
A Nova Advocacia: inteligência artificial e o protagonismo das habilidades de negociação
Hoje, em 2025, é consenso que os modelos avançados de linguagem e outras formas de inteligência artificial estão revolucionando o trabalho jurídico. Desde o lançamento do ChatGPT em fins de 2022, o mundo do Direito e, especialmente, escritórios de advocacia ao redor do globo vêm experimentando um ponto de inflexão comparável ou superior à introdução da internet.[1] A IA generativa está para os juristas como a calculadora esteve para os engenheiros e matemáticos.[2]
Fato é que ferramentas de IA generativa conseguem redigir e analisar documentos legais com rapidez inédita, pesquisar jurisprudência e até sugerir estratégias – tarefas que antes consumiam horas de trabalho técnico dos advogados. Essa transformação tecnológica aumenta extraordinariamente a produtividade nos serviços jurídicos, em termos quantitativos e qualitativos, mas também traz novos desafios e reposiciona as habilidades valorizadas no profissional do Direito. Diante de um prognóstico de futuro cada vez mais tecnológico, em que há verdadeira fusão entre o profissional humano e a máquina, uma pergunta emerge: o que esperar dos advogados após a onda da IA generativa?
A resposta está na valorização das habilidades de negociação, incluindo a capacidade de comunicação e de persuasão, que se tornam cada vez mais essenciais.
Inteligência Artificial: Um caminho sem volta
Modelos de linguagem (LLMs) (como o ChatGPT, Gemini, Copilot ou DeepSeek) têm mostrado resultados impressionantes na automação de tarefas repetitivas e de baixo valor agregado. Estudos recentes indicam que sistemas de IA jurídica reduziram o tempo necessário para concluir tarefas em até 37%, dobrando ou até mais a produtividade dos advogados em certas atividades.[3] Em outras palavras, advogados assistidos por IA são capazes de entregar trabalho de qualidade em menos tempo, o que tem um impacto direto na melhoria da clareza e da organização de petições, contratos e outros documentos legais.
Ao facilitar a automatização de tarefas técnicas repetitivas, a IA generativa, quando devidamente operada, está ajudando os advogados a lidarem com um volume maior de casos sem comprometer a qualidade. A IA pode iniciar e evoluir os trabalhos técnicos de redação, fornecendo rascunhos bem estruturados e detalhados, cabendo ao advogado refinar, revisar e personalizar o conteúdo. Ou seja, se antes a eficiência repetitiva se dava pela adaptação de modelos (de petições, contratos, e etc.), hoje é possível ser eficiente mesmo em tarefas para as quais o advogado não dispõe de modelos.
Em determinado levantamento internacional de 2023, constatou-se que 87% dos profissionais do direito diziam que a tecnologia melhorou seu trabalho diário, sendo que 73% dos advogados consultados já planejavam integrar a IA generativa em seu trabalho jurídico dentro de um ano.[4] Essa rápida adesão reflete a preocupação dos advogados de que ignorar tais ferramentas pode em breve significar uma imensa desvantagem competitiva, ou mesmo a situação limite de um “iletramento jurídico-tecnológico”.
Por outro lado, existe ainda a desconfiança sobre o fato de que modelos generativos cometem equívocos, incluindo a chamada alucinação de conteúdo – por exemplo, citando precedentes ou normas inexistentes. É justamente neste flanco que plataformas de ferramentas jurídicas, que já estão incorporando IA generativa, travam o principal desafio tecnológico-jurídico, a saber: construir ferramentas precisas, que acertem a resposta e forneçam, de forma individualizada, o fundamento normativo, jurisprudencial ou doutrinário.[5] Nos Estados Unidos, ferramentas como Lexis+AI[6] e Harvey AI[7], bem como, no Brasil, a Schief.ai e o produto licito.guru IA[8] já se colocam na linha de frente dessa batalha. Disclosure: Os autores desse texto contribuíram diretamente na construção da Schief.ai e do produto licito.guru IA.
Reconhecendo essas falhas ainda existentes nos modelos generativos, órgãos de controle, como o CNJ[9] e o TCU[10], e entidades de classe, como a OAB[11] e a American Bar Association (EUA)[12], estão regulamentando e orientando que o uso de IA requer, obviamente, supervisão humana. Isto é, o advogado deve entender os benefícios e riscos da tecnologia e conferir a exatidão de toda resposta gerada, para cumprir seu dever de competência profissional. Em suma, a conjunção entre inteligência artificial e exercício da advocacia constitui um ponto de não retorno, mas não elimina a responsabilidade do advogado sobre o seu trabalho – ele continua assinando as peças e respondendo por elas.
