Visando contemplar e atender ao maior número de situações decorrentes da partilha dos bens, a legislação brasileira previu espécies diversas de inventário, que serão detalhadas no artigo a seguir.
Laísa Santos[1]Advogada do escritório Schiefler Advocacia. Coordenadora da unidade de Planejamento Patrimonial, Família e Sucessões. Pós-Graduanda em Planejamento Patrimonial e Sucessório pela FGV/SP. … Continue reading.
Quando há o falecimento de uma pessoa, quase sempre é necessária a abertura do inventário para a apuração de eventuais bens, direitos e dívidas deixadas.
Todavia, o inventário não se presta à transmissão do patrimônio deixado pelo falecido. Transmite-se a herança no imediato momento da morte, não sendo, porém, delimitadas a quantidade e a qualidade de bens que irão compor o quinhão de cada herdeiro ou a meação do cônjuge supérstite. Deverá ter lugar, portanto, um procedimento para se apurar, descrever e partilhar os bens componentes desta universalidade. Para tanto, o ordenamento jurídico brasileiro prevê o procedimento de inventário e partilha[2]DA ROSA, Conrado Paulino; RODRIGUES, Marco Antonio. Inventário e partilha: teoria e prática. Salvador: Editora JusPodivm, p. 381..
Visando contemplar e atender ao maior número de situações decorrentes do processamento deste tipo de situação, a legislação brasileira previu espécies diversas de inventário, a saber:
a) Inventário extrajudicial: é cabível na hipótese em que todos os herdeiros são capazes e haja consenso quanto à partilha que será realizada. É feito por meio de uma escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro necessário bem como para o levantamento de valores em instituição financeira.
b) Inventário judicial: terá cabimento se houver testamento a ser cumprido, se houver interesse de incapaz, por opção ou caso não haja concordância entre os herdeiros. O inventário judicial pode ser processado na forma de inventário litigioso, arrolamento ou arrolamento sumário.
Abaixo, será melhor detalhada cada espécie de inventário.
Inventário extrajudicial:
Na hipótese de todos os herdeiros serem capazes e estarem de acordo entre si, o ordenamento jurídico brasileiro permite a realização do inventário e da partilha extrajudicialmente, por meio de uma escritura pública, em um tabelionato de notas. A norma traz a escritura como uma opção aos herdeiros, cabendo a eles optarem pelo o que melhor lhes convém.
A escritura pública será o documento hábil para qualquer ato de registro necessário, bem como para o levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
As regras expostas se inserem na tendência de desjudicialização de certos atos jurídicos que não precisam de intervenção obrigatória do Poder Judiciário, como forma de lhes conferir maior celeridade e economia de esforços.
Ainda, nesta espécie de inventário há a flexibilização de local para a sua celebração, diferentemente do inventário judicial. Assim, podem os herdeiros escolher em que tabelionato querem fazê-lo, independentemente do local de falecimento do autor da herança.
Cabe destacar que para a celebração da escritura pública é necessário que todas as partes interessadas estejam assistidas por advogados ou por defensor público, que também assinarão a escritura.
Por fim, é importante ressaltar que há situações em que, mesmo que todos os herdeiros sejam capazes e estejam de acordo entre si, o inventário extrajudicial, embora quase sempre mais célere, pode ser desvantajoso do ponto de vista financeiro. Isso porque, ao contrário do Poder Judiciário, os tabelionatos não possuem um teto de custas a serem cobradas.
Explica-se. As custas a serem pagas, seja ao tabelionato, seja ao Poder Judiciário, serão calculadas com base no valor do patrimônio deixado pelo falecido. O Poder Judiciário de Santa Catarina, por exemplo, possui um teto de custas no valor de R$ 5.197,61. Assim, não importará se o valor dos bens do falecido é de 200 mil ou 1 milhão de reais, o valor cobrado será o mesmo.
Diferentemente, o tabelionato possui uma tabela de custas e emolumentos que, a depender do valor do patrimônio, poderá cobrar por cada bem individualizado – o que poderá acarretar um valor superior de custas, se comparado ao Poder Judiciário.
Assim, além dos requisitos intrínsecos para a realização de um inventário extrajudicial, sugere-se, sempre, a realização de um orçamento prévio para que os herdeiros possam sopesar qual o melhor caminho a ser tomado para a realização da partilha dos bens.
Inventário negativo:
Embora incomum, o inventário negativo é realizado quando o falecido não deixou bens ou direitos, mas os herdeiros, por algum motivo específico, buscam realizá-lo para sanar eventuais situações particulares.
Como exemplo desta situação cita-se o caso dos herdeiros que queiram assegurar que não serão responsabilizados, em virtude da ausência de bens e direitos do falecido – caso este tenha deixado dívidas. Outra finalidade para a aplicação do inventário negativo decorre do interesse do cônjuge supérstite de afastar a causa suspensiva em relação a uma nova relação matrimonial, que implicaria o regime de separação obrigatória de bens.
A Resolução nº 35/07 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) possibilita que o inventário negativo seja também feito por escritura pública, facilitando e acelerando o reconhecimento da ausência de patrimônio do falecido.
Inventário judicial litigioso:
O inventário pelo procedimento litigioso tem seu requerimento inicial relativamente simples, bastando o pedido de início do procedimento e a informação do óbito perante o Poder Judiciário.
Uma vez admitido o processamento do inventário, o juiz nomeará o inventariante, que passará a representar o espólio. O Código de Processo Civil prevê uma ordem de nomeação do inventariante, que, salvo situações excepcionais, deve ser seguida, por se tratar de regra impositiva.
