A Corte decidiu que, nas hipóteses em que o certame for organizado por entidade privada, a Administração Pública possui responsabilidade subsidiária e poderá arcar com os danos em caso de insolvência da organizadora do certame.
No final de junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) apreciou o Recurso Extraordinário nº 662.405 e prolatou acórdão paradigma para fixação da tese com repercussão geral do Tema nº 512. Na oportunidade, foi reconhecida a responsabilidade civil subsidiária do Estado frente a danos causados a candidatos de concursos públicos realizados por pessoa jurídica de direito privado, em caso de cancelamento do certame por indício de fraude.
Em outras palavras, o STF decidiu que, quando o certame tiver sido organizado por entidade privada, a Administração Pública possui responsabilidade subsidiária pelos danos causados a candidatos na hipótese de cancelamento decorrente de indícios de fraude.
No caso analisado pela Corte, a União Federal, por meio de pessoa jurídica de direito privado, organizou o certame público para a Polícia Rodoviária Federal. No entanto, o certame foi cancelado um dia antes de sua realização por meio de um ato administrativo praticado em consideração a uma recomendação do Ministério Público Federal, uma vez que havia indício de fraude.
Embora necessário, o cancelamento resultou em danos materiais aos candidatos, especialmente em relação aos gastos com inscrição e deslocamento, o que motivou o ajuizamento de ação de reparação civil. Diante disso, reconhecido o dano injusto, gerou-se a controvérsia: quem deve indenizar os candidatos, o Estado ou a entidade privada?
A Turma Recursal da Seção Judiciária de Alagoas, no caso concreto, atribuiu a responsabilidade à União, pois reconheceu a presença simultânea dos requisitos ensejadores da responsabilidade: “(i) à consumação do dano patrimonial do candidato inscrito no certame anulado, (ii) à conduta da Administração Pública que anulou o concurso em razão de indício de fraude, (iii) ao vínculo causal entre o evento danoso e o ato administrativo e (iv) à ausência de qualquer causa excludente de que pudesse eventualmente decorrer a exoneração da responsabilidade civil do Estado”.
Diante desta decisão, a União Federal interpôs recurso extraordinário para o fim de exonerar integralmente a sua responsabilidade, atribuindo-a somente à pessoa jurídica de direito privado responsável, em contrato, pela execução do concurso público. No caso do reconhecimento da sua responsabilidade, requereu que fosse reconhecida apenas de forma subsidiária.
Neste contexto, o Ministro Luiz Fux, relator do caso, deu provimento ao recurso, para o fim de reconhecer a responsabilidade da União, na modalidade objetiva, como previsto no artigo 37 da Constituição Federal, mas de forma subsidiária. Deste modo, a Administração Pública deve ressarcir os danos somente em caso de insolvência da entidade privada responsável pelo concurso público, esta sim responsável de forma primária.
O Relator, distinguindo a teoria do risco integral da teoria do risco administrativo, adotada no ordenamento jurídico brasileiro, reconheceu que é “juridicamente possível a oposição de causas excludentes do nexo de causalidade e exoneradoras de responsabilização pelo ente público”, o que difere da análise do elemento subjetivo (culpa ou dolo), inaplicável aos casos em que há exercício de função pública, nos quais se aplica a responsabilidade objetiva.
No caso julgado, foi reconhecida a aplicação da responsabilidade objetiva, uma vez que a realização de concurso público é função pública. Assim, para reconhecimento do direito indenizatório, cabe à parte demonstrar “a configuração dos elementos indispensáveis à responsabilização: conduta, dano e nexo de causalidade entre o dano e a conduta”, todos presentes no caso concreto.
Nas hipóteses em que a prestação do serviço público é atribuída a ente privado, que detém “personalidade jurídica, patrimônio e capacidade próprios”, ele deve responder primariamente pelos danos causados pela violação de suas obrigações contratuais. Foi o que reconheceu o Ministro Fux. Por outro lado, o relator não exonerou integralmente a Administração Pública, mas atribuiu a ela somente o dever indenizatório no caso de insolvência da entidade privada.
