O Superior Tribunal de Justiça deve uniformizar o entendimento sobre o tema, que será julgado sob o rito dos recursos repetitivos.
A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou os Recursos Especiais 1.896.526/DF e 1.895.486/DF, de relatoria da Ministra Regina Helena Costa, no intuito de uniformizar entendimento acerca da necessidade de se comprovar o pagamento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) como requisito para a homologação da partilha.
Afetar um processo significa dizer que ele foi encaminhado para o julgamento sob o rito dos recursos repetitivos[1]. A necessidade desse procedimento está na volumosa demanda de processos com controvérsias do mesmo tema nos tribunais brasileiros. A partir disso, todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, no território nacional, que versem acerca do Tema Repetitivo 1.074[2] do STJ ficarão suspensos até o julgamento dos recursos.
Ressalta-se que a Ministra Relatora, no acórdão de afetação dos recursos, sublinhou que a 1ª e a 2ª Turmas do STJ possuem o entendimento pacífico da desnecessidade de comprovação da quitação do ITCMD como condição para homologar a partilha ou expedir a carta de adjudicação. Contudo, ainda que este entendimento seja uniforme, existem muitas decisões a respeito dessa controvérsia. Por exemplo, a Ministra Relatora destaca que
“[…] Além do Distrito Federal, origem do presente recurso, há, igualmente, demandas envolvendo a matéria em Sergipe (REsp n. 1.828.928/SE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 21.02.2020), Minas Gerais (REsp n. 1.864.440/MG, de minha relatoria, DJe 23.10.2019), Mato Grosso (REsp n. 1.702.825/MT, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 11.12.2018) e São Paulo (REsp n. 1.405.564/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 29.06.2018)[3].
Após o julgamento destes recursos, as soluções jurídicas que envolvem este tema se tornarão mais ágeis, uma vez que haverá a uniformização do tema. Os acórdãos podem ser conferidos aqui: REsp 1.896.526/DF e REsp 1.895.486/DF.
[1] Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.
1º O presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso.
[…]
5º O relator em tribunal superior também poderá selecionar 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia para julgamento da questão de direito independentemente da iniciativa do presidente ou do vice-presidente do tribunal de origem.
[2] “Necessidade de se comprovar, no arrolamento sumário, o pagamento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) como condição para a homologação da partilha ou expedição da carta de adjudicação, à luz dos artigos 192 do CTN e 659, parágrafo 2º, do CPC/2015”.
[3] STJ, REsp – Recurso Especial n. 1.896.526/DF, Ministra Relatora, 1ª Seção, Julgamento: 17/11/2020.
Read MoreA solução jurídica levará em consideração a propriedade exclusiva do bem imóvel e a presunção de esforço comum do casal.
Maria Luisa Machado Porath[1]
Imagine o seguinte cenário: você, solteiro, comprou um bem imóvel e o financiou. Certo tempo depois, estabelece união estável ou casa com alguém. Por algum motivo, a relação se rompe. Já se perguntou o que acontecerá com o bem imóvel financiado e que foi adquirido de forma exclusiva por você antes do casamento ou da união estável?
Esse é um questionamento válido e extremamente comum. Através de uma leitura superficial, pode-se chegar ao seguinte pensamento: se o bem imóvel financiado foi comprado antes da constância do casamento ou da união estável e o regime pactuado foi o de comunhão parcial de bens, o ex-cônjuge ou o ex-companheiro não possui direito sobre ele. Contudo, como veremos a seguir, não podemos seguir por essa linha de raciocínio. Assim, necessário se faz uma análise mais detalhada sobre o assunto.
A (In)Comunicabilidade dos Bens no Regime de Comunhão Parcial de Bens
De forma geral, no regime de comunhão parcial de bens, ocorre a comunicabilidade daqueles bens que foram adquiridos de forma onerosa, por um cônjuge ou pelos dois, na constância da união estável ou do casamento[2]. Essa questão possui fundamento na presunção de esforço comum do casal: de forma financeira ou emocional, presume-se ajuda mútua.
Isso significa dizer que, em regra, tudo o que for adquirido antes da conjugalidade se mantém como patrimônio particular. Por esse motivo, muitas pessoas possuem aquele pensamento externalizado na introdução.
No entanto, tratando-se de bem imóvel financiado, a situação muda um pouco de cenário. Isso porque, apesar do imóvel ter sido adquirido de forma exclusiva por um dos cônjuges antes da conjugalidade, o vencimento e o adimplemento das parcelas adentram na relação conjugal e impactam a vida do casal. E é nesse ponto que precisamos resgatar a presunção de esforço comum ao longo da relação.
Nesse sentido, qual a solução jurídica para o caso?
A solução jurídica levará em consideração tanto a propriedade exclusiva do bem imóvel – nesse artigo, não se discute se a propriedade de bem imóvel financiado é de fato do comprador – e a presunção de esforço comum do casal[3]. Regra geral, os Tribunais vêm entendendo do mesmo modo que Maria Berenice Dias (2020, p. 729), a qual afirma que
Adquirido bem mediante financiamento é preciso identificar o número de prestações quitadas durante a vigência da união. É esta a fração do bem a ser partilhado. Não se leva em conta o montante desembolsado, mas a percentagem do bem adquirido. Ficando um com o bem, o outro deve perceber o valor correspondente à metade da fração que foi paga durante o período de convívio, proporcionalmente ao número de parcelas pagas[4].
Exemplificando: Maria, solteira, adquiriu um imóvel de forma exclusiva em 2010 e realizou um financiamento de 15 anos. Em 2014, casou com João, sob o regime de comunhão parcial de bens. Em 2020, o casal se divorciou. Como se dará a partilha do imóvel financiado?
Solução de acordo com o entendimento adotado acima: De início, cabe ressaltar que a propriedade do bem imóvel permanece com Maria, uma vez que adquiriu-o de forma exclusiva. Quanto à partilha, deve-se distinguir as parcelas adimplidas antes e durante o casamento. Aquelas que foram adimplidas na constância do matrimônio devem ser divididas em 50%, correspondente à fração de cada ex-cônjuge. Assim, Maria ficará com a propriedade do imóvel e precisará indenizar João em 50% das parcelas adimplidas ao longo do casamento, devido à presunção do esforço comum do casal.
No entanto, salienta-se que esse é o entendimento majoritário; ou seja, há posições contrárias. Até o momento, o artigo analisou a questão sob o parâmetro de uma pessoa solteira ter adquirido um imóvel financiado antes do matrimônio ou da união estável. Entretanto, e se o casal comprou um imóvel mediante financiamento na constância da relação? Nesse caso, ainda que o imóvel financiado esteja no nome de um dos ex-cônjuges/ex-companheiros, ou que a contribuição financeira para essa aquisição tenha sido desigual, o imóvel será partilhado em 50% para cada ex-cônjuge ou ex-companheiro, conforme já fundamentado no tópico anterior[5]; ainda, os dois devem partilhar as parcelas pendentes, porque as dívidas também são comunicáveis[6].
Conclusão
Conforme aponta Maria Berenice Dias e decisões majoritárias de Tribunais, a partilha de imóvel financiado adquirido antes do casamento ou da união estável, sob o regime de comunhão parcial de bens, incide sobre as parcelas quitadas na constância do casamento ou da união estável. A solução jurídica, de forma geral, é que o proprietário do imóvel necessita indenizar o ex-cônjuge ou o ex-companheiro em 50% do que foi pago ao longo da relação.
Já na situação em que o imóvel financiado foi adquirido durante a relação matrimonial ou de união estável, as dívidas decorrentes das parcelas vincendas devem também ser partilhadas em 50% para cada ex-cônjuge ou ex-companheiro.
Frisa-se que essa explanação não substitui a importância de consultar um advogado ou uma advogada especialista em direito de família e sucessões. O presente artigo é apenas uma breve e simples contextualização do caso, a fim de responder questionamentos mais globais. Portanto, se você se encontra numa situação parecida ou deseja evitar futuras complicações, é recomendável realizar uma consulta jurídica. Só assim o seu caso poderá ser solucionado da maneira mais específica possível.
[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciada e Bacharela em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) — 2015. Estagiária na Schiefler Advocacia. E-mail: malu.mporath@gmail.com
[2] Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
[3] FAMÍLIA. AÇÃO DE DIVÓRCIO. Sentença que julgou procedente a ação e improcedente a reconvenção. Irresignação da ré. Alegação de que as partes viveram em união estável por quatro anos antes de se casarem. Requisitos necessários ao reconhecimento da união estável não comprovados. Partilha. Casamento celebrado no regime da comunhão parcial de bens. Imóvel adquirido pelo autor antes do casamento, mas cujo preço foi pago de forma parcelada. Direito da ré à partilha do valor correspondente às parcelas pagas durante a constância do casamento e até o momento em que a ré deixou o lar conjugal, por constituir patrimônio comum (art. 1.658 do CC). Sentença reformada em parte. Sucumbência recíproca caracterizada, mais intensa da ré. Recurso parcialmente provido. (TJ-SP – AC: 10004448620168260153 SP 1000444-86.2016.8.26.0153, Relator: Alexandre Marcondes, Data de Julgamento: 28/10/2020, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/10/2020)
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 13ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador – Bahia: Editora JusPodivm, 2020, p. 729.
[5] Art. 1.660. Entram na comunhão: I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges;
[6] Art. 1.663. A administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges.
§ 1 o As dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido.
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O entendimento foi fixado em tese de repercussão geral (RE 1.045.273/SE).
Por 6 votos a 5, ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas.
Os ministros analisaram um caso em que um homem, em união estável, pleiteou o reconhecimento de uma segunda união estável concomitante, com a consequente divisão dos valores decorrentes da pensão por morte.
