
Improbidade administrativa apenas dolosa: o que mudou com a Lei 14.230/2021
O regime jurídico das sanções por atos de improbidade administrativa foi substancialmente reformulado pela Lei nº 14.230/2021, que alterou a redação da Lei nº 8.429/1992, hoje conhecida como Nova Lei de Improbidade Administrativa (NLIA). A reforma reduziu o alcance das sanções anteriormente previstas, refletindo uma opção legislativa orientada à contenção de excessos punitivos, sem abrir mão dos compromissos com a accountability e o enfrentamento à corrupção.
Nesse contexto, a accountability na gestão pública brasileira refere-se à obrigação dos agentes de prestarem contas de suas ações e decisões, submetendo-se à responsabilização por atuações em desconformidade com os deveres institucionais. Esse conceito é central para a efetividade da democracia e para o controle da corrupção, representando a capacidade institucional de fiscalizar, responsabilizar e sancionar condutas que atentem contra a probidade administrativa.
Antes da reforma, a redação da antiga legislação gerava crescente insegurança jurídica entre os gestores públicos, especialmente por permitir a responsabilização por condutas culposas ou por violações genéricas aos princípios administrativos. Esse contexto contribuiu para a formação de uma jurisprudência instável, que variava quanto aos limites da responsabilização, e acabou por estimular a excessiva judicialização da atividade administrativa, resultando na imposição de sanções severas mesmo diante de meras irregularidades formais. Com a reforma, buscou-se reequilibrar o sistema, restringindo a responsabilização a condutas dolosas que representem efetiva violação à confiança pública.
O principal desafio da nova LIA é encontrar um equilíbrio entre a busca por segurança jurídica, evidenciada pela exigência de dolo específico e pela delimitação mais precisa das hipóteses de responsabilização, e a preservação da accountability. Este artigo propõe-se a examinar como as alterações introduzidas pela Lei nº 14.230, de 2021, impactam esse delicado equilíbrio, refletindo sobre os avanços normativos e os riscos decorrentes da nova conformação jurídica da improbidade administrativa no Brasil.
As principais alterações da lei nº 14.230/2021
A Lei nº 8.429/92, em sua redação original, caracterizava-se por uma ampla tipificação dos atos de improbidade. Notadamente, o Art. 11, que tratava da violação aos princípios da administração pública, possuía natureza aberta e exemplificativa, permitindo que condutas meramente irregulares fossem classificadas como ímprobas. Além disso, a modalidade culposa para atos que causavam dano ao erário (Art. 10) permitia a responsabilização por negligência ou imprudência, para além do dolo.
A Lei nº 14.230/2021 promoveu modificações substanciais na Lei de Improbidade Administrativa, redefinindo seu alcance e a aplicação das sanções. Dentre as principais inovações, destacam-se:
A Exigência do Dolo Específico
Uma das alterações mais significativas da Lei nº 14.230/2021 foi a revogação expressa da modalidade culposa para atos de improbidade administrativa, especialmente para os atos que causam dano ao erário (Art. 10). Agora, a configuração de qualquer ato de improbidade exige a comprovação de dolo.
O art. 1º, §2º da nova LIA define dolo como “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”. Assim, a mera voluntariedade ou a ocorrência de dano não são suficientes para o enquadramento de determinada conduta como improbidade administrativa.
Para atos que importam enriquecimento ilícito (Art. 9º) e atos que atentam contra os princípios da administração pública (Art. 11), a exigência de dolo já era amplamente aceita pela jurisprudência, mas a reforma a tornou requisito. Para atos que causam dano ao erário (Art. 10), a mudança é radical, pois a culpa grave não é mais suficiente.
Além disso, o Art. 11, que antes possuía um rol exemplificativo de condutas violadoras de princípios, passou a ser taxativo, listando condutas específicas que, para serem consideradas ímprobas, exigem dolo específico.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 309, declarou em sede de repercussão geral a inconstitucionalidade da modalidade culposa dos atos de improbidade administrativa, prevista nos artigos 5º e 10 da redação original da Lei nº 8.429, de 1992.
No julgamento do Tema 1.199, por sua vez, a Corte assentou que a norma da Lei nº 14.230, de 2021, que revogou a modalidade culposa, possui natureza material benéfica e, embora irretroativa, aplica-se aos processos em curso que ainda não tenham sentença condenatória transitada em julgado.
