Entendendo o processo licitatório: as etapas do certame
Entre as diversas alterações trazidas pela Lei nº 14.133/2021 (a chamada Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLCA), uma das mudanças mais significativas diz respeito às etapas dos procedimentos licitatórios.
Afastando-se consideravelmente da sua antecessora, a conhecida Lei nº 8.666/93, a NLLCA trouxe uma sequência de fases muito similar à adotada pela Lei do Pregão (Lei nº 10.520/02), em especial devido à inversão das fases de habilitação e de julgamento das propostas, com o objetivo de simplificar e conferir agilidade ao procedimento licitatório.
Em linhas gerais, o rito da licitação pública se estrutura por meio das seguintes etapas, prevista no artigo 17 da Lei nº 14.133/2021:
Fase preparatória
A fase preparatória, também chamada fase interna da licitação, contempla inicialmente a identificação de uma necessidade pública que, embora não possa ser resolvida de forma adequada e diretamente pela própria Administração, pode ser satisfeita por meio da contratação de um particular. Uma vez identificada essa necessidade, ainda na fase preparatória, tem-se o planejamento sobre a contratação em si, em termos de melhor solução, incluindo a forma de seleção do particular a ser contratado e o objeto da contratação propriamente dito.
É nessa fase que serão desenvolvidos o Estudo Técnico Preliminar (ETP), o Projeto Básico ou Termo de Referência, além do edital convocatório. Ou seja, é a etapa em que se realizam os de estudos técnicos contendo a justificativa e as condições para a contratação, sempre a partir da requisição originária para a contratação necessária para resolver um problema da Administração.
Na Lei nº 14.133/2021 foi conferido um destaque inédito a essa fase, em especial por meio do artigo 18, que traz uma espécie de “manual de instruções” para o planejamento da licitação pública, representando uma evolução em relação à Lei nº 8.666/93, que possuía pouquíssimos artigos tratando sobre esse tema.
Divulgação do edital
Uma vez encerrada a instrução do processo licitatório durante a fase preparatória, na qual é realizado o controle prévio de legalidade e a análise da regularidade da contratação pela assessoria jurídica da Administração, a autoridade competente determina a divulgação do edital da licitação.
Essa divulgação deve seguir o disposto no artigo 54 da Lei nº 14.133/2021, atentando-se para a necessidade de que a publicidade do edital seja realizada mediante divulgação no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), além de ser publicado extrato do edital no Diário Oficial da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, bem como em jornal diário de grande circulação.
Apresentação de propostas
Os particulares interessados na licitação devem apresentar suas propostas durante o período designado no edital.
Na maioria dos casos, o ambiente onde ocorre a apresentação das propostas dos licitantes é eletrônico, ou seja, a proposta é apresentada por meio de uma plataforma eletrônica (como o Comprasnet ou o e-Licitações).
Basicamente, o licitante precisa estar previamente credenciado no sistema em que acontecerá o certame. Para isso, é comum que o interessado tenha de apresentar documentos habilitatórios mínimos, que permitam a criação de um login e de uma senha. A partir dessas credenciais, o licitante apresentará a sua proposta no sistema, em concorrência direta com outros eventuais participantes.
No caso de licitações presenciais, a apresentação das propostas acontece por meio da apresentação, à Administração, envelopes lacrados contendo esses documentos mínimos, que serão apresentados em uma data especificamente designada para isso.
Antes do julgamento propriamente dito, é feita uma análise das propostas apresentadas, sendo possível a desclassificação de eventuais participantes nesta etapa, em caso de desconformidade com o edital que não possa ser sanada.
Após a apresentação das propostas, a Administração deve classificar os licitantes segundo os critérios objetivos previstos pelo edital.
Neste momento, a depender do modo de disputa, poderá ocorrer uma sessão competitiva em tempo real. Como será visto em detalhes mais adiante, o modo de disputa poderá ser:
- Aberto, e, nesse caso, os licitantes poderão apresentar novas propostas de preços por meio de lances públicos e sucessivos, crescentes ou decrescentes;
- Fechado, hipótese em que as propostas apresentadas permanecerão em sigilo até a data e hora designadas para sua divulgação; ou,
- É possível, ainda, a utilização conjunta dos dois modos de disputa.
Julgamento das propostas
Uma vez classificadas as propostas apresentadas pelos licitantes, estas serão julgadas pela comissão licitante ou pelo pregoeiro, momento no qual serão desclassificados os licitantes que apresentarem propostas com vícios ou desconformidades insanáveis, que não obedecerem às especificações técnicas previstas no edital, que apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação, ou, ainda, que não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração.
Caso os vícios encontrados sejam sanáveis, a Administração deverá possibilitar ao licitante a correção desse vício, abrindo diligência para tal, como, por exemplo, um erro de cálculo do valor da proposta, em que os preços unitários estão corretos, mas a soma está incorreta. Além disso, se o preço for considerado inexequível – ou seja, não se revelar capaz de possibilitar ao licitante uma retribuição financeira compatível em relação aos encargos que terá de assumir contratualmente –, este licitante terá a oportunidade de comprovar que o preço em questão é exequível.
A etapa de julgamento das propostas pode acontecer de diferentes maneiras, a depender do critério de julgamento do certame. Por exemplo, se o critério adotado for menor preço ou maior desconto, o julgamento se dará por meio da simples comparação dos valores apresentados. Se o critério for técnica e preço, por outro lado, deverá ser considerada a maior pontuação obtida a partir da ponderação das notas atribuídas aos aspectos de técnica e de preço da proposta, de tal modo que haverá avaliação das propostas técnicas, e, em seguida, as propostas de preço apresentadas pelos licitantes, na proporção máxima de 70% (setenta por cento) de valoração para a proposta técnica.
Além disso, tanto no julgamento por técnica e preço, quanto no julgamento por melhor técnica, são verificadas a capacidade e experiência do licitante, comprovadas por meio da apresentação de atestados de obras, produtos ou serviços previamente realizados, sendo que as notas serão atribuídas por banca designada para essa finalidade, de acordo com as orientações e limites definidos em edital.
Por fim, especificamente nos casos de julgamento por melhor técnica ou conteúdo artístico, serão consideradas exclusivamente as propostas técnicas ou artísticas apresentadas pelos licitantes.
Negociação
Outra previsão trazida pela Lei nº 14.133/2021 diz respeito à possibilidade de a Administração, assim que esteja definido o resultado do julgamento, negociar condições mais vantajosas com o primeiro colocado, sendo esta etapa de negociação facultada pela lei. Essa negociação poderá ser feita com os demais licitantes, segundo a ordem de classificação inicialmente estabelecida, quando o primeiro colocado, mesmo após a negociação, for desclassificado em razão de sua proposta ter permanecido acima do preço máximo definido pelo órgão licitante (artigo 61, § 1º).
Habilitação
Depois do julgamento das propostas, tem-se a etapa de habilitação do licitante mais bem classificado, com o objetivo de apurar se este cumpre todos os requisitos necessários para tal habilitação.
Nesse momento, será verificado o conjunto de informações e documentos que comprovam a idoneidade e a capacidade do licitante de realizar o objeto da licitação, dividindo-se em:
- Capacidade jurídica;
- Capacidade técnica;
- Capacidade fiscal, social e trabalhista; e
- Capacidade econômico-financeira.
Se, após a análise desses documentos, concluir-se que o licitante não atende às exigências do edital, os demais licitantes serão chamados, sucessivamente, de acordo com a ordem de classificação das propostas apresentadas.
Fase recursal
Após a etapa de habilitação dos licitantes, tem-se uma fase recursal única, na qual serão impugnadas todas as eventuais irregularidades ocorridas nas demais fases da licitação. A existência de uma fase recursal única é, também, uma das grandes novidades trazidas pela Lei nº 14.133/2021, assemelhando-se novamente ao sistema licitatório da Lei do Pregão. Essa alteração teve por objetivo corrigir uma das maiores deficiências da Lei nº 8.666/93, que previa uma fase recursal após cada uma das etapas do certame, o que acabava gerando diversos atrasos e ineficiência na condução dos procedimentos licitatórios.
Homologação
Encerradas as fases de julgamento e habilitação, esgotados os recursos administrativos e estando o processo licitatório livre de quaisquer irregularidades, a autoridade superior homologará a licitação.
Observa-se que, com a Lei nº 14.133/2021, a fase de adjudicação, anteriormente prevista pela Lei nº 8.666/93 como uma etapa autônoma, acabou sendo absorvida pela etapa de homologação (artigo 71, inciso IV da NLLCA), de tal modo que da fase recursal passa-se direto à homologação do resultado final. Essa alteração teve como objetivo, também, simplificar o processo licitatório e conferir celeridade a ele.
