
O sócio de sociedade limitada responde por dívidas da empresa?
A sociedade empresária de responsabilidade limitada (limitada ou “LTDA.”) é o tipo societário mais comum no Brasil, e um dos seus principais atrativos está ligado diretamente ao princípio da separação patrimonial. Conforme estabelece o artigo 1.052 do Código Civil, a responsabilidade de cada sócio é, em regra, restrita ao valor integralizado após a aquisição das quotas. Isso significa que, em geral, os sócios desse tipo de sociedade não respondem com seus bens pessoais pelas dívidas da pessoa jurídica.
Na prática, é assim que acontece: o sócio de sociedade limitada subscreve, por exemplo 10.000 (dez mil) quotas, cada uma de R$ 1,00, e posteriormente as integraliza. Nesse caso, após a transferência dos R$ 10.000,00 (dez mil reais), ele não está mais obrigado a aportar valores, sendo este o valor limite de seu investimento e o risco que deseja correr. Ainda que a sociedade apure prejuízos de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), por exemplo, os credores não poderão fazer com que o sócio tenha que pagar R$ 10.000,00 adicionais ao que já aportou.
Essa proteção é o que faz com que este seja o modelo societário mais comum, visto que a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios garante uma segurança jurídica para o exercício da atividade empresarial, segregando riscos. No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro admite algumas hipóteses em que essa separação pode ser relativizada, ensejando a responsabilização pessoal dos sócios por obrigações assumidas pela sociedade.
Diríamos até que as “exceções” à separação patrimonial acabaram se tornando extremamente comuns, visto que são numerosas no mundo dos fatos as relações jurídicas mantidas pela sociedade com trabalhadores, consumidores e Fazenda pública, situações que atraem a chamada “teoria menor” da desconsideração da personalidade jurídica.
Neste artigo, analisamos tais hipóteses, à luz da legislação civil, trabalhista e tributária, com apoio na jurisprudência consolidada dos tribunais brasileiros.
A RESPONSABILIDADE LIMITADA E SUAS EXCEÇÕES
A limitação da responsabilidade do sócio é a regra no regime das sociedades limitadas. Isso significa que, uma vez cumprida a integralização do capital social, os sócios não devem responder com seu patrimônio pessoal pelas dívidas da sociedade.
Essa autonomia patrimonial, no entanto, pode ser superada quando a pessoa jurídica é utilizada de forma abusiva, com desvio de finalidade ou confusão patrimonial — o que autoriza a chamada desconsideração da personalidade jurídica, prevista no artigo 50 do Código Civil, pela “teoria maior”.
No entanto, outras normas legais, como o Código Tributário Nacional, a Consolidação das Leis do Trabalho e o Código de Defesa do Consumidor, estabelecem hipóteses específicas de responsabilização de sócios e administradores, especialmente quando há gestão irregular ou cometimento de ilícitos que prejudiquem credores, trabalhadores, consumidores ou o Fisco.
Estes grupos de credores, quando possuem um crédito contra a sociedade empresária, atraem a “teoria menor”, antes apresentada, que dispensa os requisitos do artigo 50 do Código Civil (abuso da personalidade jurídica). A ideia por trás desta teoria é de que o legislador, em alguns casos, prefere alocar os riscos da insolvência da sociedade empresária aos sócios, e não aos credores, como é o caso da regra geral limitativa.
Portanto, embora a responsabilidade limitada represente um dos pilares estruturantes das sociedades empresárias, especialmente nas sociedades limitadas, ela não é uma blindagem absoluta contra a responsabilização pessoal dos sócios, conforme se buscará demonstrar a seguir.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
No caso geral (teoria maior), o artigo 50 do Código Civil estabelece que, na hipótese de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, o juiz pode determinar que os efeitos de determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos sócios ou administradores. Aplica-se esta teoria para as relações civis, empresariais, administrativas e para todas aquelas nas quais inexiste previsão expressa de aplicação da teoria menor.
Um exemplo de desvio de finalidade é a utilização da sociedade para o cometimento de ilícitos, nos casos em que o sócio constitui a sociedade apenas para que as ilegalidades sejam cometidas sem que seu patrimônio seja atingido. Para a confusão patrimonial, os casos mais comuns são os de utilização do caixa da sociedade para pagamento de contas dos sócios, ou o inverso (caso em que pode acarretar a desconsideração inversa da personalidade jurídica), a utilização reiterada de bens da sociedade pelos sócios e a transferência de bens do patrimônio do sócio para a pessoa jurídica, a fim de frustrar credores pessoais do sócio (ou vice-versa).