O novo regime prescricional
A reforma alterou os prazos prescricionais para o ajuizamento das ações de improbidade, estabelecendo um prazo geral de oito anos, contado da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência (Art. 23). Além disso, a Lei nº 14.230/2021 introduziu a figura da prescrição intercorrente, que ocorre quando o processo fica paralisado por mais de quatro anos sem que haja um ato processual válido que o impulsione (Art. 23, §5°).
A vinculação de efeitos entre sentenças penais e civis
A reforma da Lei de Improbidade Administrativa ampliou os efeitos vinculantes das sentenças penais e civis sobre a esfera da improbidade. Nos termos do art. 21, § 4º, a absolvição criminal em ação que verse sobre os mesmos fatos, quando confirmada por decisão colegiada, impede o prosseguimento da ação de improbidade, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição. Já o §3º do mesmo artigo estabelece que as sentenças penais e civis que concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa de autoria também devem produzir efeitos no âmbito da ação de improbidade.
O acordo de não persecução cível (ANPC)
A Lei nº 14.230/2021 regulamentou a possibilidade de celebração do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC) pelo Ministério Público (Art. 17-B). Este acordo permite que o agente público ou terceiro envolvido em ato de improbidade, em vez de ser processado judicialmente, celebre um pacto com o Ministério Público, desde que haja a integral reparação do dano e a reversão da vantagem indevida.
A regulamentação do ANPC representa uma ferramenta de eficiência processual, potencialmente agilizando a resolução de casos e a recuperação de danos. Contudo, sua efetividade dependerá da aplicação criteriosa e da percepção de proporcionalidade e justiça nos seus termos.
Segurança jurídica: conceito e a justificativa das alterações
A segurança jurídica é um pilar fundamental do Estado Democrático de Direito, garantindo a previsibilidade, estabilidade e confiança nas relações jurídicas. No Direito Administrativo, ela se traduz na necessidade de que a atuação da administração pública e a responsabilização de seus agentes sejam pautadas por regras claras, evitando arbitrariedades e surpresas.
A Lei nº 13.655/2018, que incluiu dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), teve um papel fundamental na pavimentação do caminho para a reforma da LIA. Artigos como o Art. 28 da LINDB, que estabelece a responsabilidade pessoal do agente público por decisões ou opiniões técnicas apenas em caso de dolo ou erro grosseiro, e o Art. 22, que exige a consideração dos obstáculos e dificuldades reais do gestor, já sinalizavam uma tendência à maior proteção do agente público de boa-fé. Essas disposições da LINDB deram um novo escopo à improbidade culposa por dano ao erário, proporcionando aos agentes públicos e políticos um maior grau de segurança jurídica.
Setores da doutrina e da administração pública defendem que as alterações na LIA representam um avanço necessário para a segurança jurídica. A exigência do dolo específico, a taxatividade do Art. 11 e o novo regime prescricional visam coibir a excessos evitando que meros erros ou divergências interpretativas resultem em graves sanções. Essa perspectiva busca proteger o agente público honesto e incentivar a tomada de decisões, argumentando que a LIA anterior, ao permitir a responsabilização por culpa grave, inibia a ação gerencial e a inovação.
A reforma, nesse sentido, pode ser vista como uma medida de desburocratização e incentivo à gestão. Ao elevar o patamar para a caracterização da improbidade para o dolo, busca-se reduzir o “custo da inação” ou a “paralisia decisória”, isto é, o receio dos gestores em tomar decisões necessárias, mas potencialmente arriscadas, por medo de serem processados por erros não intencionais. Essa abordagem visa fomentar uma administração pública mais dinâmica e menos avessa a riscos, embora a questão de se essa proteção vem à custa de tolerar um certo nível de conduta não intencional, mas ainda prejudicial, permaneça em aberto.
Accountability e os desafios pós-reforma
A transparência governamental constitui elemento essencial da accountability, na medida em que permite à sociedade exercer controle sobre a legalidade e legitimidade dos atos da Administração Pública. A divulgação de informações e a participação social são mecanismos que fortalecem o controle sobre a gestão pública e contribuem para a prevenção e o enfrentamento da corrupção. A Constituição Federal, em seu art. 37, consagra princípios como a publicidade e a eficiência, pilares fundamentais da transparência administrativa.
Contudo, a reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230/2021) suscitou críticas no que tange ao possível enfraquecimento da accountability institucional. A exigência de dolo específico para a configuração de todos os atos de improbidade, bem como a taxatividade do rol de condutas previstas no art. 11, são apontadas como mudanças que podem gerar um vácuo de responsabilização. A principal preocupação reside na dificuldade probatória da demonstração do dolo, sobretudo em casos complexos envolvendo esquemas sofisticados de corrupção ou de má gestão dissimulada.
