
Tendências jurisprudenciais da responsabilidade civil de sócios: sócios remissos e integralização irregular do capital social
Hoje inauguramos uma série de textos que vão discorrer sobre as hipóteses de responsabilização civil dos sócios de uma empresa, com análise da respectiva jurisprudência. Como primeiro tema, trataremos de uma das causas mais comuns: a falta de integralização de capital social ou a sua integralização irregular/insuficiente.
Antes de tudo, importa dividir a responsabilidade civil dos sócios em dois grandes grupos: o primeiro se refere à responsabilidade por violação a deveres contratuais ou legais imputáveis diretamente aos próprios sócios, e o segundo se refere à responsabilidade dos sócios por obrigações contraídas pela sociedade.
O primeiro grupo, por tratar de obrigações contraídas pessoalmente pelos sócios (deveres inerentes aos sócios), não é afetado pelo regime legal de responsabilidade adotado pela sociedade (se limitada ou ilimitada). É o caso da responsabilidade pela correta integralização do capital social, pelo abuso do poder de controle, pelo voto abusivo ou pelo abuso dos direitos de minoritário.
O segundo grupo, por sua vez, depende do regime legal de responsabilidade da sociedade. Se ilimitada (como as sociedades simples), os sócios sempre responderão subsidiariamente pelas obrigações contraídas pela sociedade. Se limitada (como as sociedades limitadas [LTDAs.] ou anônimas [S.A.]), os sócios só serão chamados a responder pelas obrigações da sociedade na hipótese de um ilícito anterior, previsto em lei, que acarrete o sobrestamento do princípio da separação patrimonial. É o caso da desconsideração da personalidade jurídica, do encerramento irregular da sociedade, da distribuição de lucros fictícios ou da deliberação contrária à lei ou ao contrato social.
Com o decorrer da série de posts, detalharemos os mais frequentes destes motivos de responsabilização de sócios por atos ilícitos, a começar pela não integralização e pela integralização irregular do capital social (que se enquadra no primeiro grupo).
Falta no dever de investimento: a não integralização do capital social subscrito ou sua integralização irregular.
A principal obrigação de um sócio é transferir os bens e/ou direitos por ele prometidos ao patrimônio da sociedade. Quando assina o contrato social (ou alteração ao contrato social) ou o boletim de subscrição, o sócio subscreve as quotas/ações que irá adquirir e se obriga, pessoalmente, a efetivar os valores neles descritos (ou seja, integralizar o que prometeu).
Trata-se de obrigação líquida, certa e exigível, a qual o sócio está compelido a cumprir na data estipulada. Se não o fizer, total ou parcialmente, caberá à sociedade o direito de cobrar os valores, inclusive judicialmente mediante execução forçada, ou de reduzir proporcionalmente a participação do sócio inadimplente (remisso), bem como de alienar as quotas do sócio remisso para os sócios adimplentes ou para terceiros.
Como adiantado, veja que este dever é contraído pelo sócio em nome próprio, e independe do regime de responsabilidade adotado: ainda que se trate de sociedade limitada ou sociedade anônima, o sócio responde pessoalmente pela integralização.
Tanto é assim que os direitos de execução forçada e redução proporcional da participação do inadimplente estão expressamente previstos no Código Civil (artigos 1.004 e 1.058) e na Lei de Sociedades Anônimas (artigos 106 e 107), sempre direcionados aos sócios, e não à sociedade. A jurisprudência corrobora:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE EXCLUSÃO DE SÓCIO REMISSO E RECONVENÇÃO PARA COBRANÇA DE VALORES. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA . Incidem à espécie as regras materiais referentes à prescrição definidas no novo Código Civil, contadas a partir da sua entrada em vigor e não da data do fato. LEGITIMIDADE ATIVA. Matéria suscitada e decidida no recurso anterior atinente ao presente feito (AC 70038895827). MÉRITO . AÇÃO E RECONVENÇÃO. I. Sócio remisso é aquele que não cumpre com a sua obrigação de contribuir para a formação do capital social, podendo até mesmo chegar a ser excluído da sociedade. II . Tendo em vista que cabia ao requerido o ônus da prova da efetiva integralização da sua cota social, em não o fazendo, forçoso concluir pela procedência da ação. III. Desta forma, e considerando, ainda, o resultado da ação, a improcedência da reconvenção é medida que se impõe. RECURSO DESPROVIDO . UNÂNIME. ( Apelação Cível Nº 70050183144, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator.: Gelson Rolim Stocker, Julgado em 20/03/2013).
