REGRA DE OURO DAS LICITAÇÕES PÚBLICAS: COMPREENDENDO A ESSÊNCIA DE QUALQUER CERTAME
Giovanna Gamba
Advogada
Gustavo Schiefler
Advogado
Para um profissional que se dedica ao estudo do universo das licitações públicas pela primeira vez, o emaranhado de normas, regras, entendimentos, discussões, divergências e polêmicas pode parecer ininteligível, até mesmo espantoso. Surge frequentemente a sensação de que a compreensão deste assunto dependeria de uma dedicação intensa durante anos, quem sabe décadas.
Por um lado, é verdade que há grande complexidade no universo das licitações públicas e que esta temática se estrutura a partir de um sem-número de detalhes. É correto também que o alcance de uma superespecialização nesta matéria depende de uma atividade de dedicação intensa e permanente – aliás, como ocorre em muitas das áreas relevantes do conhecimento humano.
Contudo, também é verdade que a compreensão básica sobre a essência das regras licitatórias não é difícil; pelo contrário, é uma tarefa bastante simples. E tal compreensão auxilia significativamente o processo de aprendizagem e de capacitação profissional, já que revela estrutura que sustenta o sistema das licitações públicas, permitindo que as regras previstas nas normas jurídicas e os entendimentos sedimentados pelos tribunais brasileiros sejam efetivamente compreendidos, e não apenas conhecidos ou decorados.
Ao longo dos últimos 10 anos, após uma intensa dedicação acadêmica e profissional, com a análise de tantas normas sobre licitação pública, tantos casos concretos, opiniões de professores consagrados e centenas de acórdãos judiciais e dos tribunais de contas, tornou-se possível sintetizar e identificar uma “regra de ouro das licitações”.
Esta regra de ouro das licitações, que é uma criação para fins didáticos, sintetiza a essência do que é proposto e perseguido pela Administração em qualquer processo licitatório, qualquer que seja o órgão licitante, qualquer que seja o regime jurídico aplicável, seja submetido à Lei nº 8.666/1993 ou à Lei nº 10.520/2002, ou então à Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) ou à Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021). Em outras palavras, é uma regra teórica que, ao revelar o sentido das licitações públicas, auxilia na compreensão de todos os regimes jurídicos construídos sobre o assunto pela nossa legislação, jurisprudência e doutrina.
Mas, afinal, qual é a regra de ouro das licitações públicas? É a seguinte:
Por meio da licitação pública, a Administração Pública objetiva reunir o maior número possível de interessados idôneos e com capacidade para executar o pretendido contrato administrativo, submetendo-os a uma competição justa, por meio da qual se identifica quem será contratado.
A regra, bastante simples, denota a natureza e o propósito das licitações. Com apoio nesta regra de ouro, é possível deduzir os princípios aplicáveis ao certame, assim como interpretar adequadamente as suas regras, de modo sistêmico. Enfim, conhecendo esta regra de ouro, é simplificada a compreensão do universo licitatório.
Segmentando os trechos da regra de ouro, identificamos que o primeiro objetivo do Estado é “reunir o maior número possível de interessados”. Para isso, é imprescindível que haja uma ampla divulgação do certame; ou seja, que haja publicidade, o que acontece, por exemplo, nos termos da legislação, com a divulgação em jornal de grande circulação, publicação no site oficial do ente licitante e no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP). Assim, viabiliza-se que os potenciais interessados tomem conhecimento da licitação (princípio da publicidade) e, se lhes for interessante e possível, que participem dela. Essa publicidade é acompanhada de um edital que fornece clareza sobre as informações relativas ao objeto do futuro contrato (precisão e detalhamento do projeto básico ou do termo de referência).
Mas o Estado não deseja atrair todo e qualquer interessado. Ele pretende reunir aqueles que, além de interessados, sejam “idôneos” e possuam “capacidade para executar o pretendido contrato administrativo”. Ou seja, o objetivo da licitação é ser atrativa para um conjunto de atores de mercado que reúnam certas qualidades que o tornem capazes de executar o contrato.
Para isso, existem primeiramente alguns requisitos básicos de idoneidade, que se vinculam a uma ideia maior de honestidade e moralidade: não é possível, por exemplo, que um licitante esteja cumprindo alguma sanção impeditiva de seu direito de licitar ou contratar com a Administração. Noutro exemplo, não é permitido que o licitante mantenha vínculo de parentesco com quem possui poder de gerência sobre o certame.
Além disso, é preciso que o edital de licitação indique quais serão os atributos exigidos para a participação naquele certame, os quais, ao serem cumpridos, demonstram que os interessados na execução do contrato, se o firmarem, serão capazes de executá-lo. Por exemplo, se o Estado pretende contratar um escritório de advocacia, é preciso se certificar, no mínimo, de que os profissionais que atuarão no caso são advogados. No mesmo sentido, se vai contratar serviços de engenharia, é preciso avaliar se há profissionais habilitados a exercer esta atividade econômica. Assim, no edital devem ser previstas regras de habilitação, contemplando as condições indispensáveis para aferir a capacidade do interessado na licitação.
Avaliar se o interessado detém capacidade para executar o contrato administrativo significa, por exemplo, também, verificar se a empresa possui condições financeiras para suportar o cumprimento de suas obrigações decorrentes daquela futura avença – isso porque, como regra geral aplicável aos contratos administrativos, primeiramente o particular deve cumprir as suas obrigações contratuais, para, só então, depois, receber a contrapartida financeira devida pela Administração. Por isso, uma empresa em falência não deve ser considerada habilitada para executar o contrato.
