Os credores de empresa em recuperação judicial se vinculam a cláusula arbitral entre acionistas?
EXISTE RISCO REAL DE SE TORNAR CREDOR DE EMPRESA EM RECUPERAÇÃO?
Você já parou para pensar quão diversas são as relações que podem tornar uma pessoa credora de uma empresa? Não só apenas os negócios intra-empresariais de fornecimento de produtos e serviços geram obrigações com débitos, mas também as situações mais cotidianas possíveis, como: consumeristas (tanto para recebimento do objeto comprado, como para cobrar os direitos por seus vícios), trabalhistas, de investimentos (debenturistas) e até mesmo de responsabilidade civil (por danos causados).
Todas as relações acima descritas geram uma obrigação (crédito) em favor do sujeito e em desfavor da empresa, devendo o prejudicado, a depender do caso, cobrá-lo extrajudicialmente. Mas pode acontecer de, neste meio tempo, a companhia, percebendo que está prestes a entrar em crise financeira interna, solicitar a abertura de procedimento de recuperação judicial.
E o que acontecerá com os créditos que os sujeitos detinham? Neste caso, cada credor deverá se habilitar na recuperação judicial através da apresentação de sua dívida ao administrador judicial[1]Art. 7º, §1º da Lei nº 11.101/2005 prescreve que: “§ 1º Publicado o edital previsto no art. 52, § 1º, ou no parágrafo único do art. 99 desta Lei, os credores terão o prazo de 15 (quinze) … Continue reading e, a depender do valor de seus haveres, se tornará quotista de uma parte da dívida global, podendo usar seu poder de voto na assembleia-geral de credores (AGC) para aprovação/negação do plano de recuperação judicial.
Neste plano, a empresa geralmente apresentará todas as suas estratégias para sair da crise econômica, podendo se utilizar das mais diversas atitudes previstas no rol do artigo 50 da Lei de Recuperação e Falência, como a concessão de novos prazos para pagamento das dívidas, venda de bens, aumento de capital social, fusão e incorporação, dentre diversos outros. Sendo credor, será aqui o momento de se manifestar e exercer o seu direito de voto, respeitado o valor proporcional de seu crédito (Art. 38) e de sua classe (Art. 41).
Aprovado o plano, estarão vinculados todos os credores, bem como a sociedade e seus acionistas, ao respeito integral do que foi deliberado.
E SE HOUVER CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ARBITRAL NO ESTATUTO SOCIAL
Não é incomum que, em estatutos de companhias de capital aberto (sociedades anônimas, por ação negociável em bolsa), exista cláusula compromissória arbitral que remeta às discussões do quadro de acionistas para uma câmara privada de solução de conflitos (arbitragem)[2]DE ARAÚJO, Gilvandro Vasconcelos Coelho; DE ARAÚJO, Rodrigo Vasconcelos Coelho. Arbitragem e Recuperação Judicial – A convivência harmônica em litígio societário à luz do Conflito de … Continue reading, principalmente quando se trata de assuntos mais sensíveis como a emissão de bônus de subscrição, debêntures, reforma do estatuto e deliberação sobre fusão e aquisições, todas estas atitudes de competência privativa da assembleia-geral de acionistas (Art. 122 da Lei das S.A.).
E essas cláusulas não só são ferramentas para se afastar da morosidade judiciária e garantir um julgamento mais técnico, como são, em alguns segmentos da Bolsa de valores do Brasil (B3), dispositivos obrigatórios para participação nos balcões Novo Mercado, Bovespa Mais, Bovespa Mais Nível 2 e Nível 2, só havendo facultatividade nas listagens Nível 1 e Básico. A depender do investidor-alvo, porte e tempo de mercado, a presença da cláusula compromissória será imprescindível para o crescimento saudável da empresa.
Mas como o leitor pode perceber, diversas das previsões do Art. 122 da Lei das S.A. são, também, meios de reerguimento da empresa presentes no plano de recuperação (Art. 50 da Lei de Falência), o que pode causar conflito entre os acionistas e os credores.
Havendo discordância de um acionista, por exemplo, quanto ao aumento ou ao modo de subscrição do capital social previsto no plano de recuperação judicial, à qual jurisdição caberá a resolução do conflito: ao juiz da recuperação ou ao árbitro?
