A solução jurídica levará em consideração a propriedade exclusiva do bem imóvel e a presunção de esforço comum do casal.
Maria Luisa Machado Porath[1]
Imagine o seguinte cenário: você, solteiro, comprou um bem imóvel e o financiou. Certo tempo depois, estabelece união estável ou casa com alguém. Por algum motivo, a relação se rompe. Já se perguntou o que acontecerá com o bem imóvel financiado e que foi adquirido de forma exclusiva por você antes do casamento ou da união estável?
Esse é um questionamento válido e extremamente comum. Através de uma leitura superficial, pode-se chegar ao seguinte pensamento: se o bem imóvel financiado foi comprado antes da constância do casamento ou da união estável e o regime pactuado foi o de comunhão parcial de bens, o ex-cônjuge ou o ex-companheiro não possui direito sobre ele. Contudo, como veremos a seguir, não podemos seguir por essa linha de raciocínio. Assim, necessário se faz uma análise mais detalhada sobre o assunto.
A (In)Comunicabilidade dos Bens no Regime de Comunhão Parcial de Bens
De forma geral, no regime de comunhão parcial de bens, ocorre a comunicabilidade daqueles bens que foram adquiridos de forma onerosa, por um cônjuge ou pelos dois, na constância da união estável ou do casamento[2]. Essa questão possui fundamento na presunção de esforço comum do casal: de forma financeira ou emocional, presume-se ajuda mútua.
Isso significa dizer que, em regra, tudo o que for adquirido antes da conjugalidade se mantém como patrimônio particular. Por esse motivo, muitas pessoas possuem aquele pensamento externalizado na introdução.
No entanto, tratando-se de bem imóvel financiado, a situação muda um pouco de cenário. Isso porque, apesar do imóvel ter sido adquirido de forma exclusiva por um dos cônjuges antes da conjugalidade, o vencimento e o adimplemento das parcelas adentram na relação conjugal e impactam a vida do casal. E é nesse ponto que precisamos resgatar a presunção de esforço comum ao longo da relação.
Nesse sentido, qual a solução jurídica para o caso?
A solução jurídica levará em consideração tanto a propriedade exclusiva do bem imóvel – nesse artigo, não se discute se a propriedade de bem imóvel financiado é de fato do comprador – e a presunção de esforço comum do casal[3]. Regra geral, os Tribunais vêm entendendo do mesmo modo que Maria Berenice Dias (2020, p. 729), a qual afirma que
Adquirido bem mediante financiamento é preciso identificar o número de prestações quitadas durante a vigência da união. É esta a fração do bem a ser partilhado. Não se leva em conta o montante desembolsado, mas a percentagem do bem adquirido. Ficando um com o bem, o outro deve perceber o valor correspondente à metade da fração que foi paga durante o período de convívio, proporcionalmente ao número de parcelas pagas[4].
Exemplificando: Maria, solteira, adquiriu um imóvel de forma exclusiva em 2010 e realizou um financiamento de 15 anos. Em 2014, casou com João, sob o regime de comunhão parcial de bens. Em 2020, o casal se divorciou. Como se dará a partilha do imóvel financiado?
Solução de acordo com o entendimento adotado acima: De início, cabe ressaltar que a propriedade do bem imóvel permanece com Maria, uma vez que adquiriu-o de forma exclusiva. Quanto à partilha, deve-se distinguir as parcelas adimplidas antes e durante o casamento. Aquelas que foram adimplidas na constância do matrimônio devem ser divididas em 50%, correspondente à fração de cada ex-cônjuge. Assim, Maria ficará com a propriedade do imóvel e precisará indenizar João em 50% das parcelas adimplidas ao longo do casamento, devido à presunção do esforço comum do casal.
No entanto, salienta-se que esse é o entendimento majoritário; ou seja, há posições contrárias. Até o momento, o artigo analisou a questão sob o parâmetro de uma pessoa solteira ter adquirido um imóvel financiado antes do matrimônio ou da união estável. Entretanto, e se o casal comprou um imóvel mediante financiamento na constância da relação? Nesse caso, ainda que o imóvel financiado esteja no nome de um dos ex-cônjuges/ex-companheiros, ou que a contribuição financeira para essa aquisição tenha sido desigual, o imóvel será partilhado em 50% para cada ex-cônjuge ou ex-companheiro, conforme já fundamentado no tópico anterior[5]; ainda, os dois devem partilhar as parcelas pendentes, porque as dívidas também são comunicáveis[6].
Conclusão
Conforme aponta Maria Berenice Dias e decisões majoritárias de Tribunais, a partilha de imóvel financiado adquirido antes do casamento ou da união estável, sob o regime de comunhão parcial de bens, incide sobre as parcelas quitadas na constância do casamento ou da união estável. A solução jurídica, de forma geral, é que o proprietário do imóvel necessita indenizar o ex-cônjuge ou o ex-companheiro em 50% do que foi pago ao longo da relação.