A tese de repercussão geral aprovada pelo Plenário Virtual do STF (RE 1.045.273/SE) estabeleceu que “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, parágrafo 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive, para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional”.
O Relator, ministro Alexandre de Moraes, em seu voto destacou que “em que pesem os avanços na dinâmica e na forma do tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares, motivos pelo afeto, pela compreensão das diferenças, respeito mútuo, busca da felicidade e liberdade individual de cada qual dos membros, entre outros predicados, que regem inclusive os que vivem sob a égide do casamento e da união estável, subsiste em nosso ordenamento jurídico constitucional ideais monogâmicos”.
O ministro Edson Fachin abriu a divergência e foi seguido pelos ministros Roberto Barroso, Rosa Weber, Carmen Lúcia e Marco Aurélio. No seu voto, entendeu ser possível o reconhecimento de efeitos previdenciários póstumos a uniões estáveis concomitantes, desde que presente o requisito da boa-fé objetiva.
Os votos já estão disponíveis e podem ser conferidos através deste link.
Read MoreA empresa estatal é uma pessoa jurídica de direito privado, que precisa atender à finalidade pública para a qual foi criada, ao mesmo tempo em que também precisa acompanhar os padrões de eficiência impostos pelo mercado.
Enunciado 8 – O exercício da função social das empresas estatais é condicionado ao atendimento da sua finalidade pública específica e deve levar em conta os padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado, conforme delimitações e orientações dos §§1º a 3º do art. 27 da Lei 13.303/2016.
As empresas denominadas estatais, abrangidas nesse conceito as empresas públicas e as sociedades de economia mista, assim como as suas subsidiárias, exigem, para sua criação, autorização legislativa, nos termos do artigo 37, inciso XIX, da Constituição de 1988.
Para que seja viabilizada a criação de uma empresa estatal, para além de lei específica que a autorize, a Constituição de 1988 determina que a referida exploração direta da atividade econômica em questão por parte do Estado deverá ser necessária aos imperativos da segurança nacional ou atender a relevante interesse coletivo[1], motivo pelo qual o artigo 173, § 1º, inciso I, exige que o estatuto jurídico da estatal disponha sobre “sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade”.
A Lei nº 13.303/2016 (conhecida como “Lei das Estatais”), por sua vez, em seu artigo 2º, § 1º, reforça a necessidade de que haja, na lei que autoriza a criação de uma determinada estatal, a indicação clara do relevante interesse coletivo ou do imperativo de segurança nacional que se insere entre os seus fins institucionais, sendo precisamente essa a conceituação de “função social” trazida pelo diploma legal no caput do artigo 27.
Contudo, cumpre destacar que as estatais não exercem função social em razão da Lei nº 13.303/2016, mas, sim, das próprias particularidades que envolvem esse grupo de entidades da Administração Pública indireta. As empresas estatais devem estar voltadas à consecução da finalidade social relevante e ao atendimento da função social, uma vez que são esses objetivos que levaram o Estado a exercer atividade econômica de forma direta em primeiro lugar[2].
A Lei das Estatais, portanto, ao apresentar um conceito preciso para a “função social”, não fez mais do que explicitar de forma inequívoca uma concepção que já estava presente no texto constitucional. Da leitura dos dispositivos citados, observa-se que a Lei nº 13.303/2016 está em perfeita consonância com o disposto na Constituição Federal acerca da função social das estatais:
Lei nº 13.303/2016
Art. 27. A empresa pública e a sociedade de economia mista terão a função social de realização do interesse coletivo ou de atendimento a imperativo da segurança nacional expressa no instrumento de autorização legal para a sua criação.
Constituição Federal
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
Além disso, o artigo 27 da Lei nº 13.303/2016 traz, em seus parágrafos[3], orientações gerais sobre como a função social das empresas estatais deve ser atingida. Nos termos do § 1º, a realização do interesse coletivo a que se dedica a estatal deverá visar ao alcance do bem-estar econômico e à alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela empresa, orientando-se de maneira economicamente justificada.
O § 2º do artigo 27, por sua vez, impõe às estatais o dever de adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam, enquanto o § 3º autoriza a sua atuação em atividades culturais, sociais, esportivas, educacionais e de inovação tecnológica, desde que comprovadamente vinculadas ao fortalecimento de sua marca e observando, no que couber, as normas de licitação e contratos da Lei nº 13.303/2016.
Todas as orientações trazidas pelos parágrafos, contudo, devem respeitar a delimitação do caput do artigo 27: o interesse público que deu origem à estatal.
Nesse sentido, ressalta-se que, ao mesmo tempo em que as empresas estatais estão condicionadas pela sua função social, havendo subordinação desta à finalidade pública que ensejou a criação da estatal, não é possível ampliar ou estender de forma irrestrita a função social para abranger objetivos públicos distintos daqueles que justificaram a própria constituição da empresa pública ou sociedade de economia mista em questão.
Explica-se: a empresa estatal está integralmente condicionada à sua função social. Ao mesmo tempo em que não é possível ignorar ou desviar-se da função social imposta pela lei que autorizou a criação da estatal, tampouco é possível que a função social extrapole o objetivo ou a finalidade pública que ensejou a criação dessa empresa.
Ademais, é preciso ter em conta que a adstrição da atuação das estatais à sua função social não decorre apenas do disposto no artigo 27 da Lei nº 13.303/2016, mas, antes, deriva da própria natureza da empresa estatal. Sendo necessário a presença de interesse público relevante para permitir ao Estado o exercício da atividade econômica de forma direta, o atendimento à função social é imperioso para que seja possível concretizar esse interesse. Ao mesmo tempo, não é possível expandir a função social da empresa estatal de forma a extrapolar o objetivo ou a finalidade pública que ensejou sua criação, visto que seria incompatível com o texto constitucional uma ampliação irrestrita da função social, que abrangesse objetivos públicos distintos daqueles que motivaram a criação da empresa estatal.
Dessa forma, observa-se que, mesmo sendo a empresa estatal uma pessoa jurídica de direito privado (e, portanto, pertencente ao mercado), existem circunstâncias que a diferenciam das demais. A estatal possui finalidades públicas específicas previstas na lei que autorizou a sua criação, as quais devem ser atendidas, não sendo possível ter o seu escopo ampliado para além da finalidade que motivou a sua criação.
Ou seja, a empresa estatal é uma pessoa jurídica de direito privado, que precisa atender à finalidade pública para a qual foi criada, ao mesmo tempo em que, evidentemente, também precisa acompanhar os padrões de eficiência impostos pelo mercado. A empresa estatal, portanto, é uma organização que é impactada, concomitantemente, pelo Direito Público e pelo Direito Privado.
É nessa linha que se insere o Enunciado 8, aprovado na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, que dispõe o seguinte:
Enunciado 8
O exercício da função social das empresas estatais é condicionado ao atendimento da sua finalidade pública específica e deve levar em conta os padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado, conforme delimitações e orientações dos §§1º a 3º do art. 27 da Lei 13.303/2016.
O enunciado aprovado, que traduz precisamente o objetivo e alcance da função social das empresas estatais, reforça o conteúdo dos dispositivos legais presentes na Constituição Federal e na chamada Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) que versam sobre o tema. Concomitantemente, destaca-se que, ainda que haja uma finalidade pública específica, inerente à condição de estatal, estas empresas não podem furtar-se do atendimento aos padrões de eficiência exigidos das sociedades empresárias atuantes no mercado.
Conclui-se, assim, que as empresas estatais devem ter sua atuação sempre pautada pela função social definida em seus estatutos, bem como pela finalidade pública que lhes deu origem, sendo por esta limitadas e orientadas, mas sem esquecer, também, dos padrões de eficiência exigidos pelo mercado – os quais, naturalmente, fazem parte da rotina de uma empresa privada.
[1] Art. 173, caput, da Constituição de 1988.
[2] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 553.
[3] Art. 27. […] § 1º A realização do interesse coletivo de que trata este artigo deverá ser orientada para o alcance do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela empresa pública e pela sociedade de economia mista, bem como para o seguinte:
I – ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e serviços da empresa pública ou da sociedade de economia mista;
II – desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira para produção e oferta de produtos e serviços da empresa pública ou da sociedade de economia mista, sempre de maneira economicamente justificada.
§ 2º A empresa pública e a sociedade de economia mista deverão, nos termos da lei, adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam.
Read MoreRefletir sobre os impactos dos seus investimentos no regime de bens adotado é de suma importância, porque impacta, inclusive, em seus herdeiros necessários num futuro direito sucessório.
Maria Luisa Machado Porath[1]
Você já pensou qual será a destinação dos seus investimentos em caso de divórcio ou falecimento? A depender do caminho seguido, as consequências serão diversas. Ainda que não almeje o rompimento conjugal, refletir sobre os impactos dos seus investimentos no regime de bens adotado – no caso do presente artigo, regime de comunhão parcial de bens – é de suma importância, porque impacta, inclusive, em seus herdeiros necessários num futuro direito sucessório.
Para efeitos deste artigo, o que são considerados investimentos?
De forma simplificada, é considerado investimento o capital aplicado com o intuito de obter rendimentos a um certo prazo. Há múltiplas possibilidades de investimentos, por exemplo:
- renda fixa: tesouro direto, CDB, poupança…;
- renda variável: ações, fundos de investimentos…;
- previdência privada aberta: ofertada a qualquer pessoa, como VGBL e o PGBL;
- previdência privada fechada (fundos de pensão): ofertada a uma categoria específica ou a funcionários de uma empresa;
Destaca-se que o artigo não tem o condão de conceituar a fundo os tipos de investimentos, uma vez que o foco se trata dos seus impactos jurídicos no âmbito do regime de comunhão parcial de bens.
