A solução jurídica levará em consideração a propriedade exclusiva do bem imóvel e a presunção de esforço comum do casal.
Maria Luisa Machado Porath[1]
Imagine o seguinte cenário: você, solteiro, comprou um bem imóvel e o financiou. Certo tempo depois, estabelece união estável ou casa com alguém. Por algum motivo, a relação se rompe. Já se perguntou o que acontecerá com o bem imóvel financiado e que foi adquirido de forma exclusiva por você antes do casamento ou da união estável?
Esse é um questionamento válido e extremamente comum. Através de uma leitura superficial, pode-se chegar ao seguinte pensamento: se o bem imóvel financiado foi comprado antes da constância do casamento ou da união estável e o regime pactuado foi o de comunhão parcial de bens, o ex-cônjuge ou o ex-companheiro não possui direito sobre ele. Contudo, como veremos a seguir, não podemos seguir por essa linha de raciocínio. Assim, necessário se faz uma análise mais detalhada sobre o assunto.
A (In)Comunicabilidade dos Bens no Regime de Comunhão Parcial de Bens
De forma geral, no regime de comunhão parcial de bens, ocorre a comunicabilidade daqueles bens que foram adquiridos de forma onerosa, por um cônjuge ou pelos dois, na constância da união estável ou do casamento[2]. Essa questão possui fundamento na presunção de esforço comum do casal: de forma financeira ou emocional, presume-se ajuda mútua.
Isso significa dizer que, em regra, tudo o que for adquirido antes da conjugalidade se mantém como patrimônio particular. Por esse motivo, muitas pessoas possuem aquele pensamento externalizado na introdução.
No entanto, tratando-se de bem imóvel financiado, a situação muda um pouco de cenário. Isso porque, apesar do imóvel ter sido adquirido de forma exclusiva por um dos cônjuges antes da conjugalidade, o vencimento e o adimplemento das parcelas adentram na relação conjugal e impactam a vida do casal. E é nesse ponto que precisamos resgatar a presunção de esforço comum ao longo da relação.
Nesse sentido, qual a solução jurídica para o caso?
A solução jurídica levará em consideração tanto a propriedade exclusiva do bem imóvel – nesse artigo, não se discute se a propriedade de bem imóvel financiado é de fato do comprador – e a presunção de esforço comum do casal[3]. Regra geral, os Tribunais vêm entendendo do mesmo modo que Maria Berenice Dias (2020, p. 729), a qual afirma que
Adquirido bem mediante financiamento é preciso identificar o número de prestações quitadas durante a vigência da união. É esta a fração do bem a ser partilhado. Não se leva em conta o montante desembolsado, mas a percentagem do bem adquirido. Ficando um com o bem, o outro deve perceber o valor correspondente à metade da fração que foi paga durante o período de convívio, proporcionalmente ao número de parcelas pagas[4].
Exemplificando: Maria, solteira, adquiriu um imóvel de forma exclusiva em 2010 e realizou um financiamento de 15 anos. Em 2014, casou com João, sob o regime de comunhão parcial de bens. Em 2020, o casal se divorciou. Como se dará a partilha do imóvel financiado?
Solução de acordo com o entendimento adotado acima: De início, cabe ressaltar que a propriedade do bem imóvel permanece com Maria, uma vez que adquiriu-o de forma exclusiva. Quanto à partilha, deve-se distinguir as parcelas adimplidas antes e durante o casamento. Aquelas que foram adimplidas na constância do matrimônio devem ser divididas em 50%, correspondente à fração de cada ex-cônjuge. Assim, Maria ficará com a propriedade do imóvel e precisará indenizar João em 50% das parcelas adimplidas ao longo do casamento, devido à presunção do esforço comum do casal.
No entanto, salienta-se que esse é o entendimento majoritário; ou seja, há posições contrárias. Até o momento, o artigo analisou a questão sob o parâmetro de uma pessoa solteira ter adquirido um imóvel financiado antes do matrimônio ou da união estável. Entretanto, e se o casal comprou um imóvel mediante financiamento na constância da relação? Nesse caso, ainda que o imóvel financiado esteja no nome de um dos ex-cônjuges/ex-companheiros, ou que a contribuição financeira para essa aquisição tenha sido desigual, o imóvel será partilhado em 50% para cada ex-cônjuge ou ex-companheiro, conforme já fundamentado no tópico anterior[5]; ainda, os dois devem partilhar as parcelas pendentes, porque as dívidas também são comunicáveis[6].
Conclusão
Conforme aponta Maria Berenice Dias e decisões majoritárias de Tribunais, a partilha de imóvel financiado adquirido antes do casamento ou da união estável, sob o regime de comunhão parcial de bens, incide sobre as parcelas quitadas na constância do casamento ou da união estável. A solução jurídica, de forma geral, é que o proprietário do imóvel necessita indenizar o ex-cônjuge ou o ex-companheiro em 50% do que foi pago ao longo da relação.
Já na situação em que o imóvel financiado foi adquirido durante a relação matrimonial ou de união estável, as dívidas decorrentes das parcelas vincendas devem também ser partilhadas em 50% para cada ex-cônjuge ou ex-companheiro.
Frisa-se que essa explanação não substitui a importância de consultar um advogado ou uma advogada especialista em direito de família e sucessões. O presente artigo é apenas uma breve e simples contextualização do caso, a fim de responder questionamentos mais globais. Portanto, se você se encontra numa situação parecida ou deseja evitar futuras complicações, é recomendável realizar uma consulta jurídica. Só assim o seu caso poderá ser solucionado da maneira mais específica possível.
[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciada e Bacharela em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) — 2015. Estagiária na Schiefler Advocacia. E-mail: [email protected]
[2] Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
[3] FAMÍLIA. AÇÃO DE DIVÓRCIO. Sentença que julgou procedente a ação e improcedente a reconvenção. Irresignação da ré. Alegação de que as partes viveram em união estável por quatro anos antes de se casarem. Requisitos necessários ao reconhecimento da união estável não comprovados. Partilha. Casamento celebrado no regime da comunhão parcial de bens. Imóvel adquirido pelo autor antes do casamento, mas cujo preço foi pago de forma parcelada. Direito da ré à partilha do valor correspondente às parcelas pagas durante a constância do casamento e até o momento em que a ré deixou o lar conjugal, por constituir patrimônio comum (art. 1.658 do CC). Sentença reformada em parte. Sucumbência recíproca caracterizada, mais intensa da ré. Recurso parcialmente provido. (TJ-SP – AC: 10004448620168260153 SP 1000444-86.2016.8.26.0153, Relator: Alexandre Marcondes, Data de Julgamento: 28/10/2020, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/10/2020)
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 13ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador – Bahia: Editora JusPodivm, 2020, p. 729.
[5] Art. 1.660. Entram na comunhão: I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges;
[6] Art. 1.663. A administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges.
§ 1 o As dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido.
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O entendimento foi fixado em tese de repercussão geral (RE 1.045.273/SE).
Por 6 votos a 5, ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas.
Os ministros analisaram um caso em que um homem, em união estável, pleiteou o reconhecimento de uma segunda união estável concomitante, com a consequente divisão dos valores decorrentes da pensão por morte.
A tese de repercussão geral aprovada pelo Plenário Virtual do STF (RE 1.045.273/SE) estabeleceu que “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, parágrafo 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive, para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional”.
O Relator, ministro Alexandre de Moraes, em seu voto destacou que “em que pesem os avanços na dinâmica e na forma do tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares, motivos pelo afeto, pela compreensão das diferenças, respeito mútuo, busca da felicidade e liberdade individual de cada qual dos membros, entre outros predicados, que regem inclusive os que vivem sob a égide do casamento e da união estável, subsiste em nosso ordenamento jurídico constitucional ideais monogâmicos”.
O ministro Edson Fachin abriu a divergência e foi seguido pelos ministros Roberto Barroso, Rosa Weber, Carmen Lúcia e Marco Aurélio. No seu voto, entendeu ser possível o reconhecimento de efeitos previdenciários póstumos a uniões estáveis concomitantes, desde que presente o requisito da boa-fé objetiva.
Os votos já estão disponíveis e podem ser conferidos através deste link.
Read MoreRefletir sobre os impactos dos seus investimentos no regime de bens adotado é de suma importância, porque impacta, inclusive, em seus herdeiros necessários num futuro direito sucessório.
Maria Luisa Machado Porath[1]
Você já pensou qual será a destinação dos seus investimentos em caso de divórcio ou falecimento? A depender do caminho seguido, as consequências serão diversas. Ainda que não almeje o rompimento conjugal, refletir sobre os impactos dos seus investimentos no regime de bens adotado – no caso do presente artigo, regime de comunhão parcial de bens – é de suma importância, porque impacta, inclusive, em seus herdeiros necessários num futuro direito sucessório.
Para efeitos deste artigo, o que são considerados investimentos?
De forma simplificada, é considerado investimento o capital aplicado com o intuito de obter rendimentos a um certo prazo. Há múltiplas possibilidades de investimentos, por exemplo:
- renda fixa: tesouro direto, CDB, poupança…;
- renda variável: ações, fundos de investimentos…;
- previdência privada aberta: ofertada a qualquer pessoa, como VGBL e o PGBL;
- previdência privada fechada (fundos de pensão): ofertada a uma categoria específica ou a funcionários de uma empresa;
Destaca-se que o artigo não tem o condão de conceituar a fundo os tipos de investimentos, uma vez que o foco se trata dos seus impactos jurídicos no âmbito do regime de comunhão parcial de bens.