Principais mudanças com a Nova Lei
Como mencionado anteriormente, uma das maiores alterações da NLLCA foi a inversão das fases de habilitação e de apresentação de propostas. Segundo a nova sistemática proposta, o órgão licitante inicialmente prepara a licitação, na sequência divulga o edital e, na data designada, recebe as propostas. Após, haverá o julgamento das propostas apresentadas, seguido da verificação da habilitação dos licitantes, e só depois serão abertos os prazos para interposição de recursos.
O fato de a habilitação ocorrer em momento posterior ao do julgamento das propostas simplifica o procedimento licitatório, pois economiza tempo precioso da Administração, que não precisará analisar os documentos de habilitação das licitantes que não apresentarem propostas minimamente exequíveis e compatíveis com o disposto no edital. É possível, porém, inverter as etapas de habilitação e julgamento das propostas, retornando ao cenário da Lei nº 8.666/93, desde que essa inversão seja feita por ato motivado, que deixe claros os benefícios decorrentes da inversão, e que haja previsão expressa no edital de licitação, conforme estabelece o artigo 17, § 1º da Lei nº 14.133/2021.
O quadro-resumo abaixo traz, de forma esquematizada, a atual estruturação das etapas de um certame licitatório:
Por isso, ao participar de licitações e firmar contratos com a Administração Pública, é recomendável contar com o auxílio de uma assessoria especializada em todas as etapas da licitação.
Você tem alguma dúvida ou sugestão em relação ao tema? Entre em contato conosco por meio do e-mail contato@schiefler.adv.br, para que um dos nossos advogados especialistas em licitações públicas possa lhe atender.
Read MoreAs principais leis sobre licitação pública e contratos administrativos: navegando entre diferentes normas
O regime jurídico das licitações públicas e contratos administrativos, no Brasil, é composto por inúmeras normas. Nesse aspecto, um ponto que sempre causa certo receio para quem trabalha com licitações públicas e contratos administrativos, sem dúvida, diz respeito à necessidade de conhecer múltiplas normas legais, já que não existe um código normativo unificado regulamentando as licitações e contratações públicas.
Assim, este tópico apresenta uma introdução às principais normas legais relacionadas com o tema, em conjunto com suas características e âmbitos de aplicação.
Constituição Federal
No ponto mais alto do ordenamento jurídico nacional, como lei fundamental do Brasil, servindo de parâmetro de validade a todas as demais espécies normativas, encontra-se a Constituição Federal.
A Constituição, por sua vez, como já adiantado anteriormente, prevê em seu artigo 37, inciso XXI, como regra, a obrigatoriedade de realização de procedimento licitatório:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[…]
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Esse dispositivo serve como verdadeiro norte para a matéria. Merece, em verdade, um destaque especial, pois possui grande riqueza em seu conteúdo, estabelecendo diretrizes essenciais sobre o regime jurídico das contratações públicas brasileiras.
Como devemos compreender e interpretar adequadamente o artigo 37, inciso XXI da Constituição Federal?
A primeira oração do inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal (“ressalvados os casos especificados na legislação, […]”) traz, já de início, uma regra de exceção bastante importante: a de que a legislação pode estipular casos excepcionais em que o processo de licitação pública não será obrigatório. É o que ocorre no caso de dispensa de licitação – quando o valor do objeto a ser contratado é considerado baixo, por exemplo – e de inexigibilidade de licitação – quando só há um fornecedor que pode entregar o produto desejado, por exemplo – previstos na Lei Federal nº 8.666/1993 e na Lei Federal nº 14.133/2021.
Seguindo no texto constitucional, lê-se que “[…] as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública […]”. Aqui, fica estabelecido o processo de licitação pública como a regra geral para que o Estado contrate com o particular, qualquer que seja a finalidade e o objeto do contrato, exceto para os casos de ressalva previstos em lei.
A imposição ao Estado, e por ele próprio, de que o processo de licitação pública seja a regra para a contratação com particular não se limita, porém, a este requisito, já que a sequência da redação é a de que este processo deve ocorrer assegurando-se “[…] igualdade de condições a todos os concorrentes […]”. A garantia aqui resguardada é a de que haverá igualdade de tratamento para os licitantes, o que também é denominado como a necessária isonomia entre os licitantes.
Ademais, no que diz respeito ao contrato administrativo a ser firmado com a vitória no processo de licitação, o texto constitucional impõe que sejam mantidas as condições efetivas da proposta e a existência de cláusulas que estabeleçam à Administração Pública as obrigações de pagamento ao particular. Trata-se do conhecido direito ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato. É que, se, para o Estado o objetivo final da contratação pública é cumprir as suas atribuições dirigistas, em prol do bem-estar social dos cidadãos, para o particular contratado o objetivo final é atender o contrato e auferir lucro, sem que seja prejudicado por eventos imprevisíveis ou inevitáveis, ou mesmo por fato causado pela Administração.
Por fim, a redação final do inciso XXI do artigo 37 da Constituição prevê que o processo de licitação pública “[…] somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. Esta disposição prevê o que se entende por dever de proporcionalidade, a saber: a Administração só pode exigir requisitos mínimos de participação no processo de licitação pública, que sejam estritamente necessários à execução do objeto do contrato a ser celebrado, sob pena de invalidade do certame. Esse dispositivo, então, orienta o conteúdo das demais normas jurídicas sobre a matéria.
O inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal e a questão da competência para legislar sobre licitações e contratos administrativos
Faz-se válido abordar também o inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal, cuja previsão é a seguinte:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[…]
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;
Ou seja, a União é o ente federado com maior amplitude de competência legislativa sobre licitações públicas e contratos administrativos. Em outras palavras, a regra é de que os Estados, Distrito Federal e municípios não poderão legislar sobre normas gerais de licitações e contratos administrativos; poderão, por sua vez, legislar sobre normas especiais.
Apesar de não existir consenso sobre o que seriam exatamente “normas gerais”, em contraposição às “normas especiais”, existem alguns núcleos de concordância sobre o tema, como aquelas normas gerais previstas na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93 e 14.133/21) que tratam de: (i) modalidades e tipos de licitação; (ii) hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação. Desse modo, um município não poderá, por exemplo, produzir uma lei que venha a introduzir uma nova modalidade de dispensa do procedimento licitatório, sob pena de inconstitucionalidade.
Outras previsões: O artigo 173, §1º, inciso III e a necessidade de lei específica para regular o procedimento licitatório das empresas estatais e o artigo 175 e o dever de prestação de serviços públicos por parte do Estado
Ainda da Constituição Federal, outra previsão que merece atenção é a do artigo 173, §1º, inciso III. Este dispositivo prevê a necessidade de lei específica para regular o procedimento licitatório das empresas estatais:
Art. 173. […] § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
[…] III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;
Essa lei já existe: trata-se da Lei nº 13.303/2016, a qual será estudada mais adiante.
No mais, outro dispositivo constitucional a ser citado é o artigo 175, segundo o qual “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Esse dispositivo, em resumo, indica o dever do Estado brasileiro de prestar serviços públicos, seja de forma direta ou indireta. Se indireta, por meio de concessão ou permissão, mas, nesse caso, sempre por intermédio de licitação.
Diretrizes da Constituição Federal sobre o tema das licitações públicas:
Portanto, para além das regras materiais previstas no inciso XXI do artigo 37, verifica-se que a Constituição Federal estabeleceu as seguintes diretrizes no que tange ao tema das licitações públicas:
(i) é competência privativa da União estabelecer normas gerais em matéria de licitação e contratação pública;
(ii) traz, como regra geral, a obrigatoriedade da licitação para todos os órgãos da administração pública, direta e indireta, nas três esferas de governo;
(iii) traz a obrigatoriedade da licitação também para as empresas públicas e sociedades de economia mista, e respectivas subsidiárias, devendo fazê-lo, entretanto, segundo procedimento estabelecido em regulamento próprio;
(iv) traz a obrigatoriedade do Estado ao prestar serviços públicos de forma indireta, seja por meio de concessão ou permissão, de obrigatoriamente promover processo licitatório.
Lei Geral das Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93 e Lei nº 14.133/2021)
A Lei nº 8.666/93 trata das normas gerais de licitação e contratos administrativos. De modo geral, ela é a norma que regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, instituindo normas para licitações e contratos da Administração Pública e dando outras providências.
Esta lei predispõe, já em seu primeiro artigo, que se trata de uma lei que “estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. É como explica Joel de Menezes Niebuhr:
Essa Lei compreende cento e vinte e seis artigos, a maior parte deles fragmentada em vários parágrafos, incisos e alíneas, cujos teores constituem emaranhado de normas que praticamente exaurem a disciplina da licitação pública e do contrato administrativo, pretendendo uniformizar a matéria […]
Nesse aspecto, a Lei nº 8666/93 (em processo de substituição pela Lei nº 14.133/2021), ao estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos administrativos no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aborda o uso de processos licitatórios para a realização de: obras; serviços, inclusive de publicidade (disciplinado complementarmente por lei específica, a Lei nº 12.232/10); compras; alienações; locações; concessões e permissões (disciplinadas por leis específicas, as leis nº 8.987/95 e Lei nº 9.074/95).