Foi exatamente isso que teve de resolver o Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência nº 157.099-RJ, do Rio de Janeiro[3]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, S2 – Segunda Seção. Conflito de Competência nº 157.099-RJ. Suscitante: Oi S.A. em recuperação judicial. Suscitado: Juízo de Direito da 7ª vara … Continue reading. No julgado, ficou decidido que, havendo previsão, no plano de recuperação, de aumento de capital social sem que tal deliberação tivesse passado por anterior assembleia-geral de acionistas, a competência para dirimir a contenda é do árbitro, pois:
A questão submetida ao juízo arbitral diz respeito à análise da higidez da formação da vontade da devedora quanto a disposições expressas no plano de soerguimento. As deliberações da assembleia de credores – apesar de sua soberania – estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral.
No fim das contas, o que essa decisão fez foi vincular todos os credores da empresa à cláusula arbitral do qual sequer participaram da criação, haja vista que, para votarem plano de recuperação eficaz, estarão submetidos à espera e aceitação de algumas medidas pela assembleia-geral de acionistas.
A SUBVERSÃO DE VALORES CAUSADA PELA DECISÃO
O que se busca com a recuperação judicial é exatamente o reerguimento da empresa, evitando que todos os seus credores, colaboradores, trabalhadores e clientes se vejam submetidos à futura execução universal (falência), em que seus créditos, com quase toda certeza, não serão pagos integralmente pela devedora. É um passo a ser tomado para que a devedora não se torne inadimplente, ou seja, é uma verdadeira ferramenta de proteção ao crédito.
A interpretação da recuperação judicial, em consonância com a mentalidade trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, deve estar voltada à tutela adequada dos interesses do credor em detrimento da superproteção ao direito de propriedade do devedor (antiga visão do CPC de 1973)[4]ZANETI JR, Hermes. O processo de execução no Código de Processo Civil brasileiro de 2015 e o direito fundamental à tutela do crédito. In: O processo civil entre a técnica processual e a tutela … Continue reading. Isso porque, instalada a recuperação, faz-se prova de que, talvez, os interesses da companhia devedora não tenham sido administrados da melhor forma, devendo ser aberta a decisão dos rumos da sociedade para a assembleia-geral de credores (e não só dos acionistas).
É inegável que, em condições normais, a cláusula arbitral é totalmente possível de ser pactuada entre os acionistas, acontece que, instaurado processo de recuperação, a validade do plano não estará vinculada apenas à vontade dos acionistas, mas também à de todas as classes de credores. A feitura do plano transcende a aplicação da arbitragem intrassocietária, pois adiciona sujeitos que a ela nunca foram ligados.
Perceba-se que, enquanto adimplente, os credores não têm direito a interferir na gestão patrimonial da empresa, mas, havendo risco de insolvência, ganham acesso de influência no gerenciamento da devedora. Tanto é assim que a Lei da Recuperação e Falência os divide em classes e lhes dá direito de voto para aprovação do plano.
A decisão do STJ, se transportada para todas as demais modalidades previstas simultaneamente no Art. 50 da Lei de Recuperação e Falência e no Art. 122 da Lei das S.A., poderá fazer com que um plano de recuperação aprovado pelos credores perca toda a sua eficiência por discordância dos acionistas, subvertendo os valores presentes no Art. 47 da Lei n.º 11.101/05, ou seja, fazendo prevalecer a vontade da devedora (acionistas, muitas vezes até minoritários) em prejuízo dos credores.
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Os acionistas que desejarem obstar o plano de recuperação aprovado pelos credores e homologado pelo juiz ainda deverão ter em mente que o Art. 61, § 1º, da LRF permite ao julgador que, percebendo que a empresa está descumprindo as obrigações assumidas, convole (transforme) o reerguimento societário em falência. Se comprovado que o inadimplemento se deu por culpa ou dolo dos acionistas dissidentes, a massa falida poderá buscar a reparação civil pelo prejuízo causado por tais investidores.