Reflexos Jurídicos dos Investimentos no Regime de Comunhão Parcial de Bens
A comunicabilidade dos bens no regime de comunhão parcial de bens ocorre, em regra, apenas naqueles adquiridos de forma onerosa, por um ou pelos dois, na constância da união estável ou do casamento[2]. Ou seja, em geral, tudo o que for adquirido antes da conjugalidade se mantém como patrimônio particular. Destaca-se que não compete a este artigo destrinchar o regime em si; caso tenha interesse, recomenda-se a leitura do texto “Regime de bens: o que é, quais os tipos e como funcionam”.
- Divórcio
Regra geral, os investimentos realizados antes da constância do casamento ou da união estável não são partilhados. Entretanto, ressalta-se que os seus frutos sim. Por exemplo, Maria realizou um investimento de R$ 5.000,00 no ano de 2015, com prazo de 10 anos. Em 2016, ela se casou com João e, em 2020, divorciaram-se. Caso eles não tenham realizado pacto antenupcial, João terá direito aos frutos do investimento feito por Maria; ou seja, terá direito à partilha sobre o que renderam os R$ 5.000,00 iniciais.
No entanto, se os investimentos foram realizados durante o casamento ou a união estável deverão integrar a partilha. Por exemplo, Maria, casada com João, realiza um investimento de RS 5.000,00 em 2017. No ano de 2020, os dois se divorciam. No caso concreto, João terá direito a 50% do investimento e de seus frutos, ainda que não seja o titular da aplicação tampouco tenha utilizado quaisquer recursos próprios.
- Direito Sucessório
Após o falecimento do cônjuge, o sobrevivente é meeiro (é titular de 50% do patrimônio) dos bens adquirido onerosamente durante a constância do casamento ou da união estável. Contudo, no caso do regime de comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente será somente herdeiro dos bens particulares do falecido, ou seja, o consorte concorrerá com os demais herdeiros.
Caso tenha interesse no aprofundamento do tema, recomenda-se a leitura do artigo “As consequências sucessórias de acordo com cada regime de bens”.
No caso dos investimentos terem sido realizados antes da constância do casamento ou da união estável, o cônjuge sobrevivente terá direito à herança em concorrência com outros herdeiros necessários, por exemplo, os filhos. Já na situação em que os investimentos foram adquiridos durante o casamento ou a união estável, o cônjuge sobrevivente não terá direito à herança, eis que será meeiro sobre o investimento.
- Previdência Privada (VGBL e PGBL) integra a partilha no caso de divórcio e o direito sucessório?
Até recentemente, o Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) e o Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL), em tese, não integravam o direito sucessório e a partilha no caso de divórcio, por terem caráter de seguro de vida[3] e de pensão[4]. No entanto, em setembro de 2020, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial nº 1.698.774/RS, entendeu que, durante a fase de acumulação – em que é possível fazer aportes e resgates antecipados -, a previdência privada aberta possui natureza de aplicação financeira e não de pensão, como era entendido. A partir de então, a previdência privada aberta pode ser partilhada quando estiver na fase de acumulação em caso de regime de comunhão parcial de bens e de direito sucessório.
Além disso, registre-se que há seguradoras que vendem os planos como uma espécie de planejamento sucessório. Contudo, alguns podem ser contrários ao Código Civil e, inclusive, corre-se o risco de fraudar a legítima dos herdeiros necessários[5].
Quando isso acontece, existem decisões[6] que entendem que o plano da previdência privada carece de natureza securitária e, assim, pode ser pleiteado judicialmente, porque adquire o caráter de investimento. Portanto, para evitar dor de cabeça, é necessário cautela no momento de adquirir uma previdência privada, pois, a depender do caso concreto, é possível pleiteá-los judicialmente.
Conclusão
Como já mencionado, o artigo teve por objeto a explanação geral acerca dos reflexos dos investimentos no regime de comunhão parcial de bens. Nesse sentido, para que se tenha uma análise minuciosa do seu caso concreto, é importante realizar uma consulta jurídica com advogado ou advogada especialista na área de direito de família e sucessões. Dessa forma, muitas “surpresas desagradáveis” podem ser evitadas na hora da partilha de um inventário ou de um divórcio ou dissolução de união estável.
[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciada e Bacharela em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) — 2015. Estagiária na Schiefler Advocacia. E-mail: [email protected]
[2] Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
[3] No seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito.
[4] Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: VII – as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
[5] Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.
Art. 1.847. Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação.
[6]AGRAVO DE INSTRUMENTO – Inventário – Determinação de retificação das declarações para inclusão dos valores existentes em nome da inventariante (esposa) em previdência privada (VGBL) – Insurgência da parte sob alegação de que se trata de bem particular, de natureza securitária, excluído da sucessão – Decisão mantida – Afastamento da alegação absoluta do caráter securitário – Necessidade de aferição da natureza da verba, que pode atuar como simples aplicação financeira, caso em que sujeita ao regime geral dos bens comuns, inclusive reconhecimento da meação e partilha. Recurso desprovido. (TJ-SP – AI: 20347284320178260000 SP 2034728-43.2017.8.26.0000, Relator: Enéas Costa Garcia, Data de Julgamento: 18/09/2017, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/09/2017)
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A chegada da terceira idade causa a inversão de papéis, transferindo aos filhos a responsabilidade de cuidado para com os pais idosos.
Maria Luisa Machado Porath[1]
De forma geral, entende-se que os filhos possuem responsabilidade perante os pais idosos. Isso porque os pais cuidam dos filhos e, naturalmente, há a inversão de papéis, com a chegada da terceira idade. E para quem não possui filhos ou quando são falecidos, ou ainda, quando há o abandono afetivo inverso, a quem compete cuidar do idoso? E quais seriam essas responsabilidades?
Muito se discute sobre o abandono afetivo quando os pais não zelam pelo seu filho. Ou seja, quando há a ausência de uma paternidade/maternidade responsável: alguém que proporcione o cuidado esperado de pais para com os filhos. Contudo, quando se inverte a lógica, isto é, quando omisso o cuidado dos filhos para com os pais idosos, ocorre o chamado abandono afetivo inverso. Jonas Figueiredo Alves conceitua-o como “[…] a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família”[2].
Com a atual pandemia da COVID-19, foram noticiados diversos casos de abandono de idosos, seja em seus próprios lares ou nas casas de repouso. A justificativa para tal omissão de cuidado era o distanciamento social. No entanto, ainda, e principalmente, em casos extremamente vulneráveis como a que a atualidade está vivendo, o dever de zelo para com o idoso deve permanecer. A razão disso é que, muitas vezes, o idoso já não consegue realizar as tarefas básicas diárias e, assim, necessita de uma ajuda externa. Como conciliar sozinho o medo da pandemia, as limitações físicas e mentais e as restrições de deslocamento para evitar a propagação do contágio do novo coronavírus?
A Lei Federal nº 10.741/2003, que dispõe acerca do Estatuto do Idoso, em seu artigo 3º, afirma que é
obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Delimitação das Responsabilidades dos sujeitos…
Primeiramente, quando se fala em comunidade, sociedade e Poder Público, os cuidados se restringem ao respeito e à efetivação dos direitos dos idosos. Isso significa dizer que compete ao Poder Público prover saúde, educação, lazer, etc. A comunidade e a sociedade, de forma geral, devem respeitar e assegurar que esses direitos sejam resguardados. Ou seja, esse cuidado se refere mais à efetivação dos direitos coletivos do idoso e ao respeito do princípio da dignidade da pessoa humana.
No entanto, quando se fala em obrigação da família, os deveres de cuidado se aprofundam. O artigo 229 da Constituição Federal afirma que “[…] os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Como já mencionado, ocorre a inversão de cuidados, quando os pais encaram a terceira idade. Contudo, na falta de filhos, chamam-se os netos; e, na ausência de outros descendentes, os irmãos e outros parentes colaterais[3]. Em último caso, cabe ao Poder Público prover assistência social ao idoso[4].
Quais são as responsabilidades de cuidado para com o idoso no seio familiar?
Conforme bem pontuado pela Ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi, “amar é faculdade, cuidar é dever”[5]. Isso significa que não há como obrigar o cultivo do amor, mas o cuidado é um dever familiar de via de mão dupla: de pais para filhos e vice-versa. Nesse sentido, quando se está diante de um abandono afetivo, seja ele inverso ou não, há a possibilidade de reparação civil, indenização, a depender do caso concreto.
A responsabilidade principal, que permeia todas as outras, é o de prover alimentos ao idoso. Não no sentido restrito da palavra, vez que o direito de alimentos abrange o mínimo necessário para que o idoso possa viver e aproveitar a sua velhice com dignidade. Nesse sentido, outros gastos são incluídos no cálculo base para a pensão alimentícia, por exemplo:
- saúde (despesas médicas de forma geral: plano de saúde, remédios, consultas, exames…);
- vestuário;
- higiene;
- lazer;
- moradia (água, luz, gás, internet, telefone, aluguel, limpeza…);
- compras no mercado;
- transporte;
- etc.