Tal responsabilidade não existe apenas perante a sociedade, mas também perante terceiros credores e os demais sócios da empresa. No caso das sociedades limitadas (LTDAs.), todos os sócios são solidariamente responsáveis pela integralização do capital social (artigo 1.052 do Código Civil) e, havendo déficit de caixa para que a empresa cumpra suas obrigações, cada um deles estará obrigado a pagar a quantia faltante para o complemento do capital social, sendo inclusive dispensável a instauração de pleito de desconsideração da personalidade jurídica (DPJ) para tal:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INDEFERIMENTO DOS PEDIDOS FORMULADOS PELA AGRAVANTE. INSURGÊNCIA . ALEGADA EXISTÊNCIA DE PROVA PARA FINS DE DEFERIMENTO DO PEDIDO. INOCORRÊNCIA. INAUGURAÇÃO DO INCIDENTE. DESCABIMENTO . AINDA QUE FOSSE POSSÍVEL, A NÃO INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL, SE DEMONSTRADA, IMPLICA NA IMEDIATA E SOLIDÁRIA RESPONSABILIZAÇÃO DO SÓCIO REMISSO, NOS TERMOS DO ART. 1.052 DO CÓDIGO CIVIL, SEM QUE HAJA NECESSIDADE DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO. DECISÃO MANTIDA . RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Indeferimento da instauração do incidente. Aplicação, ao caso, da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, que não encontra baluarte no simples inadimplemento ou encerramento irregular da sociedade . Desvelamento que, interpretado restritivamente, exige, a sua acolhida, ainda que inaugural, a presença especificada e concreta de uma das condutas desviantes previstas no diploma material. Precedente do E. STJ e Enunciado 146 da III Jornada de Direito Civil do CJF. Impertinente à inauguração do incidente, ainda, a possível não integralização do capital social, pois que tal circunstância, se demonstrada, implica na imediata e solidária responsabilização do sócio remisso, nos termos do art . 1.052 do Código Civil, sem que haja necessidade do incidente desvelador. Precedentes. Recurso desprovido.
AGRAVO DE INSTRUMENTO – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – RESPONSABILIDADE SÓCIO EIRELI – AUSÊNCIA DE INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL – Nos termos do art. 1.052 do Código Civil, extrai-se que nos casos em que o capital social da sociedade limitada não for completamente integralizado, todos os sócios respondem solidariamente (com seus patrimônios pessoais), pelo valor remanescente e não pela integralidade de eventual débito em execução; – Ausência de comprovação nos autos da integralização do capital social – responsabilidade direta do sócio que independe do procedimento de desconsideração da personalidade jurídica. RECURSO IMPROVIDO.
Salienta-se que a desnecessidade de DPJ não exclui a obrigatoriedade de inclusão dos sócios no polo passivo da demanda, caso pretenda-se executar a quantia contra eles no futuro.
De qualquer forma, o(s) sócio(s) que integralizar(em) o capital faltante terão direito de regresso contra o remisso, evidentemente.
Ainda quanto a esse tema, é forçoso diferenciar: (i) para o credor forçar a integralização do capital social faltante, não é necessária a desconsideração da personalidade jurídica, basta a inclusão direta do(s) sócio(s) no processo; (ii) por outro lado, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a simples falta de integralização, por si só, não configura justa causa para desconsideração.