Sendo o juiz da recuperação o juízo competente para as matérias relativas ao plano de soerguimento, deveria ser deste órgão a atribuição para exame da legalidade e da adequação das estratégias de superação da crise apresentado pela empresa e aprovado pelos credores[5]BASILIO, Ana Tereza; ALÓ, Nicole. Reflexões sobre conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e juízo arbitral, a respeito de disposição do plano de recuperação judicial, … Continue reading. Nada impede, entretanto, que a jurisdição arbitral seja respeitada durante a elaboração do plano (para controvérsias surgidas antes de sua votação pela AGC) ou nas recuperações extrajudiciais.
A instauração de arbitragem, nos casos que já estão judicializados, retira a voz dos credores e da própria pessoa jurídica (verdadeiros prejudicados) e dá demasiada importância aos interesses lucrativos dos acionistas enquanto a empresa caminha para a autodestruição.
Essa mentalidade é tão forte que, na própria Lei da Recuperação e Falência, existe a previsão de que, havendo afastamento do devedor, é de atribuição da assembleia-geral de credores a votação para nomeação do novo gestor judicial, bem como, havendo previsão no plano, da consideração sobre novo administrador em caso de afastamento do anterior, mesmo que o Art. 122, II, da Lei nº 6.404/76 atribua à assembleia-geral de acionistas a deliberação sobre a eleição/destituição de administradores da companhia (quando a sociedade não está em crise).
Sendo assim, dada a importância da cláusula arbitral (até mesmo pela sua obrigatoriedade em alguns casos), é imprescindível o estudo e conhecimento de seus efeitos. Seja você empresário, administrador, investidor ou credor da empresa, previna-se quanto aos problemas que poderão surgir dessa disposição contratual que, com a recente decisão do STJ, poderá ser usada como forte ferramenta de defesa dos puros interesses dos acionistas, e não do soerguimento da sociedade.
Referências[+]
↑1 | Art. 7º, §1º da Lei nº 11.101/2005 prescreve que: “§ 1º Publicado o edital previsto no art. 52, § 1º, ou no parágrafo único do art. 99 desta Lei, os credores terão o prazo de 15 (quinze) dias para apresentar ao administrador judicial suas habilitações ou suas divergências quanto aos créditos relacionados.” |
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↑2 | DE ARAÚJO, Gilvandro Vasconcelos Coelho; DE ARAÚJO, Rodrigo Vasconcelos Coelho. Arbitragem e Recuperação Judicial – A convivência harmônica em litígio societário à luz do Conflito de Competência nº 157.099/RJ. In: DIDIER JR. Fredie: Processo Civil Empresarial e o Superior Tribunal de Justiça. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2021. p. 33. |
↑3 | BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, S2 – Segunda Seção. Conflito de Competência nº 157.099-RJ. Suscitante: Oi S.A. em recuperação judicial. Suscitado: Juízo de Direito da 7ª vara empresarial do Rio de Janeiro; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; Juízo Arbitral da Câmara de Arbitragem do Mercado de São Paulo – SP. Relatora p/ Acórdão: Min. Nancy Andrighi. Brasília, 10 de outubro de 2018. DJe 30/10/2018. |
↑4 | ZANETI JR, Hermes. O processo de execução no Código de Processo Civil brasileiro de 2015 e o direito fundamental à tutela do crédito. In: O processo civil entre a técnica processual e a tutela dos direitos: estudos em homenagem a Luiz Guilherme Marinoni. Coord: Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidieiro. Org: Rogéria Dotti. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 591. |
↑5 | BASILIO, Ana Tereza; ALÓ, Nicole. Reflexões sobre conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e juízo arbitral, a respeito de disposição do plano de recuperação judicial, no âmbito do julgamento do CC nº 157.099/RJ. In: DIDIER JR. Fredie: Processo Civil Empresarial e o Superior Tribunal de Justiça. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2021. p. 25. |
A empresa estatal é uma pessoa jurídica de direito privado, que precisa atender à finalidade pública para a qual foi criada, ao mesmo tempo em que também precisa acompanhar os padrões de eficiência impostos pelo mercado.
Enunciado 8 – O exercício da função social das empresas estatais é condicionado ao atendimento da sua finalidade pública específica e deve levar em conta os padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado, conforme delimitações e orientações dos §§1º a 3º do art. 27 da Lei 13.303/2016.