Habilidades de negociação: o novo paradigma da advocacia
Se conferir respostas e revisar os textos gerados pela IA faz parte da responsabilidade profissional, o que, então, devemos esperar como habilidades de um advogado neste novo paradigma? Se a inteligência artificial consegue suprir boa parte do conhecimento técnico-jurídico operacional, o que passa a diferenciar um advogado “notável”?
Evidentemente, habilidades essencialmente humanas, antes tidas como complementares, passam a sobressair e alcançar um protagonismo natural, destacando-se como aquelas que a tecnologia não consegue replicar plenamente. Mais do que nunca, a “nova advocacia”, além do manejo desenvolto da tecnologia, repousa a sua boa execução na construção de relações de confiança entre advogado e cliente.
Em outras palavras, se a IA tende a “comoditizar” tarefas técnicas padronizáveis, outras qualidades como escuta ativa, empatia e a capacidade de leitura de cenários litigiosos complexos passam a ser, hoje, mais valorizadas do que nunca.
Atualmente, muitos clientes já conseguem buscar respostas corretas e completas utilizando as mesmas ferramentas que os advogados. Diante da análise de um caso, o que mais diferencia as posições entre o profissional e o cliente assistido é a capacidade de compreender as dores e os objetivos envolvidos na situação, e com isso traçar a melhor estratégia jurídica possível. Para tanto, é indispensável o refinamento de perspectiva, sensibilidade e pensamento crítico por parte do advogado, para que o cliente não receba apenas “uma aula de direito” ou respostas óbvias e que poderia alcançar sozinho.
Ao mesmo tempo, na práxis de litígios, a habilidade de negociação e comunicação persuasiva reposiciona-se como o centro da preocupação do advogado. Isso porque, se as respostas e a execução de tarefas técnicas são facilitadas pela IA, sobra mais tempo e espaço para a valorização dos relacionamentos e da visão estratégica aplicada sobre os casos. Isto é, se a boa redação jurídica e o acesso a respostas podem vir a se tornar comuns a todos os advogados, o que distinguirá a melhor solução será a sua condução estratégica, seja em direção a acordos mutuamente favoráveis ou no aconselhamento frente a dilemas legais.
Neste sentido, profissionais da advocacia que dominam técnicas especializadas de negociação podem se destacar significativamente. Por exemplo, ao utilizar ferramentas de IA para analisar contratos, um advogado pode identificar rapidamente cláusulas padrão e potenciais áreas de risco. Com essa informação, aplicando métodos de negociação específicos (como o método de negociação de Harvard), o advogado pode separar as pessoas do problema, focando nos interesses das partes envolvidas, e não nas suas posições. Essa abordagem orientada para soluções tende a resultar em acordos mais satisfatórios, perenes e legítimos para todas as partes, evidenciando como a combinação de habilidades negociais e IA pode aprimorar a prática jurídica – tendência essa que já é reconhecida em algumas instituições públicas, como o TCU, nessa nova “era da consensualidade”.[13]
Portanto, o perfil do advogado contemporâneo está em redefinição. O conhecimento doutrinário e jurisprudencial profundo seguirá valioso, mas agora alia-se com a competência de trabalhar junto com as IA’s, extraindo valor máximo dessas ferramentas. Como já aconteceu com a pesquisa eletrônica e editores de texto modernos, hoje já é impensável um advogado não saber como utilizar as tecnologias de IA a seu favor. Essa é a premissa técnica de toda “nova advocacia”.
Em paralelo, habilidades como escuta ativa, leitura de situações complexas e capacidade de negociar interesses conflitantes passam a ser indispensáveis na advocacia, fazendo do paradigma de “advogado notável” não mais aquele jurista “oráculo do Direito” ou sagaz em encontrar “brechas na lei”, mas, sim, um profissional que consegue, com segurança jurídica, agir com empatia, assertividade, persistência, além de oferecer compreensão e resolução de problemas concretos de um lugar mais próximo dos seus clientes.
Num mundo de advogados potencializados por tecnologia, aqueles que aliarem expertise jurídica, domínio de IA e sólidas habilidades interpessoais, definitivamente estarão em posição de destaque na profissão.
Em última instância, a Nova Advocacia não será conquistada por quem apenas domina códigos e precedentes, mas por aqueles que sabem transformar argumentos em acordos, conflitos em soluções e impasses em oportunidades. O advogado que não apenas entende a lei, mas domina a arte da negociação, não será substituído – ao revés, será indispensável. Enquanto a IA otimiza a técnica, é ainda a persuasão humana que define o resultado.