Pode parecer confuso, mas significa dizer o seguinte: constatado que o capital não foi totalmente integralizado, o credor pode cobrar os sócios (no limite do que falta para completar o capital social) sem ter que comprovar fraude. No entanto, se o credor deseja desconsiderar a personalidade jurídica para cobrar os sócios por obrigações contraídas pela sociedade, deverá demonstrar fraude, e, para isso, não bastará o simples fato de não estar o capital social totalmente integralizado:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA . CAPITAL SOCIAL NÃO INTEGRALIZADO. REQUISITOS LEGAIS NECESSÁRIOS. SÚMULA 83/STJ. RECURSO DESPROVIDO . 1. “A falta de integralização do capital da sociedade limitada também não pode ser considerada como fundamento suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica” (AgInt no AgInt no AREsp 1.593.637/SP, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Terceira Turma, julgado em 1º/6/2021, DJe de 17/6/2021) . 2. Agravo interno desprovido.
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART . 50 DO CÓDIGO CIVIL. REQUISITOS. AUSÊNCIA. SÚMULA Nº 7/STJ . NÃO INCIDÊNCIA. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2 . O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica a partir da Teoria Maior (art. 50 do Código Civil) exige a comprovação de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pelo que a mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa não justifica o deferimento de tal medida excepcional. 3. A falta de integralização do capital da sociedade limitada também não pode ser considerada como fundamento suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica. 4. Não há falar em incidência da Súmula nº 7/STJ porque a solução da controvérsia cinge-se a discutir a qualificação jurídica dos fatos delineados no acórdão recorrido. 5. Agravo interno não provido.
No que se refere às perdas e danos adicionais sofridos pela sociedade em razão da integralização incompleta (ou seja, aquelas que excedem o valor não integralizado), cabe ao autor da ação comprovar que o prejuízo deriva exclusivamente da falta de aporte de capital (por exemplo: a sociedade perder um negócio apenas porque não tinha caixa suficiente para celebrá-lo em decorrência da remissão do sócio faltoso):
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. AUSÊNCIA DE INTEGRALIZAÇÃO DE QUOTA SOCIAL . PREJUÍZOS DECORRENTES. INEXISTÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR. SENTENÇA MANTIDA. Trata-se de examinar recurso de apelação interposto pelo autor contra a sentença de improcedência de ação de indenização por perdas e danos decorrentes da ausência de integralização do capital social quando da constituição de sociedade por cotas de responsabilidade limitada . Não enseja o dever de indenizar a ausência de integralização de quota social, quando o conjunto probatório não demonstra que os prejuízos financeiros enfrentados pela empresa decorrem exclusivamente da ausência de aporte do capital. Sentença mantida. APELAÇÃO DESPROVIDA. ( Apelação Cível Nº 70036224145, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator.: Sylvio José Costa da Silva Tavares, Julgado em 10/12/2014).
Por fim, quando decidem pela integralização do capital em bens móveis ou imóveis, nos termos do artigo 1.055, §1º, do Código Civil, também respondem solidariamente os sócios pela correta avaliação dos bens integralizados. No caso das companhias (S.A.), o dever de solidariedade é do acionista subscritor com os peritos avaliadores, conforme artigo 8º, § 6º, da Lei de Sociedades Anônimas.
Ou seja, o sócio é pessoalmente responsável quando declara valor equivocado para os bens transferidos à sociedade (por exemplo, se diz que integralizará R$ 500.000,00 por meio de um imóvel, mas descobre-se que o imóvel valia apenas R$ 200.000,00 à época da transferência, responderá pelos R$ 300.000,00 faltantes, além de eventuais perdas e danos que tiver causado à sociedade ou terceiros). Nesse sentido:
SOCIEDADE LIMITADA. RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS PERANTE OS CREDORES. INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL. 1 – Na sociedade limitada, o limite da responsabilidade dos sócios, perante os credores, é o total do capital social subscrito e não integralizado (art . 1.052, CC). 2 – Se ficar provado que os sócios não aportaram, de fato, o valor formalmente referido como capital integralizado, eles poderão ser responsabilizados pela diferença. 3 – Não há, no direito brasileiro, a obrigação do sócio de manter ou reintegrar o capital social, na hipótese de exaurimento do patrimônio da limitada . 4 – Descabido o pedido de consulta ao INFOSEG, se por esse sistema apenas é possível consultar o endereço e os dados cadastrais informados à Receita Federal, não havendo qualquer informação quanto a possíveis bens. 5 – Agravo não provido.
AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução de título extrajudicial – Indeferimento de pedido de determinação à executada de comprovação da efetiva integralização do seu capital social – Inconformismo da exequente – Alegado cabimento da medida, diante da possibilidade de promoção de atos destinados à responsabilização pessoal do sócio caso a integralização não se encontre regular – Procedência – Responsabilidade da Eireli por suas dívidas limitada ao seu patrimônio, salvo na hipótese de não integralização efetiva de seu capital social, caso em que o sócio responde solidariamente por elas, até o montante da integralização declarada e não realizada – Admissibilidade de prova em contrário da integralização do capital social de uma empresa, não bastando como evidência a mera menção no respectivo contrato – Benefício prático à execução caracterizado – Precedentes desta Corte – Decisão reformada – Recurso provido.
O Poder Judiciário também vem anulando integralizações de bens imóveis quando o sócio é insolvente. Inexistindo outros bens suficientes para sanar as dívidas de um devedor, a transferência de seu patrimônio para uma sociedade empresária pode ser considerada fraude a credores ou à execução. Confira-se:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO PAULIANA – REQUISITOS PARA AJUIZAMENTO – PRESENÇA – FRAUDE CONTRA CREDORES – COMPROVAÇÃO – PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. – A fraude a credores caracteriza-se pela ação do devedor com o propósito de se furtar a satisfazer obrigações por ele assumidas, valendo-se da participação de terceiro, mediante o desfalque ou esvaziamento o seu patrimônio. (consilium fraudis) – Comprovado que as integralizações de capital e a doação das quotas sociais efetuadas à sociedade empresária destinaram-se a fraudar credores, tais atos são nulos.
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – FRAUDE À EXECUÇÃO – INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL COM BENS IMÓVEIS – EXECUTADO QUE NÃO FICA COM BENS DISPONÍVEIS PARA SUSTENTAR OUTRAS EXECUÇÕES – FRAUDE CONSTATADA – INEFICÁCIA FRENTE AO EXEQUENTE – PENHORA DO BEM ANTERIORMENTE TRANSFERIDO – POSSIBILIDADE – PENHORA DE COTAS SOCIETÁRIAS – NECESSIDADE – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. – Nos termos do artigo 792, IV do Código de Processo Civil, considera-se fraude à execução a alienação de bem quando, ao tempo de sua ocorrência, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência – Constatado que houve transferência de bens imóveis com o objetivo de integralizar o capital social da companhia, sem que o sócio tivesse outros bens passíveis de cobrir dívidas pessoais, verifica-se nítida fraude à execução, o que leva a ineficácia da integralização do capital social em face do exequente e, por conseguinte, possibilita a penhora do bem transferido – Nos termos do art. 835, IX, CPC é possível a penhora das quotas societárias, como espécie de última opção, como se verifica quando a parte alega expressamente não deter outros bens passíveis de constrição judicial.
Ocorrendo este contratempo, a integralização será considerada não realizada e o sócio seguirá remisso perante a sociedade e demais sócios, o que pode atrair qualquer uma das consequências acima detalhadas (responsabilidade solidária dos sócios pela integralização, possibilidade de execução forçada ou expulsão/redução da participação do sócio no capital social).
Todo o exposto demonstra a relevância que se deve dar à correta subscrição e integralização do capital social a fim de evitar responsabilidades pessoais futuras. É de suma importância que os sócios estejam alinhados sobre os riscos, principalmente no que se refere à possível insolvência de algum deles e à declaração de valores para fins de integralização em bens móveis ou imóveis.
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