Da decisão que nomeou inventariante, caberá recurso dirigido ao Tribunal de Justiça. Após nomear inventariante, este será intimado para prestar compromisso no prazo de cinco dias. Ato contínuo, da data em que prestou compromisso, o inventariante terá o prazo de vinte dias para apresentar as primeiras declarações ao juízo (relação detalhada dos bens e direitos que compõem o patrimônio do autor da herança).
Na sequência, os demais herdeiros serão intimados para apresentarem manifestação sobre as primeiras declarações. Após apresentadas as primeiras declarações e depois que os demais herdeiros tenham tido a oportunidade de se manifestarem, passa-se à avaliação dos bens componentes do espólio.
Em seguida, são apresentadas as últimas declarações, os débitos relativos às dívidas do espólio são pagos, assim como os impostos (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD e Imposto de Transmissão de Bens Imóveis – ITBI) e há a apresentação do formal de partilha, com a consequente sentença.
Evidentemente que, dentro de todos estes atos, há diversas situações que podem ocorrer e vários recursos que podem ser interpostos, dificultando sobremaneira o trâmite do processo e a partilha dos bens.
Arrolamento:
O arrolamento é uma espécie de inventário judicial simplificado, que se divide em duas espécies: sumário, cabível quando os herdeiros optarem pela partilha amigável ou se houver pedido de adjudicação por herdeiro único; e sumaríssimo, se o valor dos bens deixados não superar mil salários mínimos.
O arrolamento sumário é a partilha judicial amigável, realizada por partes capazes, sendo irrelevante o valor dos bens deixados.
Por se tratar de procedimento mais simples, a petição inicial já indicará o inventariante a ser nomeado, os títulos dos herdeiros, os bens componentes do acervo hereditário e o valor atribuído a eles. Em regra, não há que se falar em primeiras e últimas declarações, fazendo com que este processo se torne bem mais célere do que um inventário judicial litigioso.
No entanto, reforça-se a necessidade de comprovação da quitação de todos os tributos relativos aos bens do espólio para a prolação da sentença de partilha ou adjudicação.
Por fim, o arrolamento comum (ou sumaríssimo) é realizado quando o valor total do monte for igual ou inferior a mil salários mínimos. Nesta hipótese, o legislador também estabeleceu um procedimento bastante simplificado, sendo necessária a apresentação, desde logo, da indicação para nomeação do inventariante, juntamente com as suas declarações, o valor atribuído aos bens e o plano de partilha.
Aqui também é necessário comprovar a quitação de todos os tributos, sob pena de lançamento administrativo, conforme dispuser a legislação tributária.
O presente artigo objetivou apresentar as mais diversas espécies de procedimentos que podem ser utilizadas para a realização da partilha de bens deixados pelo titular do patrimônio.
Destaca-se que não se buscou exaurir o tema, mas trazer reflexões acerca da escolha de determinado procedimento e alertar para a necessidade de sopesar os caminhos disponíveis que melhor atendam às necessidades dos herdeiros, diante da situação que já é, por si só, bastante sensível.
Caso você tenha alguma dúvida a respeito do assunto, entre em contato com um dos nossos especialistas pelo e-mail contato@schiefler.adv.br.
Referências[+]
↑1 | Advogada do escritório Schiefler Advocacia. Coordenadora da unidade de Planejamento Patrimonial, Família e Sucessões. Pós-Graduanda em Planejamento Patrimonial e Sucessório pela FGV/SP. Pós-Graduada em Família e Sucessões pela EBRADI. Graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membra da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/SC e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Co-autora do livro Desafios Contemporâneos do Direito de Família (Editora Lumen Juris) e de artigos sobre a temática. |
---|---|
↑2 | DA ROSA, Conrado Paulino; RODRIGUES, Marco Antonio. Inventário e partilha: teoria e prática. Salvador: Editora JusPodivm, p. 381. |
O entendimento foi fixado no Tema de Repercussão Geral nº 825.
O Supremo Tribunal Federal (STF) terminou na última sexta-feira, 26/02, o julgamento do Tema de Repercussão Geral 825, de relatoria do Ministro Dias Toffoli que discutia a possibilidade de os Estados fazerem uso da sua competência legislativa para instituir o Imposto de Transmissão Causa Mortis ou Doação (ITCMD) de doações e heranças de bens situados no exterior.
Trata-se de um tema extremamente sensível ao Direito Sucessório e àqueles que desejam planejar a sua sucessão e a perpetuação do seu patrimônio. A Constituição da República determina que estes bens estão sujeitos a tributação, todavia, para que isso ocorra, seria necessária a criação de uma Lei Complementar de competência da União – que nunca foi editada.
Em razão desta omissão, alguns estados já haviam editado e estabelecido nas suas leis estaduais a determinação do pagamento deste imposto. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o órgão especial do TJRJ decidiu pela constitucionalidade da lei estadual. Já em São Paulo, embora haja decisão entendendo pela inconstitucionalidade da lei paulista, a Secretaria da Fazenda seguia cobrando o imposto.
A tese vencedora foi a levantada pelo Relator, Ministro Dias Toffoli, que entendeu que o imposto só pode ser regulamentado por meio de Lei Complementar Federal, vetando a atuação dos estados, nos termos do que dispõe o artigo 155, § 1º, III, da Constituição Federal[1].
Com esta decisão, os Estados precisarão se abster desta cobrança.