É importante esclarecer que a doutrina e a jurisprudência têm interpretado o instituto com parcimônia, reforçando que a desconsideração é medida excepcional, aplicável somente quando demonstrada a utilização indevida da estrutura societária para frustrar a eficácia do direito de outrem.
AGRAVO DE INSTRUMENTO DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE INDEFERIU A INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PARA INCLUSÃO DE PESSOAS INTEGRANTES DE GRUPO ECONÔMICO NO POLO PASSIVO, SEM QUE TIVESSEM SIDO ESGOTADOS TODOS OS MEIOS PARA LOCALIZAÇÃO DE BENS. INADMISSIBILIDADE. O INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO CONSTITUI MEDIDA EXCEPCIONAL QUE REQUER PRÉVIA ADOÇÃO DE TODAS AS MEDIDAS AO ALCANCE DO CREDOR PARA O ENCONTRO DE BENS APTOS A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO, ALÉM DE TRAZER A CONHECIMENTO DO JUÍZO INDÍCIOS CONTUNDENTES DE GESTÃO FRAUDULENTA, ANTES DE SE PROPUGNAR PELA INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO DESPROVIDO.
Portanto, a desconsideração é um mecanismo importante para coibir abusos, mas deve ser aplicada com cautela, respeitando os limites legais e os direitos dos sócios que atuam de forma regular e de boa-fé. Em razão da interpretação restritiva, não se pode considerar a mera existência de grupo econômico empresarial como fator de “confusão patrimonial”, nem mesmo entender que houve “desvio de finalidade” pelo simples fato de a sociedade praticar ato lícito fora dos limites de seu objeto social.
Por fim, esse instituto ganhou disciplina processual com os artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil de 2015, os quais estabeleceram o regramento de desconsideração da personalidade jurídica, assegurando contraditório e ampla defesa ao sócio ou administrador a ser atingido. A desconsideração pode ser requerida tanto de forma principal (mediante processamento na própria ação, desde o seu início), quanto de forma incidental (por meio de incidente apartado no processo, requerido após proposta a ação principal).
RESPONSABILIDADE POR DÍVIDAS TRABALHISTAS
Na seara trabalhista, que também disciplina a desconsideração (art. 855-A), a jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho tem adotado a chamada teoria menor, com fundamento no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e nos princípios protetivos do direito do trabalho.
Nesse contexto, tem-se admitido a responsabilização do sócio quando a pessoa jurídica não possui patrimônio suficiente para satisfazer os créditos trabalhistas reconhecidos em juízo, ainda que ausente demonstração cabal de desvio de finalidade ou confusão patrimonial (artigo 50 do Código Civil), sob o fundamento de que os sócios se beneficiam do trabalho dos empregados. É o que se extrai, por exemplo, de decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região:
REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO CONTRA OS SÓCIOS DA SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. Mesmo constando apenas a pessoa jurídica no título executivo judicial, é possível o redirecionamento da execução contra os sócios da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, desde que esteja comprovada nos autos sua participação no quadro social da empresa executada. […] Frisa-se que o redirecionamento da execução contra os sócios da empresa devedora insolvente é medida que atende aos ditames do ordenamento jurídico, sinalando-se que, no processo do trabalho, não se admite que os créditos do trabalhador fiquem a descoberto enquanto os sócios da empresa empregadora livram seus bens pessoais da execução, mesmo se tratando de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, quando é indiscutível que se beneficiaram da força de trabalho despendida pelo empregado. Assim, a insuficiência de recursos e bens da empresa para garantia da execução autoriza o redirecionamento dos atos executórios contra os sócios da empresa devedora à época da vigência do contrato de trabalho do exequente.
A partir do julgado acima (que representa apenas um exemplo de uma verdadeira jurisprudência consolidada e reiterada), compreende-se que a responsabilidade dos sócios por dívidas trabalhistas se pauta na proteção ao crédito de natureza alimentar e no princípio da alteridade, segundo o qual os riscos da atividade econômica não devem ser transferidos ao credor (trabalhador). Entendimento muito parecido a este é utilizado nos casos de Direito do Consumidor, com fundamentos basicamente idênticos.