No mais, é importante destacar que o artigo 1º da Lei 8.666/93 apresenta não apenas o objeto geral da Lei de Licitações e Contratos, mas também os sujeitos que estão submetidos a essa normativa. Dispõe que se subordinam ao seu regime: (i) os órgãos da administração direta; (ii) os fundos especiais; (iii) as autarquias; (iv) as fundações públicas; (v) as empresas públicas; (vi) as sociedades de economia mistas; e (vii) as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municipais.
Além disso, podem ser citados como alguns dos principais artigos e previsões da Lei nº 8666/93, e seus correspondentes na Lei nº 14.133/2021, os seguintes:
- O art. 21 determina como deve ser feita a publicação do edital do processo licitatório, incluindo os prazos (correspondente ao art. 53 da Lei nº 14.133/2021);
- O art. 22 que apresenta as cinco modalidades principais de licitação e seus conceito, sendo elas: concorrência; tomada de preços; convite; concurso; leilão. Na Lei nº 14.133/2021, as modalidades estão previstas no artigo 28 e são as seguintes: concorrência, pregão, convite, leilão e o diálogo competitivo;
- O art. 23 apresenta os limites de valores para contratação em cada uma das modalidades de licitação (não há correspondente na Lei nº 14.133/2021);
- O art. 24 determina as 35 hipóteses em que a licitação é dispensável, ou seja, em que é permitido que um poder público realize uma contratação direta (correspondente ao art. 75 da Lei nº 14.133/2021);
- O art. 25 determina as três hipóteses em que a licitação é inexigível, ou seja, em que não pode ser exigido que o poder público conduza um processo licitatório para a contratação. Isso acontece quando a competição entre empresas ou profissionais é inviável (correspondente ao art. 74 da Lei nº 14.133/2021);
- O art. 27 estabelece os requisitos de documentação para que uma empresa se habilite a participar de licitações (correspondente ao art. 62 da Lei nº 14.133/2021);
- O art. 32 esclarece como devem ser apresentados os documentos para a habilitação (correspondente ao art. 70 da Lei nº 14.133/2021);
- O art. 43 apresenta os procedimentos formais que devem ser seguidos para julgar as propostas recebidas dos licitantes, os participantes da licitação (correspondente ao art. 43 da Lei nº 14.133/2021);
- O art. 55 determina as cláusulas necessárias no contrato fechado com a empresa que vencer a licitação (correspondente ao art. 92 da Lei nº 14.133/2021);
De toda forma, como já adiantado, a Lei nº 8.666/93 só permanecerá em vigência até abril de 2023, quando será substituída, definitivamente, pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a Lei nº 14.133/2021.
Durante esse período, ambas as leis podem ser utilizadas, como prevê o artigo 191 da Lei nº 14.133/2021:
Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
Desde o dia primeiro de abril de 2021, com a publicação da Lei Federal nº 14.133, a atenção dos atuantes em Direito Público tem-se voltado para discutir o regramento e entender de que forma ele impactará a sistemática das contratações públicas. Tal preocupação, aliás, é de extrema pertinência, haja vista a amplitude da NLLCA, que, ao prescrever a revogação (a acontecer em dois anos) e ocupar o espaço das Leis nº 8.666/1993 (antiga Lei de Licitações e de Contratos Administrativos), nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e nº 12.462/2011 (Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas), torna-se a grande referência normativa em matéria de contratações públicas.
Vamos tratar, mais adiante, de modo específico, sobre o perfil e as principais características da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Lei do Pregão (Lei nº 10.520/02) e Decretos nº 3.555/00 (regulamenta o Pregão Presencial) e nº 10.024/2019 (regulamenta o Pregão Eletrônico)
A Lei nº 10.520, de 2002, também chamada de Lei do Pregão, indica uma modalidade de licitação que é bastante utilizada na atualidade, sendo esta destinada para a aquisição de bens e serviços comuns – uma licitação para a obtenção de material de escritório, por exemplo, seria considerado como bem de interesse comum. Trata-se de mais uma lei que se encontra em processo de substituição, que será revogada em abril de 2023.
O pregão possui rito simplificado para a licitação e, historicamente, sob a perspectiva estatística, é a modalidade mais utilizada no Brasil.
Um ponto importante a ser salientado é que esta modalidade não se aplica em determinadas situações, que dizem respeito a objetos incomuns, sendo que, como maior exemplo, encontram-se as obras de engenharia, que não podem ser contratadas por meio de pregão.
Ao contrário da Lei nº 8.666/93 e da Lei nº 14.133/21, trata-se de uma lei bastante sucinta e objetiva. Nesse aspecto, e justamente por não prever todas as situações possíveis em seus 13 artigos, tem-se o artigo 9 da Lei nº 10.520/02, o qual determina que se aplicam, subsidiariamente, para a modalidade pregão, as normas da Lei nº 8.666/93.
Na prática, contudo, o que é mais relevante para a aplicação do pregão está em seu decreto regulamentador. No âmbito federal, essas regras encontram-se dispostas no
Decreto Federal nº 10.024/2019, que regulamenta a licitação na modalidade do pregão eletrônico. Há também o Decreto nº 3.555/2000, que regulamenta o pregão presencial em âmbito federal, embora esta seja uma prática em avançado estágio de desuso, sobretudo quando se trata de licitações do Governo Federal.
A característica essencial da modalidade do pregão é a possibilidade de oferta de lances em tempo real, sejam eles verbais ou eletrônicos, por parte dos licitantes. No caso do pregão, o critério de julgamento busca sempre avaliar apenas o preço (menor preço ou maior desconto). Ou seja, não há que se falar, no caso de pregão, sobre a atribuição de notas a propostas técnicas.
Outras características peculiares estão no fato de existir apenas uma fase recursal, na qual podem ser questionados atos praticados ao longo do certame, e que o certame é conduzido pelo pregoeiro, e não por uma comissão de licitação.
Como dito, a modalidade Pregão, prevista na Lei nº 10.520/2002, passará a ser definitivamente disciplinada pela Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/21) junto das demais modalidades.
O Pregão passa a ser definido pela Lei nº 14.133/2021, no seu inciso XLI do artigo 6º, como a “modalidade de licitação obrigatória para aquisição de bens e serviços comuns, cujo critério de julgamento poderá ser o de menor preço ou o de maior desconto”.
Assim, a partir da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o Pregão passa a ser obrigatório para a contratação de todo e qualquer bem ou serviço comum.
Por fim, no que se refere ao procedimento desta modalidade, segue-se o rito previsto no artigo 17 da Lei nº 14.133/2021, bastante semelhante ao rito previsto na Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), qual seja:
Art. 17. O processo de licitação observará as seguintes fases, em sequência:
I – preparatória;
II – de divulgação do edital de licitação;
III – de apresentação de propostas e lances, quando for o caso;
IV – de julgamento;
V – de habilitação;
VI – recursal;
VII – de homologação.
O que se percebe é que o rito procedimental previsto na Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) acabou por inspirar e influenciar o rito licitatório na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, de modo que a ordem sequencial de etapas do pregão passou a ser adotado como regra nas licitações em geral, inclusive em outras modalidades.
Estatuto Jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias (Lei nº 13.303/2016)
Atualmente, a expressão “empresas estatais” é utilizada na doutrina para se referir de modo geral a qualquer uma das entidades empresariais regidas pela Lei nº 13.303/2016. São as empresas públicas e as sociedades de economia mista e suas subsidiárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos.
São exemplos de empresas estatais: Banco do Brasil, Petrobras, Eletrobras, BNDES, Caixa Econômica Federal, Embrapa, Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô), Sabesp, etc.
Não é por outra razão que a Lei nº 13.303/2016 é a chamada de Lei das Estatais e, desde a sua promulgação, tem regido, na condição de estatuto especial, as licitações e os contratos administrativos realizados por essas entidades.
Em outras palavras, a Lei nº 13.303/2016 foi criada com a finalidade de definir regras mais claras e rígidas para essas empresas no que diz respeito a compras, licitações e nomeação de diretores, presidentes e membros do conselho de administração. Dessa forma, o seu intuito maior é evitar episódios de corrupção, sobrepreço e qualquer tipo de interferência política indevida em instituições dessa natureza, garantindo relações mais transparentes entre elas e seus fornecedores.
Inclusive, em virtude do contexto acima, a Lei das Estatais mescla institutos de direito privado e de direito público, criando mecanismos de transparência e governança que devem ser observados, o que inclui: (i) regras para divulgação de informações; (ii) práticas de gestão de risco; (iii) códigos de conduta; (iv) orientações para fiscalização do Estado e da sociedade; (v) constituição e funcionamento de conselhos; e, é claro, (vi) normas de licitações e contratos. As regras de licitações e contratos estão previstas entre os artigos 28 a 84 da lei nº 13.303/2016.