Essa limitação levanta preocupações quanto à eficácia do sistema de responsabilização, uma vez que a LIA tradicionalmente funcionava como importante mecanismo de preenchimento das lacunas deixadas pelo direito penal.
Nesse contexto, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 2.107.398, reconheceu a possibilidade de utilização simultânea da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) e da LIA como fundamentos de uma mesma ação civil pública, desde que não haja duplicidade punitiva em relação aos mesmos fatos e sanções. A Corte ressaltou que a Lei Anticorrupção foi concebida para complementar o sistema de responsabilização, sobretudo em relação a pessoas jurídicas, e que ambas as normas podem coexistir de forma harmônica, desde que respeitados os limites legais para evitar bis in idem.
Considerações Finais
A Lei nº 14.230, de 2021, promoveu uma transformação paradigmática na Lei de Improbidade Administrativa, ao substituir um modelo amplo e aberto, que admitia a responsabilização por culpa e por violação genérica a princípios, por um regime mais restritivo, baseado no dolo específico e na tipificação fechada das condutas. As alterações no regime prescricional, a introdução do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC) e a vinculação mais estreita com as esferas penal e administrativa redesenharam significativamente o cenário da responsabilização por atos de improbidade no Brasil.
O dilema entre segurança jurídica e accountability permanece no centro do debate. Se, por um lado, a reforma trouxe maior previsibilidade e proteção ao agente público de boa-fé, por outro, suscita preocupações quanto à efetividade do sistema de controle da Administração, sobretudo em face de práticas lesivas que não se enquadrem nos tipos específicos agora exigidos.
A aplicação da nova LIA ainda enfrentará importantes desafios interpretativos e institucionais. A consolidação da jurisprudência, especialmente no que se refere à delimitação do dolo específico e à revisão dos processos em curso, será decisiva para a construção de um novo paradigma. O Ministério Público e os órgãos de controle precisarão adaptar suas estratégias investigativas, com eventual utilização combinada de distintos regimes jurídicos, como a LIA e a Lei Anticorrupção, para fundamentar ações que assegurem a responsabilização proporcional e eficaz, sem afronta ao devido processo legal.
A trajetória da LIA, desde sua promulgação até a reforma de 2021, reflete movimentos cíclicos da política institucional brasileira, ora priorizando a expansão dos mecanismos de controle, ora enfatizando garantias e freios à atuação estatal. Assim, a LIA não deve ser compreendida apenas como um instrumento técnico-normativo, mas como um reflexo das tensões históricas entre a demanda social por probidade e os limites práticos da governança pública. A evolução do instituto não é contínua, e seguirá condicionada às transformações sociais, políticas e institucionais que moldam o combate à corrupção no Brasil.
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Read MoreO ANPC consolida uma nova perspectiva no Direito Público brasileiro, superando-se o entendimento de que a resolução de conflitos por meio de soluções negociais seria contrária ao interesse público, e estabelecendo a consensualidade como uma diretriz válida também no âmbito do Direito Sancionador.
Eduardo Martins Pereira[1]
A resolução de conflitos pela via consensual não é um fenômeno recente no contexto jurídico brasileiro. Trata-se, em verdade, de realidade concreta, que, na medida em que é eleita por instrumentos normativos e incorporada na prática forense, apresenta resultados que reforçam as razões para o seu emprego.[2]
Neste contexto, por iniciativa do Governo Federal, e com participação ativa do Congresso Nacional, foi promulgada a Lei nº 13.964/2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”, que, entre outras mudanças com o intuito de fortalecer o viés negocial no Direito Sancionador, institucionaliza a possibilidade de realização do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC) nas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa.
No caso, a referida alteração atingiu de forma específica o § 1º do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), não apenas retirando a antiga vedação à realização de transação, acordo ou conciliação nas ações que versem sobre atos de improbidade administrativa, mas também prevendo expressamente tal possibilidade, mediante a “celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei”.
Contudo, na proposta legislativa enviada para a sanção presidencial, além da mudança no § 1º do artigo 17, constava a inclusão do artigo 17-A, o qual regulamentava a competência e o procedimento a ser adotado para a sua firmatura. Essa inclusão, no entanto, foi integralmente vetada pelo Presidente da República[3], de modo que o Acordo de Não Persecução Cível foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro sem a devida delimitação normativa, circunstância que naturalmente implica dúvidas sobre a sua amplitude, funcionalidade e consequências, algumas das quais se pretende aqui abordar.
