direito do Brasil e atua, principalmente, na área do Direito Empresarial, com foco nas empresas startups.
O estagiário José Vitor Schmitz foi aprovado no processo seletivo da Locus Iuris, empresa júnior do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e assumiu o cargo de Gerente de Projetos.
O período trainee teve inicio em abril de 2019, sendo que, ao final, José Vitor foi efetivado como membro da Diretoria, no cargo de Gerente de Projetos. Esta função é responsável pela coordenação e gerenciamento dos projetos realizados pela equipe, além do esclarecimento de dúvidas e orientação dos demais membros que assessoram a execução.
A Locus Iuris é uma das maiores empresas juniores de Direito do Brasil e atua, principalmente, na área do Direito Empresarial, com foco nas empresas startups.