Uma das principais exigências da Lei nº 13.303/2016 é a de que seja produzido, por cada empresa estatal, um regulamento interno prevendo os procedimentos para a realização de licitações e formalização de contratos administrativos.
Serviços de publicidade prestados por intermédio de agências de propaganda (Lei nº 12.232/2010)
A contratação de agências de propaganda pela Administração Pública, originalmente, era realizada pela Lei nº 8.666/93. Contudo, esta legislação apresentava regras e procedimentos que não permitiam, eficientemente, a escolha da melhor proposta para prestação de serviços por agências de publicidade, já que a ferramenta e diferencial neste mercado é a criatividade dos profissionais, característica capaz de ser valorada apenas subjetivamente.
Surgiu então a Lei nº 12.232/2010, que criou regras próprias para a contratação de agências de propaganda.
As principais características diferenciadoras nas licitações para a contratação de agência de propaganda estão relacionadas com a forma de apresentação e julgamento das propostas dos participantes.
Em linhas gerais, cada licitante propõe à Administração um plano de comunicação publicitária, o qual contém uma campanha desenvolvida a partir de um desafio publicitário comum a todos os participantes.
Este plano de comunicação publicitária, em conjunto com informações técnicas sobre os próprios licitantes, é julgado por uma subcomissão técnica especializada, formada a partir de um sorteio para a escolha de profissionais isentos, listados pela Administração, com formação em comunicação, publicidade ou marketing ou que atuem em uma dessas áreas.
A Lei trata de enumerar diversos procedimentos para garantir a objetividade necessária às decisões da subcomissão técnica, tais como a anonimização e a padronização das formas de apresentação das propostas técnicas (especificamente, do plano de comunicação publicitária), permitindo o conhecimento do autor apenas depois da revelação das avaliações.
Regime Diferenciado de Contratação Pública (RDC) (Lei nº 12.462/11)
A Lei nº 12.462/11 instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). Este regime foi concebido para as licitações destinadas à Copa do Mundo de Futebol de 2014 e às Olimpíadas de 2016. Posteriormente, seu uso foi ampliado para as ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) (Lei nº 12.745/12), além de licitações e contratos de obras e serviços de engenharia no âmbito do Sistema Único de Saúde (Lei nº 12.745/12), entre outras previsões.
De modo geral, o regime foi instituído com a finalidade de suprir uma série de defasagens da Lei nº 8.666/93, acentuadas em um momento no qual o Brasil necessitava realizar obras voluptuosas e que dependiam de um regime licitatório menos burocrático, mais célere, moderno e eficiente, que se adequasse ao cenário das obras que precisavam ser realizadas pelo país.
Este regime jurídico deixará de existir a partir de abril de 2023, em razão da Lei nº 14.133/21. De todo modo, houve a absorção, pela NLLCA, de parcela significativa das inovações trazidas pela RDC.
Lei Complementar nº 123/06
A Lei Complementar nº 123/06 trata do Estatuto da Microempresa e empresa de pequeno porte. Esta lei é relevante no que toca às contratações públicas porque estabelece as regras gerais de tratamento diferenciado e preferencial para microempresas e empresas de pequeno porte (MEs e EPPs) nas licitações.
Em síntese, os principais benefícios e vantagens das MEs e EPPs nas contratações públicas brasileiras são os seguintes:
- Critério de desempate favorável às MEs e EPPs, quando em disputa com outras empresas (artigos 44 e 45);
- Existência de licitações em que somente MEs e EPPs podem participar, com itens de contratação cujo valor é de até R$ 80 mil (art. 48, I);
- Possibilidade de que haja exigência de que o contratado pela Administração Pública subcontrate MEs ou EPPs (art. 48, II);
- Existência de cotas reservadas a MEs e EPPs, em montante de até 25% do quantitativo, em licitações de bens de natureza divisível (art. 48, III)
- Possibilidade de privilegiar a contratação de MEs e EPPs sediadas local ou regionalmente, inclusive mediante o pagamento de preços superiores aos praticados por outras empresas (até 10% do melhor preço válido encontrado) (art. 48, §2º)
- Exigência de comprovação de regularidade fiscal e trabalhista das microempresas apenas por ocasião da assinatura do contrato (Arts. 42 e 43)
As previsões contidas nesta lei configuram o tratamento diferenciado que o Estado brasileiro dedica às MEs e EPPs, o que objetiva fomentar o desenvolvimento nacional sustentável, a partir de uma política de incentivos.
Read MoreEstatísticas do mercado público: as contratações diretas são exceção ou regra?
O inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal prescreve a regra geral de que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, os serviços, as compras e as alienações serão contratados mediante processo de licitação pública.
Em outras palavras, isto significa que, se não houver uma exceção prevista em lei, a Administração Pública deve realizar uma licitação pública se quiser contratar alguém.
O grande ponto sobre este assunto é que, na prática, essas exceções do plano jurídico representam uma parcela muito significativa das contratações públicas. E isto é muito relevante para a compreensão do universo das licitações e dos contratos administrativos, já que, para atuar neste mercado, é indispensável conhecer o que, de fato, acontece no cotidiano da Administração Pública. Veja, ao longo deste texto, a análise detalhada das principais estatísticas do mercado público.
Os dados do Painel de Compras Públicas
Em estatística que pode até parecer contraintuitiva, extraída de dados das compras públicas entre 2016 e 2020, verifica-se que 71,25% dos contratos celebrados pelo Governo Federal decorreram de processos de contratação pública em que não houve licitação. Do total de contratações celebradas pelo Governo Federal, 59,18% foram fundamentadas em hipóteses de dispensa de licitação e 12,07% em hipóteses de inexigibilidade de licitação pública. Aproveitando a oportunidade para conhecer as modelagens estatisticamente mais comuns no universo das contratações públicas, note-se que, das 258.023 licitações realizadas, no período, pelo Governo Federal, 252.692 licitações foram realizadas pela modalidade do pregão eletrônico. Isto significa que o pregão eletrônico foi responsável por 97,93% das licitações públicas realizadas no período.
Essas estatísticas foram bem analisadas por Eduardo Schiefler, em sua dissertação de mestrado (UnB). Veja-se:
“No período de 2016 a 2020, dos 897.538 processos de compras divulgados no Governo Federal, 531.198 ocorreram por dispensa de licitação e 108.317 por inexigibilidade de licitação, o que corresponde a aproximadamente 71,25% do total de processos. Por sua vez, o restante das compras (28,75%) foi realizado mediante licitação, sendo 252.692 por pregão, 3.134 por tomada de preços, 1.492 por concorrência, 570 por convite, 84 por concurso e 51 por concorrência internacional.
Em valores financeiros despendidos, a ordem de prevalência das modalidades sofre alteração, de sorte que: (i) o pregão representa o principal destinatário dos valores destinados aos processos de compras, atingindo o montante que supera R$ 630 bilhões; em seguida, têm-se (ii) a dispensa de licitação e a inexigibilidade de licitação, as quais representam aproximada e respectivamente R$ 82 bilhões e R$ 78 bilhões; por sua vez, (iii) as demais modalidades de licitação alcançam aproximadamente R$ 10,5 bilhões (concorrência), R$ 1,8 bilhão (tomada de preços), R$ 280 milhões (concorrência internacional), R$ 58 milhões (convite) e R$ 6,6 milhões (concurso). Ademais, observa-se do Painel de Compras que, do total de processos de compras divulgados, a contratação de serviços corresponde a 40,1%, enquanto a de materiais representa 59,9%.
