É LEGÍTIMA A EXCLUSÃO DE CANDIDATOS PORTADORES DE DALTONISMO EM CONCURSO PÚBLICO?
A discromatopsia parcial, alteração clínica conhecida como daltonismo, acomete cerca de 10% da população masculina mundial[1]. Dada a grande proporção de indivíduos com daltonismo, é frequente que candidatos a concurso público portadores de discromatopsia manifestem dúvida quanto à aptidão para o exercício do cargo.
Mais especificamente, paira a dúvida se serão ou não considerados aptos na fase de avaliação médica. Ou mesmo, se poderão concorrer às vagas reservadas às pessoas com deficiência (PCD).
A polêmica é restrita a certas carreiras, especialmente às relacionadas à segurança pública, como agentes das polícias federal, militar e civil. Nesses casos, o daltonismo em grau elevado é frequentemente considerado como uma causa de inaptidão médica. Considera-se que o candidato portador dessa condição, tal como aqueles com audição inferior a 25 decibéis em determinadas frequências ou acometidos por ceratocone, não possuem capacidade para o exercício regular das funções típicas daqueles cargos.
O raciocínio por trás desses impedimentos remete à afirmação de que indivíduos nessas condições não teriam a plenitude física esperada para executar satisfatoriamente as funções do cargo. Ou seja: alega-se que tais situações são impeditivas para o cumprimento das tarefas típicas daquele cargo.
É evidente, contudo, que essa condição física que acomete aproximadamente 10% de pessoas do sexo masculino não pode representar uma restrição geral ao ingresso nas carreiras públicas. Ao contrário, para que tal impedimento prospere, faz-se necessário o respeito a certos critérios de formalidade e de razoabilidade.
No caso, a formalidade essencial para tornar juridicamente possível que portadores de daltonismo sejam considerados inaptos em exames médicos é a existência de previsão normativa que disponha neste sentido.
Ou seja, é preciso que haja uma lei que autorize a realização de exames médicos como uma das fases de avaliação do concurso público para aquele cargo determinado, indicando que as condições visuais do candidato serão avaliadas, e um ato normativo que delimite objetivamente os critérios a serem adotados naquele exame, indicando que a discromatopsia é uma condição considerada incapacitante. É possível este ato normativo disciplinador seja uma instrução normativa, um decreto ou até mesmo disposições do edital.
Contudo, a mera previsão em ato normativo pode ser insuficiente para que este impedimento de participação seja juridicamente adequado. Além disso, é preciso que a justificativa para impedir que daltônicos concorram àqueles determinados cargos seja razoável, consentânea com as funções que serão exercidas, comprovando-se a correlação lógica entre as funções do cargo e o impedimento funcional causado pelo daltonismo.
Considerados esses dois fatores obrigatórios (necessidade de prévia definição normativa e de respeito à razoabilidade), há uma série de consequências jurídicas relevantes.
A primeira é de que a Administração Pública se vincula ao que dispõe a lei, o edital, as demais normas infralegais e, especialmente, também, ao que essas normas deixaram de dispor.
Neste sentido, se há norma que prevê o daltonismo em grau acentuado como um fator de eliminação no concurso público, a Administração deve eliminar tão somente aqueles candidatos nesta condição, sendo vedada a eliminação de candidatos que sejam portadores de discromatopsia parcial, em grau moderado, que representa a grande maioria dos daltônicos.
É o que a jurisprudência vem consolidando:
DIREITO ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. REEXAME NECESSÁRIO. MARINHA. CONCURSO. ENGENHEIRO DE TELECOMUNICAÇÕES. INSPEÇÃO DE SAÚDE. PERÍCIA JUDICIAL. DISCROMATOPSIA DE GRAU MODERADO. DIREITO À NOMEAÇÃO
1. A sentença assegurou ao autor, reprovado em inspeção de saúde por possuir discromatopsia, a nomeação no cargo de Engenheiro de Telecomunicações da Marinha, fundada em que a discromatopsia de grau moderado, atestada pela perícia judicial, não é óbice ao ingresso nas Forças Armadas, pois o edital previu como condição incapacitante somente a de grau acentuado.