Ressalta-se que há uma particularidade no direito a alimentos dos idosos: ao contrário do que prevê o artigo 1.698[6] do Código Civil, aplica-se o artigo 12 do Estatuto do Idoso em que afirma que a obrigação é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores. Em outras palavras, o idoso não fica restrito à quota parte de cada prestador; pode cobrar a integralidade dos alimentos a qualquer um deles.
E no caso de abandono afetivo pelos pais ainda quando menores os filhos, persiste a obrigação de cuidado do idoso?
Apesar da previsão expressa de cuidado dos filhos para com os pais idosos, é possível que a relação familiar se abale por diversos motivos. Uma vez os filhos adultos, há, inclusive, casos de rompimento familiar; contudo, quando os pais idosos alegam abandono afetivo inverso, os filhos rebatem que houve abandono afetivo na infância.
Portanto, questiona-se qual seria o caminho jurídico a seguir: obrigar os filhos a prestarem cuidados para com os pais que o abandonaram na infância ou afastar esse dever? Entretanto, a resposta jurídica depende de cada caso. Assim, se você está passando por uma situação semelhante ou se conhece alguém que esteja, é imprescindível que contate um advogado ou uma advogada especialista em direito de família. Somente através de uma consulta jurídica, com uma análise aprofundada do caso, é possível traçar uma estratégia jurídica, a fim de minimizar qualquer sofrimento familiar.
[1] Estagiária na Schiefler Advocacia. Graduanda da sétima fase em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) — 2015.
[2] Alves, J. F. Abandono afetivo inverso pode gerar indenização. Revista IBDFAM –Instituto Brasileiro de Direito de Família, 16 de jul. de 2013. Disponível em: <https://www.ibdfam.org.br/noticias/5086/+Abandono+afetivo+inverso+pode+gerar+indeniza%C3%A7%C3%A3o#:~:text=JF%20%2D%20Diz%2Dse%20abandono%20afetivo,da%20seguran%C3%A7a%20afetiva%20da%20fam%C3%ADlia.>. Acesso em 17 nov. 2020.
[3] Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.
Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.
[4] Art. 14. Se o idoso ou seus familiares não possuírem condições econômicas de prover o seu sustento, impõe-se ao Poder Público esse provimento, no âmbito da assistência social.
[5] CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (STJ – REsp: 1159242 SP 2009/0193701-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 24/04/2012, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2012 RDDP vol. 112 p. 137 RDTJRJ vol. 100 p. 167 RSTJ vol. 226 p. 435)
[6] Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.
Read MoreA discussão sobre as regras econômicas do casamento entre os noivos ainda enfrenta inúmeras barreiras e entraves para um diálogo franco. Contudo, o pacto antenupcial é o instrumento que pode disciplinas as questões patrimoniais e extrapatrimoniais dos nubentes.
Laísa Santos[1]
No Brasil, o instrumento do pacto antenupcial ainda é pouco utilizado. Quando se trata de discutir regras econômicas do casamento entre os nubentes (noivos), ainda pairam inúmeras barreiras e entraves para um diálogo franco.
O pacto antenupcial nada mais é do que um contrato solene firmado entre os nubentes antes do casamento com o objetivo de convencionar como ficarão questões atinentes ao patrimônio bem como aspectos extrapatrimoniais de cunho interpessoal ou até de responsabilidades paterno-filiais.
Por ser entendido como um contrato acessório, para a sua eficácia e validade é necessário que o casamento se concretize, que seja feito por meio de escritura pública em um Cartório de Notas e, após o casamento, seja levado ao Cartório de Registro Civil onde se concretizou o matrimônio. A Lei de Registros Públicos também exige que, caso exista bem imóvel em nome de qualquer um dos nubentes ou em nome de ambos, é necessária a averbação do pacto nos registros de imóveis de cada imóvel.
Quando e quem pode fazer o pacto antenupcial?
Qualquer casal que desejar pode fazer o pacto antenupcial.
Todavia, trata-se de um instrumento obrigatório a aqueles que optarem por um regime de bens que não for o legal (comunhão parcial de bens). Assim, aos nubentes que desejam casar sob o regime da comunhão universal de bens, separação absoluta ou participação final nos aquestos o pacto é obrigatório[2].
Salienta-se, ainda, que nada obsta que os nubentes que venham a se casar sob o regime de comunhão parcial de bens também o façam.
Recentemente vem ganhando destaque a possibilidade de elaboração de pacto antenupcial daqueles que são obrigados a casar sob o regime de separação obrigatória[3] em virtude da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal[4] e de decisão[5] proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) que entendeu possível a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para a sua aquisição.
A Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo (CGJ TJSP) por meio do Recurso Administrativo nº 1065469-74.2017.8.26.0100[6], entendeu ser possível a elaboração de pacto antenupcial a aqueles em que é imposto o regime de separação obrigatória de bens para prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória.
Da mesma forma, em Pernambuco foi editado o Provimento 8/2016 da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça em que se fixou que no regime de separação legal ou obrigatória de bens, deverá o oficial do registro civil cientificar os nubentes da possibilidade de afastamento da incidência da referida súmula por meio de pacto antenupcial.
O que pode ser disposto no pacto antenupcial?
Para além das disposições patrimoniais, o pacto antenupcial poderá prever questões de cunho interpessoal ou até mesmo sobre a responsabilidade paterno-filial.
Indenizações em decorrência de infidelidade passaram a ser tema da moda, sendo prevenidos em pactos antenupciais.
Cláusula polêmica e, ainda em discussão, é aquela que traz expressa exteriorização de que, em eventual falecimento de qualquer um dos cônjuges casados sob o regime de separação absoluta, o outro não o sucederá em concorrência com os descendentes, nos moldes delineados por uma decisão proferida no STJ[7]. Neste tipo de cláusula, é importante haver expressa menção de que ambos os nubentes têm pleno conhecimento da decisão e estão de pleno acordo com os seus efeitos.
Cabe ressaltar que ainda que conste no instrumento a anuência de ambos os contraentes, subordina-se a sua eficácia à interpretação do juiz, caso seja questionada posteriormente no âmbito judiciário.
Ainda, também pode-se pensar em alternativas que se adequem a cada relacionamento, como (i) cláusula expressa de reconhecimento de precedente de união estável, antes de contraírem matrimônio sob regime de bens diverso; (ii) cláusula expressa exteriorizando que todo o aumento de rendimentos – seja de capital social da empresa ou de cotas societárias – que ocorresse durante o casamento, relacionados à empresa pertencente a um dos nubentes, antes do matrimônio, não se comunicaria com o outro nubente ou; (iii) cláusula expressa discorrendo sobre a modalidade de guarda, direito de visitas e valor dos alimentos a serem prestados em caso de divórcio ou dissolução da união estável.
É importante ressaltar que é nula toda a cláusula que contravenha literal disposição de lei. Ou seja, não é permitido utilizar o pacto para burlar qualquer dispositivo legal, como a renuncia à pensão dos filhos menores.
Se o casamento não ocorrer e o casal começar a viver em uma união estável, o pacto continuará válido?
Há grande divergência doutrinária sobre o assunto. Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, ainda que o casamento não ocorra, as regras firmadas no pacto antenupcial serão eficazes, pois o negócio realizado será considerado um contrato de convivência[8]. Diferentemente, Maria Berenice Dias defende que o acordo firmado no pacto antenupcial não prevalecerá caso os nubentes resolvam conviver em união estável ao invés de se casarem ou mesmo que, posteriormente, venham a fazer a conversão desta união estável em casamento[9].
Quanto custa para fazer um pacto antenupcial?
O pacto antenupcial é feito por meio de uma escritura publica em Cartório de Notas e deverá ser levado ao Cartório de Registro Civil onde será realizado o casamento. Os nubentes devem levar consigo os documentos pessoais (RG e CPF).
O preço para a elaboração do pacto é tabelado por lei em todos os cartórios dos estados. Em 2020 em São Paulo, por exemplo, o valor é de R$ 442,17 enquanto em Santa Catarina, o valor é de R$ 37,00.
Preciso de um advogado para pacto antenupcial?
Não é necessário. O pacto poderá ser feito diretamente no Cartório utilizando um dos modelos prontos existentes. Porém, é altamente recomendado que um advogado especialista auxilie na confecção e na orientação das partes, dada a importância do conteúdo, o contexto do casal e os interesses diretos e indiretos.
[1] Advogada. Especialista em Planejamento Sucessório pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Pós-Graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da Comissão de Direito de Família da OAB/SC. Co-autora do livro “Desafios Contemporâneos do Direito de Família e Sucessões” (2018) e de artigos.
[2] Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os c6onjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único: Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas.
[3] SIMÃO, José Fernando. Artigo – Separação obrigatória com pacto antenupcial? Sim, é possível. Disponível em https://www.anoreg.org.br/site/2018/02/16/artigo-separacao-obrigatoria-com-pacto-antenupcial-sim-e-possivel-por-jose-fernando-simao/
[4] STF. Súmula 377. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.
[5] STJ. Embargos de Divergência em REsp nº 1.623.858/MG, Segunda Seção, Relator Ministro Lázaro Guimarães, Julgado em 23/05/2018.
[6] Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso administrativo, para que se dê seguimento à habilitação para casamento, com adoção do regime de separação obrigatória de bens, prevalecendo o pacto antenupcial que estipula a incomunicabilidade absoluta de aquestos. Publique-se. São Paulo, 06 de dezembro de 2017. (a) MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS, Corregedor Geral da Justiça
[7] STJ, REsp n. 992.749/MS, Quarta Turma, Relatora Ministra Nancy Andrihi.