Já na situação em que o imóvel financiado foi adquirido durante a relação matrimonial ou de união estável, as dívidas decorrentes das parcelas vincendas devem também ser partilhadas em 50% para cada ex-cônjuge ou ex-companheiro.
Frisa-se que essa explanação não substitui a importância de consultar um advogado ou uma advogada especialista em direito de família e sucessões. O presente artigo é apenas uma breve e simples contextualização do caso, a fim de responder questionamentos mais globais. Portanto, se você se encontra numa situação parecida ou deseja evitar futuras complicações, é recomendável realizar uma consulta jurídica. Só assim o seu caso poderá ser solucionado da maneira mais específica possível.
[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciada e Bacharela em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) — 2015. Estagiária na Schiefler Advocacia. E-mail: malu.mporath@gmail.com
[2] Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
[3] FAMÍLIA. AÇÃO DE DIVÓRCIO. Sentença que julgou procedente a ação e improcedente a reconvenção. Irresignação da ré. Alegação de que as partes viveram em união estável por quatro anos antes de se casarem. Requisitos necessários ao reconhecimento da união estável não comprovados. Partilha. Casamento celebrado no regime da comunhão parcial de bens. Imóvel adquirido pelo autor antes do casamento, mas cujo preço foi pago de forma parcelada. Direito da ré à partilha do valor correspondente às parcelas pagas durante a constância do casamento e até o momento em que a ré deixou o lar conjugal, por constituir patrimônio comum (art. 1.658 do CC). Sentença reformada em parte. Sucumbência recíproca caracterizada, mais intensa da ré. Recurso parcialmente provido. (TJ-SP – AC: 10004448620168260153 SP 1000444-86.2016.8.26.0153, Relator: Alexandre Marcondes, Data de Julgamento: 28/10/2020, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/10/2020)
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 13ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador – Bahia: Editora JusPodivm, 2020, p. 729.
[5] Art. 1.660. Entram na comunhão: I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges;
[6] Art. 1.663. A administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges.
§ 1 o As dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido.
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O entendimento majoritário dos Tribunais é de que o professor universitário, casado com servidor público federal que foi deslocado no interesse da Administração, pode ser removido para outra instituição de ensino, pois o cargo de professor universitário pertence a um quadro único vinculado ao MEC.
Eduardo Schiefler[1]
O deslocamento de servidores públicos pelo território brasileiro é uma prática administrativa bastante comum. Por conta das necessidades da Administração Pública, que variam em grau e gênero, os gestores públicos costumam lançar mão de deslocamentos de ofício (ex officio) para satisfazer o interesse público. É o caso do deslocamento no interesse da Administração.
Diante dessa realidade, cuja intensidade pode ter relação com a gradual escassez de novos concursos públicos, surge uma questão de extrema relevância: se o servidor deslocado possuir um cônjuge/companheiro também servidor público, surge a ele o direito de ser removido para fins de acompanhamento? A resposta é positiva[2], independentemente do interesse da Administração e, inclusive, nas hipóteses em que não há coabitação prévia entre os cônjuges servidores.
Trata-se de previsão específica do artigo 36, parágrafo único, inciso III, alínea “a”, do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União (Lei Federal nº 8.112/1990), segundo a qual o servidor poderá ser removido, a pedido e independentemente do interesse da Administração, “para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que foi deslocado no interesse da Administração”[3].
Acontece que o instituto da remoção ganha novos contornos quando se está diante de Professores de uma Instituição Federal de Ensino. Isto é, professores de Universidades Federais ou de Institutos Federais, que possuem personalidade e autonomia jurídica próprias e que estão distribuídos por todas as regiões do País.
Este detalhe é importante e recebeu a atenção de quem vos escreve em razão de uma peculiaridade contida na Lei Federal nº 8.112/1990, que comumente é questionada nas ações judiciais que pleiteiam a remoção do professor universitário para outra instituição de ensino. Isto porque no artigo 36 da norma, que regulamenta os requisitos do instituto da remoção de servidor público, existe a previsão de que essa espécie de deslocamento (remoção) somente ocorrerá no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.
Em uma primeira análise, seria possível cogitar que a norma impediria a remoção de professores entre Universidades Federais distintas, uma vez que, à primeira vista, pode-se pensar que cada instituição possui um quadro de pessoal próprio e que o ingresso em um deles exige a aprovação em concurso público. Contudo, esta não é a interpretação adotada por parcela majoritária dos Tribunais brasileiros.
Explica-se.
Sem dúvidas, a interpretação de que a remoção de professores seria vedada no âmbito das universidades federais impactaria sobremaneira a finalidade do instituto da remoção para acompanhamento de cônjuge/companheiro, previsto no artigo 36 justamente para fazer frente à discricionariedade (legítima, diga-se de passagem) da Administração Pública em deslocar os seus servidores para assegurar o interesse público.