Com o intuito de consolidar as informações que ora foram apresentadas, elaborou-se a seguinte tabela:
Dados disponibilizados no Painel de Compras Públicas, referentes às contratações do Governo Federal entre 2016 e 2020: | |
Valor total estimado | R$ 805.639.740.474,61 |
Valor destinado às ME/EPP | Mais de R$ 460 bilhões |
Quantidade de ME/EPP contratadas | 101.247 |
Quantidade total de processos de compras | 897.538 |
Representação percentual da contratação de materiais em relação à quantidade total de processos de compras | Aproximadamente 59,9% |
Representação percentual da contratação de serviços em relação à quantidade total de processos de compras | Aproximadamente 40,1% |
Quantidade, valores e representação percentual de dispensas de licitação em relação à quantidade total de processos de compras | 531.198 |
Aproximadamente R$ 82 bilhões | |
Aproximadamente 59,18% | |
Quantidade, valores e representação percentual de inexigibilidades de licitação em relação à quantidade total de processos de compras | 108.317 |
Aproximadamente R$ 78 bilhões | |
Aproximadamente 12,07% | |
Representação percentual das contratações diretas (dispensas e inexigibilidades) em relação à quantidade total de processos de compras | Aproximadamente 71,25% |
Quantidade, valores e representação percentual de pregões (presenciais ou eletrônicos) em relação à quantidade total de processos de compras | 252.692 |
Mais de R$ 630 bilhões | |
Aproximadamente 28,15% | |
Quantidade, valores e representação percentual de tomada de preços em relação à quantidade total de processos de compras | 3.134 |
Aproximadamente R$ 1,8 bilhão | |
Aproximadamente 0,35% | |
Quantidade, valores e representação percentual de concorrências em relação à quantidade total de processos de compras | 1.492 |
Aproximadamente R$ 10,5 bilhões | |
Aproximadamente 0,17% | |
Quantidade, valores e representação percentual de convites em relação à quantidade total de processos de compras | 570 |
Aproximadamente R$ 58 milhões | |
Aproximadamente 0,06% | |
Quantidade, valores e representação percentual de concursos em relação à quantidade total de processos de compras | 84 |
Aproximadamente R$ 6,6 milhões | |
Aproximadamente 0,01% | |
Quantidade, valores e representação percentual de concorrências internacionais em relação à quantidade total de processos de compras | 51 |
Aproximadamente R$ 280 milhões | |
Aproximadamente 0,006% |
Tabela 2 – Painel de Compras Públicas do Governo Federal (2016 e 2020)
Como se verifica, na prática, quantitativamente o que deveria ser a exceção (contratação direta de bens e serviços), conforme a legislação constitucional e infraconstitucional, acaba se tornando a regra nos processos de compras públicas, ao passo que a regra (contratação mediante processo licitatório) é empreendida em menos ocasiões. Uma possível justificativa para a ocorrência dessa inversão na realidade administrativa, em termos quantitativos, pode estar presente no fato de ser permitido, diretamente e sem licitação, comprar bens e contratar obras e serviços até um determinado valor, por dispensa de licitação, nos termos da Lei nº 8.666/1993 (artigo 24, I e II), assim como em situações de emergência ou de calamidade pública (artigo 24, IV).
Por outro lado, dentre as modalidades de licitação, exalta-se a contratação por pregão, cuja sistemática de competição foi, em larga escala, incorporada pela Nova Lei de Licitações, de sorte que, sob a sua égide, também passará a ser a regra para as demais modalidades de licitação. A propósito dos pregões, que podem ser empreendidos nas formas presencial ou eletrônica, é importante mencionar uma informação que detém especial pertinência a este trabalho, qual seja, a obrigatoriedade imposta pelo Decreto nº 10.024, de 20 de setembro de 2019, editado pelo Governo Federal, de que os pregões sejam realizados no formato eletrônico, em detrimento do presencial.”
A partir destes dados, pode-se compreender melhor as estatísticas do mercado de contratações públicas.
Compreendendo as Estatísticas do Mercado de Contratações Públicas
Como toda estatística, é importante compreendê-la para além dos números propriamente expostos. Note-se, primeiramente, que uma parcela significativa da estatística se refere à quantidade de contratações, o que não se confunde com o volume financeiro das contratações. Quando se analisa o volume financeiro das contratações, o resultado é distinto.
Daí se verifica que, na prática, a maioria dos contratos administrativos, em termos de quantidade de contratos, são avenças de baixo valor econômico, o que leva à conclusão que a maioria dessas contratações se fundamenta na hipótese de dispensa de licitação em razão do valor. Este cenário tende a se perpetuar com a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), uma vez que os limites para as contratações por dispensa em razão do valor foram significativamente aumentados.
Portanto, sob a perspectiva dos negócios empresariais, é fato que existe um imenso mercado público em que as empresas são contratadas sem licitação pública. A depender da precificação do produto ou serviço a ser vendido à Administração, o empreendedor precisará dominar muito mais as normas aplicáveis às contratações diretas, sobretudo a dispensa de licitação, do que as regras de licitação propriamente dita.
Ainda que não sejam as mais pujantes sob a perspectiva financeira, as contratações por dispensa de licitação em razão do valor do contrato representam uma parcela muito significativa das contratações públicas brasileiras e, tomando por base o que ocorre no Governo Federal, a maioria em termos quantitativos de contratações.
E a inexigibilidade de licitação?
Note-se, a partir das estatísticas oficiais, que o mercado das contratações diretas por inexigibilidade de licitação também é muito expressivo: aproximadamente R$ 78 bilhões/ano e mais de 12% dos contratos firmados.
Portanto, há também muito espaço para empreendedores que adotam uma modelagem negocial geradora de produtos ou serviços exclusivos, que não podem ser adquiridos livremente no mercado, por inexistirem concorrentes, ou que oferecem serviços técnicos profissionais especializados, com o objetivo de resolver problemas singulares, especiais, extraordinários.
As estatísticas ora apresentadas foram estruturadas em termos relativos ao próprio mercado de contratações públicas, ou seja, a relação de proporcionalidade é interna ao próprio mercado.
Mas qual é o tamanho deste mercado? Para compreender a dimensão do mercado de contratações públicas, não perca o próximo texto desta série de artigos acerca de licitações públicas e de contratos administrativos.
SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho. Controle das Compras Públicas, Inovação Tecnológica e Inteligência Artificial: o paradigma da administração pública digital e os sistemas inteligentes na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 2021. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, 2021, p. 29-30.
As informações foram extraídas do Painel de Compras Públicas no mês de abril de 2021, de sorte que eventuais alterações podem ter ocorrido por conta de possíveis correções empreendidas pelo Governo Federal em momento posterior.
Os valores referentes às modalidades de licitação, que são determinadas de acordo com os seus limites (artigo 23 da Lei nº 8.666/1993), foram atualizados pelo Decreto nº 9.412/2018; consequentemente, as contratações diretas por dispensa de licitação, com base no artigo 24, I e II, da Lei nº 8.666/1993, foram majorados para R$ 33.000,00 (obras e serviços de engenharia) e para R$ 17.600,00 (compras e serviços que não configuram de engenharia). Com a Nova Lei de Licitações, estes limites foram majorados ainda mais, para R$ 100.000,00 (obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores) e para R$ 50.000,00 (outros serviços e compras), conforme o seu artigo 75, I e II, assim como o § 1º do mesmo dispositivo legal.
Por exemplo, nos processos licitatórios fundamentados na Nova Lei de Licitações, foi absorvida a característica dos pregões de inverter as fases de julgamento das propostas e de análise da habilitação dos licitantes, de acordo com o artigo 17, IV e V, da nova lei.
Decreto Federal nº 10.024/2019: Art. 1º […] § 1º A utilização da modalidade de pregão, na forma eletrônica, pelos órgãos da administração pública federal direta, pelas autarquias, pelas fundações e pelos fundos especiais é obrigatória.
Read MoreEstatísticas do mercado público: as compras públicas representam 12% do PIB
Ninguém duvida que o mercado das compras públicas é relevante e toma grandes proporções no Brasil. A questão é saber qual o seu tamanho exato e, mais importante que isso, como mensurá-lo?
Antes de adentrar-se às nuances deste tema propriamente dito, é importante lembrar que, historicamente, as contratações públicas podem ser vistas como instrumentos potenciais de indução de práticas e comportamentos nos âmbitos administrativo e particular, tendo em vista a sua importância e as suas características quantitativas, qualitativas e financeiras.
É dizer, não raramente as contratações públicas são utilizadas legitimamente não apenas como uma forma de satisfazer as necessidades primárias dos cidadãos e da própria administração, mas também como uma ferramenta política para induzir determinado comportamento no poder público ou na sociedade civil, com vistas a desenvolver algum setor ou promover alguma mudança em sua estrutura e em seu modo de agir.
Considerando também essa função instrumental, não seria absurdo afirmar que praticamente toda e qualquer atividade da Administração Pública envolve, em determinado momento e em maior ou menor grau, a contratação de bens e serviços (seja mediante licitação, seja por contratação direta).
E como, no Brasil, as funções administrativas avançam sobre as mais variadas áreas sociais, por opção constitucional e legal, a consequência da atuação do poder público não poderia ser outra: as compras públicas representam um percentual significativo do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
O Estado brasileiro é o maior comprador atuante em nosso mercado:
Existem dúvidas sobre como mensurar o percentual do PIB correspondente às contratações públicas, já que não existe apenas uma metodologia de calcular tal indicador econômico nem consenso sobre quais contratos devem ser levados em consideração no cálculo a ser realizado. Há uma dificuldade inerente ao processo de definição sobre o volume de contratações públicas e o seu impacto na economia.
A despeito disso, é possível, de fato, ter uma noção aproximada sobre o percentual do PIB representado pelas compras públicas no Brasil. Estudos técnicos foram realizados e conferem certa segurança ao afirmarem que as compras públicas representaram, nas duas primeiras décadas do século XXI, uma média de aproximadamente 12% do PIB brasileiro.