[8] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. Vol. 6. 7. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015.
[9] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 330.
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O testamento, de forma geral, é o ato de manifestação de última vontade de uma pessoa, e pode tratar inclusive sobre o conteúdo intangível do falecido, guardado em espaço virtual, como senhas, redes sociais e contas na internet.
Maria Luisa Machado Porath[1]
Você já refletiu sobre o que deseja fazer com as suas contas nas redes sociais após o seu falecimento? Ou então com aquelas fotografias ou livros digitais que coleciona de forma tão cuidadosa? Refletir sobre a herança digital, sobretudo devido ao surgimento de novas profissões, como os influencers digitais, é de extrema importância para que se destine os seus bens digitais[2] conforme a sua vontade.
Mas o que é Herança Digital?
Destaca-se que, apesar do Código Civil ter entrado em vigor em 2002, a sua estrutura, em muitos aspectos, já nasceu “ultrapassada”. Isso é perceptível principalmente no Direito Sucessório, uma vez que não acompanhou o avanço tecnológico da sociedade. Em termos práticos, o atual Código Civil não abarca o conceito de Herança Digital.
Portanto, a fim de compreender esse termo, deve-se apoiar em pesquisas jurídicas, como doutrinas e Projetos de Lei (PL). Por exemplo, o PL nº 8562/2017[3] conceitua herança digital como todo conteúdo intangível — que não se pode tocar — do falecido, guardado em espaço virtual, e transmissível aos herdeiros. Por exemplo:
- senhas;
- redes sociais;
- contas da internet;
- qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.
Entretanto, o professor Pablo Malheiros Cunha Frota[4] entende de modo diverso. Ele declara que por se tratar de direito personalíssimo[5] do falecido, a transmissibilidade automática aos herdeiros se torna impossível; assim, deveria ser extinto quando do falecimento. Exceto, claro, se o falecido expressamente se manifestar sobre, por exemplo, em testamento.
Por que o Testamento é importante para a Herança Digital?
Inicialmente, destaca-se que o testamento, de forma geral, é o ato de manifestação de última vontade de uma pessoa acerca do destino dos seus bens e de outros assuntos de caráter não patrimonial[6]. No nosso Código Civil de 2002, temos as seguintes espécies de testamento:
- Público — escrito e registrado por um tabelião, conforme as declarações do testador[7];
- Particular — escrito pelo testador, de próprio punho ou por processo mecânico[8];
- De urgência — considerado uma “subdivisão” do testamento particular, possui maior flexibilidade quanto aos seus requisitos, uma vez que é utilizado somente em casos de grave risco à vida do testador[9];
- Cerrado/Secreto — escrito pelo testador (ou por outra pessoa, a seu rogo, e por aquele assinado) e somente terá validade se aprovado pelo tabelião[10].
Para fins de aprofundamento do tema, indica-se a leitura do artigo que trata do conceito de testamento e suas diferentes espécies.
Acerca de sua importância, enquanto não houver norma específica sobre a herança digital, o testamento se mostra um instrumento eficiente para suprir essas lacunas jurídicas. Se entendermos que os bens digitais são passíveis de transmissibilidade, compras de jogos, livros, etc. por aplicativos como Google Play e Apple, poderiam ser discriminados no testamento.
Questão controversa: os usuários são proprietários desses bens ou possuem mera licença de uso, conforme previsto nos Termos de Adesão de algumas empresas?
Caso se entenda pela primeira opção, a transmissibilidade desses bens aos herdeiros é lícita e, por conseguinte, passível de discriminação no testamento. Contudo, na segunda hipótese, os usuários têm apenas a licença de uso e, nesse caso, por ser um direito personalíssimo, a sua extinção virá com a morte.
Lojas como Google Play e Apple, por exemplo, entendem que o usuário detém apenas a licença de uso. Desse modo, a sucessão restaria prejudicada, eis que a transmissibilidade aos herdeiros seria impossível, de acordo com os contratos de adesão das empresas.
Ressalta-se que, no Brasil, essa cláusula de intransmissibilidade poderá ser caracterizada como abusiva, porque tende a ferir o princípio da função social da herança — redistribuição da riqueza do falecido. Isso, claro, se tomarmos como verdadeira a opção de que o usuário é proprietário dos bens digitais.
Uma alternativa, portanto, seria estabelecer um contrato particular com as empresas. No entanto, sabemos que, na prática, isso se torna praticamente inviável. Nesse sentido, o testamento se torna uma opção palpável no nosso mundo jurídico brasileiro.
Independentemente de como for resolvida a controvérsia da intransmissibilidade dos bens digitais, é possível determinar no testamento quais as destinações de suas contas nas redes sociais. Por exemplo, se deseja excluir, transformar em memorial e dentre outras opções elencadas pelo testador. Isso se comprova pelo fato de que no testamento, consoante informado no início desse item, pode-se elencar tanto bens patrimoniais quanto não patrimoniais.
Enquanto não realizo um testamento, o que posso fazer para proteger as minhas informações virtuais ainda em vida?
Algumas redes sociais, nos seus termos de uso e políticas, mencionam possibilidades de como proceder com a sua conta após o seu falecimento. Por exemplo:
- Facebook — você pode configurar para excluir de forma permanente a sua conta ou indicar um contato herdeiro que também poderá solicitar a remoção de sua conta ou transformá-la num memorial[11];
- Instagram — após o seu falecimento, os familiares próximos poderão solicitar a exclusão da conta ou transformá-la em memorial. Até o momento, setembro de 2020, não há informação sobre você decidir o que fazer com a sua conta após seu falecimento, como no Facebook[12].
- Twitter — de modo bem semelhante ao Instagram, após o seu falecimento, familiares próximos poderão solicitar a remoção de sua conta. Igualmente, até o momento, não há como configurar o que fazer com a sua própria conta após seu falecimento[13].
- Google — você pode configurar para a sua conta ser permanentemente excluída após um período de inatividade (3, 6, 12 ou 18 meses), através do gerenciamento de conta inativa. Quando o prazo estiver perto, você será notificado sobre a possível remoção da conta; assim, poderá, novamente, adiar por mais certo período. Ainda, poderá indicar até 10 pessoas que serão igualmente notificadas[14].
- Linkedin — no site, a empresa não deixa claro se o perfil será excluído após solicitação de algum ente querido ou se apenas não será mais exibido na timeline de quem preencheu o formulário. Em alguns sites, encontra-se a informação de que o Linkedin, de fato, exclui o perfil da pessoa falecida. Porém, no seu termo de uso e política, não fica explícita essa informação[15].
- TikTok — até o momento, não há informação sobre como proceder em caso de falecimento de algum usuário da rede social. Nos termos de uso e política, somente se menciona que é vedado ao TikTok utilizar dados e informações que infrinjam os direitos de personalidade de qualquer pessoa, incluindo falecida.
Se quiser fazer um testamento que trate dos meus bens digitais, como posso proceder?
Conforme já mencionado, a herança digital ainda é um campo incerto. Nesse sentido, tratar de direito sucessório de bens digitais requer muita cautela e uma análise individualizada. Portanto, se você deseja expressar a sua vontade quanto à destinação de seus bens digitais, apesar de não obrigatório, é recomendável realizar uma consulta jurídica com especialista na área de sucessões.
Assim, o testamento estará alinhado aos seus requisitos legais e poderá refutar eventuais alegações de vícios tanto materiais quanto à sua forma. Ou seja, a tarefa da advogada ou do advogado especialista em direito sucessório consiste em esclarecer quais bens poderão ser herdados através do testamento e quais ainda perduram controvérsia acerca da sua transmissibilidade e elencar os caminhos possíveis. Ademais, também pode auxiliar na redação do documento, a fim de que não reste dúvidas quanto à vontade do testador. Caso contrário, a sua manifestação de última vontade pode não ter amparo legal e, por conseguinte, ser considerada nula.
[1] Graduanda da sétima fase em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Meios Consensuais da UFSC (GEMC). Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) — 2015.
[2] Bens digitais pode ser definido como “uma espécie de software de computador que, como qualquer outro, é transmitido de uma máquina para outra na forma de fluxos de elétrons, denominados bits. Cada conjunto de oito bits forma um byte”. (SANTOS, Bruno Damasceno Ferreira. Bem digital – natureza e regime jurídico do objeto do comércio eletrônico on-line. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39450/bem-digital-natureza-e-regime-juridico-do-objeto-do-comercio-eletronico-on-line>. Acesso em 11 set. 2020).
[3] Foi apensado ao PL 7742/2017 e, posteriormente, arquivado nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
[4] Parecer na indicação 016/2017 – Alteração no Código Civil. Disponível em: <https://www.iabnacional.org.br/pareceres/pareceres-votados/016-2017>. Acesso em 09 set. 2020.
[5] Somente a pessoa específica pode exercer. Ou seja, é intransferível e deve ser isento de vícios de consentimento, tais como a coerção.
[6] Art. 1.857, § 2° CC. São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.
[7] Art. 1.864. São requisitos essenciais do testamento público: I – ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos; II – lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial; III – ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião. Parágrafo único. O testamento público pode ser escrito manualmente ou mecanicamente, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se mais de uma.