RESPONSABILIDADE POR DÍVIDAS TRIBUTÁRIAS
No campo tributário, a responsabilidade dos sócios e administradores é regida principalmente pelo Código Tributário Nacional (CTN), que prevê hipóteses taxativas de responsabilidade pessoal de terceiros.
Em regra, a pessoa jurídica (sociedade limitada) é a contribuinte obrigada ao pagamento do tributo, e o simples inadimplemento fiscal por parte da sociedade não gera automaticamente responsabilidade do sócio-gerente. Essa orientação, consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça na Súmula nº 430, enfatiza que o sócio não responde apenas porque a sociedade deixou de pagar um tributo – é indispensável que tenha havido por parte dele alguma conduta qualificada, como ato com excesso de poderes ou infração à lei.
Em outras palavras, se o sócio-administrador (que pode ser um sócio-gerente, um diretor, etc.) cometeu alguma ilegalidade ou abuso – por exemplo, ocultando bens, cometendo fraudes fiscais, violando a lei societária ou os estatutos – ele pode ser responsabilizado pessoalmente pela dívida tributária decorrente desses atos (artigo 135, inciso III, do CTN).
Já o artigo 134, inciso VII, do CTN prevê uma responsabilidade solidária dos sócios em caso de liquidação da sociedade de pessoas: se a sociedade é liquidada e não paga seus tributos, os sócios que intervieram nesse processo de liquidação podem responder, desde que esgotados os meios contra a pessoa jurídica. Essa última hipótese (art. 134) tem aplicação mais restrita e, de todo modo, também não dispensa a tentativa prévia de cobrança do devedor principal.
Os tribunais possuem interpretação extensiva neste caso, estendendo a responsabilidade aos sócios nos casos de liquidação irregular da sociedade, assim considerada aquela em que, apesar de não ser dada baixa na sociedade, os sócios simplesmente abandonam a pessoa jurídica, deixando-a inoperante no mundo dos fatos.
Em conclusão, o patrimônio dos sócios/administradores pode ser alcançado em execuções fiscais quando houver comportamento ilícito ou irregularidade na gestão fiscal da sociedade. Por outro lado, se a pessoa jurídica simplesmente não consegue pagar tributos por dificuldade financeira, mas os sócios-administradores agiram de boa-fé e mantiveram a regularidade formal, não se deve redirecionar a cobrança aos sócios.
A PROTEÇÃO DO SÓCIO
Apesar de existirem diversas peculiaridades na desconsideração da personalidade jurídica, é importante deixar claro que o ato não é (e nem pode ser) uma arbitrariedade do juiz. Trata-se de instituto que possui requisitos próprios (tanto na teoria maior, quanto na menor) e procedimento próprio para ser seguido antes da decretação.
Infelizmente, tem se visto um movimento de desconsiderar a personalidade jurídica de sócios sem o devido processo legal, em que bloqueios de contas bancárias de sócios e administradores são ordenados sem que tenha ocorrido instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ou demonstrados os pressupostos para concessão de tutela de urgência e, consequentemente, sem que o atingido pudesse ter se defendido contra a medida pedida pelo credor.
Este tipo de comportamento viola o princípio mais básico do contraditório, pois impede que o sócio demandado possa influir no debate sobre o (des)cumprimento dos requisitos para aplicação da DPJ, seja na teoria maior, seja na menor. O instituto também é criticado de forma bastante contundente no que se refere à extensão dos efeitos da coisa julgada ao sócio, sem que ele tenha participado do contraditório na fase de conhecimento, bem como à inexistência de quaisquer limitações temporais para a sua invocação pelo credor. Debater esses temas junto ao Poder Judiciário tem sido uma das principais missões do contencioso societário.
Com ampla experiência em direito societário, o escritório Schiefler Advocacia atua de forma consultiva e contenciosa na orientação estratégica de sócios, administradores e sociedades empresárias, contribuindo para a adoção de boas práticas de governança e a mitigação de riscos legais. Nossa equipe está preparada para auxiliar na prevenção de litígios, na estruturação societária e na defesa de interesses em processos que envolvam responsabilização de sócios e administradores, sempre com foco na segurança jurídica e na sustentabilidade dos negócios.
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