É o que se verifica, primeiramente, no estudo realizado por Cássio Garcia Ribeiro e Edmundo Inácio Júnior, pesquisadores visitantes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, que desenvolveram uma metodologia para mensurar o mercado brasileiro de compras públicas entre 2006 e 2017. Os dados obtidos por tal metodologia resultaram nesta seguinte tabela:
Verifica-se que, entre os anos de 2006 e 2017, o volume médio anual das compras governamentais do Brasil (abrangendo a União, os Estados e os Municípios) foi de 12,5% do PIB, representando uma média anual de R$ 499,5 bilhões. A União tem participação majoritária neste quantitativo, o que demonstra a sua relevância sobre parcela substancial do PIB brasileiro, o qual, tanto em termos absolutos como em termos proporcionais, torna evidente a influência das contratações públicas na economia do País.
Como destacado anteriormente, os números percentuais e absolutos alcançados para representar as compras públicas no PIB brasileiro dependem da metodologia utilizada. Como toda pesquisa científica, adotam-se premissas que justificam a conclusão dentro das possibilidades criadas pelas métricas e pelos dados que foram selecionados, de sorte que verificações similares ou distintas sobre o mesmo tema podem coexistir e ser igualmente válidas.
Especificamente sobre a mensuração das compras públicas, Denis Audet explica que existem poucos estudos de quantificação do tamanho do mercado de compras públicas, sendo que os seus resultados não são, necessariamente, comparáveis, uma vez que diferentes conceitos podem ter sido adotados, ocasionando conclusões distintas. Como exemplo, cita-se a afirmação feita, em avaliação produzida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE sobre o Sistema de Integridade da Administração Pública Federal Brasileira, de que as compras públicas têm uma proeminência como instrumento político e, no âmbito dos países membros da OCDE, representam entre 4% a 14% do PIB, enquanto no Brasil as estimativas mais conservadoras indicam que o valor giraria em torno de 8,7% do PIB.
Independentemente disso, é importante observar que a média alcançada pelo primeiro estudo indicado acima, de 12% do PIB brasileiro, está compatível com o que ocorre nos países membros da OCDE, de modo que é seguro utilizar este número percentual como representativo das compras públicas.
Para corroborar ainda mais tal posicionamento, cita-se um segundo estudo, também proveniente do Ipea, mas que desta vez envolveu um número maior de pesquisadores. Além dos dois já citados (Cássio Garcia Ribeiro e Edmundo Inácio Júnior), juntaram-se a eles Vera Thorstensen, Luís Felipe Giesteira, Antonio Pedro Rima de Oliveira Faria e Ignácio Tavares de Araújo Júnior. Com pequenas alterações nos números absolutos, as médias percentuais do PIB representadas pelas compras públicas permaneceram praticamente inalteradas em relação ao primeiro estudo.
Este estudo analisou as compras públicas entre 2002 e 2019 e concluiu que, neste período, a média das compras públicas foi de 12,0% do PIB brasileiro, tendo igualmente a União uma posição majoritária nos quantitativos:
Observa-se da tabela que, em termos de números absolutos, o auge das contratações públicas ocorreu entre os anos de 2012 e 2014, alcançando o montante de R$ 994 bilhões neste último. Por sua vez, em termos proporcionais, o seu auge aconteceu em 2010, quando as compras públicas representaram incríveis 13,5% do PIB brasileiro.
Ainda, nota-se que neste período (2002-2019) as compras da União representaram em termos proporcionais (percentual do PIB) uma média anual de mais de 50% de todas as compras públicas brasileiras (6,6% do PIB), abrangendo nesta comparação os Estados e os Municípios. Os Estados, por sua vez, contrataram o equivalente a 2,2% do PIB nestes anos, enquanto os mais de 5.500 Municípios atingiram uma média de 3,1% do PIB.
Volume de Compras das estatais brasileiras: Petrobras e Eletrobras:
Além do que foi exposto acima, outras análises foram realizadas no âmbito do mesmo estudo, conforme se verifica da tabela abaixo, na qual se observaram as compras governamentais da União, destacando especialmente aquelas empreendidas pelo Grupo Petrobras e pelo Grupo Eletrobras, duas empresas estatais brasileiras que possuem especial relevância:
Da leitura dos dados que culminaram no desenvolvimento da tabela acima, o estudo apontou: (i) o protagonismo da administração indireta diante da administração direta; (ii) o protagonismo da Petrobras, que contribui com mais da metade do mercado de compras do Governo Federal; (iii) a existência de dois ciclos, sendo o primeiro de expansão do mercado de compras da União até 2012 e o segundo a partir de 2015, em que há uma tendência mais significativa de queda no volume das compras.
Especificamente em relação ao Grupo Petrobras, destacou-se que, em relação ao mercado de compras da União, no primeiro ciclo identificado, as aquisições da empresa estatal “mais do que duplicaram em uma década, saltando de R$ 147 bilhões para R$ 349,95 bilhões, entre 2002 e 2012. Aliás, o auge da participação relativa da estatal brasileira ocorreu em 2012, ano em que suas compras atingiram 5,2% do PIB do país. Naquele ano, suas aquisições constituíram aproximadamente 66% do total das compras do governo federal.”. Já no que toca ao segundo ciclo, “há uma queda pronunciada nas aquisições de bens e serviços realizadas pela petroleira brasileira de R$ 370 bilhões (ou 5,2% do PIB, em 2012) para R$ 180 bilhões (ou 2,6% do PIB, em 2016). Se na primeira fase os indicadores da Petrobras foram animadores, isso não se pode dizer da segunda. A crise enfrentada pela estatal brasileira desde o período 2014-2015 e a queda do preço do petróleo ajudam a entender a redução dos gastos da Petrobras com compras de bens e serviços.”.
Já em relação ao Grupo Eletrobras, observou-se que é responsável por efetuar, autonomamente, compras em volume anual bastante similar a toda a administração direta federal ou à administração indireta federal. Assim como a Petrobras, o volume contratado pela Eletrobras é substancial e representa dezenas de bilhões de reais anualmente. Somadas, entre os anos de 2002 e 2019, as compras destas duas empresas estatais representaram em termos proporcionais uma média de 70% das compras públicas da União (4,66% do PIB brasileiro em relação aos 6,6% representados pelas compras da União).
Conclusão:
Nesse sentido, muito embora a mensuração do volume das compras públicas e a sua representação em percentual do PIB sejam atividades complexas a serem empreendidas, a grande questão incontroversa é que o mercado de compras públicas é, na realidade brasileira, um setor extremamente ativo e pujante.
Este mercado se relaciona com praticamente todas as funções da administração pública, bem como envolve quase um trilhão de reais anualmente, havendo, inclusive, alguns núcleos de maior notoriedade, a exemplo do Governo Federal e, mais especificamente, das grandes empresas estatais, como a Petrobras e a Eletrobras.
Para saber mais sobre a temática de contratações públicas e licitações, continue acompanhando nosso conteúdo, inscreva-se em nosso newsletter e baixe gratuitamente o e-book Guia das modalidades de licitação: atualizado de acordo com a nova Lei nº 14.133/2021.
Cf. COSTA, Caio César de Medeiros; TERRA, Antônio Carlos Paim. Compras públicas: para além da economicidade. Brasília: Enap, 2019. p. 5.
RIBEIRO, Cássio Garcia; JÚNIOR, Edmundo Inácio. O Mercado de Compras Governamentais Brasileiro (2006-2017): mensuração e análise. Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Ipea, 2019. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9315/1/td_2476.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022.
AUDET, Denis. Government Procurement: a Synthesis Report. OECD Journal on Budgeting. Vol. 2, n. 3. OECD 2002. p. 152-153. Disponível em: https://read.oecd-ilibrary.org/governance/government-procurement-a-synthesis-report_budget-v2-art18-en. Acesso em: 22 fev. 2022.
OCDE. Avaliação da OCDE Sobre o Sistema de Integridade da Administração Pública Federal Brasileira: Gerenciando Riscos por uma Administração Pública Íntegra. 2011. p. 37. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/articulacao-internacional/convencao-da-ocde/arquivos/avaliacaointegridadebrasileiraocde.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022.
THORSTENSEN, Vera; et al. Brasil na OCDE: Compras Públicas. Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Ipea, 2021. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/47061/1/S2100424_pt.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022.
Read MoreRegra de ouro das licitações públicas: compreendendo a essência de qualquer certame
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Nesta sexta-feira (22 de maio de 2020), a advogada Giovanna Gamba publicou, juntamente com o Prof. Dr. Guilherme Jardim Jurksaitis, o artigo “Contratações públicas em tempos de pandemia” no Portal Jurídico JOTA, o qual pode ser visualizado neste link. Em razão da relevância do tema, vamos republicá-lo na íntegra, com a autorização da autora:
Contratações públicas em tempos de pandemia: A emergência nacional é mais urgente do que a local?
Por Giovanna Gamba e Guilherme Jardim Jurksaitis
A lei federal nº 13.979/2020 foi editada para viabilizar medidas de resposta e contenção à pandemia do covid-19. Seus dispositivos sobre contratações públicas são indicativos claros da insuficiência do regime habitual de licitações para atender às necessidades reais da administração pública, sobretudo em período de crise.