As empresas denominadas estatais, abrangidas nesse conceito as empresas públicas e as sociedades de economia mista, assim como as suas subsidiárias, exigem, para sua criação, autorização legislativa, nos termos do artigo 37, inciso XIX, da Constituição de 1988.
Para que seja viabilizada a criação de uma empresa estatal, para além de lei específica que a autorize, a Constituição de 1988 determina que a referida exploração direta da atividade econômica em questão por parte do Estado deverá ser necessária aos imperativos da segurança nacional ou atender a relevante interesse coletivo[1], motivo pelo qual o artigo 173, § 1º, inciso I, exige que o estatuto jurídico da estatal disponha sobre “sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade”.
A Lei nº 13.303/2016 (conhecida como “Lei das Estatais”), por sua vez, em seu artigo 2º, § 1º, reforça a necessidade de que haja, na lei que autoriza a criação de uma determinada estatal, a indicação clara do relevante interesse coletivo ou do imperativo de segurança nacional que se insere entre os seus fins institucionais, sendo precisamente essa a conceituação de “função social” trazida pelo diploma legal no caput do artigo 27.
Contudo, cumpre destacar que as estatais não exercem função social em razão da Lei nº 13.303/2016, mas, sim, das próprias particularidades que envolvem esse grupo de entidades da Administração Pública indireta. As empresas estatais devem estar voltadas à consecução da finalidade social relevante e ao atendimento da função social, uma vez que são esses objetivos que levaram o Estado a exercer atividade econômica de forma direta em primeiro lugar[2].
A Lei das Estatais, portanto, ao apresentar um conceito preciso para a “função social”, não fez mais do que explicitar de forma inequívoca uma concepção que já estava presente no texto constitucional. Da leitura dos dispositivos citados, observa-se que a Lei nº 13.303/2016 está em perfeita consonância com o disposto na Constituição Federal acerca da função social das estatais:
Lei nº 13.303/2016
Art. 27. A empresa pública e a sociedade de economia mista terão a função social de realização do interesse coletivo ou de atendimento a imperativo da segurança nacional expressa no instrumento de autorização legal para a sua criação.
Constituição Federal
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
Além disso, o artigo 27 da Lei nº 13.303/2016 traz, em seus parágrafos[3], orientações gerais sobre como a função social das empresas estatais deve ser atingida. Nos termos do § 1º, a realização do interesse coletivo a que se dedica a estatal deverá visar ao alcance do bem-estar econômico e à alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela empresa, orientando-se de maneira economicamente justificada.
O § 2º do artigo 27, por sua vez, impõe às estatais o dever de adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam, enquanto o § 3º autoriza a sua atuação em atividades culturais, sociais, esportivas, educacionais e de inovação tecnológica, desde que comprovadamente vinculadas ao fortalecimento de sua marca e observando, no que couber, as normas de licitação e contratos da Lei nº 13.303/2016.
Todas as orientações trazidas pelos parágrafos, contudo, devem respeitar a delimitação do caput do artigo 27: o interesse público que deu origem à estatal.
Nesse sentido, ressalta-se que, ao mesmo tempo em que as empresas estatais estão condicionadas pela sua função social, havendo subordinação desta à finalidade pública que ensejou a criação da estatal, não é possível ampliar ou estender de forma irrestrita a função social para abranger objetivos públicos distintos daqueles que justificaram a própria constituição da empresa pública ou sociedade de economia mista em questão.
Explica-se: a empresa estatal está integralmente condicionada à sua função social. Ao mesmo tempo em que não é possível ignorar ou desviar-se da função social imposta pela lei que autorizou a criação da estatal, tampouco é possível que a função social extrapole o objetivo ou a finalidade pública que ensejou a criação dessa empresa.
Ademais, é preciso ter em conta que a adstrição da atuação das estatais à sua função social não decorre apenas do disposto no artigo 27 da Lei nº 13.303/2016, mas, antes, deriva da própria natureza da empresa estatal. Sendo necessário a presença de interesse público relevante para permitir ao Estado o exercício da atividade econômica de forma direta, o atendimento à função social é imperioso para que seja possível concretizar esse interesse. Ao mesmo tempo, não é possível expandir a função social da empresa estatal de forma a extrapolar o objetivo ou a finalidade pública que ensejou sua criação, visto que seria incompatível com o texto constitucional uma ampliação irrestrita da função social, que abrangesse objetivos públicos distintos daqueles que motivaram a criação da empresa estatal.