Art. 1.865. Se o testador não souber, ou não puder assinar, o tabelião ou seu substituto legal assim o declarará, assinando, neste caso, pelo testador, e, a seu rogo, uma das testemunhas instrumentárias.
Art. 1.866. O indivíduo inteiramente surdo, sabendo ler, lerá o seu testamento, e, se não o souber, designará quem o leia em seu lugar, presentes as testemunhas.
Art. 1.867. Ao cego só se permite o testamento público, que lhe será lido, em voz alta, duas vezes, uma pelo tabelião ou por seu substituto legal, e a outra por uma das testemunhas, designada pelo testador, fazendo-se de tudo circunstanciada menção no testamento
[8] Art. 1.876 CC. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico. § 1 o Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. § 2 o Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão.
Art. 1.877. Morto o testador, publicar-se-á em juízo o testamento, com citação dos herdeiros legítimos.
Art. 1.878. Se as testemunhas forem contestes sobre o fato da disposição, ou, ao menos, sobre a sua leitura perante elas, e se reconhecerem as próprias assinaturas, assim como a do testador, o testamento será confirmado. Parágrafo único. Se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade.
Art. 1.880. O testamento particular pode ser escrito em língua estrangeira, contanto que as testemunhas a compreendam.
[9] Art. 1.879. Em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz.
[10] Art. 1.868. O testamento escrito pelo testador, ou por outra pessoa, a seu rogo, e por aquele assinado, será válido se aprovado pelo tabelião ou seu substituto legal, observadas as seguintes formalidades: I – que o testador o entregue ao tabelião em presença de duas testemunhas; II – que o testador declare que aquele é o seu testamento e quer que seja aprovado; III – que o tabelião lavre, desde logo, o auto de aprovação, na presença de duas testemunhas, e o leia, em seguida, ao testador e testemunhas; IV – que o auto de aprovação seja assinado pelo tabelião, pelas testemunhas e pelo testador. Parágrafo único. O testamento cerrado pode ser escrito mecanicamente, desde que seu subscritor numere e autentique, com a sua assinatura, todas as paginas.
Art. 1.869. O tabelião deve começar o auto de aprovação imediatamente depois da última palavra do testador, declarando, sob sua fé, que o testador lhe entregou para ser aprovado na presença das testemunhas; passando a cerrar e coser o instrumento aprovado. Parágrafo único. Se não houver espaço na última folha do testamento, para início da aprovação, o tabelião aporá nele o seu sinal público, mencionando a circunstância no auto.
Art. 1.870. Se o tabelião tiver escrito o testamento a rogo do testador, poderá, não obstante, aprová-lo.
Art. 1.871. O testamento pode ser escrito em língua nacional ou estrangeira, pelo próprio testador, ou por outrem, a seu rogo.
Art. 1.872. Não pode dispor de seus bens em testamento cerrado quem não saiba ou não possa ler.
Art. 1.873. Pode fazer testamento cerrado o surdo-mudo, contanto que o escreva todo, e o assine de sua mão, e que, ao entregá-lo ao oficial público, ante as duas testemunhas, escreva, na face externa do papel ou do envoltório, que aquele é o seu testamento, cuja aprovação lhe pede.
Art. 1.874. Depois de aprovado e cerrado, será o testamento entregue ao testador, e o tabelião lançará, no seu livro, nota do lugar, dia, mês e ano em que o testamento foi aprovado e entregue.
Art. 1.875. Falecido o testador, o testamento será apresentado ao juiz, que o abrirá e o fará registrar, ordenando seja cumprido, se não achar vício externo que o torne eivado de nulidade ou suspeito de falsidade.
[11] O que acontecerá com minha conta do Facebook se eu falecer?. Disponível em: <https://www.facebook.com/help/103897939701143/>. Acesso 10 set. 2020.
[12] Como faço para denunciar a conta de uma pessoa falecida no Instagram?. Disponível em: <https://www.facebook.com/help/instagram/264154560391256?helpref=related>. Acesso em 10 set.2020.
[13] Como entrar em contato com o Twitter para falar sobre a conta de um familiar falecido. Disponível em: <https://help.twitter.com/pt/managing-your-account/contact-twitter-about-a-deceased-family-members-account>. Acesso em 10 set. 2020.
[14] Enviar uma solicitação a respeito da conta de um usuário falecido. Disponível em: <https://support.google.com/accounts/troubleshooter/6357590?hl=pt-BR>. Acesso em 10 set. 2020.
[15] Usuário falecido do LinkedIn. Disponível em: <https://www.linkedin.com/help/linkedin/answer/7285>. Acesso em 14 set. 2020.
Read MoreOs valores foram caracterizados com natureza de investimento e, portanto, devem ser partilhados na dissolução do casamento.
Na última semana, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) botou uma pá de cal na controversa discussão a respeito da partilha de bens em planos de previdência privada aberta (VGBL e PGBL).
No voto, a Relatora, Ministra Nancy Andrighi, destaca que diferente da previdência privada fechada que possui entraves de natureza financeira e atuarial, a previdência aberta pode ser objeto de contratação por qualquer pessoa física ou jurídica, tratando-se de regime de capitalização no qual caberá ao investidor, com ampla liberdade e flexibilidade, deliberar sobre os valores de contribuição, resgates antecipados ou parcelamento até o fim da vida.
No entendimento da Turma, no período em que antecede a percepção dos valores, ou seja, durante as contribuições e formação do patrimônio, a natureza preponderante do contrato de previdência complementar aberta é de investimento, semelhante ao que ocorreria se os valores das contribuições e dos eventuais aportes fossem investidos em fundos de renda fixa ou na aquisição de ações.
Assim, para evitar distorções no regime de bens do casamento e também na sucessão, uma vez que bastaria ao investidor direcionar seus aportes para essa modalidade para frustrar eventual meação do cônjuge ou legítima dos herdeiros, os valores foram caracterizados com natureza de investimento e, portanto, devem ser partilhados na dissolução do casamento por não estarem abrangidos pela regra do artigo 1.659, inciso VII, do Código Civil[1].
E você concorda com o posicionamento adotado pela Terceira Turma do STJ?
Fonte: Recurso Especial n. 1.698.774/RS (2017/0173928-2)
[1] CC. Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: VII – as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
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A mobilidade das famílias e de seus patrimônios envolve questões tanto de direito sucessório quanto de direito internacional privado, trazendo um grande desafio para as sucessões hereditárias.
Laísa Santos[1]
Não são raras as situações em que a sucessão hereditária esbarra em aspectos internacionais, seja pela nacionalidade ou domicílio do autor da herança e dos seus sucessores ou pela existência de bens situados no exterior.
De plano, há duas questões não somente de direito sucessório, mas também de internacional privado a serem esclarecidas: qual será a lei aplicada à sucessão e a jurisdição sobre os bens que serão objeto dessa sucessão.
A mobilidade das famílias e dos seus patrimônios trouxe um grande desafio para as sucessões hereditárias, principalmente em razão do conflito de legislação com os outros países e da forma de tributação. Esses aspectos serão brevemente abordados em tópicos no presente artigo.
- Na hipótese de bens situados apenas no Brasil, onde será processado o inventário?
O Código de Processo Civil confere à autoridade judiciária brasileira, com a exclusão de qualquer outra, em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação do testamento particular e o processamento de inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional[2]. Assim, havendo bens de qualquer natureza situados no Brasil, o inventário deve aqui ser processado[3].
- Havendo bens situados no Brasil e no exterior, onde será aberto o inventário?
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) estabelece que a sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que o falecido ou o desaparecido era domiciliado[4] – regra esta que não é absoluta, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça[5].
Na hipótese de o falecido ser domiciliado no Brasil e deixar bens situados no Brasil e no exterior, haverá o processamento de dois ou mais inventários. Ou seja, um no Brasil e os demais nos respectivos países onde há bens móveis ou imóveis.
Em contrapartida, quando o falecido não for residente no Brasil, mas possuir bens no país, o inventário dos bens situados no Brasil será processado aqui, com a ressalva de que será aplicado o direito estrangeiro.
- Qual será a lei aplicada ao inventário?
Superada a questão da competência onde tramitará o processo, resta saber qual será a legislação aplicada. Evidentemente que, quando a pessoa falecida é brasileira e há apenas bens situados em território nacional, a lei aplicada será a do Brasil.
Contudo, caso o autor da herança seja estrangeiro, mas tenha deixado bens no Brasil, o inventário será aqui processado, porém, a legislação aplicada será a de domicílio do falecido.
Como regra geral, ainda que haja a abertura do inventário no exterior, o juízo da sucessão não poderá incluir na partilha bens situados no Brasil. Se assim o fizer, a partilha não produzirá efeitos aqui – salvo se a aplicação da legislação estrangeira resultar em partilha semelhante ao que ocorreria com a aplicação da legislação brasileira ou se resultar de acordo entre as partes[6]. Tal conduta é compreendida como uma consagração da jurisdição exclusiva, levando em consideração a pluralidade de juízos sucessórios, já que o juiz brasileiro também não poderá incluir na sucessão bens do espólio que estejam situados no exterior[7].