Questões sobre a competência para celebração do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
É interessante notar que o artigo vetado previa a competência exclusiva ao Ministério Público para a celebração do Acordo de Não Persecução Cível, de modo que a pessoa jurídica interessada, que também possui legitimidade para propositura de ação por ato de improbidade administrativa, nos termos do caput do artigo 17 da LIA[4], não poderia se valer deste instituto.
No entanto, a própria justificativa apresentada para o veto do artigo 17-A argumenta que tal distinção entre Ministério Público e pessoa jurídica interessada seria contrária ao interesse público e provocaria insegurança jurídica. Dessa forma, nos moldes atuais da Lei de Improbidade Administrativa, é possível inferir que a pessoa jurídica interessada pode também firmar Acordo de Não Persecução Cível, além de ter legitimidade ativa para a propositura de ação civil pública.
Em razão disso, a sistemática do ANPC deve ser compreendida a partir da dupla competência dos entes legitimados para a propositura de ação por ato de improbidade, em procedimento que harmonize a atuação do Ministério Público e da pessoa jurídica interessada, e que proteja a segurança jurídica do agente público ou particular com o qual se firme o Acordo de Não Persecução Cível.
Para ilustrar essa necessidade, imagine-se uma situação em que o Ministério Público celebre Acordo de Não Persecução Cível com determinado agente público ou particular, investigado ou acusado pela prática de ato ímprobo, sem comunicar a pessoa jurídica interessada – e, portanto, sem a anuência desta aos termos convencionados. Nesse caso, por óbvio, não se pode admitir que a pessoa jurídica interessada, posteriormente, proponha ação em face deste agente pelo mesmo ato ímprobo que já fora objeto do ANPC, mesmo que ela não tenha consentido com este e venha a discordar do seu teor.
Questões sobre a necessidade de homologação do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Deste mesmo contexto de (in)segurança jurídica no procedimento de formalização do ANPC surge a controvérsia sobre a necessidade de homologação judicial. Aliás, vale mencionar que o referendo do ANPC pelo Poder Judiciário constava na gênese deste instituto, pois era prevista no § 5º do artigo 17-A, que foi vetado.
Sobre isso, apesar da ausência de previsão normativa vigente, entende-se que, quando a ação civil pública por ato de improbidade administrativa já foi proposta, faz-se necessária a submissão do Acordo de Não Persecução Cível ao crivo do juízo competente, o qual deverá intimar o outro ente legitimado, seja ele o Ministério Público ou a pessoa jurídica interessada, para que tome ciência dos termos avençados e possa se manifestar. Dessa forma, mitiga-se o risco de uma dupla persecução pelos entes legitimados, outorgando-se maior segurança jurídica às partes.
Para mais, ressalta-se que, conforme disposto no caput do artigo 20 da LIA, as espécies sancionatórias de perda de função pública e suspensão de direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado de sentença condenatória. Assim sendo, no caso de ANPC que disponha sobre tais espécies de sanções, eventual ausência do crivo judicial poderia representar uma problemática no que diz respeito à sua legalidade.
De outro lado, se o Acordo de Não Persecução Cível foi celebrado durante o curso do inquérito civil público, antes da propositura da ação por ato de improbidade administrativa e, portanto, extrajudicialmente, a sua eficácia prescinde de homologação judicial. Nesse sentido, as orientações internas do Ministério Público têm sustentado apenas a necessidade de homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público.[5]
Questões sobre o momento processual em que pode ser celebrado o Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Dito isso, merece atenção também a questão sobre a delimitação do momento processual em que pode ser celebrado o Acordo de Não Persecução Cível. Nesse ponto, embora a redação original do Pacote Anticrime assegurasse a possibilidade de que o acordo fosse firmado também no curso da ação de improbidade, tal dispositivo foi vetado, ao argumento de que seria contrário ao interesse público, uma vez que o agente acusado de ato ímprobo estaria sendo incentivado a continuar no trâmite da ação judicial, visando à possível transação.
Em contrapartida, o Pacote Anticrime traz a inclusão do § 10-A ao artigo 17 da LIA, o qual permite que as partes solicitem ao juízo a interrupção do prazo para a apresentação de contestação em até 90 dias a fim de buscarem uma solução consensual. No entanto, entende-se que a possibilidade incluída no § 10-A não implica qualquer forma de preclusão da solução consensual, até mesmo porque a evidente finalidade do dispositivo é promover a resolução de conflitos pela via negocial, e não restringi-la.