Dessa forma, observa-se que, mesmo sendo a empresa estatal uma pessoa jurídica de direito privado (e, portanto, pertencente ao mercado), existem circunstâncias que a diferenciam das demais. A estatal possui finalidades públicas específicas previstas na lei que autorizou a sua criação, as quais devem ser atendidas, não sendo possível ter o seu escopo ampliado para além da finalidade que motivou a sua criação.
Ou seja, a empresa estatal é uma pessoa jurídica de direito privado, que precisa atender à finalidade pública para a qual foi criada, ao mesmo tempo em que, evidentemente, também precisa acompanhar os padrões de eficiência impostos pelo mercado. A empresa estatal, portanto, é uma organização que é impactada, concomitantemente, pelo Direito Público e pelo Direito Privado.
É nessa linha que se insere o Enunciado 8, aprovado na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, que dispõe o seguinte:
Enunciado 8
O exercício da função social das empresas estatais é condicionado ao atendimento da sua finalidade pública específica e deve levar em conta os padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado, conforme delimitações e orientações dos §§1º a 3º do art. 27 da Lei 13.303/2016.
O enunciado aprovado, que traduz precisamente o objetivo e alcance da função social das empresas estatais, reforça o conteúdo dos dispositivos legais presentes na Constituição Federal e na chamada Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) que versam sobre o tema. Concomitantemente, destaca-se que, ainda que haja uma finalidade pública específica, inerente à condição de estatal, estas empresas não podem furtar-se do atendimento aos padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado.
Conclui-se, assim, que as empresas estatais devem ter sua atuação sempre pautada pela função social definida em seus estatutos, bem como pela finalidade pública que lhes deu origem, sendo por esta limitadas e orientadas, mas sem esquecer, também, dos padrões de eficiência exigidos pelo mercado – os quais, naturalmente, fazem parte da rotina de uma empresa privada.
[1] Art. 173, caput, da Constituição de 1988.
[2] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 553.
[3] Art. 27. […] § 1º A realização do interesse coletivo de que trata este artigo deverá ser orientada para o alcance do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela empresa pública e pela sociedade de economia mista, bem como para o seguinte:
I – ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e serviços da empresa pública ou da sociedade de economia mista;
II – desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira para produção e oferta de produtos e serviços da empresa pública ou da sociedade de economia mista, sempre de maneira economicamente justificada.
§ 2º A empresa pública e a sociedade de economia mista deverão, nos termos da lei, adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam.
Read MoreAquele que deseja empreender sozinho, sem sócios, no Brasil, possui basicamente três opções: tornar-se empresário individual, abrir uma EIRELI ou constituir uma sociedade limitada unipessoal.
Marcelo John Cota de Araújo Filho[1]
O risco inerente ao exercício de uma atividade empresarial é algo que causa muita preocupação àqueles que se sentem inseguros em empreender com um sócio. A possibilidade de discordância sobre alguma estratégia de negócios específica e o receio da formação de desavenças pessoais pela diferença de ideias são exemplos que levam muitos a optarem por desenvolver um empreendimento sem a participação de outras pessoas.
Aquele que deseja empreender sozinho, sem sócios, no Brasil, possui basicamente três opções: tornar-se empresário individual, abrir uma Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) ou constituir uma sociedade limitada unipessoal. Cada uma das alternativas possui especificidades que podem ser vistas como vantagens ou como desvantagens, cabendo ao empreendedor decidir qual a melhor solução para o modelo de negócio que deseja desenvolver.
Essas especificidades serão abordadas a seguir, por meio do detalhamento das características de cada alternativa e das considerações pertinentes que devem orientar a decisão do empreendedor.
O EMPRESÁRIO INDIVIDUAL
Empresário individual é a pessoa física que exerce, em nome próprio, uma atividade empresarial. Isto é, empresário individual é a pessoa natural que desenvolve, com seus próprios recursos, seu empreendimento.