Em voto divergente, o Ministro Alexandre de Moraes argumentou pela exclusão integral da responsabilidade da Administração Pública. Isso porque, no seu entendimento, não ficou demonstrado, nos termos da teoria da causalidade direta, que a Administração Pública foi o agente causador do dano. Pelo contrário, nos termos do voto divergente, o Ministro constatou que a única responsável pelo resultado danoso foi o ente privado ao descumprir suas obrigações contratuais de preservação da integridade do certame. Portanto, o ente privado deveria responder exclusivamente pelo prejuízo causado.
Por maioria apertada, de 6 a 5, venceu a tese do Ministro Fux, fixada para nortear os julgamentos futuros:
“O Estado responde subsidiariamente por danos materiais causados a candidatos em concurso público organizado por pessoa jurídica de direito privado (art. 37, § 6º, da CRFB/88), quando os exames são cancelados por indícios de fraude”.
Com esta tese, os candidatos passam a ter maior segurança de que, ainda que a entidade responsável pela realização do certame não tenha condição financeira de arcar com o prejuízo que lhes foi causado pelo cancelamento do certame por conta de indícios de fraude, ainda poderão ser ressarcidos pela própria Administração Pública, que possui responsabilidade subsidiária.
Confira mais textos sobre concursos públicos:
Em caso de desistência, os próximos candidatos da lista classificatória têm direito à nomeação?
Quais os critérios para aplicação de exame psicotécnico em concursos públicos?
Read MoreO Tribunal de Contas do Distrito Federal acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame.
O Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) suspendeu cautelarmente, no fim de maio, licitação de serviços de publicidade lançada por empresa estatal do Distrito Federal, pois vislumbrou indícios de irregularidade na pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes[1].
Especificamente, o TCDF acatou argumentos da Representação oferecida e confirmou que a ausência de motivação na reavaliação da pontuação atribuída às propostas técnicas dos licitantes, por ter havido diferença superior a 20% da pontuação máxima permitida entre as notas concedidas pelos avaliadores, configura uma irregularidade e justifica a suspensão cautelar do certame. Segundo a decisão, confirmada por unanimidade pelo Plenário da Corte de Contas, “não houve manifestação técnica quanto aos casos de pontuação cuja diferença fosse superior a 20%, caracterizando a existência da fumaça do bom direito na representação tratada nos autos, frente, principalmente, à previsão legal constante do art. 6º, inc. VII, da Lei nº 12.232/2010”.
Para entender melhor o caso analisado pelo TCDF, é importante levar em conta que, com a publicação da Lei Federal nº 12.232/2010, as licitações para a contratação de agências de propaganda receberam um regulamento especial, motivo pelo qual a Lei Federal nº 8666/1993 passou a ser aplicada apenas subsidiariamente nesses casos. O motivo da existência de uma lei especial, com evidente procedimento mais rigoroso para o julgamento das pontuações técnicas, se deve ao fato de que as licitações para serviços de publicidade são naturalmente mais suscetíveis a direcionamentos e favorecimentos indevidos, sobretudo em razão da natureza do julgamento das propostas técnicas.
A preocupação acentuada com a etapa de julgamento das propostas técnicas para contratações desse objeto está expressa na justificativa da proposta legislativa que gerou a Lei Federal nº 12.232/2010. Leia-se o seguinte excerto da exposição de motivos do PL nº 3305/2008:
Tem a nossa experiência recente nos mostrado que a ausência de um tratamento normativo específico para essa matéria possibilita que, nesse campo, grandes arbitrariedades ocorram em todo o país. Empresas de publicidade contratadas com óbvio favorecimento, com base em critérios de julgamento subjetivos, contratos que encobrem a possibilidade de novos ajustes imorais com terceiros, pagamentos indevidos, desvios de verbas públicas destinadas à publicidade com fins patrimoniais privados ou para custeio de campanhas eleitorais são apenas alguns exemplos de transgressões que compõem um cenário já bem conhecido nos dias em que vivemos. [2]
Entre as exigências específicas da Lei Federal nº 12.232/2010, encontra-se a obrigação de a subcomissão técnica (aquela que julga as propostas técnicas dos licitantes) reavaliar a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% da pontuação máxima deste quesito. Como visto, a reavaliação da pontuação fica a cargo de uma subcomissão técnica, prevista no § 1º do artigo 10 da Lei, e deve ser realizada em conformidade com os critérios objetivos estabelecidos no edital de licitação. Confira-se o dispositivo:
Art. 6º A elaboração do instrumento convocatório das licitações previstas nesta Lei obedecerá às exigências do art. 40 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com exceção das previstas nos incisos I e II do seu § 2º, e às seguintes:
[…]
VII – a subcomissão técnica prevista no § 1º do art. 10 desta Lei reavaliará a pontuação atribuída a um quesito sempre que a diferença entre a maior e a menor pontuação for superior a 20% (vinte por cento) da pontuação máxima do quesito, com o fim de restabelecer o equilíbrio das pontuações atribuídas, de conformidade com os critérios objetivos postos no instrumento convocatório.