Reflexos Jurídicos dos Investimentos no Regime de Comunhão Parcial de Bens
A comunicabilidade dos bens no regime de comunhão parcial de bens ocorre, em regra, apenas naqueles adquiridos de forma onerosa, por um ou pelos dois, na constância da união estável ou do casamento[2]. Ou seja, em geral, tudo o que for adquirido antes da conjugalidade se mantém como patrimônio particular. Destaca-se que não compete a este artigo destrinchar o regime em si; caso tenha interesse, recomenda-se a leitura do texto “Regime de bens: o que é, quais os tipos e como funcionam”.
- Divórcio
Regra geral, os investimentos realizados antes da constância do casamento ou da união estável não são partilhados. Entretanto, ressalta-se que os seus frutos sim. Por exemplo, Maria realizou um investimento de R$ 5.000,00 no ano de 2015, com prazo de 10 anos. Em 2016, ela se casou com João e, em 2020, divorciaram-se. Caso eles não tenham realizado pacto antenupcial, João terá direito aos frutos do investimento feito por Maria; ou seja, terá direito à partilha sobre o que renderam os R$ 5.000,00 iniciais.
No entanto, se os investimentos foram realizados durante o casamento ou a união estável deverão integrar a partilha. Por exemplo, Maria, casada com João, realiza um investimento de RS 5.000,00 em 2017. No ano de 2020, os dois se divorciam. No caso concreto, João terá direito a 50% do investimento e de seus frutos, ainda que não seja o titular da aplicação tampouco tenha utilizado quaisquer recursos próprios.
- Direito Sucessório
Após o falecimento do cônjuge, o sobrevivente é meeiro (é titular de 50% do patrimônio) dos bens adquirido onerosamente durante a constância do casamento ou da união estável. Contudo, no caso do regime de comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente será somente herdeiro dos bens particulares do falecido, ou seja, o consorte concorrerá com os demais herdeiros.
Caso tenha interesse no aprofundamento do tema, recomenda-se a leitura do artigo “As consequências sucessórias de acordo com cada regime de bens”.
No caso dos investimentos terem sido realizados antes da constância do casamento ou da união estável, o cônjuge sobrevivente terá direito à herança em concorrência com outros herdeiros necessários, por exemplo, os filhos. Já na situação em que os investimentos foram adquiridos durante o casamento ou a união estável, o cônjuge sobrevivente não terá direito à herança, eis que será meeiro sobre o investimento.
- Previdência Privada (VGBL e PGBL) integra a partilha no caso de divórcio e o direito sucessório?
Até recentemente, o Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) e o Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL), em tese, não integravam o direito sucessório e a partilha no caso de divórcio, por terem caráter de seguro de vida[3] e de pensão[4]. No entanto, em setembro de 2020, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial nº 1.698.774/RS, entendeu que, durante a fase de acumulação – em que é possível fazer aportes e resgates antecipados -, a previdência privada aberta possui natureza de aplicação financeira e não de pensão, como era entendido. A partir de então, a previdência privada aberta pode ser partilhada quando estiver na fase de acumulação em caso de regime de comunhão parcial de bens e de direito sucessório.
Além disso, registre-se que há seguradoras que vendem os planos como uma espécie de planejamento sucessório. Contudo, alguns podem ser contrários ao Código Civil e, inclusive, corre-se o risco de fraudar a legítima dos herdeiros necessários[5].
Quando isso acontece, existem decisões[6] que entendem que o plano da previdência privada carece de natureza securitária e, assim, pode ser pleiteado judicialmente, porque adquire o caráter de investimento. Portanto, para evitar dor de cabeça, é necessário cautela no momento de adquirir uma previdência privada, pois, a depender do caso concreto, é possível pleiteá-los judicialmente.
Conclusão
Como já mencionado, o artigo teve por objeto a explanação geral acerca dos reflexos dos investimentos no regime de comunhão parcial de bens. Nesse sentido, para que se tenha uma análise minuciosa do seu caso concreto, é importante realizar uma consulta jurídica com advogado ou advogada especialista na área de direito de família e sucessões. Dessa forma, muitas “surpresas desagradáveis” podem ser evitadas na hora da partilha de um inventário ou de um divórcio ou dissolução de união estável.
[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciada e Bacharela em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) — 2015. Estagiária na Schiefler Advocacia. E-mail: malu.mporath@gmail.com
[2] Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
[3] No seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito.
[4] Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: VII – as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
[5] Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.
Art. 1.847. Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação.
[6]AGRAVO DE INSTRUMENTO – Inventário – Determinação de retificação das declarações para inclusão dos valores existentes em nome da inventariante (esposa) em previdência privada (VGBL) – Insurgência da parte sob alegação de que se trata de bem particular, de natureza securitária, excluído da sucessão – Decisão mantida – Afastamento da alegação absoluta do caráter securitário – Necessidade de aferição da natureza da verba, que pode atuar como simples aplicação financeira, caso em que sujeita ao regime geral dos bens comuns, inclusive reconhecimento da meação e partilha. Recurso desprovido. (TJ-SP – AI: 20347284320178260000 SP 2034728-43.2017.8.26.0000, Relator: Enéas Costa Garcia, Data de Julgamento: 18/09/2017, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/09/2017)
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Como vetor de interpretação das normas infraconstitucionais a respeito de improbidade administrativa, o Enunciado pretende fazer indistintos os atos legislativos produzidos mediante exercício típico da função legislativa e os atos legislativos produzidos com amparo em exercício atípico da função administrativa.
Matheus Lopes Dezan[1]
Enunciado 7 – Configura ato de improbidade administrativa a conduta do agente público que, em atuação legislativa lato sensu, recebe vantagem econômica indevida.
Aos agentes públicos é devido preservar a moralidade, a probidade. É o que está prescrito no caput do artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)[2], por força do qual há, para a Administração Pública, o dever de se ater ao princípio da moralidade, bem como lhe é devido observar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da publicidade e da eficiência. Isso porque agentes públicos desempenham encargos administrativos, forma de manifestação do interesse público, que não se desvincula da moralidade e das prescrições que provêm da ordem jurídica[3].
Com efeito, a moralidade, ou probidade, é pressuposto de validade dos atos administrativos, de modo que se fazem inválidos os atos administrativos com vício de moralidade, de probidade[4]. Urge, contudo, notar que o que se denomina moral jurídica, moral pública ou, ainda, moral administrativa, distingue-se daquilo que se denomina moral comum, pois aquela repousa, necessariamente, sobre regras e sobre princípios do Direito que se impõem sobre os agentes públicos e sobre os terceiros que se relacionam com a Administração Pública[5].
Dessa forma, em caso de conduta de agente público lesar a moralidade, será viciado o ato administrativo e incorrerá o agente público em improbidade administrativa, infração legal sancionada com a suspensão de direitos políticos, com a perda da função pública, com a indisponibilidade de bens e/ou com a obrigatoriedade de ressarcimento ao erário, por determinação do § 4º do artigo 37 da CRFB/1988[6].
A Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, ou Lei de Improbidade Administrativa (LIA), que dispõe acerca das sanções aplicáveis aos agentes públicos autores de atos ímprobos, concebe quatro hipóteses em acordo com as quais condutas de agentes públicos figuram como afrontosas à moralidade. Por força da Lei, é vedado a agente público i) auferir, em função de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade em entidades administrativas, vantagens patrimoniais indevidas, o que figura como enriquecimento ilícito (art. 9º); ii) lesar o erário, isto é, provocar dano patrimonial à Administração Pública (art. 10); iii) conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário de modo indevido (art. 10-A); e iv) atentar contra os princípio da Administração Pública, registrados explícita ou implicitamente no ordenamento jurídico pátrio (art. 11).[7]
Nesse sentido, posto como vetor de interpretação do inciso I do artigo 9º da Lei de Improbidade Administrativa, o Enunciado nº 7 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal dispõe no sentido de que é vedado aos agentes públicos receber, em atuação legislativa lato sensu, vantagem econômica indevida, o que faz ímprobo o ato do agente público. Veja-se, a seguir, transcrição integral do Enunciado:
“Configura ato de improbidade administrativa a conduta do agente público que, em atuação legislativa lato sensu, recebe vantagem econômica indevida.”
Decerto, pode-se afirmar que a locução “atuação legislativa lato sensu”, empregada para compor o Enunciado nº 7, é desprovida de unívoco significado assentado por doutrina ou por jurisprudência, de modo que ao operador do Direito compete inquirir acerca da natureza jurídica do que sejam atos legislativos em sentido amplo e, pois, com amparo em recursos sintáticos e semânticos, conferir à locução sentido.
Paulo de Barros Carvalho distingue, como veículos introdutores de normas jurídicas à ordem jurídica, instrumentos primários e instrumentos secundários. Significa que, para que normas jurídicas integrem a ordem jurídica, é preciso que veículos, quais sejam os instrumentos primários e os instrumentos secundários, as introduzam[8]. Por essa razão, diferenciam-se os instrumentos primários de introdução de normas jurídicas à ordem jurídica e os instrumentos secundários de introdução de normas jurídicas à ordem jurídica. Estes, tais quais os decretos regulamentares, as instruções ministeriais, as circulares, as portarias, as ordens de serviço e outros atos administrativos normativos, subordinam-se àqueles, tais quais a lei constitucional, a lei complementar, a lei ordinária, a lei delegada, as medidas provisórias e o decreto-legislativo.[9]
Pode-se, com amparo nessa diferenciação, identificar que atos administrativos normativos fazem as vezes de veículos introdutores de normas jurídicas à ordem jurídica na condição de instrumentos secundários, e atos legislativos fazem as vezes de veículos introdutores de normas jurídicas à ordem jurídica na condição de instrumentos primários[10]/[11]. Delineia-se, dessa forma, esboço do que são, para o Enunciado nº 7, atos legislativos em sentido amplo e atos legislativos em sentido estrito.