Em síntese:
Caso | Legislação | Competência |
Autor da herança domiciliado no Brasil com bens apenas aqui | Legislação brasileira | Tramitação do inventário no Brasil |
Autor da herança domiciliado no Brasil com bens aqui e no exterior | Legislação brasileira aos bens situados aqui | Tramitação do inventário no Brasil dos bens deixados aqui e no exterior dos demais bens |
Autor da herança domiciliado no exterior com bens situados no Brasil | Legislação estrangeira, salvo exceção | Tramitação do inventário no Brasil |
Autor da herança domiciliado no exterior com bens situados no Brasil e no exterior | Legislação estrangeira, salvo exceção | Tramitação do inventário no Brasil apenas dos bens deixados aqui |
- Como eu vou computar os bens situados no exterior para fins de legítima?
A pluralidade de competências sucessórias gera grande complicação na tramitação do processo e na divisão dos bens. Primeiro pois, a rigor, o que está fora do Brasil não se contabiliza para fins de legítima.
Ainda, há grande dificuldade caso o patrimônio deixado pelo autor da herança no exterior seja de bens imóveis. Em regra, será necessária a contratação de um profissional capacitado no local para fazer a avaliação do bem e estimativa do valor.
Para tentar dirimir essas questões, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) e alguns tribunais do País, percebendo que o patrimônio está disperso em outros lugares do mundo e que houve privilégio de certos herdeiros em detrimento de outros, violando os preceitos da legislação brasileira sucessória, concedem uma compensação, considerando os bens existentes no exterior – ainda que inviável tecnicamente.
Nessa direção, aos interessados também devem ser garantidas medidas de salvaguarda de seus direitos, por exemplo: determinação para exibição de documentos ou afins sobre bens situados no exterior da pessoa falecida e expedição de ofício para conhecer saldos bancários de contas no exterior[8].
- É possível a aplicação da lei brasileira quando mais benéfica ao herdeiro e ao cônjuge?
O Direito brasileiro consagra, na Constituição Federal e na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), o princípio da proteção à família brasileira, garantindo, assim, a aplicação da lei brasileira à sucessão dos bens situados no Brasil quando for mais benéfica do que a lei estrangeira[9].
Isso se justifica no sentido de proteger o cônjuge e os filhos brasileiros de eventuais discriminações existentes na lei estrangeira que viesse a reger a sucessão em virtude da nacionalidade o último domicílio do de cujus. Necessário ressaltar que a aplicação da lei brasileira é subsidiária, isto é, somente quando se mostrar mais favorável à lei estrangeira da sucessão.
A apuração de que a lei brasileira é mais favorável pode ser vista nos seguintes casos: (i) quando pela lei do domicílio do falecido não existe sucessão legítima, ou seja, não há uma obrigatoriedade de resguardar porcentagem dos bens para os herdeiros necessários; (ii) quando existe uma maior liberdade de testar, comprometendo, assim, a legítima; (iii) quando o cônjuge ou companheiro não é considerado herdeiro, mas seria no Brasil e; (iv) na hipótese da lei estrangeira favorecer determinados herdeiros em detrimento de outros.
- Qual é a validade dos testamentos realizados no Brasil ou no exterior?
Como anteriormente tratado em artigo que explicita as formas mais comuns de testamento, trata-se de um instrumento de manifestação de última vontade que deve atentar, rigorosamente, aos requisitos de forma do lugar em que ele for lavrado e à legislação do país de domicílio.
Desde que observado o primeiro requisito, o testamento poderá ter validade em outros países, mesmo que lavrado apenas no Brasil. Todavia, é importante ressaltar que se houver nas disposições testamentárias alguma violação de norma de ordem pública, o Brasil não determinará o cumprimento do testamento.
Diferentemente, para ter validade no Brasil o testamento feito no exterior, o testador deverá observar os requisitos de legislação previstos na Lei de Registros Públicos e nos tratados vigentes. Assim, um testamento lavrado no exterior terá de ser apostilado e acompanhado de tradução juramentada feita no território nacional. Por exemplo, um testamento feito em Portugal dispensa a tradução, mas não o apostilamento; na França, dispensa o apostilamento, mas não a tradução juramentada.
- Como são recolhidos os tributos de bens situados no exterior?
Tema extremamente sensível é o recolhimento do imposto de transmissão sobre os bens (ITCMD) situados no exterior. A Constituição da República determina que esses bens estão sujeitos à tributação. Porém, para que isso ocorra, seria necessária a criação de uma lei complementar de competência da união – que nunca foi editada.
Em razão dessa omissão, alguns estados editaram e estabeleceram nas suas próprias leis estaduais a determinação do pagamento do imposto de transmissão sobre bens situados no exterior. Alguns estados, inclusive, já decidiram em seus órgãos especiais sobre a constitucionalidade ou não desta norma. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, entende-se pela constitucionalidade da lei estadual; já no estado de São Paulo, embora haja uma decisão entendendo pela inconstitucionalidade da lei paulista, a Secretaria da Fazenda segue cobrando o imposto.
Para dirimir essa questão, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de repercussão geral (Tema 825), decidirá se leis estaduais podem estabelecer as normas gerais pertinentes à competência para instituir o ITCMD de bens situados no exterior ou na hipótese em que o doador tiver domicílio no exterior.
- Conclusão
Como abordado, o tema sobre sucessões de bens situados no exterior é bastante complexo e carece, ainda, de regulamentação quanto à incidência (ou não) de imposto de transmissão causa mortis na hipótese em que o bem for situado fora do Brasil.
Acima de tudo, é importante o acompanhamento do inventário por profissionais capacitados e especialistas na área, para que não haja violação da legítima tampouco preterição de algum dos herdeiros à sua quota-parte.
[1] Advogada. Pós-Graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Especialista em Planejamento Sucessório pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da Comissão de Direito de Família da OAB/SC. Co-autora do livro “Desafios Contemporâneos do Direito de Família e Sucessões” (2018) e de artigos.
[2] ROSA, Conrado Paulino da. Inventário e Partilha. Salvador: Editora JusPoivm, 2019, p. 355.
[3] CPC. Art. 23. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra: II – em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação do testamento particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da heranca seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional.
[4] LINDB. Art. 10. A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens.
[5] STJ, REsp n. 1362400/SP, Terceira Turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Julgado em 05/06/2020.
[6] Homologação de Sentença Estrangeira. Partilha De Bens Imóveis Situados No Brasil. Sentença Homologanda. Ratificação De Vontade Última Registrada Em Testamento. Citação Comprovada. Concordância Expressa Dos Requeridos. Ausência De Impugnação Posterior. Caráter Definitivo Do Julgado. Art. 89 Do Código De Processo Civil E Art. 12 Da Lei De Introdução Ao Código Civil. Ofensa. Inexistência. Precedentes. Pedido De Homologação Deferido. I – O requisito da citação válida ou revelia decretada restou devidamente cumprido, pois os então requeridos foram comprovadamente cientificados da ação, não promovendo impugnação, ou, sequer, comparecendo ao juízo. O próprio decisum foi intitulado ‘Sentença Declaratória à Revelia’. II – O feito caracterizou-se pela a inexistência de litígio, comprovada, primeiramente, pelo não comparecimento dos ora requeridos ao processo e não impugnação do pleito, bem como pela anuência expressa ao conteúdo do decisum e consequente não interposição de recurso face à sentença que aqui se pretende homologar. III – A anuência dos ora requeridos em relação ao decidido pela sentença homologanda, além da não interposição de recurso, confere natureza jurídica equivalente à do trânsito em julgado, para os fins perseguidos no presente feito. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. IV – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já decidiu no sentido de que compete exclusivamente à Justiça brasileira decidir sobre a partilha de bens imóveis situados no Brasil. V – Tanto a Corte Suprema quanto este Superior Tribunal de Justiça já se manifestaram pela ausência de ofensa à soberania nacional e à ordem pública na sentença estrangeira que dispõe acerca de bem localizado no território brasileiro, sobre o qual tenha havido acordo entre as partes, e que tão somente ratifica o que restou pactuado. Precedentes. VI – Na hipótese dos autos, não há que se falar em ofensa ao art. 89 do Código de Processo Civil, tampouco ao art. 12, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, posto que os bens situados no Brasil tiveram a sua transmissão ao primeiro requerente prevista no testamento deixado por Thomas B. Honsen e confirmada pela sentença homologanda, a qual tão somente ratificou a vontade última do testador, bem como a dos ora requeridos, o que ficou claramente evidenciado em razão da não impugnação ao decisum alienígena. VII – Pedido de homologação deferido”. (STJ – SEC: 1304 US 2005/0153253-6, Corte Especial, Relator Ministro Gilson Dipp, Julgado em 19/12/2007).
SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. DIVÓRCIO. PARTILHA DE BENS. IMÓVEL SITUADO NO BRASIL. ACORDO ENTRE OS EX-CÔNJUGES HOMOLOGADO NO EXTERIOR. REQUISITOS PARA HOMOLOGAÇÃO DA SENTENÇA ESTRANGEIRA. PREENCHIMENTO. 1. É devida a homologação da sentença estrangeira de divórcio, porquanto foram atendidos os requisitos previstos no art. 15 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro e nos arts. 216-A a 216-N do RISTJ, bem como constatada a ausência de ofensa à soberania nacional, à ordem pública e à dignidade da pessoa humana (LINDB, art. 17; RISTJ, art. 216-F). 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, não obstante o disposto no art. 89, I, do CPC e no art. 12, § 1º, da LINDB, autoriza a homologação de sentença estrangeira que, decretando o divórcio, convalida acordo celebrado pelos ex-cônjuges quanto à partilha de bens imóveis situados no Brasil, que não viole as regras de direito interno brasileiro. 3. Defere-se o pedido de homologação da sentença estrangeira. (STJ – SEC: 8106 EX 2014/0031201-4, Corte Especial, Relator: Ministro Raul Araújo, Data de Julgamento: 03/06/2015)
[7] TEIXEIRA, Daniela Chaves (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 119.