Todos conhecemos as críticas à lei de licitações. Para ficar nas mais frequentes: excesso de burocracia, que torna o procedimento lento e custoso; apego ao menor preço, com baixa preocupação com a qualidade do que se quer adquirir; complexidade de regras, que cria ambiente propício à concentração de mercado e à corrupção[1].
Essas críticas valem tanto para aquisições corriqueiras de itens de escritório como para a construção de um hospital de referência. A lei de licitações não parece distinguir prioridades e se preocupa demais com minúcias pouco relevantes para qualificar o contratante e o objeto contratado.
Em situações de emergência, a inadequação desse regime é bem maior. Não há como aguardar o prazo mínimo entre a publicação do edital e a sessão de abertura dos envelopes. E há ainda o risco de uma decisão judicial ou administrativa paralisar o certame. É preciso agir rápido e com precisão.
Para esses casos, a lei de licitações prevê a contratação direta por emergência ou calamidade pública (art. 24, IV). Essa medida está na legislação desde o decreto-lei 200, de 1967 (art. 126, § 2º, h). Apesar disso, contratações sem licitação para atender emergências são alvo de intensa desconfiança. Se, de um lado, há desvios no uso desse instrumento, de outro, parece haver predisposição para considerá-lo irregular. A literatura oferece exemplos a respeito desse debate[2] e há jurisprudência dos órgãos de controle sobre o tema[3].
A impressão é que os órgãos de controle tendem a minimizar as situações de emergência, que, em tese, poderiam ensejar a dispensa de licitação. É comum atribuir comportamento desidioso ao gestor público por não ter adotado medidas preventivas à situação excepcional; ou questionar a própria ocorrência da situação emergencial. Em ambos os casos, o que se verifica é uma tendência à idealização, distante do mundo real e das dificuldades da administração pública.
Não surpreende que a lei federal nº 13.979/2020 tenha se preocupado em criar regime especial para as contratações emergenciais durante a crise do covid-19. Ela estabeleceu a presunção de emergência para todas as contratações destinadas “ao enfrentamento da emergência de saúde pública” (art. 4º-B), diminuindo o ônus do gestor ao motivar contratações sem licitação.
Precisou-se de uma pandemia global para que se buscasse diminuir a desconfiança contra as contratações diretas por emergência. E os fatos não foram suficientes: sem a edição de uma nova lei nacional os gestores não teriam segurança.
A ampla aceitação da dispensa presumida da lei 13.979/2020 sugere que a emergência nacional é mais real do que a vivenciada cotidianamente pelas administrações subnacionais, com escassos recursos humanos e financeiros. No entanto, a emergência que mata cidadãos da pequena cidade do interior de Sergipe, o menor da Federação, também é importante e grave. E, portanto, igualmente impossível de ser enfrentada pelos procedimentos da lei 8.666/93. A reforçar este ponto, o Congresso Nacional promulgou recentemente a emenda constitucional número 106, que autoriza o poder executivo federal a adotar procedimento simplificados de contratações públicas, sem mencionar os demais poderes e as entidades subnacionais.
A emergência presumida da lei 13.979/2020 é uma resposta à sacralidade do regime atual de licitações e à visão utópica de que é possível planejar tudo. Os deveres da licitação e de planejamento não podem, nas situações de emergência, serem usados como armas apontadas para o gestor público. Licitações são importantes, claro. E planejar também. Mas é preciso ter olhos para a realidade. É difícil, da perspectiva do ambiente controlado dos gabinetes e escritórios, levar a sério a emergência que está longe.
No contexto de desigualdade federativa, em que a imensa maioria dos municípios sequer tem receitas próprias para suas estruturas administrativas, é injusto e ingênuo impor a todos os gestores o mesmo dever de bem planejar. Na escassez, o gestor público tem de escolher entre prover a merenda escolar, única fonte de alimentação para muitas crianças, ou construir o muro de arrimo para suportar chuvas torrenciais futuras. Ou decidir entre o abastecimento de remédios para o posto de saúde e a campanha de prevenção contra a dengue. É claro que tanto as chuvas de verão quanto as doenças sazonais são previsíveis. Mas ambas disputam lugar com demandas presentes e, por vezes, mais urgentes.
Importantes líderes mundiais, como Barack Obama[4] e Bill Gates[5], alertaram para uma pandemia global e ninguém fez nada no Brasil. Essa falha de planejamento não impede que se faça agora a dispensa das licitações. A lei 13.979/2020 reconhece que, se a emergência chegou, é preciso enfrentá-la com eficiência e rapidez, sem exageros formais e sem questionar o passado.
A experiência pela qual estamos passando oferece a oportunidade para refletir seriamente sobre o sistema brasileiro de contratações públicas. Que ele possa oferecer soluções céleres e efetivas, para atender às necessidades diárias e às excepcionais da administração e da coletividade, em âmbito nacional e local. Menos idealização e preconceitos – e mais resultado. O dever de reformar o regime habitual de contratações públicas é premente. Passada a pandemia, que se retome a tarefa.
Até lá, fique em casa.
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[1] Sobre o tema, conferir André Rosilho, Licitação no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013.
[2] Por todos, conferir Carlos Ari Sundfeld, “Dispensa de licitação por emergência. Condições de validade e o problema da responsabilidade do contratado” in Pareceres, Vol. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, pp.: 21-34.
[3] Como mostra Juliana Bonacorsi de Palma, em coluna neste Jota, disponível em [https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/o-controle-em-tempos-de-coronavirus-25032020], acesso em 1/5/2020.
[4] Now This News, “Obama warned the U.S. to prepare for a pandemic back in 2014”, Youtube, 9/4/2020. Disponível em [https://www.youtube.com/watch?v=pBVAnaHxHbM], acesso em 1/5/2020.
[5] Bill Gates, “A better response to the next pandemic”, Gates Notes, 18/1/2010. Disponível em [https://www.gatesnotes.com/Health/A-Better-Response-to-the-Next-Pandemic], acesso em 1/5/2020.
Read MoreO deferimento do direito à remoção, prevista no inciso III do art. 36 da Lei n. 8.112/1990, não impõe como requisito indispensável a coabitação entre os cônjuges.
A primeira turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, em agravo regimental em recurso especial, que a coabitação dos cônjuges agentes públicos, no momento em que um deles é deslocado no interesse da Administração, é irrelevante para o reconhecimento do direito de remoção para acompanhamento, requerido com fundamento na alínea a do inciso III do art. 36 da Lei Federal nº 8.112/1998. A decisão foi assim ementada:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. REMOÇÃO. COABITAÇÃO ENTRE OS CÔNJUGES. REQUISITO DISPENSÁVEL. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. 1. O acórdão recorrido encontra-se em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, no sentido de que o deferimento do direito à remoção, prevista no inciso III do art. 36 da Lei n. 8.112/1990, não impõe como requisito indispensável a coabitação entre os cônjuges. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento.1
Este precedente é importante na consolidação da jurisprudência e pacificação deste entendimento. Isso porque há relativa divergência nas decisões prolatadas por tribunais instados a se pronunciar sobre a questão.
Parte dos precedentes adota o entendimento de que uma interpretação teleológica do dispositivo normativo levaria à necessidade da existência do rompimento do vínculo familiar, que se manifestaria no fato de o deslocamento ter resultado no afastamento de cônjuges que coabitavam.
Outra parte, seguindo a jurisprudência do STJ, baseia seu entendimento no fato de que o dispositivo se refere a ato administrativo vinculado, e os requisitos para sua prática estão prévia e taxativamente definidos em lei. Neste caso, os requisitos são três: (i) existência de um vínculo matrimonial, ou equivalente, (ii) ambos os cônjuges serem agentes públicos e o (iii) deslocamento do cônjuge ter sido realizado no interesse da Administração. Como a lei não estabeleceu exigência de coabitação do casal no momento em que se expediu a ordem para deslocamento, não cabe ao agente público que acrescente este quesito no momento da análise da requisição do cônjuge que pretende acompanhar. Deste modo, estando preenchidos estes três requisitos, e apenas eles, é obrigatório o reconhecimento do direito do requerente para acompanhar seu cônjuge.
Com o recente julgamento, espera-se que a Administração Pública Federal reconheça o entendimento do STJ e passe a adotá-lo em suas decisões administrativas, reduzindo a litigiosidade entre servidores públicos e a União.
1. STJ, AgInt no REsp 1603404/PR, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/02/2018.
Read MoreÉ comum que candidatos autodeclarados negros sejam excluídos de concursos ou vestibulares a partir de decisões administrativas que contêm uma única palavra: "Indeferido"
O Estado Brasileiro promulgou o Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, por meio da Lei Federal nº 12.288. Esta lei foi criada com o objetivo de promoção de igualdade à população negra, especialmente no que tange ao aumento de oportunidades e efetivação de direitos individuais, coletivos e difusos.