Distinguem-se, em acordo com o Enunciado nº 7, atos legislativos em sentido amplo e atos legislativos em sentido estrito. A categoria atos legislativos em sentido amplo compreende tanto atos normativos que derivam do exercício típico da função legislativa, quanto atos normativos que derivam do exercício atípico da função legislativa, ao passo que a categoria atos legislativos em sentido estrito compreende atos normativos que derivam do exercício típico da função legislativa, somente. Importa salientar que se entende por exercício típico da função legislativa o exercício da função legislativa por agentes públicos que integram o Poder Legislativo, enquanto se entende por exercício atípico da função legislativa o exercício da função legislativa por agentes públicos que não integram o Poder Legislativo[12].
Para fins de inteligência do Enunciado nº 7, fala-se em atos legislativos em sentido amplo como veículos introdutores de normas jurídicas à ordem jurídica, sejam instrumentos primários, por exercício típico da função legislativa, sejam instrumentos secundários, por exercício atípico da função legislativa, e fala-se em atos legislativos em sentido estrito como veículos introdutores de norma jurídica à ordem jurídica na condição de instrumentos primários, somente, por exercício típico da função legislativa.
Por corolário, em razão do Enunciado nº 7, tanto o agente público que percebe vantagem econômica indevida para exercer de forma típica a função legislativa, quanto o público que percebe vantagem econômica indevida para exercer de forma atípica a função legislativa incorrem em improbidade administrativa.
Cumpre ressaltar que, a despeito da redação do Enunciado nº 7, concebe-se a possibilidade de que agentes públicos membros do Poder Legislativo incorram em improbidade administrativa, desde que os atos administrativos viciosos figurem como leis de efeitos concretos, assim compreendidos os atos normativos formalmente legislativos, mas materialmente administrativos. José dos Santos Carvalho Filho, ao discorrer sobre o exercício atípico da função administrativa por membros do Poder Legislativo por intermédio de leis de efeitos concretos, salienta que
[…] constituem função materialmente administrativas atividades desenvolvidas […] no Poder Legislativo, como as denominadas “leis de efeitos concretos”, atos legislativos que, ao invés de traçarem normas gerais e abstratas, interferem na órbita jurídica de pessoas determinadas, como, por exemplo, a lei que concede pensão vitalícia à viúva de ex-presidente.[13]
Trata-se, portanto, de exercício atípico da função administrativa cominado com exercício típico da função legislativa, o que fez possível, pois, antes mesmo de consolidar-se o entendimento expresso pelo Enunciado nº 7, a responsabilização de membros do Poder Legislativo por improbidade administrativa, pois que agentes públicos integram, na qualidade de agentes políticos[14], o Poder Legislativo. Fala-se, em suma, nesses restritos casos, em improbidade legislativa[15], ou seja, em improbidade administrativa por ato legislativo em sentido amplo.
Exemplo de lei de efeitos concretos é aquela que aumenta subsídios dos membros do Poder Legislativo. A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, com amparo em doutrina de Pedro Roberto Decomain, que esses atos normativos ostentam aspecto formalmente legislativo, mas materialmente administrativo, de modo que se faz possível responsabilizar por improbidade administrativa esses agentes públicos:
Oportuno colacionar o seguinte excerto da obra: A ação por improbidade administrativa não é meio processual adequado para impugnar ato legislativo propriamente dito. Isso não significa, todavia, que todos os atos a que se denomina formalmente de “lei” estejam infensos ao controle jurisdicional por seu intermédio. Leis que usualmente passaram a receber a denominação de “leis de efeitos concretos”, e que são antes atos administrativos que legislativos, embora emanados do Poder Legislativos, podem ter sua eventual lesividade submetida a controle pela via da ação por improbidade administrativa. […] (Improbidade Administrativa. São Paulo: Dialética. 2007, p. 64 e 66).[16]
No mesmo sentido, há entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que nega seguimento a Recurso Extraordinário interposto contra decisão que condenou os réus por improbidade administrativa configurada por ato legislativo de efeitos concretos:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONDENAÇÃO POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VEREADORES. MAJORAÇÃO DOS SUBSÍDIOS PARA A MESMA LEGISLATURA. PRECEDENTES. RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.[17]
Contudo, se se distinguem atos legislativos em sentido amplo e atos legislativos em sentido estrito como sendo, respectivamente, quaisquer atos normativos, e atos normativos que derivam do exercício típico da função legislativa, então, em acordo com o Enunciado nº 7, i) reitera-se a regra do inciso I do artigo 9º da Lei de Improbidade Administrativa e, ainda, ii) amplia-se, para além de hipóteses que tratam de improbidade administrativa por leis de efeitos concretos, a possibilidade de membros do Poder Legislativo serem responsabilizados por improbidade administrativa.
Notadamente, o que pretende o Enunciado nº 7 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, como vetor de interpretação das normas infraconstitucionais a respeito de improbidade administrativa por percepção de vantagem econômica indevida (art. 9, I, LIA), é fazer indistintos os atos legislativos produzidos mediante exercício típico da função legislativa e os atos legislativos produzidos com amparo em exercício atípico da função administrativa, porque expande, para além das previsões doutrinárias e jurisprudenciais (improbidade administrativa por leis de efeitos concretos), as hipóteses de responsabilização dos agentes políticos por improbidade administrativa.
[1] Bacharelando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Grupo de Pesquisas Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (HDAPP/UniCeub), certificado pelo CNPq. Membro do Grupo de Pesquisas Direito Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB), certificado pelo CNPq. Membro do Grupo de Estudos Direito e Economia (GEDE/UnB/IDP), certificado pelo CNPq. Membro do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN). Estagiário em Schiefler Advocacia. E-mail: matheus.ldezan@gmail.com.
[2] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 80.
[4] Ato jurídico válido é ato jurídico adequado à ordem jurídica. Assim, atos administrativos ímprobos, porquanto contrários à ordem jurídica que lhes prescreve o dever de moralidade, são inválidos. Acerca da tese da correção, ou pretensão à correção, cf. ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fones, 2009, p. 92-97;149-155.
[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 83;93.
[6] Art. 37. […] § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
[7] BRASIL. Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em: 23. nov. 2020.
[8] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 45-46.
[9] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 56-76.
[10] DEZAN, Sandro Lúcio. Fundamentos de direito administrativo disciplinar. 4. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2019, p .130.
[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 161.
[12] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 2-3.
[13] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 5.
[14] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 71-73.
[15] MOÇA, Ricardo Benetti Fernandes. A Improbidade Administrativa por Atos Legislativos – Panorama atual e breves reflexões. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/ricardo-benetti-fernandes-moca/a-improbidade-administrativa-por-atos-legislativos-panorama-atual-e-breves-reflexoes. Acesso em: 23. out. 2020.
[16] STJ, REsp 1.101.359/CE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 9/11/2009.
[17] STF, RE 597.725, Relatora Min. Cármen Lúcia, publicado em 25/09/2012.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fones, 2009, p. 92-97;149-155.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23. nov. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em: 23. nov. 2020.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017, p. 5.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 45-46.
DEZAN, Sandro Lúcio. Fundamentos de direito administrativo disciplinar. 4. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2019, p .130.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 80.
MOÇA, Ricardo Benetti Fernandes. A Improbidade Administrativa por Atos Legislativos – Panorama atual e breves reflexões. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/ricardo-benetti-fernandes-moca/a-improbidade-administrativa-por-atos-legislativos-panorama-atual-e-breves-reflexoes. Acesso em: 23. out. 2020.
STF, RE 597.725, Relatora Min. Cármen Lúcia, publicado em 25/09/2012.
STJ, REsp 1.101.359/CE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 9/11/2009.
Read MoreA chegada da terceira idade causa a inversão de papéis, transferindo aos filhos a responsabilidade de cuidado para com os pais idosos.
Maria Luisa Machado Porath[1]
De forma geral, entende-se que os filhos possuem responsabilidade perante os pais idosos. Isso porque os pais cuidam dos filhos e, naturalmente, há a inversão de papéis, com a chegada da terceira idade. E para quem não possui filhos ou quando são falecidos, ou ainda, quando há o abandono afetivo inverso, a quem compete cuidar do idoso? E quais seriam essas responsabilidades?
Muito se discute sobre o abandono afetivo quando os pais não zelam pelo seu filho. Ou seja, quando há a ausência de uma paternidade/maternidade responsável: alguém que proporcione o cuidado esperado de pais para com os filhos. Contudo, quando se inverte a lógica, isto é, quando omisso o cuidado dos filhos para com os pais idosos, ocorre o chamado abandono afetivo inverso. Jonas Figueiredo Alves conceitua-o como “[…] a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família”[2].
Com a atual pandemia da COVID-19, foram noticiados diversos casos de abandono de idosos, seja em seus próprios lares ou nas casas de repouso. A justificativa para tal omissão de cuidado era o distanciamento social. No entanto, ainda, e principalmente, em casos extremamente vulneráveis como a que a atualidade está vivendo, o dever de zelo para com o idoso deve permanecer. A razão disso é que, muitas vezes, o idoso já não consegue realizar as tarefas básicas diárias e, assim, necessita de uma ajuda externa. Como conciliar sozinho o medo da pandemia, as limitações físicas e mentais e as restrições de deslocamento para evitar a propagação do contágio do novo coronavírus?