Uma característica marcante dessa modalidade é a responsabilidade ilimitada e direta do empresário individual, que responde por todas as dívidas contraídas com o seu patrimônio pessoal. Como não há uma pessoa jurídica à frente da atividade desenvolvida, não existe a hipótese de separação patrimonial, de forma que o patrimônio da pessoa física responde direta e ilimitadamente por quaisquer dívidas oriundas do exercício da empresa.
Apesar de essa característica ser vista como uma grande desvantagem, essa modalidade de empresário possui uma característica vantajosa para pequenos empreendimentos: a possibilidade de enquadramento como MEI (Microempreendedor Individual), que tem um procedimento de registro simples e um regime de tributação muito mais brando se comparado às outras modalidades de empresário.
Com efeito, o Microempreendedor Individual é isento de tributos fiscais federais (Imposto de Renda, PIS, Cofins, IPI e CSLL), devendo pagar apenas um valor fixo mensal, que corresponde a uma contribuição para o INSS e ao pagamento do ICMS ou ISS. Esse valor mensal, para o ano de 2020, equivale à quantia de R$ 53,25 para atividades relacionadas ao comércio e indústria, R$ 57,25 para atividades relacionadas a serviços e R$ 58,25 para atividades relacionadas ao comércio e serviços. No entanto, cumpre ressaltar que o MEI é uma categoria que se restringe a atividades mais simples, sobretudo por possuir um limite de faturamento bruto anual baixo, no valor de R$ 81 mil.
Embora seja comum confundir a figura do empresário individual com a do microempreendedor individual, eles são institutos distintos. Ser empresário individual é um requisito necessário para configurar-se como MEI, mas esse enquadramento só é possível se o empresário individual não ultrapassar o limite de faturamento anual de R$ 81 mil.
Diante do exposto, conclui-se que a opção de empreender sozinho através da roupagem de empresário individual só é conveniente para pequenos negócios. A grande vantagem para o empreendedor dessa modalidade reside na possibilidade de enquadrar-se como MEI, mas, caso esse enquadramento não seja possível, a responsabilidade direta e ilimitada do empresário individual, que faz com que seus bens pessoais possam responder pelas dívidas oriundas do exercício da empresa, é um motivo mais que suficiente para que o empreendedor busque outra alternativa para iniciar sua empresa.
A EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (EIRELI)
Integrada ao ordenamento jurídico brasileiro com a Lei nº 12.411/11, por muito tempo a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) foi a única alternativa para aqueles que desejavam exercer atividade empresarial sozinhos e, ao mesmo tempo, gozar do instituto da separação patrimonial entre pessoa física e pessoa jurídica.
A EIRELI é uma pessoa jurídica tutelada pelo artigo 980-A do Código Civil e rege-se, no que couber, pelas mesmas regras aplicadas às sociedades limitadas[2]. Isso significa que a EIRELI proporciona ao seu titular a mesma blindagem patrimonial que uma sociedade limitada oferece ao seu sócio, ou seja, existe uma separação patrimonial, de maneira que o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com o patrimônio da pessoa física.
Dessa forma, é certo dizer que a pessoa física que constituiu uma EIRELI limita sua responsabilidade ao capital investido para a formação da pessoa jurídica.
Ocorre que, no caso da EIRELI, há a imposição de um capital social mínimo de 100 salários mínimos para a sua constituição. Esse requisito mínimo pode ser visto como uma desvantagem principalmente para empreendedores iniciantes e que não possuem grande poder econômico, pois necessitariam de um investimento inicial elevado para poder exercer sua atividade empresarial devidamente.
Além disso, outra grande ressalva a se fazer sobre a EIRELI é que a pessoa natural que a constitui só pode ser titular de uma única pessoa jurídica desse tipo. Isso representa uma barreira principalmente para empreendedores mais dinâmicos e ousados, que têm o desejo de exercer atividades empresariais em mais de um ramo econômico, pois só poderiam ser titulares de uma única EIRELI, inviabilizando a constituição de outra pessoa jurídica desse tipo para desenvolver empresas distintas.