Nessas hipóteses, dever-se-á igualmente observar o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010, que prevê o envio das planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso à comissão permanente ou especial de licitação. Esta é considerada uma condição essencial do julgamento nas licitações de serviços de publicidade, uma vez que a ausência de motivação para as pontuações pode impedir o controle sobre o seu mérito, facilitando eventuais direcionamentos.
Desse modo, as razões das pontuações devem ser registradas por escrito pela subcomissão técnica e encaminhadas à comissão permanente ou especial, quer incida na hipótese regulada pelo inciso VII do artigo 6º, quer não. Veja-se como a exigência de manifestação escrita é expressa na Lei nº 12.232/2010:
Art. 11. Os invólucros com as propostas técnicas e de preços serão entregues à comissão permanente ou especial na data, local e horário determinados no instrumento convocatório. […]
§ 4º O processamento e o julgamento da licitação obedecerão ao seguinte procedimento: […]
V – análise individualizada e julgamento dos quesitos referentes às informações de que trata o art. 8º desta Lei, desclassificando-se as que desatenderem quaisquer das exigências legais ou estabelecidas no instrumento convocatório;
VI – elaboração de ata de julgamento dos quesitos mencionados no inciso V deste artigo e encaminhamento à comissão permanente ou especial, juntamente com as propostas, as planilhas com as pontuações e a justificativa escrita das razões que as fundamentaram em cada caso.
Ou seja, a subcomissão técnica precisa justificar expressamente os motivos que justificam a atribuição da nota, sob pena de violar diversas regras que regem a atividade administrativa e que permeiam todos os processos de contratação pública, em especial os deveres de motivação dos atos administrativos e do tratamento isonômico, além dos princípios da publicidade e da impessoalidade.
É preciso que os licitantes saibam os motivos que levaram à pontuação dos quesitos quando da análise da sua proposta técnica, caso contrário serão impedidos de, se necessário, exercer o seu direito constitucional de defesa. Neste sentido, encontra-se a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), segundo a qual “a ausência de justificativa escrita acerca das pontuações e das razões que as fundamentam em cada caso, nos procedimentos licitatórios para oferta de serviços de publicidade, afronta o que dispõe o art. 11, § 4º, inciso IV, da Lei 12.232/2010”[3].
Acontece que, não obstante a clareza das determinações legais, nem sempre a subcomissão técnica registra por escrito a justificativa das razões que basearam a avaliação ou a reavaliação de determinada pontuação, descumprindo assim o inciso VII do artigo 6º e/ou o inciso VI do § 4º do artigo 11 da Lei Federal nº 12.232/2010. No caso noticiado, pela violação do inciso VII do artigo 6º da referida lei, como salientado, o Tribunal confirmou a necessidade de realizar a sobredita reavaliação e, por unanimidade, dada a ausência de tal procedimento, suspendeu cautelarmente o certame.
A decisão noticiada confirma a competência legítima dos Tribunais de Contas em intervir cautelarmente para evitar irregularidade no curso da licitação pública, assim como o entendimento de que, nas licitações submetidas à Lei Federal nº 12.232/2020, configura ilegalidade a ausência de reavaliação da pontuação concedida a um quesito de um determinado licitante, quando a diferença entre a maior e a menor pontuação, atribuída pelos integrantes da subcomissão técnica, for superior a 20% da pontuação máxima do quesito.
[1] TCDF – Decisão nº 1798/2020, Plenário. Relator: Antônio Renato Alves Rainha. Data de Julgamento: 27/05/2020.
[2] Projeto de Lei nº 3305/2008, Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=391688 Acesso em 29 jun. 2020.
[3] TCU – Acórdão nº 2813/2017, Plenário. Relator: AROLDO CEDRAZ, Data de Julgamento: 06/12/2017.
Read More