A Lei Federal nº 10.741/2003, que dispõe acerca do Estatuto do Idoso, em seu artigo 3º, afirma que é
obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Delimitação das Responsabilidades dos sujeitos…
Primeiramente, quando se fala em comunidade, sociedade e Poder Público, os cuidados se restringem ao respeito e à efetivação dos direitos dos idosos. Isso significa dizer que compete ao Poder Público prover saúde, educação, lazer, etc. A comunidade e a sociedade, de forma geral, devem respeitar e assegurar que esses direitos sejam resguardados. Ou seja, esse cuidado se refere mais à efetivação dos direitos coletivos do idoso e ao respeito do princípio da dignidade da pessoa humana.
No entanto, quando se fala em obrigação da família, os deveres de cuidado se aprofundam. O artigo 229 da Constituição Federal afirma que “[…] os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Como já mencionado, ocorre a inversão de cuidados, quando os pais encaram a terceira idade. Contudo, na falta de filhos, chamam-se os netos; e, na ausência de outros descendentes, os irmãos e outros parentes colaterais[3]. Em último caso, cabe ao Poder Público prover assistência social ao idoso[4].
Quais são as responsabilidades de cuidado para com o idoso no seio familiar?
Conforme bem pontuado pela Ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi, “amar é faculdade, cuidar é dever”[5]. Isso significa que não há como obrigar o cultivo do amor, mas o cuidado é um dever familiar de via de mão dupla: de pais para filhos e vice-versa. Nesse sentido, quando se está diante de um abandono afetivo, seja ele inverso ou não, há a possibilidade de reparação civil, indenização, a depender do caso concreto.
A responsabilidade principal, que permeia todas as outras, é o de prover alimentos ao idoso. Não no sentido restrito da palavra, vez que o direito de alimentos abrange o mínimo necessário para que o idoso possa viver e aproveitar a sua velhice com dignidade. Nesse sentido, outros gastos são incluídos no cálculo base para a pensão alimentícia, por exemplo:
- saúde (despesas médicas de forma geral: plano de saúde, remédios, consultas, exames…);
- vestuário;
- higiene;
- lazer;
- moradia (água, luz, gás, internet, telefone, aluguel, limpeza…);
- compras no mercado;
- transporte;
- etc.
Ressalta-se que há uma particularidade no direito a alimentos dos idosos: ao contrário do que prevê o artigo 1.698[6] do Código Civil, aplica-se o artigo 12 do Estatuto do Idoso em que afirma que a obrigação é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores. Em outras palavras, o idoso não fica restrito à quota parte de cada prestador; pode cobrar a integralidade dos alimentos a qualquer um deles.
E no caso de abandono afetivo pelos pais ainda quando menores os filhos, persiste a obrigação de cuidado do idoso?
Apesar da previsão expressa de cuidado dos filhos para com os pais idosos, é possível que a relação familiar se abale por diversos motivos. Uma vez os filhos adultos, há, inclusive, casos de rompimento familiar; contudo, quando os pais idosos alegam abandono afetivo inverso, os filhos rebatem que houve abandono afetivo na infância.
Portanto, questiona-se qual seria o caminho jurídico a seguir: obrigar os filhos a prestarem cuidados para com os pais que o abandonaram na infância ou afastar esse dever? Entretanto, a resposta jurídica depende de cada caso. Assim, se você está passando por uma situação semelhante ou se conhece alguém que esteja, é imprescindível que contate um advogado ou uma advogada especialista em direito de família. Somente através de uma consulta jurídica, com uma análise aprofundada do caso, é possível traçar uma estratégia jurídica, a fim de minimizar qualquer sofrimento familiar.
[1] Estagiária na Schiefler Advocacia. Graduanda da sétima fase em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) — 2015.
[2] Alves, J. F. Abandono afetivo inverso pode gerar indenização. Revista IBDFAM –Instituto Brasileiro de Direito de Família, 16 de jul. de 2013. Disponível em: <https://www.ibdfam.org.br/noticias/5086/+Abandono+afetivo+inverso+pode+gerar+indeniza%C3%A7%C3%A3o#:~:text=JF%20%2D%20Diz%2Dse%20abandono%20afetivo,da%20seguran%C3%A7a%20afetiva%20da%20fam%C3%ADlia.>. Acesso em 17 nov. 2020.
[3] Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.
Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.
[4] Art. 14. Se o idoso ou seus familiares não possuírem condições econômicas de prover o seu sustento, impõe-se ao Poder Público esse provimento, no âmbito da assistência social.
[5] CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (STJ – REsp: 1159242 SP 2009/0193701-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 24/04/2012, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2012 RDDP vol. 112 p. 137 RDTJRJ vol. 100 p. 167 RSTJ vol. 226 p. 435)
[6] Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.
Read MoreSe a Administração Pública deixar de pagar por mais de 90 dias, a empresa contratada não precisa de autorização judicial para suspender a execução das suas obrigações contratuais.
Enunciado 6 – O atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional.
As licitações e contratos administrativos firmados pela Administração Pública direta e por parcela[1] da Administração indireta são regidos, regra geral, pela Lei Federal nº 8.666/1993, que estabelece normas gerais pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Esta Lei prevê, em seu artigo 78, diversas hipóteses que constituem motivo para a rescisão do contrato administrativo celebrado com a Administração Pública. Para o que interessa ao assunto que se está abordando, vale transcrever in verbis o inciso XV do artigo 78:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
[…]
XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;
A regra é clara: se o Poder Público não cumprir com a contraprestação financeira acordada em contrato, por mais de 90 dias, a empresa contratada está autorizada a rescindir o contrato, o que só pode ser realizado por decisão judicial, ou a suspender o cumprimento das suas obrigações, ou seja, autoriza-se a suspensão do contrato até o cumprimento por parte da Administração. Este dispositivo trata de ferramenta extremamente valiosa para as empresas contratadas, as quais estão situadas em uma posição de fragilidade jurídica em comparação às prerrogativas da Administração em matéria de contrato administrativo.
A bem da verdade, o artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993 positiva e atrai ao campo das licitações e contratos administrativos a oponibilidade da exceção do contrato não cumprido, também conhecida como exceptio non adimpleti contractus.
Em matéria de direito privado, esta hipótese está prevista nos artigos 476 e 477 do Código Civil[2], os quais vedam a possibilidade de que algum dos contratantes exija, antes de cumprida a sua obrigação, o implemento da do outro. Já no que toca ao campo dos contratos administrativos, MARÇAL JUSTEN FILHO entende que “A exceptio non adimpleti contractus adquire configuração específica no campo dos contratos administrativos”, sendo admitida a recusa do contratado em desempenhar as suas obrigações “quando a Administração incorrer em atraso superior a noventa dias do pagamento de obras, serviços ou fornecimento já realizados (art. 78, XV)”[3].
Por óbvio, a hipótese de rescisão/suspensão contratual ventilada não é aplicada sem que haja controvérsia sobre os seus efeitos e, especialmente, sobre a possibilidade de que a empresa contratada simplesmente decida, proativamente, suspender a execução das suas obrigações contratuais.
Com o objetivo de trazer mais clareza a esse instituto, tão importante para fortalecer a segurança jurídica no âmbito dos contratos administrativos e evitar que os contratados sejam obrigados a manter execução contratual em franco prejuízo, este tema foi objeto de discussão na I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal, tendo sido aprovado o Enunciado 6 com o seguinte teor:
Enunciado 6
O atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração Pública autoriza o contratado a suspender o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação, mesmo sem provimento jurisdicional.
De acordo com o texto do enunciado aprovado, que repete em boa parte o conteúdo do dispositivo legal, um detalhe, que já foi objeto de controvérsia, torna-o importante ferramenta para tornar mais clara e efetiva a incidência da hipótese do inciso XV do artigo 78 da Lei nos casos concretos: a prescindibilidade de que a empresa contratada obtenha autorização judicial para suspender o cumprimento das suas obrigações contratuais.
Ao que parece, o Enunciado 6 busca consolidar ainda mais o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no paradigmático julgamento do REsp nº 910.802/RJ, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, segundo o qual a Lei nº 8.666/1993 não exige a obtenção de provimento jurisdicional para que o contrato esteja autorizado a optar pela suspensão da execução contratual. Confira-se:
[…] 4. Com o advento da Lei 8.666/93, não tem mais sentido a discussão doutrinária sobre o cabimento ou não da inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a Administração, ante o teor do art. 78, XV, do referido diploma legal. Por isso, despicienda a análise da questão sob o prisma do princípio da continuidade do serviço público.
5.Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito.
6.Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido.
(STJ, REsp 910.802/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/06/2008)
Como era de se esperar, tendo em vista a função do STJ de uniformizar as interpretações dos Tribunais brasileiros atinentes à legislação federal, este acórdão balizou o entendimento de que o provimento jurisdicional é desnecessário nessas hipóteses. Cita-se como exemplo mais um julgado do STJ, que faz referência expressa ao REsp nº 910.802/RJ:
[…] 10. O Superior Tribunal de Justiça consagra entendimento no sentido de que a regra de não-aplicação da exceptio non adimpleti contractus, em sede de contrato administrativo, não é absoluta, tendo em vista que, após o advento da Lei 8.666/93, passou-se a permitir sua incidência, em certas circunstâncias, mormente na hipótese de atraso no pagamento, pela Administração Pública, por mais de noventa dias (art. 78, XV). A propósito: AgRg no REsp 326.871/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 20.2.2008; RMS 15.154/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 2.12.2002. Além disso, não merece prosperar o fundamento do acórdão recorrido de que as empresas necessitariam pleitear judicialmente a suspensão do contrato, por inadimplemento da Administração Pública. Isso, porque, conforme bem delineado pela Ministra Eliana Calmon no julgamento do REsp 910.802/RJ (2ª Turma, DJe de 6.8.2008), “condicionar a suspensão da execução do contrato ao provimento judicial, é fazer da lei letra morta”. […]
11.Recurso especial parcialmente provido, apenas para afastar a multa aplicada em sede de embargos declaratórios.