Ainda pendente de decisão está a modulação dos efeitos da decisão no tempo, ou seja, se irá ou não retroagir – o que possibilitaria o pedido de devolução do imposto já pago. Os Ministros Marco Aurélio e Edson Fachin afirmaram que as legislações estaduais vigentes até o momento são nulas e não poderiam ter produzido efeitos, admitindo a repetição indébito. Já os Ministros Dias Toffoli, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Kassio Nunes Marques e Ricardo Lewandowski votaram para que a decisão não tenha efeito retroativo e as cobranças já feitas com base nas leis estaduais não sejam ressarcidas.
STF. Recurso Extraordinário nº 851108. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4667945
[1] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; § 1º O imposto previsto no inciso I: III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar: a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior; b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;
Read More
O entendimento foi proferido pela 3ª Câmara de Direito Privado do TJSP em votação unânime.
A Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve decisão que determinou que herdeiros residentes em imóvel ainda não partilhado paguem aluguel à irmã que não usufrui do bem.
O Desembargador Berreta da Silveira, relator do caso, balizou sua decisão sob o argumento de que o fato de o inventário ainda estar inacabado não autoriza que alguns herdeiros, em detrimento dos demais, utilizem da coisa em comum sem contrapartida, sob pena de enriquecimento ilícito.
Nos termos dos artigos 1.784 e 1.791 do Código Civil, com a abertura da sucessão a herança tramite-se, desde logo, como um todo unitário, a todos os herdeiros e, até a efetiva partilha, o direito dos coerdeiros, quanto à propriedade e a posse da herança será indivisível e será regida pelas normas relativas ao condomínio.
O posicionamento adotado pela egrégia corte paulista vai ao encontro do que já vem, há muito, sendo decidido pelo Superior Tribunal de Justiça.
Para mais informações sobre o caso, acesse:
https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=63050&pagina=6
Read MoreA mobilidade das famílias e de seus patrimônios envolve questões tanto de direito sucessório quanto de direito internacional privado, trazendo um grande desafio para as sucessões hereditárias.
Laísa Santos[1]
Não são raras as situações em que a sucessão hereditária esbarra em aspectos internacionais, seja pela nacionalidade ou domicílio do autor da herança e dos seus sucessores ou pela existência de bens situados no exterior.
De plano, há duas questões não somente de direito sucessório, mas também de internacional privado a serem esclarecidas: qual será a lei aplicada à sucessão e a jurisdição sobre os bens que serão objeto dessa sucessão.
A mobilidade das famílias e dos seus patrimônios trouxe um grande desafio para as sucessões hereditárias, principalmente em razão do conflito de legislação com os outros países e da forma de tributação. Esses aspectos serão brevemente abordados em tópicos no presente artigo.
- Na hipótese de bens situados apenas no Brasil, onde será processado o inventário?
O Código de Processo Civil confere à autoridade judiciária brasileira, com a exclusão de qualquer outra, em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação do testamento particular e o processamento de inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional[2]. Assim, havendo bens de qualquer natureza situados no Brasil, o inventário deve aqui ser processado[3].
- Havendo bens situados no Brasil e no exterior, onde será aberto o inventário?
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) estabelece que a sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que o falecido ou o desaparecido era domiciliado[4] – regra esta que não é absoluta, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça[5].
Na hipótese de o falecido ser domiciliado no Brasil e deixar bens situados no Brasil e no exterior, haverá o processamento de dois ou mais inventários. Ou seja, um no Brasil e os demais nos respectivos países onde há bens móveis ou imóveis.
Em contrapartida, quando o falecido não for residente no Brasil, mas possuir bens no país, o inventário dos bens situados no Brasil será processado aqui, com a ressalva de que será aplicado o direito estrangeiro.
- Qual será a lei aplicada ao inventário?
Superada a questão da competência onde tramitará o processo, resta saber qual será a legislação aplicada. Evidentemente que, quando a pessoa falecida é brasileira e há apenas bens situados em território nacional, a lei aplicada será a do Brasil.
Contudo, caso o autor da herança seja estrangeiro, mas tenha deixado bens no Brasil, o inventário será aqui processado, porém, a legislação aplicada será a de domicílio do falecido.
Como regra geral, ainda que haja a abertura do inventário no exterior, o juízo da sucessão não poderá incluir na partilha bens situados no Brasil. Se assim o fizer, a partilha não produzirá efeitos aqui – salvo se a aplicação da legislação estrangeira resultar em partilha semelhante ao que ocorreria com a aplicação da legislação brasileira ou se resultar de acordo entre as partes[6]. Tal conduta é compreendida como uma consagração da jurisdição exclusiva, levando em consideração a pluralidade de juízos sucessórios, já que o juiz brasileiro também não poderá incluir na sucessão bens do espólio que estejam situados no exterior[7].
Em síntese:
Caso | Legislação | Competência |
Autor da herança domiciliado no Brasil com bens apenas aqui | Legislação brasileira | Tramitação do inventário no Brasil |
Autor da herança domiciliado no Brasil com bens aqui e no exterior | Legislação brasileira aos bens situados aqui | Tramitação do inventário no Brasil dos bens deixados aqui e no exterior dos demais bens |
Autor da herança domiciliado no exterior com bens situados no Brasil | Legislação estrangeira, salvo exceção | Tramitação do inventário no Brasil |
Autor da herança domiciliado no exterior com bens situados no Brasil e no exterior | Legislação estrangeira, salvo exceção | Tramitação do inventário no Brasil apenas dos bens deixados aqui |
- Como eu vou computar os bens situados no exterior para fins de legítima?
A pluralidade de competências sucessórias gera grande complicação na tramitação do processo e na divisão dos bens. Primeiro pois, a rigor, o que está fora do Brasil não se contabiliza para fins de legítima.