Assim sendo, em que pese o veto do dispositivo que regulava esta matéria na Lei Federal nº 13.964/2019, e mesmo que não haja previsão legal assertiva sobre tal possibilidade, entende-se admissível a celebração de ANPC em qualquer momento processual, desde que anterior ao trânsito em julgado da ação que versa sobre o referido ato de improbidade. Em outras palavras, o ANPC pode ser firmado tanto na fase pré-processual, antes mesmo de finalizada a investigação, contanto que presentes os elementos que compõem a justa causa, quanto na fase processual e recursal, inclusive após a condenação em 2ª instância. Inclusive, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já abordou a controvérsia, reconhecendo expressamente essa possibilidade em decisão paradigmática prolatada no Agravo em Recurso Especial nº 1.314.581.
Haveria um direito à celebração do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC)?
Como bem lecionam Gustavo Justino e Wilson Accioli Filho, a partir dos dogmas da eficiência e da racionalidade, é possível afirmar que a análise a ser realizada na fase pré-processual, em sede de Inquérito Civil Público, já não se restringe à existência de justa causa para a persecução sancionatória, limitando-se à demonstração de indícios de autoria e provas de materialidade do ato ímprobo, mas passa a abranger desde já a análise da possibilidade de resolução da demanda pela via consensual.[6] Essa possibilidade se evidencia, por exemplo, pelo fato de ser possível até mesmo o trancamento judicial do Inquérito Civil Público, ao argumento de que não foi oportunizado o diálogo entre as partes para a obtenção de uma solução negociada.
Nesse ponto, cumpre distinguir, o que se afirma não é a existência de um direito subjetivo à proposta de acordo por parte do agente público ou beneficiário do ato ímprobo, como poderia se entender no caso do instituto da transação penal, vigente no âmbito do direito criminal, mas, pelo menos, a garantia de um canal de diálogo com o ente legitimado para a propositura da ação por improbidade administrativa, de modo que este não poderia dispensar arbitrária e unilateralmente a solução negocial.
Sigilo das negociações.
Convém dizer que, independentemente do resultado das tratativas para a celebração do ANPC, as informações e documentos compartilhados entre as partes devem ser mantidos em sigilo até a sua homologação judicial, em respeito aos deveres éticos da negociação. Dessa forma, e traçando-se o paralelo com o caput do artigo 35 do Decreto Federal nº 8.420/2015 (que dispõe sobre os Acordos de Leniência), caso o ANPC não se concretize, os dados compartilhados devem ser devolvidos aos proprietários, sendo vedado o seu uso para fins de responsabilização, exceto quando o ente legitimado já tenha conhecimento de tais dados independentemente da negociação.
Conteúdo do Acordo de Não Persecução Cível (ANPC).
Doutro norte, é oportuno destacar que o Acordo de Não Persecução Cível pode assumir tanto natureza de pura reprimenda, de modo semelhante aos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, em que se negocia a aplicação imediata de determinada sanção sem a necessidade de que o agente ofereça algo em troca; quanto natureza colaborativa, com a troca de informações úteis ao interesse público visando a redução da sanção a ser aplicada, como ocorre nos Acordos de Leniência, instituídos pela Lei nº 12.846/2013.
Por tais características, o Acordo de Não Persecução Cível apresenta-se como um instrumento processual flexível, capaz de adaptar-se, caso a caso, às necessidades das partes e do interesse público.