[8] Apelação cível. Ação de exibição de documentos. Requerente que teve reconhecida judicialmente sua união estável com o de cujus, cujo espólio é integrado, dentre outros bens, por investimentos em sociedade sediada na Holanda, denominada Genesis Engineering C. V. Alegação da autora de que o réu, filho do autor da herança, vem ocultando informações e documentos sobre a empresa Genesis, impossibilitando a realização da sobrepartilha. Sentença que rejeitou as preliminares de afastamento da jurisdição brasileira e de ilegitimidade ativa ad causam. No mérito, julgou procedente o pedido para determinar a exibição dos documentos apontados pela autora, no prazo de 30 dias, sob pena de multa diária no valor de r$ 500,00. Irresignação do réu insistindo no afastamento da jurisdição brasileira. Rejeição. Incidência do art. 21, i, do CPC/15. Réu domiciliado no brasil. Preliminar de cerceamento de defesa que se afasta. Prova coligida aos autos que se revela suficiente ao deslinde da questão, não se exigindo a produção de outras provas além das já apresentadas pelas partes. Mérito. Apelante detentor da integralidade dos ativos da sociedade holandesa Genesis. Posição que o obriga a apresentar a documentação solicitada. Art. 399, I, CPC. Desprovimento do recurso”. (TJRJ, Apelação Cível nº 0432411-67.2016.8.19.0001, Segunda Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Luiz roldão de Freitas Gomes Filho, julgado em 18.04.2018).
[9] Ibidem.
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Robôs proferirem decisões administrativas é decerto inovador. A necessidade de motivação, não.
Nesta terça-feira (1º de setembro de 2020), Eduardo Schiefler e Matheus Dezan publicaram o artigo “A decisão administrativa robótica e o dever de motivação” no Portal Jurídico JOTA, o qual pode ser visualizado neste link.
O artigo também contou com a participação do Professor Fabiano Hartmann, da Universidade de Brasília (UnB), e é resultado das pesquisas do grupo Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB), liderado pelo Prof. Fabiano.
Em razão da relevância do tema, vamos republicá-lo na íntegra, com a autorização dos autores:
A decisão administrativa robótica e o dever de motivação
Por Eduardo Schiefler, Fabiano Hartmann Peixoto e Matheus Lopes Dezan
A tecnologia está transformando a sociedade e isso não é segredo para ninguém.
A despeito de a prosperidade tecnológica não se desenvolver de modo uniforme ou impactar de forma heterogênea todos os campos de vida humana, havendo rotinas mais ou menos impactadas pela incidência de ferramentas tecnológico-operacionais, o fato inconteste é que há muito tempo a aplicação massiva das tecnologias no cotidiano dos seres humanos já deixou de ser apenas uma hipótese para se tornar uma questão de quando ou em que grau seremos impactados.
E o direito administrativo não foi poupado. Não havia dúvidas que a tecnologia se desenvolveria a ponto de permear o regime jurídico administrativo. A questão é que esse campo, costumeiramente tido por imutável e perene, em razão de sua principiologia própria, está sendo bombardeado por constantes transformações que almejam (e com razão) trazer mais eficiência e controle à Administração Pública.
Por conta desse cenário, vemos com naturalidade e animação as discussões cada vez mais frequentes sobre o uso de ferramentas tecnológicas pelo poder público. Não se surpreende, portanto, que elas tenham sido levadas à I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, ocorrida entre os dias 3 e 7 de agosto de 2020, com o objetivo de discutir posições interpretativas sobre as normas jurídicas (lei, jurisprudência e doutrina) e, ao final, produzir e publicar enunciados[1].
Na ocasião, após a aprovação na comissão temática, a reunião Plenária da I Jornada de Direito Administrativo votou e aprovou o Enunciado 12, segundo o qual “A decisão administrativa robótica deve ser suficientemente motivada, sendo a sua opacidade motivo de invalidação.”.
Fazendo uma reflexão sobre o texto aprovado, verifica-se que, embora o tema de decisões administrativas robóticas seja realmente inovador — e enfrente, evidentemente, críticas por seu caráter disruptivo —, o Enunciado 12 não inova no campo do direito administrativo.
Explica-se: a questão de robôs proferirem decisões administrativas é decerto inovadora. A necessidade de que as decisões administrativas sejam motivadas, todavia, não o é. E, mais do que isso, não basta que sejam motivadas as decisões administrativas, pois importa que sejam suficientemente motivadas — e isso não é, repita-se, novidade.
Trata-se de consequência direta do arcabouço jurídico-constitucional trazido à ordem normativa brasileira pela Constituição Federal de 1988, que transfigurou a relação público-privada e que conferiu ampla gama de novos direitos aos cidadãos e de deveres à administração pública brasileira. É dizer: a Constituição modificou a maneira com que os indivíduos particulares se relacionam com o poder público, assim como a tecnologia também o pretende fazer.
É nesse exato sentido que se entende que o Enunciado 12 não inova na ciência do direito administrativo:
Seja uma decisão administrativa manualmente redigida, seja uma decisão eletrônica ou, ainda, seja uma decisão robótica, elas devem apresentar motivação suficiente, sem escusas para o contrário, sob pena de serem inválidas perante as prescrições do ordenamento jurídico brasileiro.
Isso porque a motivação das decisões administrativas é requisito formalístico de validade dos atos administrativos decisórios[2], dado que o regramento dos atos da administração pública (imperativo fortalecido pela nova sistemática de direito administrativo inaugurada pela ordem constitucional de 1988) exige que a gestão da res publica ocorra de modo responsivo e transparente — o que, de certo modo, é favorecido pela adoção cada vez mais frequente de processos administrativos eletrônicos[3] e de sistemas de inteligência artificial pela administração. Nesse comento, o registro formal dos motivos de fato e de direito que orientaram o processo de tomada de decisão é medida que se impõe, para que seja desimpedido, como deve ser, o controle jurídico e social sobre os atos administrativos[4].
Ademais, a distintiva importância conferida à motivação das decisões administrativas para a ordem jurídica contemporânea pode ser adequadamente exemplificada pela construção doutrinária da teoria dos motivos determinantes, a qual preceitua que a validade das decisões administrativas guarda vínculo sincrético com os pressupostos objetivos que as constituem. Significa dizer que a decisão administrativa, ainda que discricionária, deve operar sobre motivos verdadeiros, existentes e corretamente qualificados, a fim de produzir efeitos válidos no mundo jurídico. Revelada a falsidade, a inexistência ou a inadequada qualificação dos motivos de fato expostos pelo administrador, de modo que não haja nexo lógico entre esses elementos fáticos e os motivos legais elencados, far-se-á inválido o ato administrativo.
Nada obstante, a instrução veiculada pelo Enunciado 12 aprovado na I Jornada de Direito Administrativo evidencia a imbricação entre requisitos de ordens jurídica e técnica impostos às decisões administrativas robóticas. Importa, dessa forma, que o sistema decisório automatizado seja apto a operar com linguagem natural[5] e com a logicidade do sistema de normas positivadas, de modo tal que dê forma à exposição satisfatória das razões de fato e de direito que guiaram o processo de tomada de decisão.
Trata-se de meio de preconizar a transparência das decisões administrativas robóticas como que vinculada à construção automatizada da forma de apresentação do conteúdo decisório, para que seja válido o ato administrativo operado de forma tão singular e, por vezes, epistemologicamente opaco. É por essa razão que a transparência das decisões administrativas robóticas depende de que o sistema de explicação de critérios decisórios produza resultados satisfatórios à cognição não somente do teor da decisão, mas dos fundamentos fáticos, jurídicos e tecnológicos que a compõe.
Inclusive, esse é o mesmo raciocínio que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) desenvolve ao tratar das decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais (artigo 20, § 1º), aqui aplicada por analogia. Na prática, a LGPD garante ao titular dos dados o acesso a “informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada”.
O raciocínio, como dito, é o mesmo. Mas no campo das decisões administrativas o imperativo de se ter motivação expressa e correlacionada com a realidade dos fatos se impõe pela natureza peculiar da atuação administrativa, que tem por objetivo precípuo a satisfação dos direitos fundamentais dos cidadãos. É dizer, a própria razão de existir da administração pública depende do atendimento aos direitos dos indivíduos. É isto que confere legitimidade à sua atuação e é, assim, que o dever de motivação se torna fundamental para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Portanto, ainda que não promova inovações em matéria de direito administrativo (uma vez que todas as espécies de decisões administrativas exigem motivação), o Enunciado 12 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal é uma novidade muito bem-vinda, pois ressalta a importância de discutir a inserção da tecnologia na administração pública, que é inevitável, assim como os seus impactos na relação público-privada e nos direitos dos cidadãos.
[1] Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2020/07-julho/i-jornada-de-direito-administrativo-sera-realizada-em-ambiente-virtual-entre-os-dias-3-e-7-de-agosto>. Acesso em 15 de agosto de 2020.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 408.