Ainda, há grande dificuldade caso o patrimônio deixado pelo autor da herança no exterior seja de bens imóveis. Em regra, será necessária a contratação de um profissional capacitado no local para fazer a avaliação do bem e estimativa do valor.
Para tentar dirimir essas questões, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) e alguns tribunais do País, percebendo que o patrimônio está disperso em outros lugares do mundo e que houve privilégio de certos herdeiros em detrimento de outros, violando os preceitos da legislação brasileira sucessória, concedem uma compensação, considerando os bens existentes no exterior – ainda que inviável tecnicamente.
Nessa direção, aos interessados também devem ser garantidas medidas de salvaguarda de seus direitos, por exemplo: determinação para exibição de documentos ou afins sobre bens situados no exterior da pessoa falecida e expedição de ofício para conhecer saldos bancários de contas no exterior[8].
- É possível a aplicação da lei brasileira quando mais benéfica ao herdeiro e ao cônjuge?
O Direito brasileiro consagra, na Constituição Federal e na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), o princípio da proteção à família brasileira, garantindo, assim, a aplicação da lei brasileira à sucessão dos bens situados no Brasil quando for mais benéfica do que a lei estrangeira[9].
Isso se justifica no sentido de proteger o cônjuge e os filhos brasileiros de eventuais discriminações existentes na lei estrangeira que viesse a reger a sucessão em virtude da nacionalidade o último domicílio do de cujus. Necessário ressaltar que a aplicação da lei brasileira é subsidiária, isto é, somente quando se mostrar mais favorável à lei estrangeira da sucessão.
A apuração de que a lei brasileira é mais favorável pode ser vista nos seguintes casos: (i) quando pela lei do domicílio do falecido não existe sucessão legítima, ou seja, não há uma obrigatoriedade de resguardar porcentagem dos bens para os herdeiros necessários; (ii) quando existe uma maior liberdade de testar, comprometendo, assim, a legítima; (iii) quando o cônjuge ou companheiro não é considerado herdeiro, mas seria no Brasil e; (iv) na hipótese da lei estrangeira favorecer determinados herdeiros em detrimento de outros.
- Qual é a validade dos testamentos realizados no Brasil ou no exterior?
Como anteriormente tratado em artigo que explicita as formas mais comuns de testamento, trata-se de um instrumento de manifestação de última vontade que deve atentar, rigorosamente, aos requisitos de forma do lugar em que ele for lavrado e à legislação do país de domicílio.
Desde que observado o primeiro requisito, o testamento poderá ter validade em outros países, mesmo que lavrado apenas no Brasil. Todavia, é importante ressaltar que se houver nas disposições testamentárias alguma violação de norma de ordem pública, o Brasil não determinará o cumprimento do testamento.
Diferentemente, para ter validade no Brasil o testamento feito no exterior, o testador deverá observar os requisitos de legislação previstos na Lei de Registros Públicos e nos tratados vigentes. Assim, um testamento lavrado no exterior terá de ser apostilado e acompanhado de tradução juramentada feita no território nacional. Por exemplo, um testamento feito em Portugal dispensa a tradução, mas não o apostilamento; na França, dispensa o apostilamento, mas não a tradução juramentada.
- Como são recolhidos os tributos de bens situados no exterior?
Tema extremamente sensível é o recolhimento do imposto de transmissão sobre os bens (ITCMD) situados no exterior. A Constituição da República determina que esses bens estão sujeitos à tributação. Porém, para que isso ocorra, seria necessária a criação de uma lei complementar de competência da união – que nunca foi editada.
Em razão dessa omissão, alguns estados editaram e estabeleceram nas suas próprias leis estaduais a determinação do pagamento do imposto de transmissão sobre bens situados no exterior. Alguns estados, inclusive, já decidiram em seus órgãos especiais sobre a constitucionalidade ou não desta norma. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, entende-se pela constitucionalidade da lei estadual; já no estado de São Paulo, embora haja uma decisão entendendo pela inconstitucionalidade da lei paulista, a Secretaria da Fazenda segue cobrando o imposto.
Para dirimir essa questão, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de repercussão geral (Tema 825), decidirá se leis estaduais podem estabelecer as normas gerais pertinentes à competência para instituir o ITCMD de bens situados no exterior ou na hipótese em que o doador tiver domicílio no exterior.
- Conclusão
Como abordado, o tema sobre sucessões de bens situados no exterior é bastante complexo e carece, ainda, de regulamentação quanto à incidência (ou não) de imposto de transmissão causa mortis na hipótese em que o bem for situado fora do Brasil.
Acima de tudo, é importante o acompanhamento do inventário por profissionais capacitados e especialistas na área, para que não haja violação da legítima tampouco preterição de algum dos herdeiros à sua quota-parte.
[1] Advogada. Pós-Graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Especialista em Planejamento Sucessório pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da Comissão de Direito de Família da OAB/SC. Co-autora do livro “Desafios Contemporâneos do Direito de Família e Sucessões” (2018) e de artigos.
[2] ROSA, Conrado Paulino da. Inventário e Partilha. Salvador: Editora JusPoivm, 2019, p. 355.
[3] CPC. Art. 23. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra: II – em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação do testamento particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da heranca seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional.
[4] LINDB. Art. 10. A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens.
[5] STJ, REsp n. 1362400/SP, Terceira Turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Julgado em 05/06/2020.