2. O edital vincula a Administração Pública e os participantes do certame e prevê, no Anexo IV – Seleção psicofísica (SP), I, apenas a discromatopsia de grau acentuado como condição incapacitante.
3. O exame pericial atestou que o autor é portador de discromatopsia de grau apenas moderado, estando apto para desenvolver qualquer atividade castrense, devendo prevalecer sobre a perícia administrativa. Precedentes deste Tribunal.
4. Remessa necessária desprovida.
(TRF-2 – REOAC: 00183395220114025101 RJ 0018339-52.2011.4.02.5101, Relator: ANTONIO HENRIQUE CORREA DA SILVA, Data de Julgamento: 13/05/2016, 6ª TURMA ESPECIALIZADA)
Ainda, nos casos em que o daltonismo acentuado é considerado um fator impeditivo para o exercício do cargo, é possível então defender que esses candidatos possuem então o direito de concorrer às vagas destinadas às pessoas com deficiência (PCD).
A propósito desta tese, leia-se notícia sobre o seguinte precedente, julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
A 5ª Turma Cível do TJDFT deu provimento a recurso de candidato a concurso público para permitir que ele concorra dentro das vagas destinadas a pessoa com deficiência, por ser portador de daltonismo. A decisão foi unânime. […]
Em sede recursal, o relator afirma que “de fato, o acometimento de discromatopsia incompleta não é considerado caso de deficiência visual, não estando presente nas hipóteses previstas no Decreto 3.298/99”. Contudo, observa que “há uma incoerência no caso em análise, pois o candidato não se enquadra como deficiente físico e, por outro lado, não possui exigência mínima para concorrer nas vagas de ampla concorrência, por conta da condição incapacitante em que se enquadra”.
O magistrado segue registrando que “o ato administrativo tomado pelo apelado/impetrado é desproporcional e desarrazoado, já que há possível condição incapacitante, nos termos do edital (item 11.10.2 – subitem 11), e mesmo assim o candidato foi considerado para as vagas de ampla concorrência”. Assim, “diante da situação em que o candidato se encontra, deve ser-lhe garantida a possibilidade de concorrer a uma vaga dentre as reservadas para pessoas com deficiência, pois possui condição que o distingue dos demais e foi-lhe permitido permanecer no concurso”, conclui.
Por fim, o Colegiado acrescentou que “apesar de a situação do apelante/impetrante não estar prevista no art. 4º, III, do Decreto 3.298/99, aplica-se a interpretação extensiva da norma, como já feito pelo Superior Tribunal de Justiça, dando efetividade aos princípios da igualdade e da inclusão social”.
Por fim, caso as normas que regulamentam o concurso tenham deixado de prever a eliminação do candidato daltônico, a Administração também está vinculada a essa omissão. O candidato não pode ser surpreendido somente na fase de exame médico, sem que houvesse qualquer informação anterior quanto à impossibilidade de exercer aquele cargo.
Além disso, há a questão da razoabilidade. A despeito do que preveem as normas aplicáveis ao concurso, os candidatos devem estar atentos a uma eventual compatibilidade material entre as funções a serem exercidas e as consequências causadas pelo daltonismo. Dependendo das tarefas do cargo, é possível que o sujeito tenha plena possibilidade de atuar regularmente sendo daltônico.
Identifica-se, assim, que, eventualmente, o conteúdo das normas regulamentadoras é desarrazoado. Neste caso, os candidatos devem questionar administrativa ou judicialmente o edital, as demais normas que o disciplinam ou até mesmo a sua eventual exclusão no concurso público, com o objetivo de comprovar materialmente a sua plena capacidade de exercer as funções.
Aliás, com a evolução tecnológica e o desenvolvimento de óculos corretores de daltonismo, já disponíveis para comercialização, é seguro afirmar que, em muitas profissões, esta condição de saúde pode ser tecnicamente contornada, tal como já ocorre em casos de miopia ou astigmatismo.
Aos daltônicos concurseiros, portanto, há esperança!
[1] Disponível em: http://www.coloradd.net/imgs/ColorADD-Sobre-Nos_0315.pdf. Acesso em: 11/11/2018.