Assim, em que pese a EIRELI proporcionar a separação patrimonial, de forma que, ressalvados os casos de fraude[3], somente o patrimônio da pessoa jurídica será responsável pelas dívidas decorrentes do exercício da atividade empresarial, as restrições ligadas à constituição dessa pessoa jurídica podem estabelecer entraves a determinados empreendedores, sobretudo àqueles que não possuem condições de fazer um investimento inicial na monta de 100 salários mínimos e àqueles que possuem a pretensão de exercer diversas empresas.
SOCIEDADE LIMITADA UNIPESSOAL
Possibilidade existente desde a promulgação da Lei nº 13.874/2019, também conhecida como Lei da Liberdade Econômica, a Sociedade Limitada Unipessoal também representa uma alternativa para quem deseja empreender sozinho no Brasil.
Tratando-se de pessoa jurídica, a sociedade limitada unipessoal também promove a separação patrimonial entre o patrimônio da sociedade (pessoa jurídica) e o patrimônio pessoal do sócio (pessoa física), isto é, os bens pessoais do sócio não responderão pelas dívidas contraídas pela sociedade.
Como os patrimônios da pessoa física e da pessoa jurídica não se comunicam, é possível dizer que o sócio responderá de forma subsidiária[4] e limitada pelas obrigações sociais. Ou seja, quem responde por essas obrigações é a própria sociedade, com seus próprios bens, de forma que os bens particulares do sócio estão, em princípio, resguardados.
Vale ressaltar que essa blindagem patrimonial não é absoluta, existindo a possibilidade de responsabilização pessoal do sócio em caso de abuso da personalidade jurídica, hipótese configurada quando o sócio utiliza a sociedade para cometer irregularidades envolvendo o desvio de finalidade da pessoa jurídica ou para promover uma confusão patrimonial com o intuito de ocultar os próprios bens. Nesses casos, pode ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica, responsabilizando-se diretamente o patrimônio do sócio pelas irregularidades cometidas[5].
Portanto, ressalvados os casos de abuso, a sociedade limitada unipessoal retrata uma opção viável para a proteção patrimonial da pessoa que deseja empreender de forma a diminuir os riscos inerentes ao exercício da atividade empresarial no Brasil. Fornecendo blindagem patrimonial mas não se prendendo a restrições como ocorre no caso da EIRELI, a sociedade limitada unipessoal representa um grande avanço legislativo pátrio na área do Direito Empresarial, possibilitando aos mais diversos tipos de empreendedores o exercício adequado da atividade empresarial.
CONCLUSÃO
O desejo de empreender é latente a muitos cidadãos brasileiros, independente das condições de vida e esfera social em que estão inseridos. Do pequeno ao grande empreendedor, a possibilidade de exercer uma atividade empresarial sozinho deve ser avaliada em conformidade com as condições concretas do empreendedor e com a expressividade da atividade que ele pretende desenvolver, cabendo-lhe, assim, selecionar a alternativa mais viável entre as existentes para o seu modelo de negócios.
[1] Estagiário de Direito no escritório Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do grupo de extensão Inteligência Jurídica (UFU). Ex-assessor de presidência e ex-consultor de Negócios da Magna Empresa Júnior, além de ex-representante discente do Conselho da Faculdade de Direito (CONFADIR) da UFU.
[2] Art. 980-A. […] § 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
[3] Art. 980-A. […] § 7º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.
[4] A responsabilidade subsidiária surge na hipótese em que o sócio ainda não integralizou todo o capital social subscrito, estando limitada a esse valor subscrito mas ainda não integralizado.
[5] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Read MoreA Locus Iuris é uma das maiores empresas juniores de Direito do Brasil e atua, principalmente, na área do Direito Empresarial, com foco nas empresas startups.
O estagiário José Vitor Schmitz foi aprovado no processo seletivo da Locus Iuris, empresa júnior do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e assumiu o cargo de Gerente de Projetos.
O período trainee teve inicio em abril de 2019, sendo que, ao final, José Vitor foi efetivado como membro da Diretoria, no cargo de Gerente de Projetos. Esta função é responsável pela coordenação e gerenciamento dos projetos realizados pela equipe, além do esclarecimento de dúvidas e orientação dos demais membros que assessoram a execução.
A Locus Iuris é uma das maiores empresas juniores de Direito do Brasil e atua, principalmente, na área do Direito Empresarial, com foco nas empresas startups.