(STJ, REsp 879.046/DF, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/05/2009, DJe 18/06/2009)
A jurisprudência dos demais Tribunais brasileiros está consoante o entendimento do STJ, como se verifica, exemplificativamente, da seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), que afastou multa imposta à empresa contratada pela Administração por ter interrompido a execução das suas obrigações:
[…] 3. O art. 78, inciso XV, da Lei 8.666/93 é claro ao consignar que é motivo de rescisão do contrato o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração, assegurando ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação.
4.Restando demonstrado que houve a entrega dos materiais médico-hospitalares pela apelada, conforme contratado, e que o atraso no pagamento, em período superior a 90 dias, se deu por responsabilidade exclusiva da Administração Pública, impõe-se o afastamento da multa aplicada, devendo ser restituída a glosa da fatura de pagamento pela medicação fornecida.
5.Não há necessidade de pronunciamento jurisdicional para suspensão de fornecimento de insumos à Administração Pública. No caso em análise, no mesmo dia em que foi recebida a nota de emprenho, a fornecedora notificou extrajudicialmente o Distrito Federal quanto à impossibilidade de cumprir com o prazo devido ao inadimplemento do ente estatal.
6.Recurso conhecido e desprovido. Sentença mantida.
(TJ-DF 07058804220198070018 DF 0705880-42.2019.8.07.0018, Relator: ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO, Data de Julgamento: 27/05/2020, 5ª Turma Cível)
Os demais Tribunais brasileiros caminham no mesmo sentido, como se vê dos julgados dos Tribunais de Justiça dos Estados de Santa Catarina (TJSC), no qual se reconheceu que “Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito” (MS 4006820-94.2018.8.24.0000, julgado em 21/05/2013), e do Rio de Janeiro (TJRJ), que reconheceu que “PODE O CONTRATADO, LICITAMENTE, SUSPENDER A EXECUÇÃO DO CONTRATO, SENDO DESNECESSÁRIA, NESSA HIPÓTESE, A TUTELA JURISDICIONAL PORQUE O ART. 78, XV, DA LEI 8.666/93 LHE GARANTE TAL DIREITO” (AI: 00508620920198190000, , Data de Julgamento: 11/02/2020).
Sobre o tema, são esclarecedores os ensinamentos de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, a qual reconhece a licitude da suspensão contratual na hipótese em que a Administração não proceda ao pagamento em prazo superior a 90 dias:
A Lei nº 8.666/93 previu uma hipótese em que é possível, com critério objetivo, saber se é dado ou não ao particular suspender a execução do contrato. Trata-se da norma do artigo 78, inciso XV, segundo a qual constitui motivo para rescisão do contrato “o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimentos, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação”.
Isto significa que, ultrapassados os 90 dias sem que a Administração efetue os pagamentos em atraso, é dado ao contratado, licitamente, suspender a execução do contrato.[4]
Assim, é de se observar que a doutrina caminha no sentido de que a obtenção de provimento jurisdicional não é requisito indispensável para que o contratado oponha a exceção de contrato não cumprido.
Nesse sentido, a tese fixada no Enunciado 6 aprovado na Jornada pacifica o entendimento de que, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro (legislação, jurisprudência e doutrina), a empresa contratada está autorizada a suspender a execução das suas obrigações contratuais quando a Administração Pública deixar de realizar o pagamento devido por mais de 90 dias, sem que, para tanto, precise obter provimento jurisdicional.
[1] As licitações e contratos pertinentes às empresas públicas e às sociedades de economia mista são reguladas pela Lei Federal nº 13.303/2016, o que, todavia, não impede a aplicação do Enunciado 6 aos contratos regidos por esta norma.
[2] Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 559.
[4] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
Read MoreA consolidação do entendimento por meio de enunciado foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
Enunciado 5 – O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A Lei nº 13.019/2014, também conhecida como o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, é a norma legal que dispõe sobre as relações de parceria entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil – OSC e que estabelece os parâmetros que devem ser observados pelos entes públicos e privados, em prol de atribuir às parcerias uma maior transparência, eficiência e controle.
Como se vê do seu artigo 1º, esta Lei se presta a instituir “normas gerais para as parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação.”.
Do artigo 2º da norma, é possível observar uma série de conceitos atinentes à matéria, buscando delimitar com acurácia as definições e institutos que são legalmente regulados. Por exemplo, o conceito de organização da sociedade civil: que é fundamental para a compreensão deste texto e que está previsto no inciso I do artigo 2º, in verbis:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
I – organização da sociedade civil: (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999 ; as integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à pobreza e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social. (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos; (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
Acontece que, como é comum no Direito brasileiro, muitos conceitos constantes de dispositivos normativos, pela amplitude semântica de sua redação, são responsáveis por causar debates jurisprudenciais e acadêmicos sobre a forma considerada correta de interpretá-los.
Não é diferente com a definição trazida pelo artigo 2º, inciso IV, sobre quem deve ser considerado “dirigente” de uma OSC:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
IV – dirigente: pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil, habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
Veja-se que o atual conceito trazido pela Lei nº 13.019/2014 é aquele definido pela alteração imposta pela Lei nº 13.204/2015. Anteriormente, quando da edição do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, o inciso IV do artigo 2º era simplório, prevendo apenas que é considerado dirigente a “pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil”.
Ou seja, com a adição textual da alteração normativa, detalhou-se o conceito para evidenciar que dirigente é a pessoa que, tendo poderes de administração, gestão ou controle, está “habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros”.
Contudo, a controvérsia conceitual ainda persistiu, residindo principalmente na possibilidade de se considerar membros de alguns órgãos específicos das organizações da sociedade civil (como os Conselhos Consultivo, Fiscal ou Curador) como “dirigentes” para fins da Lei nº 13.019/2014. Esta tese, inclusive, tornava-se ainda mais forte nas hipóteses em que o próprio estatuto social da OSC define como “dirigentes” os membros desses conselhos.
Em razão da importância do assunto, este tema foi proposto para discussão no âmbito da 1ª Jornada de Direito Administrativo do Conselho de Justiça Federal, tendo sido aprovado e publicado como o Enunciado 5:
Enunciado 5
O conceito de dirigentes de organização da sociedade civil estabelecido no artigo 2º, inciso IV, da Lei Federal n. 13.019/2014 contempla profissionais com a atuação efetiva na gestão executiva da entidade, por meio do exercício de funções de administração, gestão, controle e representação da pessoa jurídica, e, por isso, não se estende aos membros de órgãos colegiados não executivos, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
O texto enunciativo foi aprovado após intensos debates por especialistas em Direito Administrativo provenientes de todo o Brasil, de forma que entrou-se em consenso de que a definição de “dirigentes de organização da sociedade civil, estabelecido pelo artigo 2º, inciso IV, da Lei nº 13.019/2014, diz respeito àqueles profissionais com atuação efetiva na gestão executiva da entidade, não abarcando profissionais que exerçam funções meramente fiscalizadoras ou consultivas, independentemente da nomenclatura adotada pelo estatuto social.
A consolidação do entendimento por meio de enunciado aprovado na 1ª Jornada de Direito Administrativo foi bem visto pelos especialistas, uma vez que traz segurança jurídica para a atuação dos dirigentes das organizações da sociedade civil – elemento essencial para o desenvolvimento das atividades desempenhadas por essas entidades.
A importância da segurança jurídica, especificamente quanto ao que versa o Enunciado 5, pode ser aferida dos ensinamentos de Marçal Justen Filho, segundo o qual a atuação das OSC deve ser regulada pelas regras do Direito Administrativo:
As atividades administrativas desenvolvidas fora dos limites da estrutura estatal devem ser disciplinadas pelo direito. A generosidade inerente à atuação não estatal de interesse coletivo não dispensa controle jurídico. A relevância da função não produz imunidade ao direito.
Existindo organizações estruturadas de modo estável e permanente para promover a satisfação de interesses coletivos e os direitos fundamentais, haverá a aplicação de princípios do direito administrativo.
Lembre-se, ademais, que as organizações da sociedade civil desenvolvem atuação que, muitas vezes, é onerosa – mas não na acepção de refletir uma organização empresarial privada. Trata-se da percepção de vantagens provenientes de cofres públicos, de recebimento de doações e assim por diante. Ainda que essas entidades não visem ao lucro, sua atuação é custeada por recursos públicos e privados. A gestão desses recursos se sujeita aos mesmos instrumentos de controle aplicáveis à atuação estatal.
Até é possível que, no futuro, a atividade administrativa não estatal seja disciplinada por um ramo especial do direito. Até que tal se configure, é necessário estender o direito administrativo para esse relevante segmento de atividades de interesse coletivo.[1]
A exata delimitação dos indivíduos que pertencem ao quadro das organizações da sociedade civil é relevante, também, porque a própria Lei nº 13.019/2014 prevê impedimentos de celebração de parceria entre Administração e OSC nos casos em que a entidade possuir, como dirigente, pessoa que ocupa determinados cargos ou que foi condenada pela prática de determinados atos. É o que dispõe o artigo 39:
Art. 39. Ficará impedida de celebrar qualquer modalidade de parceria prevista nesta Lei a organização da sociedade civil que: […]
III – tenha como dirigente membro de Poder ou do Ministério Público, ou dirigente de órgão ou entidade da administração pública da mesma esfera governamental na qual será celebrado o termo de colaboração ou de fomento, estendendo-se a vedação aos respectivos cônjuges ou companheiros, bem como parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o segundo grau; […]
VII – tenha entre seus dirigentes pessoa:
a) cujas contas relativas a parcerias tenham sido julgadas irregulares ou rejeitadas por Tribunal ou Conselho de Contas de qualquer esfera da Federação, em decisão irrecorrível, nos últimos 8 (oito) anos;
b) julgada responsável por falta grave e inabilitada para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, enquanto durar a inabilitação;
c) considerada responsável por ato de improbidade, enquanto durarem os prazos estabelecidos nos incisos I, II e III do art. 12 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.