Mas não basta isto.
Por vezes, o contrato administrativo é tão vultoso e dotado de importância estratégica para a Administração que é preciso um grau de segurança qualificado a respeito das condições econômico-financeiras da licitante, razão pela qual poderá ser exigido não apenas que a empresa tenha higidez econômica regular, mas que ela tenha um porte específico (por exemplo, com exigência de capital social mínimo) ou índices contábeis qualificados.
A regra de ouro das licitações públicas, ao indicar que os interessados na execução do futuro contrato precisam ter também a capacidade para tanto, auxilia-nos a compreender todas as regras da fase de habilitação. Assim, compreende-se mais facilmente a razão pela qual o Estado deverá exigir documentos básicos que demonstrem a existência da empresa e a sua capacidade jurídica de celebrar contrato (habilitação jurídica), se ela tem condições técnicas de executar aquele contrato (habilitação técnica), se a licitante atende às normas fiscais, sociais e trabalhistas (habilitação fiscal, social e trabalhista) e se ela tem estrutura financeira para suportar o cumprimento de suas obrigações decorrentes daquela futura avença (habilitação econômico-financeira).
Mas, depois de convocar e reunir o maior número possível de interessados, como selecionar aquele licitante que se transformará efetivamente em um particular contratado?
Para isso, o Estado deverá submeter os interessados a uma competição justa, estabelecendo, desde o edital, quais serão os parâmetros adotados para identificar a melhor proposta dentre as apresentadas pelos competidores.
Poderão ser utilizados ao menos três parâmetros:
(i) vencerá o licitante que apresentar a proposta mais econômica para a Administração (menor preço ou maior desconto);
(ii) vencerá o licitante que alcançar a melhor nota na avaliação conjugada entre uma nota para a sua proposta técnica e uma nota para a sua proposta de preços, em percentual de proporcionalidade (peso) previamente estabelecido a cada um dos critérios (técnica e preço);
(iii) vencerá o particular que apresentar a proposta mais qualificada sob a perspectiva técnica, sendo que a própria Administração já definiu, previamente, no edital, o valor que irá remunerar o particular contratado (melhor técnica).
E para que esta seleção seja efetivamente justa, os critérios precisam ser objetivos, precisam estar claros e precisos no instrumento convocatório (princípio do julgamento objetivo), sendo obrigatório que a Administração Pública siga rigorosamente as regras por ele criadas (vinculação ao instrumento convocatório).
Caso não seja viável submeter os licitantes a uma competição justa, não haverá como se realizar a licitação pública. Por exemplo, se a Administração Pública reconhece que há um único produto oferecido no mercado que pode atender à sua necessidade e que, além disso, este produto é vendido por uma única empresa, não haverá viabilidade de competição. A regra de ouro das licitações públicas, neste caso, não poderá ser observada e, na prática, a contratação ocorrerá sem licitação pública (no exemplo, será uma contratação por inexigibilidade de licitação pública).
No mesmo sentido, se a Administração Pública necessita de um serviço técnico-profissional especializado, destinado a resolver um problema dotado de singularidade, de complexidade, de alta relevância, e precisa contratar um profissional notoriamente especializado para realizá-lo (como para emissão de um parecer técnico ou a realização de uma perícia), não haverá viabilidade de se definir parâmetros objetivos para avaliar qual profissional é mais ou menos qualificado para atender àquela atividade: seria mais qualificado o profissional com formação mais antiga? Ou com especialização acadêmica mais recente? Ou o profissional que mais elaborou artigos científicos naquele tema? Ou aquele com maior número de livros publicados? Seria a melhor proposta aquela mais econômica? Por todos os ângulos em que se observa a questão, fica claro que nenhum destes critérios é objetivo o suficiente para gerar um grau razoável de certeza sobre a identificação da melhor proposta, não havendo parâmetros para viabilizar uma competição justa que permita se concluir pelo profissional mais qualificado. Nestas situações, por ser impossível realizar uma competição justa, também não haverá licitação pública, podendo ser realizada uma contratação direta, novamente por inexigibilidade.
Regra de ouro das licitações públicas
“Por meio da licitação pública, a Administração Pública objetiva reunir o maior número possível de interessados idôneos e com capacidade para executar o pretendido contrato administrativo, submetendo-os a uma competição justa, por meio da qual se identifica quem será contratado.“ |
A regra de ouro das licitações públicas é válida para a NLLCA?
Desde abril de 2021, com a aprovação da Lei 14.133/2021, vivemos uma janela de oportunidade para aqueles que atuam com licitações, em razão da mudança das normas gerais de licitações e contratos no País.
As regras que fundamentam aquilo que se conhece de licitações a partir da Lei 8.666/1993 estão em processo de obsolescência, o que exige de todos os operadores da área, sejam os licitantes, sejam agentes públicos, controladores ou advogados, um estudo aprofundado sobre a nova legislação, para que seja apreendido, e aprendido, o novo regime.
É certo que a substituição da antiga lei por um diploma desta envergadura (a nova legislação contém 194 artigos), embora inove em muitos aspectos, não faz terra arrasada do regime licitatório.
Como previsto, ainda que haja a substituição integral da legislação, a regra de ouro das licitações públicas segue válida e pode nortear o aprendizado da nova lei. A partir desta regra de ouro, então, qualquer interessado pode entender com mais facilidade o universo das licitações públicas, pois será capaz de situá-las e compreendê-las dentro da sua lógica mais ampla.
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