Em outra perspectiva, tem-se a controvérsia sobre a necessidade de confissão formal da prática do ato ímprobo pelo agente investigado ou já acusado como pressuposto para a celebração do Acordo de Não Persecução Cível. Nessa questão, costuma-se traçar um paralelo com o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), do qual se originou o instituto ora abordado, e também com o Acordo de Leniência, para sustentar tal necessidade. Inclusive, essa é a posição que vem sendo adotada nas orientações internas do Ministério Público.[7]
Todavia, nesse ponto, observa-se que a legislação não traz essa exigência de forma expressa como condicionante da celebração do Acordo de Não Persecução Cível – diversamente das disposições normativas sobre o ANPP e o Acordo de Leniência. Diante disso, impor a condição de confissão ao investigado ou acusado é incorrer em interpretação extensiva em seu desfavor, ou em analogia in malam partem, devendo ser, portanto, interpretação vedada em decorrência do princípio da reserva legal vigente no sistema jurídico-penal, o qual deve também ser observado no âmbito do Direito Sancionador lato sensu.[8]
Outrossim, sob um viés pragmático, pode-se questionar a utilidade, para o interesse público, de uma confissão formal pelo agente ímprobo, e acrescentar que tal exigência tem o condão de repercutir numa série de distorções, na medida em que o agente pode simplesmente confessar a prática do ato para se livrar de uma investigação ou condenação com efeitos mais graves. Não por outro motivo, a exigência de confissão formal vem sendo questionada no âmbito do ANPP.[9]
Dessa forma, em privilégio ao livre arbítrio das partes para manejar o ANPC, entende-se que cabe a elas dispor sobre a questão da confissão no plano negocial, inexistindo óbice à celebração de acordo sem confissão formal pelo agente investigado ou acusado de improbidade – com a ressalva de que tal posicionamento não corresponde ao entendimento dominante desta matéria.
Por fim, no tocante às sanções a serem convencionadas entre as partes no âmbito do ANPC, novamente em privilégio à liberdade de transigência no campo negocial, entende-se possível a inclusão de outras medidas não previstas no rol de sanções trazido no artigo 12 da LIA[11], desde que adequadas à proteção da probidade administrativa, proporcionais à gravidade do ato ímprobo e, por óbvio, não defesas por lei.
Não obstante, convém mencionar que, havendo dano ao erário e/ou enriquecimento ilícito pelo agente ímprobo, impõe-se necessariamente a reparação integral do dano e/ou o ressarcimento dos valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio do agente acusado como desdobramentos inevitáveis do Acordo de Não Persecução Cível.
Considerações finais.
Isto posto, verifica-se que a ausência de disciplina legal para o procedimento a ser adotado na formalização do Acordo de Não Persecução Cível pode ser positiva, na medida em que a flexibilidade privilegia o livre arbítrio das partes em manejar o instituto processual, e eventualmente negativa, haja vista os questionamentos que surgem sobre a sua segurança jurídica e a sua legalidade.
Em conclusão, pode-se dizer que o Acordo de Não Persecução Cível consolida uma nova perspectiva no Direito Público brasileiro, superando-se o entendimento de que a resolução dos conflitos por meio de soluções negociais seria contrária ao interesse público, e estabelecendo a consensualidade como uma diretriz válida também no âmbito do Direito Sancionador.
[1] Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estagiário em Direito em Schiefler Advocacia. Membro do Laboratório de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Eleitoral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Contato: eduardomartins@schiefler.adv.br.
[2] O mais recente relatório do CNJ intitulado “Justiça em Números”, publicado em 2020, relativo aos dados colhidos no ano de 2019, indica a ocorrência de 3,9 milhões de acordos firmados por conciliação e homologados judicialmente no Brasil, número que representa 12,5% do total de processos daquele ano e que, apesar de expressivo, se considerado em conjunto com os custos financeiros e logísticos, tem potencial para crescer ainda mais. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf>. Acesso em 21 de maio de 2021.
[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-726.htm. Acesso em 21 de maio de 2021.
[4] Lei nº 8.349/1992. Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.
[5] Resolução nº 1.193/2020 do Colégio dos Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Artigo 5º, inciso V: Art. 5º – O instrumento que formalizar o acordo deverá conter obrigatoriamente os seguintes itens, inseridos separadamente: (…)
XII – Advertência de que a eficácia do acordo extrajudicial estará condicionada a sua homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público.
[6] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-06/opiniao-trancamento-judicial-inquerito-civil-publico>. Acesso em 17/05/2021.
[7] Resolução nº 1.193/2020 do Colégio dos Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Artigo 5º, inciso V: Art. 5º – O instrumento que formalizar o acordo deverá conter obrigatoriamente os seguintes itens, inseridos separadamente: (…)
V – Assunção por parte do pactuante da responsabilidade pelo ato ilícito praticado;
[8] Nesse sentido, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) estabelece, no paradigmático caso Oztürk, um conceito amplo de direito penal, que reconhece o direito administrativo sancionador como um “autêntico subsistema” da ordem jurídico-penal. A partir disso, determinados princípios jurídico-penais se estenderiam para o âmbito do direito administrativo sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato. (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. p. 128)
[9] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-23/cnmp-analisar-exigencia-confissao-acordo-nao-persecucao>. Acesso em 20/05/2021.
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