[6] Homologação de Sentença Estrangeira. Partilha De Bens Imóveis Situados No Brasil. Sentença Homologanda. Ratificação De Vontade Última Registrada Em Testamento. Citação Comprovada. Concordância Expressa Dos Requeridos. Ausência De Impugnação Posterior. Caráter Definitivo Do Julgado. Art. 89 Do Código De Processo Civil E Art. 12 Da Lei De Introdução Ao Código Civil. Ofensa. Inexistência. Precedentes. Pedido De Homologação Deferido. I – O requisito da citação válida ou revelia decretada restou devidamente cumprido, pois os então requeridos foram comprovadamente cientificados da ação, não promovendo impugnação, ou, sequer, comparecendo ao juízo. O próprio decisum foi intitulado ‘Sentença Declaratória à Revelia’. II – O feito caracterizou-se pela a inexistência de litígio, comprovada, primeiramente, pelo não comparecimento dos ora requeridos ao processo e não impugnação do pleito, bem como pela anuência expressa ao conteúdo do decisum e consequente não interposição de recurso face à sentença que aqui se pretende homologar. III – A anuência dos ora requeridos em relação ao decidido pela sentença homologanda, além da não interposição de recurso, confere natureza jurídica equivalente à do trânsito em julgado, para os fins perseguidos no presente feito. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. IV – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já decidiu no sentido de que compete exclusivamente à Justiça brasileira decidir sobre a partilha de bens imóveis situados no Brasil. V – Tanto a Corte Suprema quanto este Superior Tribunal de Justiça já se manifestaram pela ausência de ofensa à soberania nacional e à ordem pública na sentença estrangeira que dispõe acerca de bem localizado no território brasileiro, sobre o qual tenha havido acordo entre as partes, e que tão somente ratifica o que restou pactuado. Precedentes. VI – Na hipótese dos autos, não há que se falar em ofensa ao art. 89 do Código de Processo Civil, tampouco ao art. 12, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, posto que os bens situados no Brasil tiveram a sua transmissão ao primeiro requerente prevista no testamento deixado por Thomas B. Honsen e confirmada pela sentença homologanda, a qual tão somente ratificou a vontade última do testador, bem como a dos ora requeridos, o que ficou claramente evidenciado em razão da não impugnação ao decisum alienígena. VII – Pedido de homologação deferido”. (STJ – SEC: 1304 US 2005/0153253-6, Corte Especial, Relator Ministro Gilson Dipp, Julgado em 19/12/2007).
SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. DIVÓRCIO. PARTILHA DE BENS. IMÓVEL SITUADO NO BRASIL. ACORDO ENTRE OS EX-CÔNJUGES HOMOLOGADO NO EXTERIOR. REQUISITOS PARA HOMOLOGAÇÃO DA SENTENÇA ESTRANGEIRA. PREENCHIMENTO. 1. É devida a homologação da sentença estrangeira de divórcio, porquanto foram atendidos os requisitos previstos no art. 15 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro e nos arts. 216-A a 216-N do RISTJ, bem como constatada a ausência de ofensa à soberania nacional, à ordem pública e à dignidade da pessoa humana (LINDB, art. 17; RISTJ, art. 216-F). 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, não obstante o disposto no art. 89, I, do CPC e no art. 12, § 1º, da LINDB, autoriza a homologação de sentença estrangeira que, decretando o divórcio, convalida acordo celebrado pelos ex-cônjuges quanto à partilha de bens imóveis situados no Brasil, que não viole as regras de direito interno brasileiro. 3. Defere-se o pedido de homologação da sentença estrangeira. (STJ – SEC: 8106 EX 2014/0031201-4, Corte Especial, Relator: Ministro Raul Araújo, Data de Julgamento: 03/06/2015)
[7] TEIXEIRA, Daniela Chaves (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 119.
[8] Apelação cível. Ação de exibição de documentos. Requerente que teve reconhecida judicialmente sua união estável com o de cujus, cujo espólio é integrado, dentre outros bens, por investimentos em sociedade sediada na Holanda, denominada Genesis Engineering C. V. Alegação da autora de que o réu, filho do autor da herança, vem ocultando informações e documentos sobre a empresa Genesis, impossibilitando a realização da sobrepartilha. Sentença que rejeitou as preliminares de afastamento da jurisdição brasileira e de ilegitimidade ativa ad causam. No mérito, julgou procedente o pedido para determinar a exibição dos documentos apontados pela autora, no prazo de 30 dias, sob pena de multa diária no valor de r$ 500,00. Irresignação do réu insistindo no afastamento da jurisdição brasileira. Rejeição. Incidência do art. 21, i, do CPC/15. Réu domiciliado no brasil. Preliminar de cerceamento de defesa que se afasta. Prova coligida aos autos que se revela suficiente ao deslinde da questão, não se exigindo a produção de outras provas além das já apresentadas pelas partes. Mérito. Apelante detentor da integralidade dos ativos da sociedade holandesa Genesis. Posição que o obriga a apresentar a documentação solicitada. Art. 399, I, CPC. Desprovimento do recurso”. (TJRJ, Apelação Cível nº 0432411-67.2016.8.19.0001, Segunda Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Luiz roldão de Freitas Gomes Filho, julgado em 18.04.2018).
[9] Ibidem.
Read More
Visando mitigar os efeitos da pandemia do coronavírus, o texto dispõe sobre o chamado Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas (RJET).
Os impactos da Lei da Pandemia (Lei nº 14.010) no âmbito do Direito das Famílias e Sucessões
Laísa Santos[1]
O Projeto de Lei nº 1.179/20 foi sancionado pelo presidente na última quarta-feira, 10 de junho, após aprovação em ambas as casas legislativas. Visando mitigar os efeitos da pandemia do coronavírus, o texto dispõe sobre o chamado Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas (RJET).