Na referida lei, em seu artigo 1º, parágrafo único, inciso IV, define-se que, para efeitos legais, população negra é o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas, conforme o quesito de cor ou raça utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE[1] e, para promoção de igualdade racial, será utilizada a política de ações afirmativas.
Anos depois, com o objetivo de dar concretude ao disposto no Estatuto de Igualdade Racial, editou-se a Lei Federal nº 12.711/2012, que, dentre outras medidas, reservou em universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio o preenchimento de vagas a candidatos autodeclarados pretos e pardos.
Posteriormente, houve a promulgação da Lei Federal nº 12.990/2014, a qual prevê a obrigatoriedade de adoção de ações afirmativas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos ou empregos públicos da administração pública federal e suas respectivas entidades da administração indireta.
As ações afirmativas foram desenhadas na forma de reserva de vagas na proporção de 20% do total das vagas ofertadas no respectivo concurso, conforme disposto no artigo 1º da Lei 12.990/2014[2] e devem estar previstas no edital, onde se deve especificar o número de vagas ofertadas à ampla concorrência e o número aberto a candidatos negros.
Por sua vez, o artigo 2º da Lei 12.990/2014 prevê que tem direito a concorrer à reserva de vagas os candidatos que se autodeclararem pretos ou pardos:
Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
A autodeclaração não é prova absoluta, conforme se constata a partir do parágrafo único acima referido. Isso porque é absolutamente possível que uma pessoa branca, cujos traços sejam típicos de brancos (tez clara, nariz fino, lábios finos, cabelo liso), queira fraudulentamente se autodeclarar preta ou parda com o fim de concorrer às vagas reservadas e obter, indevidamente, vantagem no concurso público – ou mesmo no vestibular. Nesta hipótese, identificado o fato de que o candidato se autodeclarou negro com o objetivo de fraudar as cotas raciais, é absolutamente legítimo e necessário que seja excluído do certame ou anulada sua nomeação, inclusive porque o ingresso de pessoas brancas por meio da reserva de vagas destinadas a pretos e pardos vai de encontro à política pública planejada pela administração pública.
Na sequência da implementação da política de promoção de igualdade racial, verificou-se que seria adequada a organização de um sistema de aferição da veracidade das autodeclarações, a fim de promover a lisura do programa e evitar que possíveis fraudes viessem a ocorrer. Ora, se as vagas são destinadas às pessoas negras, o preenchimento dessas vagas por candidatos brancos se constituiria como verdadeira afronta à promoção de igualdade, considerados os termos da legislação em vigor.
Para isso, foi editada a Orientação Normativa nº 3/2016, pelo Secretário de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho no Serviço Público do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, estabelecendo, sinteticamente, que as bancas deveriam prever e detalhar, em seus editais de concurso, os métodos de verificação da veracidade da autodeclaração, que deve se basear exclusivamente no fenótipo do candidato, ou seja, nos atributos observáveis do candidato, sua aparência, conforme disposto no artigo 2º, inciso II e § 1º da Orientação Normativa nº 3/2016.[3]
A legislação aplicável, em si, não estabelece qualquer critério objetivo em que devam se basear as bancas. Contudo, deve-se interpretar a norma de modo a evitar que as aferições ocorram sem qualquer parâmetro e fundamento, sob pena de submeter os candidatos a subjetivismos e arbitrariedades.
Atualmente, com a falta de qualquer parâmetro normativo, as bancas têm realizado a aferição com base em seus critérios próprios e pouco transparentes, em verdadeira afronta à isonomia.
Não se pretende aqui questionar a legalidade da existência de banca avaliadora que certifique a veracidade da condição do candidato como preenchendo o fenótipo de negro, que é reconhecida normativamente e chancelada pela jurisprudência. O que se quer é que sejam atendidas três exigências: (i) respeito à dignidade da pessoa humana, (ii) respeito à ampla defesa e (iii) respeito ao contraditório. Este é o entendimento pacificado da jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Constitucionalidade nº 41, cuja relatoria ficou ao encargo do Ministro Luís Roberto Barroso.
Na realidade, o que se discute é a insegurança jurídica resultante da ausência de qualquer critério para verificar se a autodeclaração condiz com a realidade. Ora, diversos cidadãos que sempre se identificaram e foram identificados como negros em diversas ocasiões, têm sido excluídos indevidamente da reserva de vagas.
E o que mais salta aos olhos é que o resultado da análise destas bancas tem frequentemente sido divulgado com a simples resposta “deferido” ou “indeferido”, sem qualquer especificação dos fundamentos que levaram àquela tomada de decisão. Os motivos que levaram àquela decisão, especialmente no caso de indeferimento, devem constar expressamente na decisão. Os candidatos que tiveram sua autodeclaração negada e, portanto, seu direito a concorrer à reserva de vagas cerceado, têm direito a saber a motivação do ato.
Inclusive porque, importante frisar, a autodeclaração se presume verdadeira. Claro que se trata de uma presunção relativa, a qual pode ser afastada se for demonstrado que é falsa. Incumbe àquele que nega a veracidade da autodeclaração comprovar que ela não condiz com a realidade. Deve-se afirmar e provar por meio das provas disponíveis que o candidato não é preto ou pardo.
Somente com base em uma decisão fundamentada é possível que o candidato exerça o contraditório e a ampla defesa. Não basta que o edital preveja a possibilidade de recurso. É preciso que o espaço para recurso seja exercido com base em contraditar os argumentos apresentados pela comissão.
Vejamos: se na decisão consta apenas a resposta de “indeferimento”, isso impossibilita qualquer tentativa do candidato em defender-se do cerceamento àquele direito que ele acredita pertencer-lhe.
Um dos mais singelos e comezinhos princípios constitucionais é o direito ao exercício do contraditório material. Isso significa, em apertada síntese, que deve-se oportunizar àquele que foi acusado que contradite os termos da acusação.
Contudo, quando decisões desse gênero se limitam a informar que a autodeclaração foi considerada verdadeira ou não, sem qualquer fundamentação, o exercício do contraditório se torna impossível. Indaga-se: qual aspecto da aparência (fenótipo) foi considerado insuficiente para considerar o candidato pardo ou preto? Foi a tez da pele? O nariz? O cabelo? A boca? Levou-se em consideração algum outro atributo físico e, se sim, qual?
O candidato deve ter direito a apresentar, além do recurso escrito, documentos públicos que tenham conferido a ele o reconhecimento de sua cor ao longo da vida. Se o candidato já foi oficialmente reconhecido como preto ou pardo por algum órgão público e isso consta em documento oficial, tal heteroidentificação deve ser respeitada pela banca, sob pena de absoluta insegurança jurídica.
Ou seja, se o Estado, por meio de um agente público, já reconheceu anteriormente que determinado cidadão é preto ou pardo, não pode agora simplesmente negar seu direito de acesso aos cargos públicos por meio do sistema de cotas raciais. Em síntese, o Estado não pode se contradizer a tal ponto que os cidadãos de boa-fé tenham seu reconhecimento negado. O mesmo raciocínio é válido caso comprovado que o candidato se declara como negro desde a sua menor idade, em documentos oficiais que exigiram a sua autoidentificação sem qualquer benefício direto para tanto, como em cadastros escolares, no censo populacional (IBGE), no Sistema Único de Saúde (SUS) ou no Registro Civil.
Conclui-se, portanto, que a existência de comissões que aferem a veracidade da autodeclaração de candidatos pretos ou pardos é juridicamente possível. Além disso, as decisões prolatadas por essas comissões devem ser devidamente fundamentadas e motivadas com base em critérios objetivos, sob pena de ferir a isonomia, o dever de motivação dos atos administrativos e o devido processo legal. Igualmente, deve ser admitido como meio de prova dos candidatos pretos e pardos, em caso de indeferimento da autodeclaração, documentos públicos em que tenham sido reconhecidos como tal. Por fim, quando a decisão administrativa indefere, sem motivação, a autodeclaração de candidato negro, seja em concurso público ou em vestibular, o cidadão tem o direito de recorrer ao Poder Judiciário, que, por sua vez, terá o dever de intervir e reavaliar esse ato administrativo.
[1] Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:
IV – população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;
[2] Art. 1º Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei.
[3] Art. 2º Nos editais de concurso público para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União deverão ser abordados os seguintes aspectos:
I – especificar que as informações prestadas no momento da inscrição são de inteira responsabilidade do candidato; II – prever e detalhar os métodos de verificação da veracidade da autodeclaração, com a indicação de comissão designada para tal fim, com competência deliberativa;
III – informar em que momento, obrigatoriamente antes da homologação do resultado final do concurso público, se dará a verificação da veracidade da autodeclaração; e
IV – prever a possibilidade de recurso para candidatos não considerados pretos ou pardos após decisão da comissão. § 1º As formas e critérios de verificação da veracidade da autodeclaração deverão considerar, tão somente, os aspectos.
Escrito por Giovanna Gamba
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