Autores:
Gustavo Schiefler. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Educação Executiva em Negociação (Harvard Law School).
Walter Marquezan Augusto. Doutor em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP).
Eduardo Schiefler. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
Marco Antônio Ferreira Pascoali. Mestre em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Referências:
[1] PERLMAN, A. The Implications of ChatGPT for Legal Services and Society. Harvard Law School Center on the Legal Profession, 2023. Disponível em: https://clp.law.harvard.edu/knowledge-hub/magazine/issues/generative-ai-in-the-legal-profession/the-implications-of-chatgpt-for-legal-services-and-society/ Acesso em: 23/03/2025.
[2] SCHIEFLER, Gustavo. Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data. CONJUR. 09 de junho de 2024. Disponível em: Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data https://www.conjur.com.br/2024-jun-09/os-assistentes-juridicos-virtuais-inteligencia-artificial-big-data/
[3] AMBROGI, B. Another New Study of Legal AI Shows Some Models Can Significantly Improve Work Quality and Efficiency. LawNext, 2025. Disponível em: https://www.lawnext.com/2025/03/another-new-study-of-legal-ai-shows-some-models-can-significantly-improve-work-quality-and-efficiency.html Acesso em: 23/03/2025.
[4] Wolters Kluwer. Future Ready Lawyer Survey 2023 – Generative AI, Nov. 2023. Disponível em: https://www.wolterskluwer.com/en/news/future-ready-lawyer-2023-report. Acesso em 23/03/2025.
[5] SCHIEFLER, Gustavo. Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data. CONJUR. 09 de junho de 2024. Disponível em: Os assistentes jurídicos virtuais: inteligência artificial & big data https://www.conjur.com.br/2024-jun-09/os-assistentes-juridicos-virtuais-inteligencia-artificial-big-data/
[6] AMBROGI, B. LexisNexis Rolls Out Lexis+ AI for General Availability, Promising Hallucination-Free Answers to Legal Questions. LawNext, 2023. Disponível em: https://www.lawnext.com/2023/10/lexisnexis-rolls-out-lexis-ai-for-general-availability-promising-hallucination-free-answers-to-legal-questions Acesso em: 23/03/2025.
[7] CLIO. Harvey AI: Legal Artificial Intelligence (blog), 2023. Disponível em: https://www.clio.com/blog/harvey-ai-legal/ Acesso em: 23/03/2025.
[8] Disponível em: https://schief.ai/ e https://www.licito.guru/ia Acesso em: 23/03/2025.
[9] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ aprova resolução regulamentando o uso da IA no Poder Judiciário. 2025. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-resolucao-regulamentando-o-uso-da-ia-no-poder-judiciario/ Acesso em: 23/03/2025.
[10] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Guia de Uso de Inteligência Artificial Generativa no Tribunal de Contas da União (TCU). Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/42/F7/91/4B/B59019105E366F09E18818A8/Guia%20de%20uso%20de%20IA%20generativa%20no%20TCU.pdf. Acesso em: 24/03/2025.
[11] OAB. Confira versão final da recomendação do CFOAB sobre o uso de IA na prática jurídica. 2024. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/62711/confira-versao-final-da-recomendacao-do-cfoab-sobre-o-uso-de-ia-na-pratica-juridica Acesso em: 23/03/2025.
[12] New York State Bar Association. Justice Meets Algorithms: The Rise of Gen AI in Law Firms, 2025. Disponível em: https://nysba.org/justice-meets-algorithms-the-rise-of-gen-ai-in-law-firms/ Acesso em: 23/03/2025.
[13] SCHIEFLER, Gustavo. A negociação pelo método Harvard em conflitos da administração pública. CONJUR. 08 de dezembro de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-08/a-negociacao-pelo-metodo-harvard-em-conflitos-da-administracao-publica/ Acesso em: 23/03/2025.
Bibliografia:
AMBROGI, B. Another New Study of Legal AI Shows Some Models Can Significantly Improve Work Quality and Efficiency. LawNext, 2025. Disponível em: https://www.lawnext.com/2025/03/another-new-study-of-legal-ai-shows-some-models-can-significantly-improve-work-quality-and-efficiency.html Acesso em 23/03/2025.
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WOLTERS KLUWER. Future Ready Lawyer Survey 2023 – Generative AI, Nov. 2023. Disponível em: https://www.wolterskluwer.com/en/news/future-ready-lawyer-2023-report. Acesso em 23/03/2025.
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