Segundo o autor, Senador Antônio Anastasia (PSD/MG), o Projeto de Lei – agora, convertido em lei – visa minimizar as consequências socioeconômicas provocadas pela pandemia, de modo a preservar contratos, suspender prazos e evitar o abalroamento do judiciário com processos em massa.
Partindo desse pressuposto, o capítulo X dispôs sobre o Direito de Família e Sucessões, em seus artigos 15 e 16.
No âmbito do Direito de Família, o artigo 15 da lei determina que, até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentar deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar. Ou seja, enquanto vigente o regime jurídico emergencial, todo aquele que estiver em débito com até os últimos três meses de pensão e, tiver a sua prisão decretada, poderá cumpri-la em sua própria residência.
Contrariando o posicionamento adotado desde o início pelo Projeto de Lei (agora lei) e da Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no último dia 2 de junho a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou o regime domiciliar e suspendeu a prisão do devedor de alimentos durante a pandemia. Assim, o devedor de alimentos cumprirá a prisão em regime fechado após o fim do estado de calamidade pública.
No seu voto, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que a concessão da prisão domiciliar aos alimentantes inadimplentes relativizaria o que esta disposto na norma e argumentou que, assegurar aos presos por dívida alimentar o direito à prisão domiciliar seria medida que não cumpriria o mandamento legal, ferindo a própria dignidade do alimentando.
A questão foi afetada ao colegiado pela 3ª Turma na sessão da última terça-feira (10/06) para dirimir as divergências de entendimento com a 4ª Turma. Entretanto, o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, propôs o adiamento do julgamento, tendo em vista que o prazo para veto ou sanção da “Lei da Pandemia” pela Presidência da República se esgotava naquele mesmo dia.
Diante da sanção do projeto e, consequentemente, da sua conversão em lei, o Superior Tribunal de Justiça possivelmente pautará o Habeas Corpus para a próxima semana e decidirá conforme a legislação vigente. Ainda, será necessário deliberar se a lei passará ou não a ter efeitos retroativos.
A situação exige cautela. Sabe-se que o crescimento da inadimplência alimentar está no horizonte desta crise. Contudo, é preciso assegurar o direito do mais vulnerável através de medidas que visem coagir aqueles genitores que possam aproveitar do momento, deixando de adimplir com a verba alimentar, de maneira mal-intencionada.
No tocante ao Direito das Sucessões, a “Lei da Pandemia” prevê, em seu artigo 16, a prorrogação do prazo para abertura do inventário (2 meses a contar do falecimento) e a suspensão do prazo de 12 meses para a conclusão de inventários com óbitos anteriores a fevereiro de 2020.
De maneira simplificada, o artigo propõe que, para falecimentos ocorridos a partir de 1º de fevereiro de 2020, o início da contagem do prazo de dois meses para a abertura do respectivo inventário será prorrogado para o dia 30 de outubro de 2020. Ou seja, o prazo só começará a correr a partir da data aprazada.
Da mesma forma será a aplicação do prazo para finalização dos processos de inventário com óbitos anteriores a fevereiro de 2020. Assim, um inventário que iniciou em novembro de 2019 e deveria ser finalizado até novembro de 2020, terá seu prazo suspenso a partir da entrada em vigência desta lei, somente retornando após 30 de outubro. O prazo já transcorrido antes da publicação da lei será computado.
Ainda que de bom grado a redação do artigo, as consequências práticas são nebulosas. Como regra geral, em caso de não abertura do inventário no prazo estabelecido de 2 meses pelo Código de Processo Civil[2], há a incidência de multa. O estado de Santa Catarina, por exemplo, impõe uma multa de 20% sobre o valor do Imposto de Transmissão Causa Mortos e Doação (ITCMD), enquanto que o de São Paulo impõe a multa no percentual de 10 a 20% sobre o imposto devido.
Não obstante a competência da União em legislar sobre direito civil e processual e, consequentemente, sobre o prazo para abertura e finalização de inventários, é dos Estados a competência para instituir o ITCMD, bem como para estipular penalidades pela não observância de prazos.
Até o presente momento, tanto o estado de Santa Catarina quanto o de São Paulo ainda não alteraram nenhuma das normas que tratam sobre a aplicação de multa pelo atraso na abertura do inventário (Lei nº 13.136/04 e 10.705/2000, respectivamente) – em que pese o Projeto de Lei estivesse tramitando desde março. Ou seja, ainda não há qualquer movimentação para uma harmonização das referidas legislações estaduais com a nova lei sancionada.
Diante dessa incerteza e da ausência de posicionamento dos estados da federação sobre o assunto, é necessário se atentar e alertar aos herdeiros para a possibilidade da aplicação da multa pelas Fazendas Estaduais caso o contribuinte descumpra o prazo para o pagamento do ITCMD, ainda que haja a dilação de prazo da normatização transitória federal.
[1] Advogada atuante na área de Planejamento Patrimonial, Família e Sucessões do escritório Schiefler Advocacia. Graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em Planejamento Patrimonial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Membra do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da Comissão de Direito de Família da OAB/SC. Co-autora do livro “Desafios Contemporâneos do Direito de Família e Sucessões” (2018) e de artigos.
[2] CPC. Art. 611. O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.
Read More
O testamento é o ato de manifestação de última vontade de uma pessoa acerca do destino dos seus bens e de outros assuntos de caráter não patrimonial, considerado um dos atos mais solenes do ordenamento jurídico.