§ 1º Nas hipóteses deste artigo, é igualmente vedada a transferência de novos recursos no âmbito de parcerias em execução, excetuando-se os casos de serviços essenciais que não podem ser adiados sob pena de prejuízo ao erário ou à população, desde que precedida de expressa e fundamentada autorização do dirigente máximo do órgão ou entidade da administração pública, sob pena de responsabilidade solidária.
§ 2º Em qualquer das hipóteses previstas no caput, persiste o impedimento para celebrar parceria enquanto não houver o ressarcimento do dano ao erário, pelo qual seja responsável a organização da sociedade civil ou seu dirigente. […]
§ 5º A vedação prevista no inciso III não se aplica à celebração de parcerias com entidades que, pela sua própria natureza, sejam constituídas pelas autoridades referidas naquele inciso, sendo vedado que a mesma pessoa figure no termo de colaboração, no termo de fomento ou no acordo de cooperação simultaneamente como dirigente e administrador público
O tema se torna ainda mais essencial quando se verifica que o Tribunal de Contas da União (TCU) possui entendimento consolidado de que é plenamente válida a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. É o que se verifica do Acórdão nº 1908/2019 do Plenário:
2. A tomada de contas especial foi instaurada em razão da omissão no dever de prestar contas da aplicação dos recursos que lhe foram repassados pelo Incra por força do Convênio CRT/RN/40.000/2006, que teve por objeto a prestação de assessoria social, técnica e jurídica a famílias acampadas, com vistas ao alcance das metas propostas no Plano Regional de Reforma Agrária para o Rio Grande do Norte.
3. Em sua peça recursal, o recorrente alega, em suma, a prescrição da pretensão de ressarcimento, questiona a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil e apresenta elementos novos com o objetivo de prestar contas e comprovar a execução das despesas (peças 62/73). […]
14. Da mesma forma, não merece prosperar o argumento de que é inconstitucional a responsabilização solidária de dirigentes de organizações da sociedade civil. Esta Corte de Contas já firmou entendimento contrário por meio da Súmula TCU 286, que assim se pronuncia: “A pessoa jurídica de direito privado destinatária de transferências voluntárias de recursos federais feitas com vistas à consecução de uma finalidade pública responde solidariamente com seus administradores pelos danos causados o erário na aplicação desses recursos”.[2]
Voltando-se ao conteúdo Enunciado 5, é de se notar que a sua redação repete como elemento caracterizador da figura do “dirigente” o exercício de atividades de administração, gestão e controle da organização, além dos poderes de representação da pessoa jurídica perante terceiros, exigindo que o profissional possua esses poderes para que lhe seja atribuído a roupagem da referida figura legal.
Nesse sentido, é ínsito apontar que a Lei decidiu por caracterizar o dirigente a partir do escopo das funções executivas a que esse se dedica, esclarecendo que o dirigente da OSC, nos termos da Lei, corresponde àquele profissional que é responsável pela administração, gestão e controle executivo da entidade, não abrangendo outros cargos que exerçam funções substancialmente distintas.
Essa definição, inclusive, está em conformidade com o entendimento da Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP e com o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), que definem, respectivamente, o dirigente como “pessoa física que detenha poderes de administração, gestão e controle da organização da sociedade civil”[3] e “pessoas que serão responsáveis pela direção da associação”[4].
Logo, conclui-se que quaisquer cargos de órgãos das organizações de sociedades civis que não exerçam atividades de gestão executiva estão fora do espectro conceitual de “dirigentes”, ainda que essa seja a designação atribuída pelo estatuto dessas entidades.
Como a Lei escolheu definir o dirigente pelo escopo das funções que este realiza, pouco importa o nome atribuído pelo estatuto a algum cargo de um órgão meramente fiscalizador ou consultivo, sendo determinante, para fins legais, apenas a capacidade de poder executivo e de representação que determinado cargo atribui, na prática, a um profissional dentro da estrutura da organização da sociedade civil.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 129-130.
[2] TCU, Acórdão nº 1908/2019, Plenário. Relator: ANA ARRAES, Data de Julgamento: 14/08/2019.
[3] OAB/SP, Comissão Especial de Direito do Terceiro Setor. Guia Prático da Lei de Parcerias: Lei nº 13.019/2014. Outubro de 2017. p. 13.
[4] TCE/SP. Manual Básico de Repasses Públicos ao Terceiro Setor. Ano 2016. p. 20. Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/publicacoes/repasses_publicos_terceiro_setor.pdf. Acesso em 23 out. 2020.
Read MoreÉ preciso que o particular tenha conhecimento de qual finalidade será dada ao seu bem desapropriado, o que viabiliza a sindicância do ato administrativo e, sendo o caso, sua impugnação por meio do Poder Judiciário.
Enunciado 4 – O ato declaratório da desapropriação, por utilidade ou necessidade pública, ou por interesse social, deve ser motivado de maneira explícita, clara e congruente, não sendo suficiente a mera referência à hipótese legal.
O direito à propriedade é reconhecido como direito individual fundamental, previsto no caput do artigo 5º da Constituição Federal e reiterado no inciso XXII do mesmo artigo.
Este direito é, no entanto, mitigado, nos termos do inciso XXIV do artigo 5º da CF/88, na hipótese de haver reconhecida necessidade ou utilidade pública, ou, ainda, interesse social, no uso daquele bem, hipótese em que o Poder Público poderá desapropriá-lo, desde que respeitado o procedimento legal previsto e que haja justa indenização.
É como explica CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO ao tratar do instituto da desapropriação:
Do ponto de vista teórico, pode-se dizer que desapropriação é o procedimento através do qual o Poder Público compulsoriamente despoja alguém de uma propriedade e a adquire, mediante indenização, fundado em um interesse público. Trata-se, portanto, de um sacrifício de direito imposto ao desapropriado.[1]
Além de estar expressamente previsto no artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição de 1988, o instituto da desapropriação é regulado, no caso de utilidade pública, pelo Decreto-Lei nº 3.365 de 1941, e, no caso de interesse social, pela Lei nº 4.132/1962.
No caso de utilidade pública, a legislação prevê, nos termos do seu artigo 5º[2], um rol de hipóteses que fundamente a existência de utilidade pública apta a motivar a desapropriação. No mesmo sentido, a Lei nº 4.132/1962 prevê em seu artigo 2º[3] as hipóteses de interesse social que, se preenchidas, fundamentam igualmente a desapropriação.
Tendo em vista a existência das hipóteses legais, o Poder Público tem se valido da mera remissão às hipóteses previstas em lei como meio de fundamentar os atos de desapropriação, sem se desincumbir do ônus de explicitar de maneira explícita, clara e congruente, nos termos do § 1º do artigo 50 da Lei Federal nº 9.784/1999, os motivos que ensejam a prática do ato.
O do artigo 50 da Lei Federal nº 9.784/1999, que dispõe sobre os processos administrativos no âmbito da Administração Pública Federal, é claro:
Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: […]
§ 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.
É preciso que o particular, cujo direito sobre aquela propriedade é mitigado ou retirado, tenha conhecimento claro e expresso da razão pela qual a sua propriedade foi escolhida pelo Poder Público como meio de satisfação de uma necessidade ou utilidade pública, ou de um interesse social.
Mais do que isso: é preciso que o particular tenha conhecimento de qual finalidade será dada ao seu bem desapropriado, o que viabiliza a sindicância do ato administrativo e, sendo o caso, sua impugnação por meio do Poder Judiciário.
Nesse sentido, com o intuito de reconhecer a obrigatoriedade da devida motivação dos atos de desapropriação, evitando-se a ocorrência de arbitrariedades e viabilizando a sindicância do ato por particulares e pelo Poder Judiciário, quando provocado, a 1ª Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal aprovou o Enunciado 4, que contém o seguinte teor:
Enunciado 4
O ato declaratório da desapropriação, por utilidade ou necessidade pública, ou por interesse social, deve ser motivado de maneira explícita, clara e congruente, não sendo suficiente a mera referência à hipótese legal.
Por meio desse enunciado, pretende-se consolidar e espraiar o entendimento de que o dever de motivação do ato administrativo de desapropriação só é satisfeito se forem apresentadas, de forma clara, explícita e congruente, as razões que levaram à prática do ato declaratório de desapropriação.
E, para tanto, como explica CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, é necessário que a Administração exponha a regra de direito no qual a desapropriação se funda e, também, os fatos e a correlação lógica para com o caso concreto:
A motivação integra a “formalização” do ato, sendo um requisito formalístico dele (cf. ns. 53 e ss.). É a exposição dos motivos, a fundamentação na qual são enunciados (a) a regra de Direito habilitante, (b) os fatos em que o agente se estribou para decidir e, muitas vezes, obrigatoriamente, (c) a enunciação da relação de pertinência lógica entre os fatos ocorridos e o ato praticado. Não basta, pois, em uma imensa variedade de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agente tomou como base para editar o ato. Na motivação transparece aquilo que o agente apresenta como “causa” do ato administrativo[4]
E continua o ilustre doutrinador ao afirmar que, “se se tratar de ato praticado no exercício de competência discricionária, salvo alguma hipótese excepcional, há de se entender que o ato não motivado está irremissivelmente maculado de vício e deve ser fulminado por inválido, já que a Administração poderia, ao depois, ante o risco de invalidação dele, inventar algum motivo, ‘fabricar’ razões lógicas para justificá-lo e alegar que as tomou em consideração quando da prática do ato”.