Imagine-se a situação de um casal de servidores públicos em que um dos cônjuges é deslocado (por redistribuição ou remoção ex officio) para outro ponto do território nacional. Em tese, não haveria dúvidas sobre o surgimento ao outro cônjuge do direito de acompanhar. Contudo, se o cônjuge do servidor deslocado for professor universitário, a depender do local para o qual houve o deslocamento, o professor estaria impossibilitado de acompanhá-lo se se aplicasse o entendimento de que cada instituição federal de ensino possui um quadro de pessoal próprio.
Em atenção a essa peculiaridade, a jurisprudência pátria se consolidou no sentido de que “O cargo de professora de Universidade Federal pode e deve ser interpretado, ainda que unicamente para fins de aplicação do art. 36, § 2º, da Lei 8.112/1990, como pertencente a um quadro de professores federais, vinculado ao Ministério da Educação”[4].
O entendimento majoritário dos Tribunais brasileiros, entre eles o Superior Tribunal de Justiça (STJ), responsável pela uniformização da intepretação das leis federais, é de que o professor universitário, casado com servidor público federal que foi deslocado no interesse da Administração, pode ser removido para outra instituição de ensino, pois o cargo de professor universitário pertence a um quadro único de professores federais, vinculado ao Ministério da Educação (MEC), ainda que para fins exclusivamente do instituto da remoção, cf. artigo 36 da Lei nº 8.112/1990.
Nesse sentido, para que um professor universitário seja removido para acompanhar cônjuge, é preciso preencher os seguintes requisitos: (1) existência de um vínculo matrimonial, ou equivalente, (2) ambos os cônjuges/companheiros devem ser servidores públicos e (3) o deslocamento do cônjuge deve ter sido realizado no interesse da Administração. Atendidas estas exigências legais, é plenamente possível que um professor de instituição federal de ensino seja removido para outra, eis que a interpretação mais aceita nos Tribunais é a de que esse cargo pertence a um quadro único de professores federais vinculado ao MEC.
Ocorre que esse entendimento não é compartilhado pelas instituições de ensino, as quais não estão, é verdade, vinculadas à jurisprudência do Poder Judiciário, uma vez que, regra geral, a esfera administrativa é autônoma da judicial. Além disso, o próprio Ministério da Educação possui normativas internas que vedam a remoção de professores entre universidades distintas. Invariavelmente, esta discussão acaba sendo levada aos montes para o Poder Judiciário, que passa a ter a palavra final do caso concreto.
Recentemente, no fim do mês de junho de 2020, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) deu provimento a um recurso interposto e reconheceu expressamente a possibilidade de remover professor entre universidades distintas, pois a interpretação mais correta é a de que o cargo pertence a um mesmo quadro vinculado ao Ministério da Educação. Confira-se a ementa do julgado, no qual tive a honra de participar como advogado da causa:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO. REMOÇÃO PARA ACOMPANHAMENTO DE CÔNJUGE. DEFERIMENTO DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA REQUERIDA. PRESENÇA DOS REQUISITOS. RECURSO PROVIDO. […]
3. No caso dos autos, há fumus boni iuris, porquanto o cargo de professor de Universidade Federal pode e deve ser interpretado como pertencente a um mesmo quadro de professores federais, vinculado ao Ministério da Educação, ainda que unicamente para fins de aplicação do artigo 36 da Lei n. 8.112/90. Precedentes.
4. O risco de dano também se faz presente, na medida em que a decisão inicial de concessão da tutela de urgência foi reconsiderada quase um ano após a agravante ser lotada em cargo efetivo de professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília, como consequência da remoção autorizada.
5. Presentes os requisitos ensejadores da concessão da tutela provisória de urgência, no caso. Precedente.
6. Agravo de instrumento provido.[5]
Assim, a partir do entendimento de que professores de instituições federais de ensino distintas pertencem a um quadro único de professores federais, vinculado ao MEC, torna-se pleno o atendimento do requisito, previsto no artigo 36 da Lei nº 8.112/1990, de que a remoção só pode ocorrer no âmbito do mesmo quadro. Entretanto, como visto, é incomum a aplicação voluntária deste entendimento pela Administração Pública, sendo necessária, muitas vezes, a propositura de ação judicial para concretizar o direito de ser removido para acompanhar cônjuge.
[1] Eduardo Schiefler – Advogado no escritório Schiefler Advocacia. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019) e de artigos acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia.
[2] Para além do direito de ser removido para acompanhar cônjuge, o deslocamento também gera o direito de obter licença por motivo de afastamento de cônjuge, previsto no artigo 84 da Lei Federal nº 8.112/1990. Cf. Servidor Público cujo cônjuge foi deslocado possui direito à licença (https://schiefler.adv.br/servidor-publico-cujo-conjuge-foi-deslocado-possui-direito-a-licenca/).
[3] Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.
Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se por modalidades de remoção: […]
III – a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração:
a) para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que foi deslocado no interesse da Administração;
[4] STJ, REsp 1833604/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/10/2019.
[5] TRF-3, AI 5031708-94.2019.4.03.0000. Relator Desembargador Federal Hélio Nogueira. Publicado em 30/06/2020.
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