Laísa Santos[1]
A propagação do novo coronavírus no Brasil e o significativo aumento no número de mortes provocou em todos a reflexão sobre este momento e os efeitos que dele decorrem. Isto pode ser percebido, por exemplo, pelo expressivo aumento nas consultas relativas à gestão patrimonial e à elaboração de testamentos, o que demonstra a preocupação das famílias com a sucessão da herança. Apesar de ainda ser considerado um tabu, o cenário atual fez com que, desde março de 2020, houvesse uma maior procura de indivíduos e famílias para sanar dúvidas a respeito da sucessão patrimonial.
A Associação dos Notários e Registradores do Paraná (Anoreg-PR), por exemplo, afirmou que, desde o dia 8 de março do presente ano, época que coincide com a ampla divulgação da pandemia do novo coronavírus no Brasil, houve um aumento de 70% da procura pelo registro de testamentos[2].
Ainda que a lei determine a transmissão dos bens para os herdeiros diretos, esta divisão de bens costuma gerar inúmeros descontentamentos que se transformam em disputas judiciais desgastantes e demoradas. Para buscar evitar tais judicializações, há diversos instrumentos que podem ser feitos em vida para definir a sucessão patrimonial, dentre elas, o testamento.
Mas afinal, o que é o testamento?
O testamento é o ato de manifestação de última vontade de uma pessoa acerca do destino dos seus bens e de outros assuntos de caráter não patrimonial. É considerado um dos atos mais solenes do ordenamento jurídico, uma vez que a lei determina a observância de minuciosas formalidades para assegurar que a vontade de quem testa (testador) seja livre e fielmente externada.
Via de regra, o testamento é feito para dispor sobre direitos patrimoniais: formas de divisão dos bens, destinação de um imóvel determinado, orientação sobre investimentos, etc. No entanto, o testador poderá dispor também de assuntos de caráter não patrimonial, como o reconhecimento de um filho, a nomeação de um curador para administrar os bens dos filhos menores, a indicação de um beneficiário do seguro de vida ou a nomeação de um tutor para os filhos que ainda não atingiram a maioridade. Poderá, também, dispor sobre os bens acumulados em vida no ambiente virtual, como páginas, contatos, senhas, músicas, perfis e outros elementos adquiridos nas redes sociais.
Para existir, o testamento não depende da aceitação da herança ou da concordância dos herdeiros. Basta a vontade de quem testa e o seu pleno discernimento. Logo, o testamento exige, para a sua validade, apenas a capacidade do testador no momento em que é feito[3].
Salvo exceção, o testamento é considerado como um ato revogável e modificável – por quantas vezes se entender devido – até o momento do falecimento. Ainda, é importante destacar que ele não pode ser simultâneo, ou seja, duas ou mais pessoas não podem dispor de suas últimas vontades em um único testamento.
Tipos mais comuns de testamento
1) Testamento público: é considerado a forma mais segura de realizar a disposição de última vontade, pois é redigido e registrado por um Tabelião em seu Livro de Notas, de acordo com as declarações do testador. Após escrito, ele será lido em voz alta pelo tabelião ao testador e duas testemunhas e assinado na sequência. Em regra, a solenidade do ato (escritura pública) exige o emprego do idioma nacional, diversamente do cerrado e particular, que permitem o idioma estrangeiro. Todavia, há doutrinadores que entendem que o testamento público pode ser lavrado em língua estrangeira, desde que, por ocasião da sua leitura, se faça presente um tradutor juramentado[4].
Junto ao testamento e, com o objetivo de resguardar a própria vontade do testador, pode-se anexar um ou mais atestados médicos, devidamente datados e subscritos por profissionais especializados, onde se comprova que quem testou, no momento do ato, estava em perfeitas condições de saúde mental[5].
Além da vantagem de o testamento público conceder segurança da sua elaboração – por ser realizado pelo Oficial do Tabelionato – resguarda-se, ainda, a inteireza do documento por constar em livro público, possibilitando a obtenção de cópia a qualquer tempo.
No entanto, ressalta-se algumas desvantagens como o custo do serviço – variável de acordo com as taxas e emolumentos vigentes no local – como também pela publicidade, tornando a vontade do testador passível de conhecimento por terceiro.
2) Testamento particular: é uma forma mais simplificada e acessível para dispor de última vontade. Pode ser escrito de próprio punho ou por processo mecânico (computador) e deve ser lido e assinado, ao mesmo momento, por quem o escreveu e por, pelo menos, três testemunhas. Poderá ser escrito em língua estrangeira desde que as testemunhas compreendam a língua.
Importante destacar que já se consolidou, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a tese de que são admissíveis determinadas flexibilizações nas formalidades legais exigidas para a validade do testamento particular, a depender da gravidade do vício, para preservar a vontade do testador[6].
Apesar de ser de baixo custo, facilmente elaborado e dispensado de certas formalidades, o testamento particular pode se extraviar com facilidade ou, ainda, ser destruído ou ocultado. Para evitar tais riscos, sugere-se que duas ou mais vias deste testamento sejam deixados pelo testador com diversas pessoas de sua confiança, em lugares diferentes[7].
Ainda, é importante destacar que, após o falecimento, as testemunhas que o subscreveram deverão ir a juízo para confirmá-lo, o que poderá ser mais um óbice na hora de optar por este tipo de testamento.
3) Testamento de urgência: Ainda que seja uma modalidade de testamento particular, cabe aqui destacá-lo em virtude da situação atual vivenciada. Em circunstâncias excepcionais, caracterizadas como situações imprevisíveis que fogem por inteiro à normalidade e ocasionam graves riscos de vida à pessoa, impedindo o acesso aos meios regulares para testar e pela absoluta falta de quem possa testemunhar o ato, é permitido testar, de próprio punho, sem a presença de testemunhas.