[3] SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho. Processo administrativo eletrônico. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 43.
[4] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 175.
[5] HARTMANN PEIXOTO, Fabiano; MARTINS DA SILVA, Roberta Zumblick. Inteligência artificial e direito. 1. ed. Curitiba: Alteridade Editora, 2019. p. 82.
EDUARDO SCHIEFLER – Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB). Autor do livro “Processo Administrativo Eletrônico” (2019). E-mail: [email protected]
FABIANO HARTMANN PEIXOTO – Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito e do PPGD-UnB. Líder do Grupo de Pesquisa DR.IA. Coordenador do Projeto Victor (IA-STF) e Projeto Mandamus (IA-TJRR)
MATHEUS LOPES DEZAN – Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB). Integrante do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN). Integrante do Grupo de Estudos em Bioética e Biodireito (Bioethik/UFES). Membro do Grupo de Pesquisa em Análise Econômica do Direito (GEDE/UnB-IDP). E-mail: [email protected]
Read MoreO descuido nessas questões pode levar a uma série de problemas práticos, que vão desde o ajuizamento de processos trabalhistas até a própria diminuição da produtividade da empresa
Victoria Magnani[1]
Velha conhecida dos trabalhadores e empresas, a prática das “horas extras” é uma das situações mais comuns que ocorrem no contexto das relações trabalhistas em geral. Apesar de ser um tema conhecido, a possibilidade de se realizar a compensação de horários ou a existência de “banco de horas” pode acabar gerando dúvidas na hora de fazer a distinção entre aquelas horas passíveis de compensação e as horas extras propriamente ditas.
Algumas dúvidas que podem surgir nesse sentido são:
- Quando é devido o pagamento das horas extras?
- Em que situações é possível realizar a compensação de jornada?
- O que é e quando pode ser utilizado o “banco de horas”?
As perguntas são pertinentes, pois o descuido nessas questões pode levar a uma série de problemas práticos, que vão desde o ajuizamento de processos trabalhistas até a própria diminuição da produtividade da empresa, uma vez que jornadas de trabalho extenuantes podem gerar desmotivação e uma baixa no rendimento dos colaboradores.
Neste texto, serão abordados os conceitos e as principais diferenças entre as horas extras, o acordo de compensação de jornada e o banco de horas, bem como as situações em que é possível realizar os acordos de compensação e de que forma isso deve ser feito.
PRIMEIRO: O QUE SÃO AS “HORAS EXTRAS”?
As horas extras, também conhecidas como horas suplementares ou extraordinárias, são aquelas que ultrapassam a jornada normal do empregado. A jornada normal, por sua vez, é aquela prevista na lei, no acordo ou convenção coletiva de trabalho (se houver) ou no próprio contrato de trabalho do empregado. Quando é excedida a duração normal da jornada, o empregado tem direito, a princípio, à remuneração das horas extras, que serão acrescidas de um percentual mínimo de 50% sobre o valor da “hora normal” de trabalho.
A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) permite a realização de horas extras em três casos:
- Quando há acordo de prorrogação;
- Quando existe um sistema de compensação; e
- Na presença de uma “necessidade imperiosa”, como, por exemplo, uma situação de força maior ou a conclusão de serviços inadiáveis.
Neste artigo, serão abordados os dois primeiros casos, que dizem respeito ao acordo de prorrogação de horas de trabalho e à compensação de horários.
NO QUE CONSISTE O ACORDO DE PRORROGAÇÃO DE HORAS DE TRABALHO?
O acordo de prorrogação de horas extras é o ajuste firmado entre empregado e empregador no sentido de possibilitar a extensão da duração diária do trabalho em virtude de circunstâncias excepcionais. Esse “ajuste” pode se dar por meio de acordo individual, que pode ser escrito, verbal ou até mesmo tácito; ou por acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Esse acordo de prorrogação tem como consequência a produção das horas extras propriamente ditas, limitadas ao número de 2 horas suplementares por dia, que deverão ser acrescidas pelo percentual mínimo de 50% sobre a remuneração da hora normal[2]. O percentual de 50% pode ser aumentado por contrato de trabalho individual ou coletivo, mas nunca diminuído!
A CLT estabelece, porém, que não será devido o adicional de horas extras quando tiver sido instituído entre as partes um acordo de compensação de jornada[3]. Esse tipo de compensação é bastante visto na prática, mas a sua realização sem que sejam observadas as regras para a instituição de acordo de compensação de jornada pode gerar diversos problemas para as empresas, inclusive demandas trabalhistas.
ENTÃO, COMO INSTITUIR A COMPENSAÇÃO DE JORNADA?
A Constituição Federal[4] autoriza expressamente a compensação de jornada, que consiste na distribuição das horas trabalhadas em um dia pelos demais dias da semana, mês ou ano, a depender do tipo de acordo. Assim, o adicional de horas extras não será devido quando o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia.
A compensação de jornada pode ser ajustada por acordo coletivo, convenção coletiva ou acordo individual escrito, desde que não haja, no caso deste último, norma coletiva que proíba a sua instituição. Nesse sentido, destaca-se que a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) trouxe a possibilidade de se estabelecer regime de compensação de jornada por meio acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês[5].
Apesar de não haver previsão legal expressa quanto ao limite máximo de horas por jornada para fins de compensação, os tribunais brasileiros possuem entendimento no sentido de limitar as compensações até a carga horária máxima semanal, que é de 44 horas por semana (art. 7º, inciso XIII da Constituição Federal).
O acordo de prorrogação de jornada produz as chamadas horas complementares, que são horas meramente compensatórias, pois serão realocadas conforme a programação do empregado e, por isso, não serão acrescidas de qualquer adicional.
E O “BANCO DE HORAS”?
O “banco de horas” é, na verdade, uma espécie de compensação de jornada, que possui sistema próprio previsto na CLT[6]. O banco de horas autoriza a prestação de jornada extraordinária até o limite de 10 horas diárias, sem que seja devido adicional a título de horas extras. As horas excedentes da jornada normal são, então, lançadas num “banco”, e ali serão acumuladas com o fim de, no futuro, serem trocadas por folgas compensatórias.
É preciso atentar, contudo, para os limites estabelecidos para o banco de horas: segundo as regras da CLT, o excesso de horas em um dia deverá ser compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não seja extrapolada, no período de 1 ano, a soma das jornadas semanais previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de 10 horas diárias. Entende-se como “soma das jornadas semanais previstas” a carga horária máxima semanal, prevista em lei ou no contrato, multiplicada pelo número de semanas existentes no ano.
A instituição de banco de horas pode ser ajustada por meio de acordo ou convenção coletiva de trabalho, hipótese na qual a compensação deverá ocorrer no período de até 1 ano; ou por acordo individual escrito, cujo prazo para compensação passa a ser de 6 meses (nesse caso, a acumulação de horas fica limitada, também, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas para 6 meses).
É importante lembrar, ainda, que as horas trabalhadas que excederem o limite máximo de 10 horas diárias não podem integrar o banco de horas, devendo ser remuneradas como horas extras, com o respectivo adicional!
O quadro comparativo abaixo apresenta as principais diferenças entre a prorrogação de horas de trabalho (ou horas extras propriamente ditas), a compensação de jornada e o banco de horas:
Prorrogação de horas | Compensação de jornada | Banco de horas | |
Conceito
|
Ajuste que permite a extensão da duração diária do trabalho |
Ajuste que permite que o excesso de horas em determinado dia seja compensado pela diminuição de horas em outro
|
Espécie de compensação de jornada na qual as horas excedentes da jornada normal são lançadas no “banco” e acumuladas para serem trocadas por folgas eventuais |
Previsão legal |
Art. 59 da CLT; art. 7º, XVI da Constituição | Art. 7º, XIII da Constituição; art. 59, § 6º da CLT | Art. 59, §§ 2º e 5º da CLT |
Tipo de acordo
|
Acordo individual (escrito, verbal ou tácito), acordo coletivo ou convenção coletiva |
Acordo coletivo ou convenção coletiva. No acordo individual (escrito ou tácito) a compensação deve se dar no mesmo mês! | Acordo coletivo ou convenção coletiva (até 1 ano para compensar); acordo individual escrito (até 6 meses) |
Consequências
|
Produz horas suplementares (“horas extras”), que deverão ser acrescidas de pelo menos 50% sobre o valor da hora normal | Produz horas complementares, que serão realocadas → não é devido qualquer adicional | Produz horas complementares que serão lançadas no banco de horas |
Limites
|
Até 2 horas extras por dia, totalizando 10 horas diárias |
Não pode exceder a carga horária máxima semanal (44 horas) |
Não pode ultrapassar, no período de 1 ano ou 6 meses (a depender do acordo), a soma das jornadas semanais previstas, respeitado o limite máximo de 10 horas diárias |
[1] Victoria Magnani – Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Bolsista voluntária do Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC UFSC no campo do Direito Ambiental do Trabalho. Membro do Grupo de Pesquisa em Meio Ambiente, Trabalho e Sustentabilidade – GP METAS.
[2] Art. 59 da CLT e artigo 7º, inciso XVI da Constituição Federal.
[3] Art. 59, § 2º da CLT.
[4] Art. 7º, inciso XIII da Constituição Federal.
[5] Art. 59, § 6º da CLT.
[6] Art. 59, §§ 2º e 5º da CLT.
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