A jurisprudência dos Tribunais brasileiros reconhece a importância e a imprescindibilidade de que os atos administrativos de desapropriação sejam motivados:
REEXAME NECESSÁRIO – AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO – UTILIDADE PÚBLICA – AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO DO ATO EXPROPRIATÓRIO – INEXISTÊNCIA DE FINALIDADE PÚBLICA – SENTENÇA CONFIRMADA. – Na ação de desapropriação, não pode apreciação judicial recair sobre a validade do ato expropriatório ou analisar e solucionar questionamentos acerca de posse e domínio; contudo, pode o Poder Judiciário verificar se a declaração de utilidade pública é motivada e se constitui instrumento hábil aos fins expropriatórios, cumprindo com a finalidade pública – Ainda que o decreto expropriatório seja ato discricionário da Administração, nele o princípio da motivação deve estar presente, como em qualquer ato administrativo, uma vez que é condição “sine qua non” para viabilizar o controle de legalidade e da juridicidade de todo e qualquer ato exarado no exercício da função administrativa – Comprovado, nos autos de ação de reintegração de posse, com trânsito em julgado, que a área situada na propriedade dos expropriados não integra o Plano Rodoviário do Município de Chácara, não há motivos para a desapropriação para fins de “regularização do sistema viário do Município”.[5]
APELAÇÃO CIVEL. DESAPROPRIAÇÃO AMIGÁVEL. DIREITO DE RETROCESSÃO. TREDESTINAÇÃO ILÍCITA. DEVER DE INDENIZAR. 1. O instituto da desapropriação, modalidade de intervenção supressiva da propriedade que se legitima a partir do reconhecimento da sua função social, terá lugar, nos termos do artigo 5º, XXIV, da Constituição da República, quando, mediante procedimento legalmente estabelecido, verificar-se necessidade ou utilidade pública, ou interesse social; e a sua consolidação dependerá, via de regra, de prévia e justa indenização em dinheiro. 2. Nada obstante, quando o ente público desistir dos fins a que se destinava a desapropriação, liberando-a de qualquer finalidade que atenda ao interesse público tredestinação ilícita -, surge para o expropriado o direito de reaver o bem (retrocessão) ou o de obter indenização correspondente à diferença do preço atual da coisa com o do valor recebido à época da expropriação, nos termos do artigo 519 do Código Civil de 2002. 3. Caso concreto em que a parte autora somente aceitou a desapropriação amigável e pelo preço vil praticado em razão da finalidade pública específica que seria dada ao imóvel. De modo que a violação de legítima expectativa da parte autora – que, não fosse a finalidade pública anunciada, evidentemente preferiria a… justa e prévia indenização em dinheiro pelo valor de mercado do bem (30 vezes maior do que o pago) – malfere o princípio da proteção da confiança e, via de consequência, acarreta a ilicitude da tredestinação. Quadro fático que desnuda também conduta infensa à moralidade administrativa, ao princípio da motivação do ato administrativo e situação contrária ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito, na medida em que a modificação da destinação do bem, a um só tempo, suprimiu a motivação declarada do ato e trouxe ganhos expressivos à Administração Municipal em detrimento do direito à justa indenização constitucionalmente garantida à parte expropriada (art. 5º, XXIV, CRFB). 4. À vista de que há pedido de indenização, subsidiário ao de retrocessão, e tendo em conta que os imóveis expropriados encontram-se ocupados pelos prédios-sede das empresas cessionárias (fls. 637/663), tem-se que a opção reparatória seja a mais alinhada ao princípio da razoabilidade. 5. Sentença reformada. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.[6]
Como o ato de desapropriação é discricionário, o elemento de motivação é requisito de sua validade e só é preenchido se estiver exposta de forma explícita, conforme os termos do Enunciado 4. Espera-se, assim, que, com este enunciado chancelado por grandes especialistas do Direito Administrativo, o Poder Público se sinta compelido a cumprir com o seu dever de motivação dos atos administrativos e, caso descumpra, que o Poder Judiciário, quando provocado, reconheça a nulidade do ato administrativo por vício de motivação.
Ademais, como salientado, o cumprimento deste dever de motivação adequada do ato administrativo viabiliza a sindicância destes atos, principalmente no que se refere a eventual desvio de finalidade em sua prática. Isso porque, conhecendo-se de forma clara, explícita e congruente o motivo do ato, o particular que tiver seu direito à propriedade cerceado de forma arbitrária, em ato administrativo viciado, possuirá os meios necessários para demonstrar a existência do vício que enseja a sua nulidade.
Com isso, o Poder Judiciário terá, igualmente, maior segurança de avaliar a adequação do ato sem invadir a sua esfera de competência, o que poderia ocorrer em caso de avançar sobre o mérito do ato administrativo. A identificação de arbitrariedade estará vinculada à existência de um desvio de finalidade, que será facilmente aferido a partir da motivação contida no ato, sendo ela apropriada e subsumida aos tipos previstos em lei, bem como à destinação dada ao bem nos termos da motivação do ato de desapropriação.
A bem da verdade, o Enunciado 4 reforça a teoria dos motivos determinantes, construção doutrinária que defende, nas palavras de EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER, MATHEUS LOPES DEZAN e FABIANO HARTMANN PEIXOTO, que:
[…] a validade das decisões administrativas guarda vínculo sincrético com os pressupostos objetivos que as constituem. Significa dizer que a decisão administrativa, ainda que discricionária, deve operar sobre motivos verdadeiros, existentes e corretamente qualificados, a fim de produzir efeitos válidos no mundo jurídico. Revelada a falsidade, a inexistência ou a inadequada qualificação dos motivos de fato expostos pelo administrador, de modo que não haja nexo lógico entre esses elementos fáticos e os motivos legais elencados, far-se-á inválido o ato administrativo.[7]
A teoria dos motivos determinantes também é reconhecida pela jurisprudência pátria, como se vê do seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP):
MANDADO DE SEGURANÇA. Pretensão voltada a assegurar a renovação de licença de funcionamento e exercício de atividade comercial Indeferimento administrativo que se baseia no fato de que o imóvel em questão foi declarado de utilidade pública para fins de desapropriação. Óbice que não prevalece, pois a declaração de utilidade pública, por si só, não tem o condão de afastar a emissão do alvará, no caso dos autos, se preenchidos os demais requisitos para a licença de funcionamento e exercício da atividade. Não havendo notícia de imissão na posse pelo poder público, a não renovação da licença, sob a justificativa de interesse público, para a finalidade desapropriatória, consiste em ato desprovido de amparo legal. Aplica-se ao caso a teoria dos motivos determinantes, com o entendimento de que mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e se sujeitam ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido. Sentença de procedência mantida. Reexame necessário não provido.[8]
O Enunciado 4 se mostra, assim, um passo relevante à proteção dos particulares contra atos de desapropriação praticados de forma arbitrária, dotando-os de meios para demonstrar eventual ilicitude. Confere, também, segurança ao Poder Judiciário para aferir a legalidade do ato sem extrapolar sua competência jurisdicional. Por fim, estimula a Administração Pública a ser cautelosa e diligente na prática dos seus atos, atingindo a finalidade a que se propõe dentro dos limites legais.
Confira também os Comentários já publicados sobre o Enunciado 2 e o Enunciado 3 da 1ª Jornada de Direito Administrativo, os quais também versam sobre o instituto da desapropriação.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores. p. 889.
[2] Art. 5o Consideram-se casos de utilidade pública:
a) a segurança nacional;
b) a defesa do Estado;
c) o socorro público em caso de calamidade;
d) a salubridade pública;
e) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência;
f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica;
g) a assistência pública, as obras de higiene e decoração, casas de saude, clínicas, estações de clima e fontes medicinais;
h) a exploração ou a conservação dos serviços públicos;
i) a abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; o parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais;
j) o funcionamento dos meios de transporte coletivo;
k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza;
l) a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens moveis de valor histórico ou artístico;
m) a construção de edifícios públicos, monumentos comemorativos e cemitérios;
n) a criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves;
o) a reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científica, artística ou literária;
p) os demais casos previstos por leis especiais.
[3] Art. 2º Considera-se de interesse social:
I – o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico;
II – a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não se obedeça a plano de zoneamento agrícola, VETADO;
III – o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola:
IV – a manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habilitação, formando núcleos residenciais de mais de 10 (dez) famílias;
V – a construção de casa populares;
VI – as terras e águas suscetíveis de valorização extraordinária, pela conclusão de obras e serviços públicos, notadamente de saneamento, portos, transporte, eletrificação armazenamento de água e irrigação, no caso em que não sejam ditas áreas socialmente aproveitadas;
VII – a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais.
VIII – a utilização de áreas, locais ou bens que, por suas características, sejam apropriados ao desenvolvimento de atividades turísticas.
[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores. p. 408.
[5] TJ-MG – REEX: 10145041594469001 Juiz de Fora, Relator: Luís Carlos Gambogi, Data de Julgamento: 10/07/2014, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL.
[6] TJ-RS – AC: 70059513366 RS, Relator: Marlene Marlei de Souza, Data de Julgamento: 16/05/2019, Terceira Câmara Cível.
[7] SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano; DEZAN, Matheus Lopes. A decisão administrativa robótica e o dever de motivação. JOTA, 2020. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/a-decisao-administrativa-robotica-e-o-dever-de-motivacao-01092020. Acesso em 21 out. 2020.
[8] TJ-SP – REEX: 30002117820138260244 SP 3000211-78.2013.8.26.0244, Relator: Paulo Dimas Mascaretti, Data de Julgamento: 28/01/2015, 8ª Câmara de Direito Público.
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