Contudo, há alguns requisitos a serem cumpridos. É imprescindível que o ato seja assinado e que haja, junto às disposições finais, uma declaração expressa explicando sobre a circunstância excepcional. Na atual conjuntura, acrescentar-se-ia a recomendação das autoridades públicas ao distanciamento social. Caso não sejam seguidas as exigências, haverá invalidade da disposição testamentária.
Apesar de o testamento de urgência não se enquadrar nos tipos de testamentos especiais (marítimo, aeronáutico ou militar), há doutrinadores que entendem que, por ser feito em situação excepcional, deveria ser passível de um mesmo requisito dos testamentos especiais, qual seja, o prazo de caducidade. Neles, se o testador não falece no evento especial ou nos 90 dias subsequentes ou, se, ao fim das circunstâncias excepcionais que autorizam a sua confecção, o testador, podendo fazê-lo, não testar por uma das formas testamentárias ordinárias[8], o testamento perderá sua eficácia. É o que está previsto no Enunciado 611 da 7ª Jornada de Direito Civil.
Este tipo excepcional de testamento está previsto no artigo 1.879 do Código Civil e, apesar de o dispositivo condicionar a validade do ato ao crivo judicial, não há dúvidas de que ele se encaixa perfeitamente a este momento de pandemia. No entanto, aconselha-se que, uma vez relaxadas as medidas de restrição do novo coronavírus, o testamento seja refeito para evitar o enfrentamento de argumentações dessa ordem.
4) Testamento cerrado (secreto): É escrito pelo testador ou por outra pessoa a seu rogo, ficando sujeito à aprovação do tabelião. O conteúdo é, em regra, sigiloso, somente sendo conhecido pelo próprio testador. Este tipo de testamento é composto de duas partes: a carta testamentária propriamente dita, com o ato de última vontade do testador, e o auto de aprovação, redigido pelo tabelião. A entrega do documento será realizada na presença de duas testemunhas e ele poderá ser escrito em língua nacional ou estrangeira.
Após a leitura do auto de aprovação, o instrumento é cerrado, cosido e entregue ao testador. O tabelião, por sua vez, lançará em seu livro nota do lugar, dia, mês e ano em que o testamento foi aprovado e entregue. Embora não exista o costume dos testadores deixarem o testamento cerrado depositado no cartório onde foi aprovado, nada impede que isso ocorra.
Tal atitude, inclusive, resguardaria o testador sobre a guarda e manutenção do documento. Apesar da vantagem do sigilo absoluto do documento, o custo financeiro da sua submissão a aprovação do notário, bem como a manutenção do documento por pessoa de confiança do testamento, acaba gerando inúmeros impasses, que fazem com que este tipo de testamento seja raramente utilizado.
É importante que o ato seja realizado com o auxílio de um advogado de confiança, visto que há formalidades inerentes ao testamento que podem, inclusive, gerar nulidade do documento.
E qual é o tipo de testamento mais apropriado?
Não existe um tipo de testamento mais apropriado que se encaixe em todas – ou quase todas – as situações. É necessário averiguar não somente a totalidade do patrimônio, como também a existência e a quantidade de herdeiros e o objetivo principal do próprio testador. São inúmeras as variantes para um planejamento adequado.
Além disso, embora o testamento seja um dos mecanismos de planejamento sucessório mais utilizados, existem outros meios capazes de satisfazer a vontade da pessoa. Doação, contrato de compra e venda, seguro de vida, codicilos, legado, constituição de sociedade holding, offshore ou fundos de investimento são algumas das inúmeras possibilidades para um planejamento patrimonial.
Ainda que o momento atual de pandemia faça com que as pessoas pensem mais sobre a finitude e a importância do planejamento sucessório, há de se ter cautela. O testamento – ou qualquer outro instrumento utilizado para planejamento sucessório – quando realizado sem a devida atenção pode não garantir que todas as disposições sejam cumpridas de acordo com aquele que planejou ou, até, gerar mais despesas (incidência de impostos, custos com a defesa judicial de seu conteúdo e validade, dentre outros) do que o necessário.
Para todos os casos, é essencial a presença de um advogado especialista na área para um acompanhamento jurídico e auxílio na elaboração da sucessão desejada.
[1]Advogada. Pós-Graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Especialista em Planejamento Sucessório pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da Comissão de Direito de Família da OAB/SC. Co-autora do livro “Desafios Contemporâneos do Direito de Família e Sucessões” (2018) e de artigos.
[2]https://noticias.r7.com/economia/cartorios-tem-aumento-na-procura-por-testamentos-apos-coronavirus-17042020. Acesso em 03/05/2020.
[3] SIMÃO, José Fernando. Arquitetura do planejamento sucessório/ Daniele Chaves Teixeira (coord). 2. ed. rev. ampl. e atual. – Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 504
[4] FONSECA, Priscila Corrêa da. Manual do Planejamento patrimonial das relações afetivas e sucessórias. São Paulo: Thomson Reuters, Brasil, 2018, p. 360
[5] CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das sucessões. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 600-601
[6] Rosa, Conrado Paulo da. Inventário e Partilha. Salvador: Editotra JusPodivm, 2019, p. 222
[7] Veloso, Zeno. Comentários ao Codigo Civil: parte especial: direito das sucessões, vol. 21. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 141.
[8] Rosa, Conrado Paulo da. Inventário e Partilha. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 224
Read More